30 maio 2008

Música & Poesia

Vida (Chico Buarque)

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Deixei a fatia
Mais doce da vida
Na mesa dos homens
De vida vazia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Verti minha vida
Nos cantos, na pia
Na casa dos homens
De vida vadia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz.




Operário em Construção (Vinicius de Moraes)

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

29 maio 2008

Renovação cíclica

A vida política européia está em ebulição. Os governos de direita estão à frente dos principais países europeus. Silvio Berlusconi reassume o governo da Itália. Conservadores britânicos obtiveram uma vitória arrasadora nas eleições municipais até mesmo na prefeitura de Londres. Na França o pequenino Nicolas Sarkozy festeja seu primeiro ano na presidência. Países menores como Dinamarca, Bélgica e Holanda deram à direita supremacia no Velho Continente (exceção da Espanha onde os socialistas venceram).

Os analistas afirmam que esse movimento traduz uma renovação cíclica que é natural. Se os anos 50 a 70 foram da esquerda. A direita voltou com um programa neoliberal nos anos 80. A esquerda ressurgiu nos anos 90 com o novo perfil ideológico – mistura de liberalismo econômico e bem-estar social – defendido pelos dirigentes do Reino Unido, Itália, Alemanha e França. Agora vamos observar o que essa direita vai fazer com a alta criminalidade e a relação com os imigrantes a curto prazo.


Botox

Com a entrada em funcionamento da TV de alta definição, artistas e políticos ansiosos por rejuvenescer a face fazem de tudo para ter o rosto esticadinho. E tome-lhe botox (tratamento com a substância, toxina butolínica para impedir a contratura muscular). Todos querem o corretivo de marcas faciais e o resultado é a estampa de homens e mulheres preocupados com a imagem. Escravos da beleza sem nenhuma expressão.



Zoadeira

Sons estridentes de bares e veículos dos freqüentadores desses estabelecimentos proporcionam horas sem dormir dos moradores do centro da cidade e bairros periféricos. Embora exista determinação de cobrança de multa para quem insistir em manter a intimidade do volume extremamente alto depois das 22h pela Superintendência de Controle do Uso do Solo do Município (Sucom) não há fiscalização. E como escreveu Juliana Cunha (Metrópole nº11): “a prática consiste em estacionar o carro o mais próximo possível da loja de conveniência, abrir o porta-malas e ligar o som do veículo (cuja potência é inversamente proporcional ao falo do proprietário). Depois, é só comprar cerveja (...) e esperar as mulheres se hipnotizarem por essa espécie de dança do acasalamento com cheirinho de óleo diesel”.


Penúria alimentar

O forte desequilíbrio atual entre produção e consumo vai mudar completamente as negociações internacionais. Esse desequilíbrio tem peso na elevação de consumo. A produção agrícola mundial cresce, mas a demanda firme encolhe estoques, gerando aumento de preços. Líderes mundiais em produção de milho, os EUA adotaram o produto como energia alternativa e o resultado: estoques baixos.

O economista Bruno Parmentier disse em seu livro “Alimentar a humanidade” que o século 21 será uma era de penúria alimentar. Para lê vai ser necessária uma revolução para reverter a atual crise mundial: na agricultura, no comércio, nos hábitos. E lembra que dos 6.655 bilhões de habitantes do planeta, 887 milhões são submetidos e 1,12 bilhão têm excesso de peso. Isso faz sentido?”. Além da mudança de hábitos alimentares, é preciso parar de desperdiçar.

A crise dos alimentos já afeta o bolso do cidadão, mas a expansão do consumo pode render benefícios comerciais no Brasil. Já tomamos o lugar dos americanos como fornecedor do milho para países como Portugal, Espanha e Brasil. É necessário que o Brasil rompa algumas barreiras impostas por muitos países importadores. O momento é este porque eles precisam de alimentos.



Fugitivos

“Num país de fugitivos, aqueles que andam na direção contrária parecem estar fugindo” (T.S.Elliot)

É fácil entender os que andam na direção em que todos andam. Seus pensamentos e atos têm suas origens no tempo e são expressões da teia das relações sociais em que estão enraizados. Eles pensam e falam numa lógica rigorosa e um desenvolvimento previsível. Assim, basta que as primeiras palavras sejam ditas para que se possa adivinhar quais serão as últimas.

Os que andam na direção contrária, entretanto, são aqueles que dizem o que não se pode adivinhar e que não era previsto. Seus pensamentos e suas palavras são sempre um susto, uma surpresa. Estes são os poetas, místicos, visionários, profetas, loucos. A fala dos que andam na direção contrária atravessa décadas.


28 maio 2008

Jardim dos sonhos

Ele nasceu em um jardim sentindo o cheiro das flores e o vento que acariciava sua pele, ouvindo os sons das folhas balançarem com o sopro dos ventos e aquela profusão de cores ao seu redor. O jardim era o seu mundo. E assim ele cresceu acreditando existir um jardim em seu corpo e, a cada atividade, procurava recuperar o jardim perdido seja em seu bairro ou mesma na cidade vizinha.

Seu amor por jardim era tanto que ele se tornou jardineiro. E com grande eficácia conseguia prazer no que fazia. Cuidar das plantas. Naquele pequeno pedaço verde de terra ele operava o milagre de fazer com que a vida ressurgisse com beleza. Era um trabalho detalhista, de amor à natureza. Sua vida era um jardim, pois ele respirava o verde das árvores, o perfume das flores e carregava dentro de si um jardim de delícias, um jardim de sonhos.

Todos que passavam pelo local não conseguiam enxergar o jardineiro, e sim o jardim com toda beleza. Durante os últimos 20 anos ele fazia sempre a mesma coisa com um sorriso enorme no rosto. Sua voz era suave quando falava com as flores e sentia que suas palavras estavam sendo ouvidas. O cuidado que tinha com o jardim era visível a todos.

Enquanto para muitos aquele trabalho deveria ser um tédio, para ele era uma excitação. Ele nunca desprezava a repetição e, ao atingir seu acorde final tão logo tenha conseguido cuidar de cada canto do jardim, a beleza se fazia surgir. E a cada vez que ele repetia o cuidado com as plantas, cada vez mais era de uma forma diferente. Cada repetição é uma ressurreição, um eterno retorno de uma experiência passada que parecia nova em folha.

A vida humana, mesmo nos momentos de maior tragédia, é uma luta pela beleza e a beleza exige a repetição. Uma vez só não basta. É como o Bolero de Ravel. Há um único tema ao longo de todo o Bolero, e a idéia em espiral. Cada volta na espiral é a mesma coisa e é outra coisa. Assim é a vida do jardineiro. Afinal o sol nasce e morre a cada dia e essa beleza é diferente a cada renascer.


Assim é o jardineiro, a cada repetição a beleza renasce nova e fresca como a água que borbulha na mina. E, a cada dia, a cada momento ele passa a cuidar com minúncia do seu jardim, desenvolvendo essa repetição e modificando, transpondo esse acontecimento fortuito para fazer disso um instante de beleza, de prazer. O cuidar das coisas belas. E ele saber de cor onde estava cada plantinha e mesmo que tudo aquilo desaparecesse ele seria capaz de recriá-lo, porque todas as árvores, folhas, flores e raízes estavam formado em seu corpo. A essência do jardim estava dentro dele. A beleza que ele via no jardim era a beleza que morava em seu corpo.

Até que um dia, ao passar por um local nunca antes visto, ele deparou-se com o deserto e, procurou desesperadamente um jardim. Ele sabe que o deserto era belo porque, em algum lugar, esconde um jardim. Mas sua procura foi em vão, no deserto não havia jardim. E o jardineiro que inconscientemente compôs sua vida segundo as leis da beleza da natureza, nesse instante do mais profundo desespero ele entristeceu e sentou em uma pedra que havia no local. Ficou até por horas, dias, semanas até que desapareceu feito pó. O vento então soprou o pó pela terra deserta e com a chegada da chuva, com o tempo, o milagre do pó do jardineiro ressurgiu em folhas verdes e, meses depois, aquele deserto transformou-se em um belo jardim, onde a vida fez amor com a beleza. No jardim seu trabalho se realizou. No jardim ele encontrou o prazer e descansa. Pura contemplação.

27 maio 2008

Tango, um sentimento triste que se baila (2)

Outro grande nome do tango argentino, contemporâneo de Gardel, foi Astor Piazzolla. Sua música encontrou resistência nas tradicionais famílias argentinas, mas representava a evolução de um ritmo que transcendeu os limites do popular para incorporar o erudito. Compositores europeus como Stravinski e Milhaud utilizavam elementos do tango em suas obras sinfônicas. A partir daí o tango começa a sofrer tentativas de renovação. Entre os representantes dessa tendência figuram Mariano Mores e Aníbal Troilo e, sobretudo, Astor Piazzolla que rompeu decididamente com os moldes clássicos do tango, dando-lhe tratamento harmônicos e rítmicos modernos. E o tango (como o samba, no Brasil) tornou-se símbolo nacional com forte apelo turístico. Casas de tango e o culto aos nomes famosos de Gardel e Juan de Dios Filiberto perpetuaram o gênero.

Com a invasão do rock and roll americano as danças de salão passaram a ser praticadas apenas por grupos de amantes e o tango passou a ser substituído por outros ritmos estrangeiros. Com o desinteresse comercial das gravadoras, poucos grandes tangos foram compostos. Muitos críticos musicais lembram quem o tango é irmão do fado. Os dois nasceram em meios difíceis, onde os homens se refugiam para esconder a solidão. Os dois gêneros abordam essa realidade. O tango nasceu na cidade portuária de Buenos Aires, nos bordéis e bares, assim como o fado em Portugal.

O tango inspirou grandes obras de diversos artistas em diferentes meios artísticos, seja no cinema, na moda, nos quadrinhos, na literatura, no teatro e nas artes plásticas. O tango tem sido uma inspiração para os filmes desde a invenção do cinema. Como a cena de tango interpretada por Rudolph Valentino no filme “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse”. “Tango”, de Carlos Saura é imperdível. A música e a dança aparecem também no filme de James Cameron, “True Lies” com Arnold Schwarzenegger e Jamie Lee Curtis. E a famosa dança de Al Pacino em “Perfume de Mulher”. Não se pode esquecer o clássico “Último Tango em Paris”, com Marlon Brando e Maria Schneider, do cineasta Bernardo Bertolucci. Muitos outros filmes, através dos anos, apresentaram o tango, além dos musicais “Chicago”, “Rent” (Os Boêmios) e “Moulin Rouge”.

Nas histórias em quadrinhos o tema que me vem à lembrança é a imortal criação do italiano Hugo Pratt, Corto Maltese que atravessa meio mundo para procurar velhos amigos na Argentina ("Tango Argentino"), mas tem diversas obras que aborda o assunto. Por sua forte sensualidade, o tango que foi, a princípio, considerado impróprio a ambientes familiares, mais tarde o ritmo herdou algumas características de outras danças de casais como as corridas e quebradas da habanera, mas aproximou-se mais o par e acrescentou grande variedade de passos. Os dançarinos mais exímios compraziam-se em combiná-los e inventar outros, numa demonstração de criatividade.

Da ancestral e complexa relação entre os seres humanos, fora dos ambientes populares e dos prostíbulos (onde imperava nos subúrbios), o tango perdeu um pouco da lendária habilidade dos bailarinos. Admitido nos salões, abdicou das coreografias mais extravagantes e evitou posturas sugestivas de uma intimidade considerada indecente, numa adaptação ao novo ambiente. A entrada da mulher na dança acrescentou vida, beleza e sensualidade no baile.

A dança é um ritual. Os dançarinos, impassíveis estão sempre sérios e com o olhar fixo. Em nenhuma dança o olhar desempenha um papel tão importante quanto o tango. As pernas são fundamentais, cruzam e entrecruzam em movimentos rápidos e o movimento do corpo é dramático. A Assim, o tango é o grande protagonista cultural da vida da cidade, e talvez a maior contribuição de Buenos Aires à cultura popular universal. Não é só música ou dança, o tango é uma maneira trágica de viver. Um sentimento triste que se baila.

26 maio 2008

Tango, um sentimento triste que se baila (1)

Ao ouvir o som do tango surge sempre a imagem de glamour, sensualidade e determinação no olhar. Mas nem sempre foi assim. O início da dança mais famosa dos argentinos não passava de uma simulação de luta entre dois homens com faca em punho. A princípio era apenas um ritmo para dançar e suas origens nasceram do Tanguillo da Andaluzia (Espanha) e da Habanera, rumba cadenciada que se dançava em Havana, Cuba. Recebeu influências de ritmos africanos, candombe, de onde aliás se deriva o nome tango (em alguns dialetos africanos tango significa lugar fechado onde as pessoas se encontram). Inicialmente era considerado música de marginais, em que homens dançavam entre si nas ante-salas dos prostíbulos.

No final do século XIX, Buenos Aires era uma cidade em expansão. Sua população era de imigrantes espanhóis, italianos, alemães, húngaros, árabes e judeus. Cerca de 70% da população era composta por homens ávidos pelas promessas de fortuna e 25% de negros que dançavam no ritmo do candombe. E é neste cenário que dá início ao tango, praticado em bordéis e prostíbulos ao som de violino, flauta e violão. O bandoneón surgiu somente em 1900, substituindo a flauta.

Assim o tango nasceu como expressão folclórica das populações pobres, oriundas de todas aquelas origens, que se misturavam nos subúrbios da crescente Buenos Aires. Os imigrantes, na sua maioria gente pobre e com um fardo difícil, transmitiram nostalgia e um ar melancólico para as músicas. Talvez por isso os portugueses se identifiquem tanto com o tango. Dança multicultural que se identifica com o povo português, o folclore, os bairros pobres, a nostalgia, assemelhando-se ao fado.

A fase inicial era puramente dançante. O povo se encarregava de improvisar letras picantes e bem humoradas para as músicas mais conhecidas. O baile era corporal, provocador, com movimentos explícitos e letras obscenas: “duas sem tirar”, “gozo com tanto vento”, “a espiga de milho” (no sentido metafórico). O êxito desses espetáculos tornou-os mais frequentes. Eram organizados apenas por homens. Em público, apenas dançavam homens com homens. Naquele tempo era considerada obscena a dança entre homens e mulheres abraçados, sendo este um dos aspectos do tango que o manteve circunscrito aos bordéis.

Enquanto aguardavam a vez para entrar nos quartos das prostitutas, passavam o tempo bailando, homem com homem. Mais tarde, o tango se tornou uma dança tipicamente praticada nos bordéis, principalmente depois que a industrialização transformou as áreas dos subúrbios em fábricas transferindo a miséria e os bordéis para o centro da cidade. Nessa fase haviam letras com temática voltadas para esses ambientes. Eram letras francamente obscenas e violentas. As letras são escritas no peculiar dileto portenho, o lunfardo. Gíria usada por delinqüentes e gigolôs, mistura de espanhol, de dialetos italianos, de português, de idiomas indígenas. Tanto a música como a letra assumira tom acentuadamente melancólico, com temas obre os tropeços da vida e desenganos amorosos. A temática é ligada à boemia, com menção ao vinho, aos amores proibidos e às corridas de cavalos.

As pessoas ricas não podiam dançar o tango, porque dizia que os dançarinos ficavam muito juntinhos, fazendo passos sensuais e as outras danças da época eram mais comportadas. Por isso, o tango só era dançado nas áreas pobres de Buenos Aires. Dos subúrbios chegou ao centro de Buenos Aires, por volta de 1900. E as primeiras composições assinadas surgiram na década de 1910, no período conhecido como Velha Guarda. É nessa época que os emigrantes argentinos chegaram a Paris, levando consigo o tango. A sociedade parisiense da época ansiava por novidades e extravagâncias. O tango logo se transformou numa febre na capital francesa e, como Paris era o ícone cultural de todo mundo civilizado, depressa o tango alastrou ao resto da Europa.

O tango começou a ser exportado para o mundo por intermédio de marinheiros de diversas partes do mundo, encantados com suas incursões em terras pelas noites argentinas. A Argentina reabilitou o tango cantado, que a ditadura dos generais tentara erradicar, e redescobre a riqueza de suas origens e a filosofia que o acompanha. Até países como a Finlândia o tango tornou-se uma verdadeira instituição. Os mais conservadores e moralistas condenavam o tango (assim como já tinham condenado a valsa), por o considerarem uma dança imoral. Afinal, meter a perna entre as pernas de uma senhora era ofensivo e obsceno. A própria alta sociedade argentina desprezava o tango, que só passou a figurar nos salões da classe alta, graças ao efeito de ricochete provocado pelas notícias eu anunciavam o sucesso da dança em Paris. A partir de 1917 a letra passou a ser parte essencial do tango e, consequentemente, surgiu os cantores de tango. “Mi Noches Tristes” é considerado o primeiro (ou pelo menos mais marcante nessa transição) tango-canção. De 1928 a 1935 Carlos Gardel reinou e atraiu multidões. Ele foi responsável pela popularização do tango, estrelando filmes musicais de tango produzido em Hollywood. A figura lendária de Gardel é o símbolo clássico do tango cantado. Seu parceiro, compositor e escritor de suas canções inesquecíveis como “Mi Buenos Aires Querido”, “El Dia que me Quieras” e “Volver”, foi Alfredo Le Pera, brasileiro.

Invadindo a cena da música para tirar o tango da marginalidade do “bas-fond”, Gardel cantou os caminhos e descaminhos do “Viejo Barrio”, “Mano a Mano”, “La Cumparsita”, “Caminito” e “Mi Buenos Aires Querido”. Com pinta de Rodolfo Valentino, o ator romântico do cinema mudo de então, Gardel gravou 500 discos, tendo ainda atuado no cinema, filmando nos anos 30 em estúdios da França e dos EUA. Só não acumulou fortuna porque foi também um perdulário, tão apaixonado pelo tango como por mulheres e corridas de cavalo.



21 maio 2008

Tiranias e servidões dos monoteístas

O intelectual francês Michel Onfray que estará entre nós no dia 28 de maio participando do Fronteiras Braskem do Pensamento, defende uma filosofia hedonista e libertária e é o criador do Universidade Popular de Caen, no norte da França, com aulas abertas a quem se interessar. Em seu livro Tratado de Ateologia (Martins Fontes, 2007) ele mostra o olhar obscuro do monoteísmo, a obsessão da pureza, o ódio à ciência e a negação da matéria.

Os monoteistas não gostam da inteligência, dos livros, do saber, da ciência. Este mundo não tem direito de cidadania, pois a terra inteira carrega o peso do pecado original até o fim dos tempos. O judaísmo, cristianismo e o islã detestam as mulheres: gostam apenas das mães e das esposas. “É conhecida a prece judaica da manhã que convida cada homem a bendizer Deus durante o dia por ter feito judeu, não escravo e...não mulher (Men.43b)! Sabe-se também que o Corão não condena explicitamente a tradição tribal pré-islâmica que justifica a vergonha de se tornar pai de uma filha e legitima a interrogação: conservar a criança ou enterrá-la na poeira (XVI, 58)? Por sua vez, alegres companheiros, os cristãos submetem a discussão no concílio de Mâcon, em 585, o livro de Alcidalus Valeus intitulado Dissertação paradoxal em que se tenta provar que as mulheres não são criaturas humanas. Não se sabe onde está o paradoxo (!) (...) mas a prevenção da Igreja com respeito às mulheres continua de sinistra atualidade”, lembra o pensador francês.

O filósofo enumera uma série de regras contra as mulheres: proibição às mulheres de estudar o Torah – obrigatório para os homens; não há autorização para as descendentes de Eva, para recitar preces, vestir o xale, autorização para possuir, mas não para gerar nem administrar seus próprios bens, tarefa do marido. “Pode-se verificar que Deus faz o homem à sua imagem, não à da mulher...”. O islã afirma claramente a superioridade dos machos sobre as fêmeas, pois Deus prefere os homens às mulheres (IV, 34). Daí uma série de ditames: proibição de deixar ao ar livre os cabelos – o véu -, a pele dos braços – das pernas; proibição de se casar com um não-mulçulmano, casamento obrigatório. Dos desejos sexuais do marido; legitimação do espancamento da esposa em caso de suspeita, nem é preciso provar a culpa.

E o filósofo vai mais longe nos argumentos religiosos para a mutilação: “Enfaixamento chinês dos pés, alongamento padoung do pescoço por meio de argolas, limagem dos dentes, perfuração do nariz, orelhas ou dos lábios nas tribos da Amazônia, escarificações e tatuagens polinésias, esmagamento peruano da caixa craniana procedem dos mesmos pensamentos mágicos que a excisão e a infibulação africanas ou a circuncisão judaica e mulçumana. Marcação do corpo por razões religiosas, sofrimentos rituais a fim de alcançar a integração na comunidade, práticas tribais destinadas a angariar para si a benevolência dos deuses, razões não faltam em citar as hipóteses psicanalistas”.

Para concluir, eis o pensamento do físico norte-americano, Steven Weinberg, detentor do Prêmio Nobel de Física: “Com ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião”.

20 maio 2008

Jovens mutilados em nome do louvor a Deus (2)

Há 130 anos (1878) o Vaticano deixava de usar homens emasculados no seu coral. Numa época em que o palco da ópera era proibido às mulheres, o talento dos eunucos (homens castrados) encantava as exigentes platéias da Europa. Desde a antiguidade até tempos recentes, homens sexualmente mutilados foram usados para vigiar haréns, fazer tarefas domésticas ou servir como espiões para reis e imperadores. Eram comuns em Roma, na Grécia, no norte da África, nas terras bíblicas e na Índia. Até mesmo a Europa do século XVIII idolatrava os castrati, cantores que tinham sido emasculados na infância para preservar sua voz masculina de soprano.

O Vaticano, por exemplo, só deixou de usar homens emasculados no seu coral em 1878. Entretanto, em nenhum outro lugar os eunucos tiveram uma importância histórica tão grande quanto nos palácios da China Imperial. A partir do século VIII e, provavelmente até antes disso, homens sexualmente mutilados serviam o detentor do "mandato do céu", suas inúmeras esposas e concubinas. Desde tempos remotos e especialmente depois do advento do confucionismo, os chineses exigiam severa "pureza" moral das suas mulheres. E verdadeiras hordas de eunucos eram empregadas para vigiar a castidade das suas esposas e concubinas. Homens "inteiros" eram mortos se simplesmente se aproximassem do harém, uma vez que a certeza da paternidade era essencial para os governantes. Do contrário, não haveria descendentes para honrá-los por meio do culto dos ancestrais, quebrando assim a frágil harmonia entre o Céu e a Terra.

Por causa da sua proximidade dos governantes, o que lhes permitia influenciar e conseguir favores especiais dos soberanos, e por não poderem constituir família, os eunucos eram a única força política que escapava às restrições do mundo oficial. Por isso, eram odiados pela classe dos mandarins. Mas apesar da forte oposição, os eunucos não perderam sua importância e poder de influência. Ao contrário de outros lugares, os eunucos chineses não eram apenas castrados, mas totalmente emasculados. Um número enorme de meninos era comprado das suas famílias, emasculado e levado ao palácio onde serviam as mulheres do harém e os jovens príncipes.

Muitas damas da corte tinham esses meninos eunucos como animais de estimação. Seu órgão amputado era chamado de "pao" ou "precioso". Preservado num vaso hermeticamente selado, era realmente muito valorizado pelo eunuco, pois a cada vez que ele era promovido tinha de exibir sua preciosidade e ser reexaminado pelo eunuco chefe. Se o pao fosse perdido ou roubado, nessa ocasião ele tinha de comprar outro na clínica que realizava castrações ou alugar o "precioso" de outro eunuco. Também era vital que o órgão fosse enterrado com ele numa tentativa de ludibriar os deuses, fazendo-os acreditar que ele era um homem "inteiro". Do contrário, ele iria para o além como uma mula.

GUARDIÕES DE PALÁCIOS

A palavra Eunuco se refere a homens castrados que guardavam Haréns de Sultões na Ásia. O costume de empregar homens eunucos como guardiões de palácios, de tesouros, de haréns e de exércitos é bastante antigo. Os sultões otomanos, na realidade, adotaram este costume dos Imperadores Bizantinos, nas cortes de Constantinopla. Os eunucos comumente ascendiam a posições de elevada hierarquia e posição política nas cortes onde serviam. Os eunucos mais famosos da História são: Mordecai, Hegai, Saasgaz, Ebede-Meleque, o Eunuco da Rainha de Candace e o General Narses de Bizâncio.

O mais famoso castrato do século XVIII terá sido Carlo Broschi, conhecido por Farinelli, tendo sido realizado um filme sobre a sua vida, Farinelli il Castrato. O filme "Farinelli", de Gérard Corbiau (1994) focaliza a vida do mítico cantor italiano Carlo Broschi (1705-1782), que iniciou sua carreira ao lado do irmão, o pianista Ricardo Broschi. Fora aluno de Nicola Porpora e ganhou muito prestígio em toda a Europa. Aparece como um galã, de olhar triste e solitário, que encerrou carreira como cantor exclusivo do rei Felipe V da Espanha, que o contratou porque seu canto era a única coisa que o tirava da depressão.

"Cry to heaven" é uma obra de Anne Rice de 1982, que descreve a vida de "castrati" italianos, cantores de ópera, na sociedade do séc. XVIII. Homens que foram adulados por multidões, como hoje o são os ídolos pop, sujeitos de paixões por homens e mulheres, mas que, no entanto, não deixavam de ser considerados apenas como meios-homens (ou meio-humanos).

19 maio 2008

Jovens mutilados em nome do louvor a Deus (1)

Um capítulo obscuro da história da música precisa ser revelado. A Igreja Católica praticava impunemente sua calculada e cortante moral dupla. Desde 1587 os papas castigavam a castração com excomunhão ou pena de morte, mas aceitavam com deleite os castrados em seus corais ou como solistas. Ninguém mais que o apóstolo Paulo foi o culpado por essa dupla estratégia, já que, segundo sua pronunciação bíblica, as mulheres deviam se calar na igreja.

A prática de castração de jovens cantores (ou castratismo) teve início no século XVI, tendo surgido devido à necessidade de vozes agudas nos coros das igrejas da Europa Ocidental, já que a Igreja Católica Romana não aceitava mulheres no coro das igrejas. No fim da década de 1550, o duque de Ferrara tinha castrati no coro da sua capela. Está documentada a sua existência no coro da igreja de Munique a partir de 1574 e no coro da Capela Sistina a partir de 1599. Na bula papal de 1589, o papa Sisto V aprovou formalmente o recrutamento de castrati para o coro da Igreja de S. Pedro.

Na ópera, esta prática atingiu o seu auge nos séculos XVII e XVIII. O papel do herói era muitas vezes escrito para castrati, como por exemplo, nas óperas de Handel. Nos dias de hoje, esses papéis são frequentemente desempenhados por cantoras ou por contra tenores. Todavia, a parte composta para castrati de algumas óperas barrocas é de execução tão complexa e difícil que é quase impossível cantá-la.

Muitos rapazes que eram alvo da castração eram crianças órfãs ou abandonadas. Algumas famílias pobres, incapazes de criar a sua prole numerosa, entregavam um filho para ser castrado. Em Nápoles, recebiam a sua instrução em conservatórios pertencentes à Igreja, onde lecionavam músicos de renome. Algumas fontes referem que muitas barbearias napolitanas tinham à entrada um dístico com a indicação "Qui si castrano ragazzi" (Aqui castram-se rapazes).

Em 1870, a prática de castração destinada a este fim foi proibida em Itália, o último país onde ainda era efetuada. Em 1902, o papa Leão XIII proibiu definitivamente a utilização de castrati nos coros das igrejas. O último castrado a abandonar o coro da Capela Sistina foi Alessandro Moreschi, em 1913. Na segunda metade do século XVIII, a chegada do verismo na ópera fez com que a popularidade dos castrati entrasse em declínio. Por alguns anos, ainda existiram desses cantores na Itália. Com o tempo, porém, esses papéis foram transferidos aos contra tenores e, algumas vezes, às sopranos.

FÁBRICA DE VOZES

A Igreja Católica não queria perder o som de vozes angelicais, assexuadas, porém potentes. Assim, retornou-se uma prática comum na Antiguidade. E o mal, que soava grave demais aos ouvidos clericais, foi cortado pela raiz. Antes da puberdade, os rapazes de canto firme perdiam suas glândulas generativas em um procedimento doloroso e, por falta de hormônios, ficavam com suas vozes infantis de soprano ou de contralto. Tudo pelo “louvor a Deus”, expressão com que o papa Clemente VIII sancionou em 1592 a brutal intervenção.

Assim os eunucos tinham vozes de mulheres e pulmões de homens. Com poderosos pulmões e pomos-de-Adão infantis, eles tinham cachê e prestígios ilimitados. Muitos pais não conseguiam resistir à tentação do Vaticano e vendiam seus filhos a conservatórios de eunucos. Nessas fábricas de vozes, os moços castrados treinavam sob um regime militar de no mínimo sete anos, os tons corretos, os altos tons. Dos milhares de rapazes que eram castrados anualmente nos séculos XVI e XVII na Itália, mais de 60% morriam em conseqüência de operação, realizada com instrumentos muito primitivos.

Os que conseguiram sobreviver à delicada intervenção ficaram surdos, mudos ou paralisados – as feridas ensangüentadas não eram desinfetadas, mas sim queimadas ou tratadas com cinzas. Somente 10% dos mutilados revelavam-se suficientemente bons para serem aceitos como solistas nos renomados elencos. Cinco em cada cem castrados conseguiram chegar à efeminada elite. Alessandro Moreschi, o último dos sacrificados em nome do louvor a Deus, morreu, em 1922, aos 63 anos, e pôs fim a um capítulo obscuro da história da música.

16 maio 2008

Música & Poesia

Esquadros (Adriana Calcanhoto)

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle


Neologismo (Manuel Bandeira)

Beijo pouco,

falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo,
o verbo teadorar.
IntransitivoTeadoro, Teodora.

15 maio 2008

Pele, o mais visível órgão do corpo humano (2)

O livro “Pele - Uma História Natural” demole várias teorias sobre a ausência de pêlos nos seres humanos. Essencialmente, o estilo de vida de nossos ancestrais africanos e o rápido aumento do tamanho e da produção de energia em seus cérebros requeria refrigeração mais eficiente do que era o caso quanto a outras espécies. E o melhor mecanismo de refrigeração era suar o mais rápido possível em um corpo desprovido de pêlos. A maioria das pessoas pode produzir um litro de suor por hora num deserto quente e, em alguns casos, até três litros (a cabeça humana manteve os cabelos para proteger o couro cabeludo da radiação do sol tropical). “Sem uma profusão de glândulas sudoríparas para nos manter resfriados por meio de um suor copioso, ainda teríamos o espesso manto de pêlos de nossos ancestrais e viveríamos vidas semelhantes às dos macacos”, escreve Jablonski.

“Foi o velho, simples e nada elegante suor que tornou os seres humanos aquilo que hoje são”. Assim que os seres humanos perderam os pêlos, a cor da pele se tornou extremamente importante. Pigmentação é o campo de estudo em que Jablonski se especializa, e ela emprega bem os seus conhecimentos para explicar as duas principais forças evolutivas que estabeleceram o gradiente de cores predominantes da linha do Equador aos pólos. Há muito os cientistas sabem que a cor da pele humana varia com a quantidade de exposição à radiação ultravioleta (UV) do sol, mas até recentemente eles não haviam identificado o processo de seleção natural que realmente leva a esse fenômeno. Agora o trabalho de Nina Jablonski lança uma nova luz sobre os conceitos de raças ao relacionar a variação de cor da pele à evolução e reprodução.

A melanina, o pigmento marrom da pele, age como um protetor solar natural. Ela protege contra o UV, e as populações dos trópicos têm a pele mais escura por causa da maior incidência da luz do sol nos lugares em que vivem. O UV envelhece a pele, causa câncer de pele, e destrói o folato (ou acido fólico), vitamina B essencial na divisão celular e na produção de novo DNA. Em sua análise da história da evolução humana, Jablonski concluiu que o ser humano moderno muito provavelmente se desenvolveu nos trópicos, onde era exposto a altos níveis de UV. Mas ao se mudar para regiões distantes do equador, onde os níveis de UV são mais baixos, o ser humano se tornou mais claro para permitir que um nível suficiente de radiação UV penetrasse sua pele e produzisse a vitamina D, a "vitamina dólar", também conseguida com uma dieta de peixe e mamíferos marinhos. A vitamina D é essencial para manter níveis saudáveis no sangue de cálcio e fósforo, promovendo assim o crescimento dos ossos.


A cor da pele, basicamente torna-se um ato de equilíbrio entre as demandas evolucionárias de foto-proteção e a necessidade de criar vitamina D na pele. Mas as coisas nem sempre são o que parecem ser. É o caso dos esquimós e outros habitantes do norte do Alasca e do norte do Canadá. "Tomando o Alasca, seria de se pensar que seu povo nativo deveria ser pálido como um fantasma", Jablonski diz. Um dos motivos para isso é que essas populações não vivem na região há muito tempo em termos de tempo geológico. Mas o mais importante, sua dieta tradicional é rica em peixe e outros frutos do mar. Eles consumiram altas doses de vitamina D, não precisando dessa forma passar pela mesma redução de pigmentação que de outro modo seria preciso em latitudes altas como essas. "Interessante mesmo é que se esses povos não comerem suas dietas originais de peixe e mamíferos marinhos, eles sofrem altas taxas de doenças causadas pela deficiência de vitamina D como o raquitismo nas crianças e a osteoporose nos adultos", Jablonski diz.

Um problema semelhante ocorre quando pessoas de pele escura se mudam para altas latitudes. "Durante anos as pessoas não entendiam porque indianos e paquistaneses que moravam no norte da Inglaterra sofriam de males causados pela deficiência de vitamina D", Jablonski diz. "Hoje está claro que o protetor solar natural de suas peles não permitia que fosse sintetizada uma quantia saudável de vitamina D a partir da luz do sol". Fatores culturais exacerbaram o problema, como o uso de véus por algumas mulheres mulçumanas. "É uma verdadeira história de detetive", ela acrescenta.

14 maio 2008

Pele, o mais visível órgão do corpo humano (1)

Para além da faceta dermatológica, a pele sempre teve um papel preponderante na sociedade humana e é esse lado que agora é revelado no livro Pele - Uma História Natural (Skin: A Natural History, University of California Press, 290 págs). O fascinante livro da professora de antropologia na Universidade Estadual da Pensilvânia, Nina Jablonski, é tão abrangente quanto a própria pele. Jablonski trata de tópicos que vão da história evolutiva da pele a perspectivas futuras, tais como peles robóticas ou eletrônicas, passando por temas como suor, cor, tato e dermatite. No processo, ela demonstra que a pele é não apenas crucial para nossa saúde como também um importante veículo para a expressão pessoal. Uma combinação de três atributos torna a pele humana única no reino animal. Primeiro, ela não é revestida por pêlos e sua. Segundo, é produzida naturalmente em ampla variedade de cores, “um fascinante arco-íris em sépia”, nas palavras de Jablonski, que varia do marrom escuro ao branco marfim pálido. Terceiro, ela é uma superfície para decoração, de maquiagem e outras formas de pintura temporária a cicatrizes e tatuagens.

A pele representa 16% do peso do corpo humano. Parece pouco? A pessoa que tem 70 kg, a pele é responsável por cerca de 12 kg do seu peso. Toda a superfície da sua pele mede de 1,5 a 2 metros quadrados. A pele é formada por três camadas, bem unidas entre si. São elas: epiderme, derme e hipoderme. Todas são importantes para o corpo, e cada uma tem características e funções diferentes.

A epiderme é a camada mais externa da pele, aquela que você pode ver, formada, na sua superfície, por células achatadas, chamadas queratinócitos, ricas em uma proteína chamada queratina. É a queratina quem, entre outras substâncias, ajuda a evitar a desidratação, ou perda de água, do organismo. Isso porque esta proteína mantém as células mais unidas e, conseqüentemente, com menos espaço para ocorrer a evaporação da água.

A epiderme tem ainda outras células, chamadas melanócitos, as que produzem a melanina, outra proteína, de cor escura, responsável pela pigmentação da pele. A quantidade de melanina determina a cor da pele de cada um. Além disso, a melanina protege a pele dos efeitos nocivos do sol. A epiderme está em constante renovação: as células mais antigas são substituídas por outras mais novas. As células (queratinócitos) nascem mais redondinhas e vão se achatando à medida que chegam na superfície.

A derme é a camada do meio da pele. Ela mede de um a quatro milímetros. É formada por fibras e por grande quantidade de vasos sangüíneos e terminações nervosas. As terminações nervosas (as extremidades dos nervos, a “pontinha” dos nervos), que estão localizadas na derme, recebem os estímulos do meio ambiente, e os transmitem ao cérebro, através dos nervos. Estes estímulos são traduzidos em sensações, como dor, frio, calor, pressão, vibração, cócegas e prazer.

A hipoderme é a terceira e última camada da pele. Esta camada é formada basicamente por células de gordura. Sendo assim, sua espessura é bastante variável...(depende se a pessoa é gordinha ou magrinha). Ela apóia e une a epiderme e a derme ao resto do seu corpo. E permite que as duas primeiras camadas deslizem livremente sobre as outras estruturas do organismo. Além disso, a hipoderme mantém a temperatura do seu corpo e acumula energia para o desempenho das funções biológicas.

A pele tem várias funções: Transmissão de estímulos e sensações (frio, calor, tato, pressão, dor, vibração, cócegas e prazer), regulação da temperatura corporal (elimina ou conserva o calor do seu corpo, conforme a necessidade), suor , arrepio, proteção (serve de “armadura” para você: suas estruturas protegem o corpo das agressões do meio ambiente, como bactérias e fungos, condições climáticas, poluição e substâncias químicas, entre outras.)
A pele é o maior e mais visível órgão do corpo humano. Sua riqueza e sua complexidade biológicas só são excedidas pelas do cérebro e do sistema imunológico. E, agora, ela enfim ganhou o livro que merece. Nina Jablonski escreveu a obra voltada ao grande público que cobre a pele humana em todos os aspectos “à maneira de uma antiquada história natural”, na definição da autora. Esperamos que a obra seja publicada no Brasil.

”Nossa pele é uma espécie de roupa espacial, dentro da qual nos movemos em meio a uma atmosfera de gases agressivos, de radiação solar e de obstáculos de todos os tipos”, escreveu Diane Ackerman em sua obra “Uma História Natural dos Sentidos”. “Nossa pele – escreveu – é o que fica entre nós e o mundo. Se pensarmos sobre o assunto, verificamos que nenhuma outra parte nossa entra em contacto com outra coisa além de nós como a pele. Ela nos aprisiona, mas também nos fornece a forma individual, protege-nos contra invasores, resfria-nos ou aquece-nos quando necessário, produz a vitamina D de que necessitamos, contém os fluídos de nosso corpo. Talvez o fato mais extraordinário seja sua capacidade de se recuperar e de, constantemente, se renovar. Pesando de três a cinco quilos, é o maior órgão que possuímos e o mais importante para a atração sexual (...) É à prova d´água, lavável e elástica. Apesar de ficar flácida ou enrugada quando envelhecemos, resiste surpreendentemente bem ao tempo. Em quase todas as culturas, é a tela ideal para ser decorada com pinturas, tatuagens e jóias. Porém, mais importante do que tudo, é o centro do tato”.

13 maio 2008

Excitação próximo da morte (2)

A trajetória cinematográfica de Cronenberg sempre foi seguida de escândalo e polêmica. Desde seus primeiros filmes: Calafrios (Shivers, 1975), Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid, 1976), Sua Mente Pode Destruir (Scanners, 1980), A Hora da Zona Morta (The Dead Zone, 1983), A Mosca (1986), Gêmeos (Dead Ringers, 1988), Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991) e M. Butterfly (1994). Em Videodrome (1982) o cineasta uniu pela primeira vez explicitamente sexualidade e tecnologia. O filme explora os efeitos que teria sobre o cérebro a superexposição a imagens saturadas de violência e sexo, e é uma visão prévia da mutação do homem em animal tecnológico, que em Crash alcançou a perfeição.

Na opinião do crítico Luiz Carlos Merten, Cronenberg é um visionário. Fez filmes para superar o horror da degradação física e da monstruosidade que vê no outro. Seu tema é a mutilação provocada pela natureza monstruosa do homem. Em Crash, ele aplica esse tema à máquina, à fascinação do homem moderno pelos carros, tratados como verdadeiros mitos. Representam potência, não sendo por acaso que a propaganda explora muito essa identificação entre potência (sexual) e arranque do motor. Só que Cronenberg expõe uma excitação sensual próxima da morte.

Do mesmo modo, em Crash, as pessoas se divertem ao recriar carros de semi-deuses (James Dean) esmagados nessas máquinas, porque os carros são totens da vida moderna. É dessa experiência que nasce a excitação sexual próxima da morte, porque a velocidade da máquina (libertadora) reproduz o ritmo vital de quem está no comando e tem o poder de vida ou morte sobre o passageiro. Daí o gozo onipotente (e amoral) dos masturbadores de Cronenberg.

O cineasta – analisou o crítico do Estadão, Antonio Gonçalves Filho – está atento para as grandes mudanças que forjam o homem do século 21. A principal delas, obviamente, no campo do erotismo. O que antes era celebração vital (sexo), hoje significa a morte (um vírus mutante como o da aids, por exemplo). A degradação é irremediável para os heróis de Cronenberg, submetidos a uma nova ordem sexual ditada pelo medo do ‘outro’. Em nenhuma outra época houve tantas lojas de carros e sex shops, templos de solitários mutilados em busca de prótese para as pernas e outros membros. Em todo caso, Cronenberg não passa de moralista. Seus personagens são assimétricos, desequilibrados, estão sempre procurando respostas na ciência, sejam eles a mosca de Jeff Goldbum ou os ginecologistas de Gêmeos. Acham que têm direito a uma explicação razoável para sua experiência existencial. E acabam sendo personagens catárticos, mesmo quando vilões, porque se submetem a testes para se livrar da natureza humana. Incômoda, demasiadamente humana”.

Livro e filme não apenas apresentam uma temática polêmica, são os mais visíveis representantes de uma estética da mutilação. Entre seus seguidores estão o dinamarquês Jack Stevenson, colecionador de filmes de antigas campanhas contra o excesso de velocidade que virara cult, o fotógrafo e artista plástico francês Romain Slocombe, que envolve mulheres em bandagem e ataduras para depois fotografá-las como se estivessem feridas e convalescentes. Autor de vários livros – “Broken dolls” (bonecas quebradas) e “L émpire érotique” (sobre o erotismo no Japão), além dos documentos sobre o Japão: “Um monde flottant” (enfocando a fotografia erótica), e “Tokyo love”, sobre os filmes pornôs. “Meu trabalho se relaciona a outras correntes da body art, ligadas ao piercing e à destruição do corpo. Vivemos um momento de falência das ideologias positivas, com as pessoas angustiadas diante de uma virada de século não tão positiva como esperavam. De qualquer forma, minha obra é otimista pois apresento sempre convalescentes. O que me interessa não é o acidente de carro, mas o que acontece depois”- explica o artista. “A imoralidade passiva dessas mulheres é favorecida pelas bandagens. Se estivessem amarradas com uma corda, em vez de passivas pareciam ter sido seqüestradas. Não existe crueldade nisso, mas um sadismo light”.

Nada disso é novo. Esta mistura de crueldade e delicadeza, violência e paz, belo e feio impressionou o escritor Henry Miller em suas incursões japonesa. Para ele, os japoneses – que hoje viraram uma espécie de protótipo futurista – eram o exemplo dessa ambigüidade perfeita na poesia, na pintura e no teatro, onde o objeto de horror pode ser o da beleza e onde o monstruoso e o estético não se chocam.”. O nosso bom e velho Nélson Rodrigues já comentava o assunto. Na história “A desprezada” (episódio de A vida como ela é, exibido pela TV Globo), a bela Maitê Proença só recupera o amor do marido depois de sofrer um acidente de carro e aderir ao look sexy-desastre.

12 maio 2008

Excitação próximo da morte (1)

Crash – Estranhos Prazeres causou furor e desconforto em Cannes/96, proibido em Londres, é metáfora para a colisão da tecnologia com o homem. O filme reúne explicitamente sexo e morte. Esse tema da necrofilia causou frêmitos de admiração, mas uma parte da crítica não se deixou enganar chamando de provocação sexo-blasfematória. Excitação e repulsa envolvendo personagens que sentem prazer sexual provocando acidentes de automóvel. É um filme sobre morte, sexualidade e tecnologia. Drama erótico-automotivo. A desesperadora necessidade de erotização por meio dos acidentes automobilísticos é analisada no filme baseado na obra de J. Ballard. Tipos e situações bizarras são coerentes com o universo do cineasta canadense David Cronenberg, autor de Gêmeos, Mórbida Semelhança e Videodrome, entre outros títulos que exploram a deformação física e psicológica do ser humano. E não foi outro elemento que animou o diretor a filmar o livro do inglês James Ballard, escrito em 1973. “Crash combina erotismo e tecnologia. Os acidentes de carro funcionam como metáfora para a colisão entre a moderna tecnologia e a psique humana”, explica Cronenberg na época do lançamento.

Crash, assim como considerável parte da filmografia de David Cronenberg, é polêmico e para muitos pornográfico. Cronenberg, para quem “o cinema tem de ser complexo, profundo e textualmente denso”, disse estar sempre pronto para as reações e controvérsias porque faz parte do seu prazer em fazer filmes. Ele rejeita a denotação pornográfica explicando que “esse é um tipo de reação apenas da superfície do filme principalmente porque começa com três cenas seguidas de sexo e, ao invés de tentarem entender o que há por trás, acomodam-se com apenas o que vêem. O filme não mostra o sexo como uma solução ou satisfação e não visa de maneira alguma a excitar sexualmente o espectador”. Segundo ele, a busca do orgasmo em acidentes automobilísticos é “uma síndrome muito conhecida, um fato consumado nos círculos de psiquiatria”.

Em “Crash” impressionam as cenas em que mulheres se excitam se esfregando sobre a lataria de carros, ou os casais que só conseguem se relacionar nas ferramentas de automóveis acidentados. Algumas seqüências, de tão eróticas, beiram o pornô, mas estão respaldadas pela filosofia apocalíptica do livro homônimo de Ballard, que cria uma teoria sobre a atração do homem pelo perigo, o sexo e a tecnologia. É o mais alto grau de sofisticação alcançado pela estética crash, que explora o fascínio pela mutilação e que tem em “Encaixando Helena”, de Jennifer Lynch, um de seus exemplos.

Os freaks, os tipos de comportamento desviante, tão caros a Cronenberg, voltam com toda a força em “Crash”. Rosanna Arquete, por exemplo, interpreta Gabrielle, uma vítima de um acidente automobilístico que tem implantes e engrenagens metálicas nas pernas. Tais mecanismos mexem tanto com os hormônios da dra. Helen Ramilton (Holly Hunter), quanto os de Ballard (James Spader). Este, seduzido pelo estilo de vida dos novos conhecidos, sente-se atraído por Vaughan (Elias Koteas), um fotógrafo que gasta seu tempo reconstituindo acidentes célebres. No mundo criado por Ballard e traduzido para as telas por Cronenberg, o sexo e o corpo não têm barreiras definidas.

A atriz Holly Hunter precisou sair a público para revidar os ataques contra o filme. “As pessoas acham o filme perturbador porque elas não têm um ponto de referência a não ser a pornografia. Quando vêem um filme que tem cenas de sexo seqüenciais, como é o caso de Crash, muitas pessoas ficam confusas e começam a compará-lo com a pornografia. Pornografia é feita para despertar o desejo básico. Crash não é nada disso. É um filme sobre coisas muito mais complicadas, contadas de uma maneira extremamente irônica, na minha opinião”, analisa a atriz em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.

Rotulado de “filme de pornoficção futurista”, o filósofo político francês Jacques Rancière escrevendo para o Folha de S.Paulo (Caderno Mais!) afirma que a obra celebra o fim da utopia de união entre o novo homem e a máquina dos sonhos. Agraciado no Festival de Cannes com um prêmio especial “por sua originalidade, ousadia e inventividade”, o filme demonstra a incapacidade de transcendência da arte contemporânea na opinião do sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz.

09 maio 2008

Música & Poesia

Havana-me (Joyce / Paulo César Pinheiro)

Havana-me
Não esqueço teu povo em momento algum
Cubana-me
Me convida a dançar, quebra o meu jejum
Serena-me
Me lambuza de cana, tabaco e rum, havana-me

Havana-me
Bota uma cubalibre, limão e sal
Cubana-me
Me carrega em teu ritmo sensual
Irmana-me
Nossa música tem sangue tropical, havana-me

Tira-me pra bailar,
Quero ouvir teu som caribenho
Por ti, mestiço, eu tenho amor
Me pega pelo quadril
Teu par ainda é o Brasil, havana-me


As Palavras Ressuscitarão (Jorge de Lima)

As palavras envelheceram dentro dos homens
separadas em ilhas,
as palavras se mumificaram na boca dos legisladores;
as palavras apodreceram nas promessas dos tiranos;
as palavras nada significam nos discursos dos homens públicos.
E o Verbo de Deus é uno mesmo com a profanação dos homens de Babel,
mesmo com a profanação dos homens de hoje.
E, por acaso, a palavra imortal há de adoecer?
E, por caso, as grandes palavras semitas podem desaparecer?
E, por acaso, o poeta não foi designado para vivificar a palavra de novo?
Para colhê-la de cima das águas e oferecê-la outra vez aos homens do continente?
E, não foi ele apontado para restituir-lhe a sua essência,
e reconstituir seu conteúdo mágico?
Acaso o poeta não prevê a comunhão das línguas,
quando o homem reconquistar os atributos perdidos com a Queda,
e quando se desfizerem as nações instaladas ao depois de Babel?
Quando toda a confusão for desfeita,
o poeta não falará, do ponto em que se encontrar,
a todos os homens da terra, numa só língua — a linguagem do Espírito?
Se por acaso viveis mergulhados no momento e no limite,
não me compreendereis, irmão!

08 maio 2008

Uma revolução do desejo

Em maio de 1968, ocorreu uma rebelião popular na França que ultrapassou as divisões étnicas, religiosas e de classes. A revolução estudantil de maio de 68 começou por um motivo simples. No mês de março, o reitor da universidade de Nanterre proibiu os rapazes de visitar as moças em seus dormitórios. Em protesto, um grupo de cem estudantes invadiu a secretaria da universidade. O reitor, assustado, suspendeu as aulas e chamou a polícia. Naquele protesto na secretaria da universidade nasceu a figura de um líder estudantil que inspirou uma geração inteira: Daniel “le Rouge” (o vermelho, em francês). Dias depois ele incentivou os estudantes da Sorbonne a seguirem o exemplo da Nanterre. Resultado: a polícia invadiu a universidade e as aulas foram suspensas. Os estudantes e o sindicato de ensino entraram em greve.

Os estudantes tentaram retomar o prédio e resolveram enfrentar as tropas policiais. As ruas viraram um campo de batalha. De um lado, jovens armados de paralelepípedos arrancados das ruas; de outro, policiais e suas bombas de gás lacrimogênio. Sirenes foram ouvidas por dias, fogueiras queimavam em toda parte, centenas de estudantes foram presos. Feridos dos dois lados. Entre uma série de muros pixados, uma frase ficou famosa: “Défense d`interdire!” (É proibido proibir!)

Além dos estudantes, os operários também entraram nas manifestações. Centenas de fábricas foram ocupadas e o número de grevistas chegou a 10 milhões. Bandeiras de Mao, de Fidel, de Che Guevara e de Lênin se juntaram às manifestações. Quase todos os setores da sociedade se envolveram. Pessoas de todas as idades discutiam em auditórios lotados e liam diariamente os boletins dos estudantes.

Assim, entre 1965 e 1970, concentraram–se várias manifestações de estudantes, negros e trabalhadores em geral contra o assim chamado “establishment” (o sistema político estabelecido). Eram movimentos organizados, basicamente, em torno da efetivação dos direitos humanos declarados pela ONU (Organização das Nações Unidas). Destacaram–se, sobretudo, os protestos contínuos ocorridos de 3 a 30 de maio de 1968, em Paris, França. Inicialmente, exigia–se a reabertura da Faculdade de Letras de Naterre, mas devido à reação agressiva da polícia parisiense, uma onda de passeatas se levantou.

Uma revolta permanente foi implantada de um modo geral contra o governo conservador do general Charles De Gaulle (herói da resistência francesa, durante a Segunda Guerra). Sem um fim único concreto, passou a envolver, literalmente todo mundo – EUA, Alemanha, Itália, Inglaterra e América do Sul –, nas reivindicações dos trabalhadores, por melhores salários; dos negros, contra a discriminação racial e dos estudantes, por uma reforma mais democrática do ensino e contra a Guerra do Vietnam.

Os maios de 68 se repetiram ao redor do mundo, com diversos personagens e uma série de realidades diferentes. Zuenir Ventura, em seu livro “1968, o ano que não acabou”, diz que “movida por uma até hoje misteriosa sintonia de inquietação e anseios, a juventude de todo o mundo parecia iniciar uma revolução planetária”.

O movimento estudantil de maio de 1968, iniciado na Universidade de Nanterre e que prosseguiu na Sorbonne, em Paris, desde o início foi saudado com uma saraivada de significados, mas foi uma revolução do desejo e da libido, como escreveu Gilberto de Mello Kujawski. Maio de 68 não foi produto da luta de classes, e sim da luta de gerações, os jovens contra os seniores, o novo contra o velho. A faísca que incendiou os espíritos em maio de 68 foi a proposta apresentada pelo desconhecido e inconformado estudante Daniel Cohn-Benedit ao então ministro da Juventude e dos esportes, M. Missoffe, no centro esportivo da faculdade de Nanterre.

Em documento oficial divulgado pela revista L`Express, foi registrado o que se passou: “À saída do sr. Missoffe, cerca de 50 estudantes que o esperavam o receberam com gritos hostis. O ministro tentou iniciar um diálogo. Um estudante de origem alemã, o sr. Marc Daniel Kohn-Bendit, pediu-lhe, então, que se discutisse a questão sexual. O ministro achou que era uma brincadeira. No entanto, o estudante insistiu no tema e declarou que a construção de um centro esportivo era um método hitleriano destinado a dirigir a juventude ao esporte para desvia-la dos problemas reais, ainda que fosse necessário, acima de tudo, assegurar o equilíbrio sexual do estudante”. A interpretação ao ministro tinha que ver com a proibição, pelo reitor da Universidade de Nanterre, de uma conferência sobre Wilhelm Reich, um dos mentores da revolução sexual, fixado nas funções revitalizadoras do orgasmo.

Viver com paixão, com prazer, com utopia, é cada vez mais uma impossibilidade numa sociedade que segue os ensinamentos do romance Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, sabendo que a estabilidade social só é viável pela impossibilidade da emoção e do desejo. O maio de 68, foi um dos momentos decisivos que o sistema capitalista viveu porque se configurou a convergência de grupos e classes sociais, em vários locais do mundo, insatisfeitas com um regime visivelmente injusto e absurdo, reforçadas por uma nova crítica social que dissecava impiedosamente esse regime, possibilitando a sua compreensão.

07 maio 2008

Loucura, a volta ao instinto livre

O louco já foi transformado em personagem em várias épocas e manifestações artísticas. De Machado de Assis ao cinema hollywoodiano, dos quadrinhos de Maurício de Souza à tragédias gregas, das artes plásticas ao teatro do absurdo surgiram muitas histórias das razões da loucura. O pensador francês Michel Foucault citou a frase em que Dostoievski diz que “não é trancando seu vizinho que você se convence da sua própria loucura”. Ele mostra é que uma sociedade como a nossa tem uma incapacidade mental de conviver com o diferente. O louco é a diversidade represada. Criadora do Museu de Imagem do Inconsciente, no Rio, a doutora Nise da Silveira concorda ao afirmar que “louca é a sociedade, basta olharmos à nossa volta. Os loucos têm muito mais juízo do que a maioria das pessoas”.

As três grandes correntes de interpretação sobre a loucura surgem na Antiguidade Clássica. Homero inaugura a corrente mítica que atribui tudo o que acontece ao homem à vontade dos deuses. Depois tem Eurípedes e os trágicos onde a loucura aparece como uma exacerbação das paixões, e sua causa está no conflito entre a proibição e a norma, o desejo e a função. A última corrente é representada por Hipócrates que passa a entender o louco como alguém que sofre de um mal orgânico.

Com o tempo, as concepções de Homero foram reeditadas, de forma corrompida, pelos padres demonistas da Idade Média.E assim os deuses se transformariam em diabos e o homem seria culpado por seu desvio. A cura da loucura muitas vezes era a fogueira purificadora da Inquisição. Já as idéias de Hipócrates seriam reaproveitadas pelos alquimistas, ainda na Idade Média, e pela medicina do século XIX. As duas linhas permaneceriam em evidência até hoje. A primeira, no esoterismo que se propõe como remédio. E a segunda, na própria psiquiatria.

Mas teve um filósofo que foi soterrado pelo racionalismo platônico: Eurípedes, ele foi o único que não deixou sucessor. Até hoje, ninguém, recuperou plenamente a idéia de que a loucura pode surgir do lado emocional do ser humano. Freud foi um possível sucessor do autor de “Medeia”. Ele se aproximou da emoção mas não chegou a reaproveitar a idéia da loucura como uma explosão da passionalidade. Freud não tem uma teoria sobre a loucura. A loucura é a volta ao instinto livre, que procura o prazer desavergonhadamente, sem culpa. E Freud ainda apresenta uma visão médica, não consegue perceber que a cultura violenta o instinto.

A sociedade hoje classifica a loucura ou insânia como uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados "anormais" pela sociedade. É resultado de doença mental, quando não é classificada como a própria doença. A verdadeira constatação da insanidade mental de um indivíduo só pode ser feita por especialistas em psiquiatria clínica. Em algumas visões sobre loucura, não quer dizer que a pessoa está doente de mente, mas pode simplesmente ser uma maneira diferente de ser julgado pela sociedade. Na visão da lei civil, a insanidade revoga obrigações legais e até atos cometidos contra a sociedade civil com diagnóstico prévio de psicólogos, julgados então como insanidade mental


O Elogio da Loucura é um ensaio escrito em 1509 por Erasmo de Roterdã em 1509 e publicado em 1511. O Elogio da Loucura é considerado um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos catalizadores da Reforma Protestante. O livro começa com um aspecto satírico para depois tomar um aspecto mais sombrio, em uma série de orações, já que a loucura aprecia a auto-depreciação e passa então a uma apreciação satírica dos abusos supersticiosos da doutrina Católica e das práticas corruptas da Igreja Católica Romana. O ensaio termina com um testamento claro e por vezes emocionante dos ideais cristãos.

O ensaio é repleto de alusões clássicas escritas no estilo típico dos humanistas do Renascimento. A Loucura se compara a um dos deuses, filha de Plutão e Frescura, educada pela Inebriação e Ignorância, cujos companheiros fiéis incluem Philautia (amor-próprio), Kolakia (elogios), Lethe (esquecimento), Misoponia (preguiça), Hedone (prazer), Anoia (Loucura), Tryphe (falta de vontade), Komos (destempero) e Eegretos Hypnos (sono morto).

A loucura como parte integrante da própria razão: eis uma proposição tão espantosa que se resiste a aceitar. Mas fácil defini-la como doença mental ou desvio social. Pois é da relação loucura/razão que trata João Frayze-Pereira (no livro O que é loucura), demonstrando que a determinação dos estados "normal" e "patológico" depende menos da ciência que da cultura e da sociedade. O assunto rende debate. Pensem na loucura, pois!.

06 maio 2008

Mordaça brasileira

Há 590 anos, quando o Brasil ainda era adolescente, nasceram nossas primeiras regras de censura. Isso mesmo, em 1517 os portugueses começaram a montar o tripé institucional que regulamentaria a censura na metrópole (e consequentemente na colônia) até 1768. Juízes eclesiásticos denominados Ordinário, representantes do Estado absolutista (cuja instituição era chamada de Mesa do Desembargo do Paço), e pelo Santo Ofício da Inquisição. Era essa a estrutura formada para censurar.

A censura nesses primeiros séculos, tanto no Brasil quanto em Portugal, seguia ditames religiosos, amordaçando grandes literatos como Gil Vicente e até Camões. Segundo as professora de Historiada USP, Maria Luíza Tucci Carneiro, “o argumento usado para apreender e queimar livros é que eles feriam a verdadeira fé católica. É uma luta contra o herege, o inimigo número um deles”.

A repressão só começaria a mudar de ritmo com a ascensão do marquês de Pombal ao poder português.Assim, o ministro do rei dom José 1º cria, em 1768, a Real Mesa Censória, instituição formada por leigos e religiosos que passou a regulamentar as perseguições oficiais. “A censura ganha um tom político” conta Maria Luiza.”Perseguia não mais o cristão-novo, mas os maçons, que representavam a trama de algo secreto contra o governo, os teóricos da Ilustração, como Voltaire, e os jesuítas, grandes inimigos de Pombal”.

Essa nova censura política se estenderia ao Brasil, que só deixou de espelhar as práticas censoriais portuguesas depois de 1808, com a abertura dos postos e o nascimento oficial da imprensa no país. E a mordaça no Brasil não parou mais. Um mês depois da Proclamação da República, em 1889, já existia um decreto restringindo a atuação da imprensa. Em 1923 é decretada a Lei Adolfo Gordo (senador paulista) que cerceava a atuação da imprensa, e o alvo era os anarquistas e comunistas.

E como explicou a professora: “O século 20 é o auge da censura. E os seus dois grandes momentos são, claramente, o período Vargas, com o DIP e a polícia política atuando como aparatos censores e repressores,e, depois, a ditadura militar, sobretudo o período de 1968 a 1975”.”A censura é a mais forte arma que os regimes totalitários têm utilizado, desde a Antiguidade, para impedir a propagação de idéias que podem pôr em dúvida a organização do Poder e o seu direito sobre a sociedade.

Sempre, em todos os tempos, os homens que detêm a direção de um Estado se valem da força para fazer cair os que contestam a sua legitimidade. Pensar diferente foi considerado crime no Antigo Regime, na época moderna, como foi em vários períodos de nosso século”, escreveu a professora Anita Novinsky no capítulo “Os regimes totalitários e a censura”.

Quem deseja conhecer toda a trajetória da censura em território brasileiro não deve deixar de ler a obra organizada por Maria Luiza, “Minorias Silenciosas – A História da Censura no Brasil”, lançada pela Edusp, Imprensa Oficial de SP e a Fapesp. O livro reúne ensaios e depoimentos de 22 intelectuais de campos distintos. Trata-se de um time de historiadores, professores de literatura, jornalistas, sociólogos e educadores. Eles fazem uma analise sobre a censura à atividade intelectual e artística em diferentes momentos da história brasileira, desde o período colonial até os anos posteriores ao golpe militar de 1964.

“A repressão à liberdade não é só inerente aos governos autoritários – lembra José Mindlin na orelha do livro -, ela pode ter outras origens – a Igreja, a existência de classes mais fortes e mais fracas, e as injustiças da sociedade em geral”. “Se quisermos combater a censura, não será ridicularizando seus excessos, mas contestando o seu cerne”, afirma Renato Janine no prefácio da obra.

05 maio 2008

Linguagem proibida

O caráter chulo desta ou daquela palavra ou acepção prende-se aos tabus fisiológicos (especialmente sexuais) que envolvem o corpo humano no contexto social, ou seja, a revelação entre o comportamento público e privado. Transgredir o limite entre o privado e o público (quer no ato, quer no dito) significa “ofender” conveniências/convenções éticas, religiosas ou jurídica – donde a “ofensa”ser usada como “insulto”. Sendo o palavrão ofensa/insulto, e consequentemente policiado na linguagem escrita mais que na falada (já que esta segue menos regras que aquela), fica restrito/rebaixado, respectivamente, à pornografia e à vulgaridade, apenas tolerado sob a camuflagem do eufemismo.

A obscenidade é imoral, mas, para sê-lo, precisa ser dita. O “escondido”deve mostrar-se de alguma forma. E para exibir-se como “escondido” deve utilizar-se de um código próprio: um código que simultaneamente anuncie e oculte sua própria fala. A linguagem é um campo privilegiado que oferece amplas possibilidades para esse jogo, pois as palavras se prestam a duplos sentidos, permitindo a ambigüidade necessária.

Fica o dito, pelo não dito – essa parece ser a fórmula ideal da linguagem erótica. Essa é a ordem da linguagem proibida, instaurando uma linguagem da ordem, ainda que pelo avesso. Pois, nem o obsceno pode fugir à uma ordenação cultural, e a colocação da sexualidade em discurso obedece a uma normatização. Na obra é “A Linguagem Proibida: um estudo sobre a linguagem erótica” Dino Preti revelando uma das formas de discurso popular que os temas proibidos assumiram no Brasil da virada do século. Através das definições do dicionário pode-se perceber a dupla moral de uma época em que o comportamento burguês de “bons costumes” procura mascarar a latente ideologia machista. O processo metafórico se organiza sempre a partir do ponto de vista masculino, e ao desmontá-lo o autor deflagra algumas das formas de opressão da mulher na nossa sociedade.

Há um grande número de termos em torno do ato sexual e dos órgãos genitais. Ao examinarmos a série sinonímica que designa o órgão sexual masculino notamos a semelhança física entre os elementos comparados. Daí a sua permanência até nossos dias. Alguns desapareceram porque eram objetos da época, de uso mais restrito. Em rápida análise desses sinônimos, observa-se que neles estão presentes os temas de violência, força, agressividade (cacete, cano, chuço, ferro, lança, malho, manivela, músculo, pau, pistola, Petrópolis, trabuco, vara, varão), de resistência, rigidez (eixo, ferro, jacarandá, malho, maniçoba, nabo, pau, peroba, Petrópolis), de agilidade, astúcia (bagre, gato, músculo) e de dimensão (banana, bisnaga, cano, espiga, lingüiça, nabo, paio, Petrópolis, travão, varão).

A um sentimento de força, poder e de violência, essencialmente masculino, corresponde uma afirmação de fraqueza e impotência feminina, com imagens desvalorizadoras referentes às suas partes pudendas, tais como engenhoca, fenda, greta, quintanda, ruptura (órgão genital) e bolacha, bombordo, disco, esfera, furo, gelatina, melancia, orifício, rosca, quiosque (para as partes anais). Enquanto o falo toma forma como uma arma, um instrumento de força e violência potencial, o corpo da mulher surge, através de um processo bem parecido de associação lingüística, tanto como o objeto dessa violência quanto, paradoxalmente, um local de perigo por si só.

Assim, a linguagem erótica e suas várias manifestações na gíria, no vocabulário obsceno, e nos processos lingüísticos de expressão da malícia, se apresentam como formas lingüísticas estigmatizadas e de baixo prestígio, condenadas pelos padrões culturais, o que as transformou, com poucas exceções, em tabus lingüísticos. Como os costumes, submetidos a um processo competitivo de forças sociais opostas, em que se alternam e se equilibram leis de continuidade e da renovação, controladas pelo grau de aceitabilidade do povo, em diferentes épocas, assim também o estoque lexical sofre a influência das pressões sociais que ora o prendem a tradição de uma hipotética “boa linguagem”, ora o libertam para a aceitação de novos vocábulos, novos conceitos, surgidos da necessidade de expressar idéias e atividades mais recentes.

Sob a perspectiva moral, por exemplo, as frágeis linhas que marcam os limites dos “bons costumes”, cujos conceitos continuamente se renovam dentro da comunidade, são transpostas para o campo do léxico. Formas vulgares se incorporam à fala culta ou vice-versa. A vida das palavras tornam-se um reflexo da vida social e, em nome de uma ética vigente, proíbem-se ou liberam-se palavras, processam-se julgamentos de “bons” ou “maus” termos, apropriados ou inadequados aos mais variados contextos.