29 julho 2016

Humor armado de Henfil (5)



Num congresso de fisioterapia, realizado em 1981 em Salvador, Henfil compareceu para falar de suas
experiências com a hemofilia ao longo de sua vida e para cá também levou as lições de autoconfiança que assimilou, conjugadas com a fisioterapia. “A determinação de um hemofílico pode permitir um tratamento com a fisioterapia dispensando o plasma e os remédios químicos. Se o hemofílico sair da redoma em que normalmente é colocado pela mãe, pode levar uma vida normal. A metade dos hemofílicos permanece nessa redoma, superprotegidos. Esses são os corruptos da classe. A outra metade entre a qual me coloco são os marginais”, brincava ele, citando os exemplos do ator Richard Burton que não aceitava extras em cenas perigosas, e do próprio irmão Herbert de Souza, o Betinho, o exilado político da música “O Bêbado e a Equilibrista”.

Henfil: o Humor Subversivo é o título do livro de Márcio Malta, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutorando em Ciência Política (PGCP/UFF) e cartunista profissional, assinando seus desenhos com o pseudônimo de Nico. A obra aborda a contribuição política do cartunista Henfil, percorre seu trabalho artístico e a luta contra os desmandos do regime militar. Publicado pela editora Expressão Popular, o livro faz parte da coleção Viva o Povo Brasileiro, que visa resgatar a memória de personalidades que lutaram para transformar o Brasil.

“Em seu campo de atuação profissional, Henfil foi ímpar. Dono de um traço leve, ágil e despojado de preocupações estéticas, acadêmicas e tradicionais, seu estilo se caracterizava pela síntese. Seu estilo era tão pessoal, que é impossível imitá-lo. Em certa feita, Jaguar comparou Henfil com Garrincha, ou seja, único” (p.37). “Por meio de seu traço limpo e ágil, conseguia dar vazão a tudo aquilo que não poderia ser verbalizado nos tempos sombrios da ditadura” (p. 39)

“Nas histórias em quadrinhos de Henfil pode-se afirmar que o ciclo não se encerra no momento da reflexão do receptor. O humorista compunha uma espécie de parceria com o leitor. Os personagens chegam a dialogar com o público, estimulando a tomada de consciência. Charges como as que figuram os quadrinhos eram recortadas e mostradas, contadas e recontadas, construídas e reconstruídas no imaginário popular, conscientizando e dando asas as formas de resistência. Exemplo clássico da interação com o público é o quadrinho em que o trio de personagem da caatinga tenta localizar a esperança olhando para os lados. A proposta por si já é fantástica, se constituindo como um convite para a imaginação, posta que o sentimento não é algo visível” (p. 40/41)

A lista de criações de Henfil constam a feminista Zilda-Lib, a onça Glorinha, anarquista, líder do comando de Libertação do Quadrinho Nacional. A missão da Onça Glorinha era caçar o “agente imperialista” Mickey. Certa vez ela comeu a Graúna, achando se tratar do camundongo de Walt Disney. Henfil admite que fez uma provocação ao tipo de intervenção que grupos da luta armada faziam. A importância conferida por Henfil ao elemento feminino das personagens, como a onça Glorinha e a Graúna, que se comportam como as mais valentes e combativas. Era essa a percepção que Henfil detinha do poder feminino. Trabalhando com a reversão de expectativas fazia ainda o riso rolar solto.

Henfil criou outros personagens. Continuava apontando as desgraças do homem médio brasileiro,
mas de maneira mais simples. Havia fome, falta de liberdades civis, desemprego, e injustiças sociais, e era preciso denunciar isso. Graúna, Zeferino, Bode Orelana, Ubaldo, Orelhão, cada tipo sublinhava, com humor amargo, aquilo que se lia nos jornais e se via nas ruas. Era um trabalho mais direto, mas nenhum personagem mostrava as vísceras do povo como o Fradim. O personagem mostrou de maneira completa os horrores da condição humana e, ao que se sabe, o país de Sarney (presidente na época) tem quase nenhuma diferença daquele governado por militares.

No final dos anos 70, ele lançou uma revista com histórias mensais dos monges loucos. Não durou muito, a revista era cara e o País começava a enfrentar mais uma de suas crises econômicas. Henfil colaborou com diversos jornais revistas: Status, Isto É, Pasquim, Jornal dos Sports, Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S.Paulo. Escreveu vários livros: Henfil na China, Cartas da Mãe, Fradim da Libertação, Diário de um Cucaracha. Fez um filme, Tanga, Deu no New York Times.

A obra do cineasta baiano Glauber Rocha foi um dos fatores que influenciou a criação de Henfil.
Desde a realização de cenários que assimilavam a técnica do Cinema Novo e suas tomadas; assim como a influência na escolha de temas ao criar seus personagens. Em paralelo ao cinema novo, outra grande influência de Henfil ao rabiscar a caatinga foi o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. A inspiração veio a partir do momento em que ganhou o livro de Betinho. O cartunista soube traduzir para os quadrinhos duas contribuições essenciais para compreender o Brasil.

Henfil foi um homem de denúncias. Foi ele quem calibrou a expressão Diretas Já e sofreu depois por ser contra o Colégio Eleitoral e, consequentemente, contra o governo de Tancredo Neves e seu vice, eleitos indiretamente. Um guerrilheiro do cartum, assim Henfil foi definido pelo cartunista Miguel Paiva. “A produção de Henfil, em sua quase totalidade (conta Nico em seu Henfil, o humor subversivo), foi pautada em termos críticos. Adotou o lápis como arma para denunciar e questionar tradições e comportamentos sociais. Tocava em pontos-chave, desenvolvendo um inconformismo contagiante. Valores, que até então eram vistos como naturais, eram espezinhados na mão do cartunista”. Segundo o caricaturista Cássio Loredano: “Henfil tirou de debaixo do tapete o que para lá tinham varrido zelosamente a nossa História inteira”.

Autor de vários livros (a maioria deles de charges) – Hiroshima, meu Humor; Henfil na China; Cartas à Mãe; Diário de um Cucaracha e Diretas Já – e de um filme, Tanga, ou Deu no New York Times, ele escreveu ainda uma peça de teatro Tem um Pinto no Meio do Caminho e participou do programa TV Mulher com o quadro TV Homem.

Ele viveu apenas 44 anos (1944/1988), mas, como poucos soube compreender e captar a essência do desencadear dos acontecimentos de sua época. Um guerrilheiro do cartum, assim Henfil foi definido pelo cartunista Miguel Paiva. Sua obra foi muito marcada pela ditadura militar. O regime supriu direitos sociais e individuais e constitucionais, assim como das liberdades democráticas.

As tiras, o texto e os cartuns de Henfil, significaram, em quase todo o período militar, um sopro de esperança. Em 1970, com a ida de grande parte dos militantes para a guerrilha, Henfil criou o Zeferino. Sua intenção era chamar as pessoas a enfrentar a ditadura. “Quem era ele? Um cangaceiro... Você tem de ser o cangaceiro! Tem de se transformar no cangaceiro!”, explicou Henfil em entrevista ao jornalista e amigo Tárik de Souza. A história se passava no sertão, usando a fome e a seca para se contrapor à propaganda do “milagre econômico” e dialogar com a classe média do “Sul Maravilha”.

 Zeferino foi criado como personagem principal. Discutia com o bode Francisco Orelana (uma crítica ao intelectual de esquerda, que ``comia” livros e pouco agia), e formava um casal com a Graúna. Esta ganhou vida própria (como a maioria de seus personagens) e tornou-se a protagonista. Hemofílico, acabou numa das muitas transfusões de sangue contaminado pelo vírus HIV. Henfil estava com Aids quando pouco se sabia dessa doença; Morreu em 1988, debilitado mentalmente. Henfil é sempre atual. E profundo em seu humor cáustico.

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