26 abril 2018

Um artista íntegro: Wilton Bernardo


Há mais de 20 anos que Wilton Bernardo vem ministrando cursos para crianças e adolescentes. São suas Oficinas de Histórias em Quadrinhos. A arte é importante na vida da criança, pois colabora para o seu desenvolvimento expressivo, para a construção de sua poética pessoal e para o desenvolvimento de sua criatividade, tornando-a um indivíduo mais sensível e que vê o mundo com outros olhos. O sucesso das Oficinas de HQs ministradas por Wilton se deve a sua prática pedagógica que valoriza a arte, assim como suas linguagens artísticas, procedimentos, desenvolvimento da criatividade e poética pessoal da criança como conteúdos que devem estar presentes constantemente. Também um ambiente adequado, o domínio por parte do professor do que está sendo ensinado e o conhecimento sobre o desenvolvimento expressivo da criança, seu entusiasmo e, acima de tudo, conhecer cada aluno e trabalhar com a sua realidade, sempre de forma contextualizada, proporcionarão aulas de Arte significativas

Wilton Bernardo estudou Artes Visuais na UFBa, trabalhou em agências de publicidade como diretor de arte, redação, ilustrador e assessor de comunicação. Hoje atua na Rede Bahia. Em 2007 criou a marca Laço Afro e desenvolveu ilustrações inspiradas na cultura afro-brasileira. Estas ilustrações se desdobraram em peças de moda, design e artesanato como camisetas, canecas, chaveiros em madeira reciclada. Inclusive uma de suas ilustrações foi capa do meu livro “Bahia, um estado d´alma”, lançado em 2009. Ele é também criador da personagem de quadrinhos Dona Dedé que possui uma página no facebook.



Como surgiu esse seu interesse pelas artes gráficas?

Wilton Bernardo - Meu interesse acho que surgiu junto com o de todas as crianças, lá no jardim de infância, quando começamos a desenhar, antes mesmo de saber escrever.Mas falando por mim, acho que nesse período o interesse por desenho, pintura se instaurou, e não saiu mais.

O que você gosta de ler nos quadrinhos?

WB - Eu gosto de ver histórias interessantes onde o principal são as relações, o ser humano.obviamente gosto de ver temas variados nos quadrinhos. Tenho meus heróis, gosto de humor, mas as relações é o que mais me interessa. E isso norteia meu gosto em outras expressões artísticas como nos filmes, no teatro ...


Quais são suas maiores influências?

WB - Sinceramente, não é uma resposta fácil. Acredito que há variadas influências ou inspirações. E como a construção, ainda que pensando em inspiração, pode ter diversas fontes, as influências também. Mas eu citaria Milo Manara, citaria a indústria Disney. Mas acho que depois de muito tempo tem duas pessoas que me marcaram sobremaneira: Marjane Satrapi (autora de Persépolis) e Art Spiegelman(autor de Maus).

O que lhe inspira quando está no processo de criação?

WB - Não existe uma fórmula. O que inspira pode ser tudo que dialogue com aquele assunto, com o tema em que se pesquisa. Acredito que a pesquisa, acaba norteando muitas das possibilidades de inspiração.


Qual a informação que alimenta o seu trabalho?

WB - O que alimenta o meu trabalho, definitivamente é a pesquisa. É como trilhar um caminho que não se sabe onde vai dar, mas é o norte, pra acertar, ou no mínimo, fazer algo dentro do que foi proposto, do que foi desejado.

Você tem um site na internet.. Fale desse espaço

WB - Eu tenho o www.oficinahq.com que sofreu várias transformações. Começou como um grande portal, depois reduzi o campo de abordagem, mas serviu desde 2004 quando foi criado (A Ação Cultural Oficina HQ eu criei em setembro de 2003), como base para mostrar profissionais da área das artes gráficas, divulgar eventos, e realizar exposições online de artistas gráficos de todo o Brasil. Neste momento o site está sendo repensado novamente, para provavelmente voltar a ser hospedado num suporte mais modernos, atual.

Além do site www.Oficina HQ.com tenho o meu pessoal (www.wiltonbernardo.com) que é meu portfólio, é onde registra os meus trabalhos mais relevantes na área das artes gráficas e do design.


Você utiliza muito a ferramenta digital em seus desenhos?

WB - A ferramenta digital entra de um jeito ou de outro. Normalmente eu crio tudo no lápis e papel. Dou origem às coisas com o lápis e papel. Depois finalizo digitalmente.

O que você mais gosta de fazer hoje?

WB – Criar. O meu grande tesão sempre foi e acredito que será sempre criar. Seja o que for, dentro das artes gráficas, do design. Criar soluções, inventar. Sempre tem uma ou outra pessoa que fala “Nada se cria, tudo se copia”, e essa frase, definitivamente não me representa.. rsrsrs

Eu percebi isso em mim, sabe quando? Quando eu desejei trabalhar na empresa de Maurício de Souza. Teve uma época em que eu cheguei a fazer algumas etapas de avaliação. Bom, para apresentar Dona Dedé, tive o maior entusiasmo, responder as perguntas que era uma outra etapa, foi tudo bem, mas na hora de desenhar os personagens do Maurício.... eu simplesmente não fazia... e eu admiro muito toda a história daquele homem. Admiro demais! Mas a questão começou a ficar claro pra mim: o meu tesão era criar, não copiar, não representar criações de outros. Claro que eu respeito todos que fazem, graças a Deus, existem diversas funções dentro dessa indústria, e cada pessoas tem um prazer, seja roteirizar, desenhar, arte finalizar, colorir, enfim. O importante é fazermos aquilo que realmente nos deixa feliz.


Não é dificil fazer humor no Brasil, pois vivemos num país paradoxal e o paradoxo é a essência do humor. O que tem a dizer sobre isso ?

WB - Humor bem feito é realmente uma coisa maravilhosa. O nosso país sempre rendeu muito conteúdo para se fazer humor. Mas mesmo assim, falando por mim, eu digo que não acho fácil. Acho uma das coisas mais difíceis. Tenho personagens onde exploro o humor mas considero uma das coisas mais desafiadoras.

No Brasil de forma geral, vivemos um momento social e político seríssimo. O mau gosto, o desrespeito pode  estar ali, bem pertinho do humor, se deixar, é fácil ele aparecer.

Durante os anos 70 a publicidade usou o grafismo, o cartum e o desenho de humor como apelo. E hoje?

WB - Hoje a fotografia, os efeitos hiper realistas e o vídeo são grandes ferramentas. Acho que não se extinguiu, mas as ferramentas mais fortes são essas 3 citadas.


Porque a imprensa baiana fechou suas páginas para o cartum e os quadrinhos nesses anos de crise política e econômica. O que pensa a respeito disso?

WB - Acho que o buraco é mais embaixo. Vejo a imprensa baiana muito mal das pernas, digamos assim. Está rebolando pra sobreviver, nessa transição de papel para o digital. Isso significa corte de páginas, redução de conteúdo, e luta pra publicar o que “vende”, “o que a Bahia quer ver” que acho até que é slogan do jornal CORREIO. O que os baianos querem realmente ver, não vou arriscar dizer, mas quadrinhos definitivamente, de uma forma geral, não acho que seja. É um momento de transformação e adaptação também desse conteúdo. Claro que durante toda a história, toda expressão artística vai se moldando, se transformando, e de alguma forma, refletindo os dias que correm. Nem todos os artistas conseguem ser atuais, e por isso mesmo existem variados estilos em tudo que é expressão de arte. Mas o norte, o que segue na frente apontando o futuro é o que reflete os dias que correm, e eu diria que nos quadrinhos, a grande abertura de temas, o crescimento da produção autoral, é uma das grande transformações positivas. O foco no ser humano, nas relações. Mas assim como os jornais que não fecham as portas estão lutando para se adaptarem, os quadrinhos também. Acho que caminhamos para um futuro onde troca-se a expressão “eu gosto de quadrinhos de tal segmento” pra dizer “eu gosto desse” ou “gosto daquele”. Isso em outras expressões artísticas é natural, nos quadrinhos ainda não está tão claro, me parece. EU vejo a maior valorização do autor, e menos de grandes indústrias ou editoras. Mas em relação ao suporte, as coisas ainda estão se definindo. 

Em uma de suas vertentes, tem um trabalho voltado para o quadrinho infantil. Fale sofre isso.

WB - Dona Dedé é uma personagem que tem um apelo infantil dependendo da abordagem. Há tiras que tocam em assuntos mais próximos  delas, porém, admito que com o passar do tempo as tirinhas foram ficando cada vez mais adultas. Não sei se você lembra mas Eu criei Dona Dedé como trabalho final do curso de História dos Quadrinhos que você ministrou na Fundação Casa de Jorge Amado! Faz um tempão, mas foi “o dever de casa” que você passou que me fez debruçar e criá-la! Faz tanto tempo e eu não fiz uma publicação impressa dela. Como se passaram tantos anos (a primeira aparição impressa no jornal a tarde com Dona Dedé aconteceu em 1997), eu resolvi redesenhar tudo e lançar 1 ou 2 publicações. Estou definindo, e espero fazer isso ainda neste anos de 2018.


Você criou personagem e quadrinhos, como e quando foi publicado. Qual sua característica?

WB -  Dona Dedé foi publicada desde 1997 em jornal impresso e depois internet.Agora ela tem até uma página no Facebook com postagem que ultrapassa 1 mil compartilhamentos e curtidas. Ela está toda metida(risos).
Há outros personagens, e projetos, mas o que não está publicado, não se fala correto?

Em 2012 você criou os personagens Paxuá e Paramirim. Conte sobre eles

WB - O livro Paxuá e Paramim, foi publicado em 2012 com 2 índios crianças que se preocupam com o meio ambiente, preservação da natureza . O texto é do Carlinhos Brown cuja produção me convidou para ilustrar a história infantil. Mas quando fui me reunir com a produtora, ainda não existiam os personagens, havia apenas os nomes Paxuá e Paramim. Então eu desenvolvi a estética, a imagem dos personagens. Não tinha como ilustrar sem criar primeiro os personagens. Então, depois dos personagens criados,  ilustrei o livro infantil que foi distribuído durante uma exposição de artes plásticas que o cantor fez na Caixa Cultural de Brasília.


As personagens são duas criancinhas peladas, pintadas. Quando se pensa em índio parece que é fácil deduzir a aparências deles, mas me lembro que diante desse desafio de fazer 2 personagens índios, eu fiquei cheio de interrogações, pois cada grupo, tem suas pinturas, suas especificidades. Tive que recorrer a um amigo que trabalha há anos com comunidades indígenas – O Ricardo -  para poder entender um pouco dessas pinturas, e assim, poder compor os personagens com algo marcante, algo que ajudasse a criar uma identidade forte, até porque elas não possuem roupa. Eu os representei naturalmente pelados. Não tem sainhas de penas, nada disso. As pinturas nesse caso, tem uma função super forte na construção da individualidade (estética) dos personagens. Na época o Brown chegou a sugerir colocar um alargador no índio, mas deixaria o personagem sem expressão, e acabei convencendo de não colocar. Me orgulho muito dessa realização. Cada criação é como se fosse um filho, no fim das contas. 


Para você o que apareceu de mais significativo nesses dias nas artes gráficas?

WB -  Em relação a artistas, eu não tenho nome específico para citar, mas tem um monte de gente nova mostrando as caras. E nesse caso, eu citaria a democratização das mídias digitais. É uma revolução que ainda não se definiu para os quadrinhos por exemplo. Há um desafio de se conseguir colocar o conteúdo da forma mais adequada... é um momento ainda de descobrir isso. Nesse sentido acho que a música e o cinema já passaram por um desconforto maior e agora percebo um que estão se “ajeitando”. Na minha opinião, nós das artes gráficas ainda estamos num lugar de experimentação, tentativa de adequação.  

Você já participou de publicações independentes?

WB - A maior parte do meu trabalho gráfico teve saída através do mercado publicitário – Outdoors, cartazes, folders. Uma desses rendeu prêmio internacional, para a capa do Jornal CORREIO (24/09/2013). E em relação a quadrinhos mesmo, publiquei pouquíssimo, no ambiente virtual. Tive poucas tiras e cartuns publicados no jornal A Tarde (gratuitamente) pois eu enviava esse material como leitor para um colunista que escrevia sobre arte – Herbert Magalhães – e ele publicava o que gostava. Depois publiquei no ambiente virtual – num portal e por fim, no facebook. 


Quem são hoje, para você, os bons chargista e caricaturistas?

WB -  Com certeza tem vários novos talentos. Mas eles chegam pra enriquecer um time de muita gente excelente que continua a ai. O Brasil tem talento demais, então vou citar alguns que conheço e bato palmas, que são os baianos Gentil, Flávio Luiz, Davi Sales, Hector Salas, Amauri Alves, Isadora Sabar, tem gente demais, não consigo lembrar todos os nomes. 

Seu site oficinahq é voltado para os interessados no desenho de humor?

WB - Na verdade, o site surgiu como uma forma de manter contato com os alunos e ex-alunos das Oficinas de Quadrinhos que comecei a ministrar desde 2003 e continuo até hoje. Com as turmas, comecei a realizar exposições e precisava de um lugar onde eu pudesse disponibilizar conteúdo, mostrar os talentos do mercado, falar de lançamentos, e também disponibilizar os trabalhos que participavam de exposições. Eram pessoas do Brasil todo enviando material. O site funcionava como um suporte maravilhoso junto com o Blog que noticiava o que eu realizava em termos de eventos – Oficinas, exposições, mostra de filmes, e outras notícias culturais das mais diversas áreas. O site oficinaHQ.com está passando por uma nova atualização, mas o Blog oficinahq.wordpress.com  está no ar.  


Há mais de 20 anos você vem ministrando cursos para crianças e adolescentes. São suas Oficinas de Histórias em Quadrinhos. A arte é importante na vida da criança, pois colabora para o seu desenvolvimento expressivo, para a construção de sua poética pessoal e para o desenvolvimento de sua criatividade, tornando-a um indivíduo mais sensível e que vê o mundo com outros olhos.  Conte um pouco sobre essas oficinas, quantos alunos, no total, já passaram pela sua oficina?

WB - Eu ministro oficinas desde 2002. Comece a ministrar Oficinas de Quadrinhos e desenho no Shopping Ponto Alto, ainda sem ter uma marca. Lembro como se fosse ontem que conversei com o gerente do Shopping e apresentei a proposta. Ele disse: “Se um jornal noticiar, você realiza o projeto aqui no Shopping”. Eu consegui. Depois organizei o projeto e apresentei a Dona Matilde Matos – crítica de Arte  e uma das fundadoras da EBEC Escola de Inglês -  junto com sua filha Claudine Toulier. Elas abraçaram o projeto, abriram as portas da EBEC Escola de Inglês e Galeria de Arte para mim. Lá ministrei muitas oficinas por vários anos. Depois fiz parcerias com Aliança Francesa, Acheu, Museu Carlos Costa Pinto, e por fim, estou realizando as Oficinas atuais em parceria com a Faculdade Ruy Barbosa. São mais de 32 turmas. Mais de 320 alunos considerando apenas a Oficinas de Quadrinhos. Acontece que a Oficina de Quadrinhos recebe alunos a partir de 13 anos e havia muitas crianças menores que desejavam participar das oficinas, por isso eu criei a Oficina de Desenho e Criação de Personagem. Ao todo deve ser quase 500 alunos já.

Sempre foi super desafiador, porque, de 13 a 70 anos, tive alunos até hoje das mais variadas áreas, e nos mais variados estágios: Produtor de Ivete Sangalo, professor de EAD do SENAI, artistas plásticos, publicitários, pré vestibulandos, psicólogos, jornalistas, advogados arquitetos, etc. Super desafiador dialogar com tanta gente com discursos diferente, porém, mas obviamente que estavam ali tendo o interesse em aprender, aprimorar seus conhecimentos acerca das histórias em Quadrinhos. Ao mesmo tempo que é desafiador, é uma delícia. Eu verdadeiramente amo fazer isso. É um prazer incrível! Tanta gente talentosa eu conheci através dessas oficinas!

Já as turmas de Desenho e Criação de Personagens eu tive alguns colaboradores a quem sou bastante grato. Lucas Pimenta e Isadora Sabar me ajudaram a tocar as turmas de desenho para menores em vários momentos. Estar em sala de aula é realmente fascinante.


Quais seus projetos futuro?

WB - Tenho vários projetos para realizar na área das artes gráficas, mas não acho que vale a pena contar enquanto ainda não acontecem. Prometo que lhe conto assim que algo for confirmado.





25 abril 2018

Lirismo irreverente na poética cartunística de Nildão (02)


O que você acha do “politicamente correto” para o humor, no Brasil?

N - O limite do humor é o respeito às diferenças. Piadas politicamente incorretas são frutos do deboche e humilhação de determinado segmento da sociedade. Ao fazer humor sobre determinado grupo, o humorista agrava o preconceito, dissemina o ódio e a intolerância. Prefiro o humor de reflexão, que valoriza a inteligência do leitor e procura denunciar e ironizar as relações autoritárias do poder sobre a maioria da população. 


Nos anos 70, 80 e 90 havia em Salvador um fervilhar de publicações como Coisa, Coisa Nostra, Pau de Sebo, Vilões, Esfera, Nego, DesHQue, Tudo com Farinha, diversas exposições de artistas gráficos baianos, debates, seminários. Hoje tudo isso ficou no passado. O que aconteceu com nossos artistas?

N - Acredito que nesse período vivemos o “boom” do cartum e dos quadrinhos aqui na Bahia e no Brasil, também. Com o passar dos anos, esse tipo de expressão foi minguando, os jornais, cada vez mais comprometidos com o departamento financeiro foram se desinteressando por esse tipo de arte. Sem ter onde publicar e tendo que bancar as próprias iniciativas, os artistas migraram para outros tipos de linguagens, como o design gráfico, a pintura, a direção de arte em agências publicitária e outras modalidades.

A criatividade, como qualquer expressão, precisa de estímulos para se manter. Se você não encontra retorno financeiro e de público no que faz, dificilmente você vai continuar fazendo.

No meu caso, como abri mão de todas as facilidades para abraçar esse tipo de expressão, fui em frente, exercitando permanentemente a criatividade, bancando meus projetos, buscando financiamento através de editais do governo e desenvolvendo conteúdo próprio nas mais variadas linguagens do humor.


Da Primeira República até os dias atuais o pesquisador e cartunista Alvarus afirmou que o período de Médici foi o mais sombrio, “a pior para a caricatura”. De todos os presidentes qual o que você acha que prejudicou mais os artistas gráficos?

N - Nos anos de chumbo pairava o medo na sociedade brasileira. Os cartunistas, por estarem bastante expostos, publicando em jornais que combatiam a ditadura, também sentiam e captavam a paranóia que estava no ar. Concordo com Alvarus: o período Médici foi o mais tóxico para os profissionais de humor e, no entanto, os cartunistas, apesar de todas as ameaças, continuaram criando com brio e competência.


Nos anos 70 o cartunista Henfil dizia “nois sofre, mas nois goza” e completada por outro, lembrada pelo Fortuna, “só dói quando ri”. Você também atravessou essa geração...
.
N - Participei de vários Salões de Humor e sempre fazia questão de me aproximar de Henfil, que eu considerava uma referência. Quando participei do V Salão de Humor de Piracicaba pela primeira vez em 1978 e fui premiado, encontrei com ele, que me parabenizou e fez questão de dar um autógrafo especial, para a ocasião. Já o Fortuna, todos os cartunistas que conviveram com ele são unânimes em considerá-lo “o cartunista dos cartunistas.”

Tanto a frase do Henfil como a do Fortuna revelam um dado interessante dos humoristas: eles são sensíveis, verdadeiros radares que apontam as mazelas da humanidade de forma bem humorada, buscando a ironia e o ridículo para desmontar as relações de poder.

A filósofa Márcia Tilburi diz uma coisa interessante sobre o riso: “quando extrapolamos a possibilidade de chorar, quando já não têm mais lágrimas, quando não se pode fazer mais nada, quando a dor nos secou de tal maneira que só sobra mesmo um riso. E este riso não é do gozo, cômico, mas um riso que ultrapassa até mesmo o escárnio, e atinge a condição de sabedoria em relação à nossa miséria.” E Freud já dizia: o humor é raro, precioso, rebelde e teimoso.



Existe um traço nacional, de personalidade e desenho, do humorismo brasileiro?

N - Não consigo perceber um traço geral, que caracterize o desenho e o humorismo brasileiro. Somos uma sociedade democrática que ainda se encontra em formação, buscando sua identidade e, portanto, aberta à críticas e ironias. 

Como artista visual e sempre muito gráfico, mesmo quando seus trabalhos se dirigem a um público adulto, conserva o romantismo e grande dose de pureza infantil. Esta identificação com as crianças fez com que realizasse em (1983 com a individual Pernas pra que te quero)    e agora em 2017 com exposição dedicada às crianças?

N - Como cartunista, desde cedo que busquei desenvolver trabalhos que fossem atemporais e universais e que se destacassem dos demais cartunistas através do lúdico, onírico e poético. Numa linguagem simples, tensionada e com poucos elementos visuais fui, ao longo dos anos, desenvolvendo minha “poética humorística”, com o objetivo de instigar o universo infantil através da fantasia e do nonsense. No ser humano, o humor é nato, começa com a atividade lúdica da criança e vira brincadeira de adulto, fruto de sua imaginação criadora. Estimular o humor nas crianças é a garantia de que no futuro, teremos adultos mais leves, mais sadios e mais centrados. Para ser bem humorado, o ser humano precisa desenvolver a “razão lúdica” que é um misto de lucidez com ludicidade.



O que lhe impulsiona nas artes gráficas (cartum, charge, caricatura e HQ) ?

N - O que me impulsiona como artista é a necessidade de mostrar o quanto a nossa sociedade é hipócrita, racista, machista e intolerante. Também procuro desenvolver novos mecanismos de humor. Acredito que ainda existam novas formas de fazer humor, fora dos padrões que nós cartunistas dominamos. Busco permanentemente explorar novos processos associativos, através do texto e da imagem, na busca incessante do novo.

Você acha que o humor impresso está em baixa?

N - Hoje, são poucos os jornais que ainda possuem cartunistas contratados. A maioria não dispõe desse tipo de profissional e creio que os leitores não reclamam ou não sentem falta. Com o advento e a massificação da internet os jornais impressos perderam uma parcela considerável de público e de publicidade. As tiragens foram gradativamente sendo reduzidas e a publicidade, a cada ano que passa, vai minguando e vai migrando para a internet. Reduzir custos é a palavra de ordem e se você reduz custos e se livra de um profissional como o cartunista, que costuma ter idéias próprias, isso é o ideal para a mídia impressa. Vale salientar que o bom jornalismo, da maneira como ele se desenvolveu, está fadado a desaparecer. A maioria dos jornais está preocupada em garantir a sobrevivência e evita a todo custo desagradar quem esteja no poder, que possui as verbas publicitárias mais polpudas e suculentas do mercado. Joseph Pulitzer, o pai do jornalismo como o conhecíamos, costumava dizer: “com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”.


No passado você tinha um projeto com Renato da Silveira de uma HQ passada na Bahia do futuro. Não aconteceu por que?

N - Além de criar o nome “Chiclete com Banana”, fiz, em parceria com Renato da Silveira, 15 capas para a banda de Bell Marques. Numa delas, “Tambores Urbanos”, decidimos bolar uma ponte que ligasse Salvador a Itaparica vista da ilha para a cidade. Adicionamos prédios futuristas ao perfil da cidade alta e o resultado ficou inusitado e expressivo, na página central da capa dupla do LP. Daí, cogitamos a possibilidade de criar uma HQ sobre Salvador que casasse o passado colonial com uma cidade pós moderna. Como outros projetos foram mais urgentes, deixamos essa boa idéia de lado.


Você popularizou o desenho de humor à comunidade através de out door, fez grafites, cartuns e, cada vez mais minimalista. Essa descoberta veio com uma exposição para crianças em 1983. Agora essa mostra volta em 2017 onde o universo das artes gráficas renasce. Fale desse momento.

N - Sempre busquei explorar novas linguagens para o cartum. Através de um edital pude espalhar alguns cartuns em out-doors aqui em Salvador. Quando percebi que existia uma certa censura nos jornais locais, decidi partir para o grafite, que era uma linguagem que estava em franca expansão no Brasil, que já vivia o fim da ditadura. A liberdade que essa nova forma de expressão propiciava era ilimitada, ideal para quem tinha coisas instigantes e provocativas a dizer. O aprendizado do cartum sintético, sem palavras e atemporal foi útil para o meu crescimento nessa nova linguagem. O grafite exige agilidade e pede uma linguagem telegráfica, afim de que seja mais rapidamente assimilada. Percebi a potencialidade e a liberdade que essa nova forma de expressão me oferecia. O que era colocado em muros aqui em Salvador, repercutia na Folha de São Paulo, através da coluna de Joyce Pascowitch, a sucursal daqui, enviava pra ela as novidades estampadas nos muros locais. Foi um período rico que aproveitei e reuni em “Quem não risca não petisca”, uma compilação do material grafitado por mim, nos anos 70.


Quem são hoje os bons chargistas e caricaturistas?

N - Acho que não sou a pessoa mais indicada para falar dos bons cartunistas que estão no mercado. Estou cada vez mais ligado em literatura. Tenho um prazer enorme em descobrir novos escritores e me debruçar sobre os cânones da literatura universal. Sei que temos uma quantidade enorme de novos artistas do traço espalhados por esse país continente. Destaco a qualidade do trabalho do cartunista Laerte Coutinho e do caricaturista mineiro/baiano Cau Gomez.

A nova geração de humoristas não batalha ou as portas se fecharam mesmo?

N - As portas da grande imprensa, daqui pra frente estarão sempre fechadas, e as portas da Internet estão completamente escancaradas. Culpar a falta de espaço só alimenta a cultura da reclamação. Prefiro que cada um busque o seu caminho, invente o seu mundo e vá à luta.


Você tem um livro pra sair agora sobre o cartunista Lage. Fale sobre essa obra.

N - Hélio Roberto Lage foi um cartunista baiano que trabalhou durante 37 anos no mesmo jornal, a Tribuna da Bahia. Foi uma referência pra muitos artistas e me influenciou de forma decisiva. Morreu em 2006, aos 60 anos de idade, e deixou uma enorme quantidade de trabalhos que precisava ser mostrado para as novas gerações. Decidi, em parceria com a minha filha Alice Lacerda, fazer uma exposição sobre ele na Caixa Cultural em 2010 e em seguida, achamos que ele merecia uma publicação à altura do seu talento. Com o material que foi gentilmente cedido por Marta Lage, Tribuna da Bahia, Bahiatursa, Irderb e a Fundação Pedro Calmon começamos a tratar as imagens, selecionar os trabalhos e editar o livro “Lage – 40 anos de humor” que foi lançado em dezembro de 2017 com mais de 200 obras desse genial artista.


Além do livro, há uma mostra sobre os cartuns do irreverente Lage.

N - A mostra que foi apresentada na Caixa Cultural foi integralmente doada à Fundação Pedro Calmon para ser montada nas bibliotecas públicas de todo o estado da Bahia. Vale ressaltar que 200 exemplares do livro “Lage – 40 anos de humor” foram entregues à mesma Fundação, para serem distribuídos nas bibliotecas públicas do estado.


E agora, quais são seus projetos para o futuro?

N - Estamos em fase de coleta de imagens e textos sobre a livraria Literarte, que existiu aqui em Salvador nos anos 70/80, e que foi muito importante para a formação intelectual de uma geração inteira. Através de depoimentos, entrevistas e de muitas imagens, pretendemos organizar um livro sobre a livraria, visando preservar a memória da vida cultural baiana.

Além desse projeto, pretendo continuar lançando meus livrinhos com as nanodelicadezas, poéticas doces e bem humoradas, tão necessária para os amargos dias atuais.

24 abril 2018

Lirismo irreverente na poética cartunística de Nildão (01)



Cartunista, poeta, ilustrador, grafiteiro e designer. Nildão começou a publicar seus trabalhos na década de 1970 e não parou mais. Na época ele e seus colegas baianos lutavam pelo reconhecimento público do cartum como expressão artística válida. Na década de 1980 a plasticidade de seus trabalhos explodiu em cores vivas, degrades e meios tons sensuais. Seus álbuns de humor eram cada vez mais publicados e popularizados.

No traço distorcido, contundente, irônico, muitas vezes cruel, outras líricas, que deforma e informa, Nildão deixou impresso um retrato desse país numa época marcante de sua história recente. O traço desmascara, escancara, revisa do avesso e expõe os personagens do nosso dia a dia. Ele condensa sua ação no desenho e desdenha do verbo. E assim Nildão dá a todos seu toque implacável do ser humano.

Ele tem mais de 40 anos de carreira e nesse tempo lançou 22 livros. A irreverência é uma marca da sua obra que transita pelo universo da poesia sem abandonar a sua veia humorística e uma visão critica sobre o mundo. E ele segue a máxima, celebrada pela cultura oriental, de que menos é mais: “De uma coisa/estejamos certos:/quem tem vida interior/desconhece desertos” (Colíricos, 2005).

Sua obra nos revela um artista gráfico de respeito profundo pelo trabalho a que se sente chamado. De nanodelicadezas a falsas logomarcas, de cartuns não verbais a anúncios fictícios e charges políticas tudo está sob seu trabalho. Nildão continua com olhar atento, a se debruçar sobre o ridículo dos contentes no coro dos sisudos. Ele impulsiona o seu humor e o seu crédito no ser humano a paroxismos de traços e contornos de pessoa, instituição, leis e costumes que o fazem um humorista internacional. O que há de baiano em Nildão é a sua total irreverência para com o real que, no caso de nosso país, supera a mais absurda concepção, humorística ou não. E o absurdo é o seu material de trabalho. Vamos à entrevista:


Houve um tempo em que todos os jornais e revistas do país, seja da grande imprensa como o da alternativa, publicava uma série de cartuns e charges. Hoje quase não se vê, o que aconteceu?

NILDÃO - Realmente, o cartum e a charge ganharam certa expressividade no período da ditadura. Imagino que isso devia-se ao fato deles tecnicamente serem de mais fácil reprodução gráfica e expressavam o que uma determinada parcela da população sentia ou gostaria de dizer. Naquela época, tínhamos como elementos ilustrativos dos jornais, além do cartum, a fotografia, que exigia equipamentos caros e precisava de um laboratório para as fotos serem reveladas, sendo que todo esse processo exigia tempo e dinheiro. O cartum era instantâneo, imediato, saia da prancheta do cartunista direto para a arte final dos jornais. Hoje, os jornais brasileiros estão comprometidos com determinadas posições políticas, a liberdade de imprensa ficou cada vez mais restrita, os interesses empresarias estão acima dos fatos e a presença de um cartunista numa redação passou a ser um elemento que pode causar desconforto à linha editorial adotada pela empresa jornalística. O cartum e a charge migraram das páginas dos jornais para as redes sociais e com isso passaram a ter um público bem maior e mais diversificado além de ter total liberdade.


Você é o cartunista baiano mais premiado do Estado, cerca de 14 prêmios, além de 20 livros individuais e sabe que é impossível viver de humor na Bahia. Mas, ao contrário de vários de seus colegas de ofício, que buscaram o sucesso em São Paulo e Rio de Janeiro, você enfrentou o tabu que “santo de casa não faz milagre” e se recusou a migrar. Qual foi o motivo?

N - Veja bem, comecei ganhando 3 vezes seguidas o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, o mais importante do país. As premiações só reforçaram a certeza de que eu estava no caminho certo. Logo depois fui premiado no Salão de Humor de Pernambuco e logo em seguida, novamente no de Piracicaba. Os prêmios foram importante como reconhecimento tanto é, que passei a ser convidado para os Salões de Humor como parte do júri. Daí em diante, nunca mais concorri, por acreditar que é necessário deixar o espaço para os novos, que precisam, também, ser premiados, reconhecidos e divulgados.

Com relação a não sair de Salvador, segui a máxima de Leon Tolstói: “se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Quando comecei a ser premiado nos Salões de Humor do país estive, por intermédio do saudoso Glauco Vilas Boas, na redação da Folha de São Paulo mostrando o meu trabalho para alguns editores. Eles gostaram do que viram e me convidaram para publicar no jornal. Deixei alguns cartuns com eles e dias depois, foram publicados, inclusive no espaço dedicado à charge principal. No entanto, eles exigiam que eu morasse em Sampa e que freqüentasse a Folha diariamente. Desisti do convite e decidi ficar em Salvador, desenvolvendo de maneira disciplinada a minha linguagem de humor. Tudo isso aconteceu num período em que não havia a Internet, que hoje, poderia ser a solução para a questão presencial. Com a rede, o mundo ficou mais próximo e ao mesmo tempo mais distante. Hoje, pra se fazer sucesso, não precisa estar nos grandes centros do país, basta talento, disciplina e originalidade. É bom lembrar que São Paulo é a periferia dos grandes centros mundiais e a Bahia é a periferia paulista. No entanto, por maior que possa ser a obra e possamos sonhar alto, devemos começar a mostrar a nossa grandeza em casa.


Você começou a fazer cartuns em 1972, num dos períodos mais negros da história recente do País. Como foi essa sua trajetória?

N - Comecei a publicar em 1972, no extinto Jornal da Cidade. Na época eu era profundamente influenciado pelos cartunistas do jornal O Pasquim, principalmente pelo Henfil e Jaguar. Criei os personagens “Guga & Pascoal” que eram inspirados na estética dos personagens dos Fradim, de Henfil. Desenhava alguns cartuns políticos, tirando sarro dos militares e abordando temáticas do dia a dia, que estavam nas manchetes dos jornais, como o aumento da gasolina, violência urbana, trânsito engarrafado, etc. O incrível é que a maioria dos temas daquela época, continuam fazendo parte do cotidiano dos brasileiros. Depois passei a colaborar com jornais alternativos, de sindicatos, associações de bairro, entidades religiosas, etc.


Quando foi que decidiu partir para outras experiências, publicações independentes, juntando o útil ao agradável?

N - Existia aqui em Salvador uma livraria chamada Literarte, criada por Getúlio Soares Santana no ano de 1978. No ano seguinte tornei-me sócio desse empreendimento e passei a ativar o espaço organizando mostra de cartunistas baianos com temáticas de acordo com o calendário. Fizemos uma exposição que chamava-se “Humor só de mãe”, no mês de maio de 1980 e lançamos cartões de Natal com a participação de Lage, Setúbal, Helson Ramos, Caó, Aps, Zé Vieira. Com o passar dos anos, a criação de cartões natalinos feitos por artistas locais se consolidou, chegando a vender nesse período cerca de 20 mil cartões de natal. Pela Literarte, em parceria com a Editora Global, em 1980 lancei meu primeiro livro de cartuns, distribuído por todo o Brasil. O lançamento ocorreu no dia 9 de setembro e um dado curioso: foi o primeiro lançamento de livro na Bahia que contou com a divulgação de outdoors. A Literarte não era a maior livraria da cidade, no entanto era considerada a melhor de Salvador, nos anos 80. Mesmo com o grande sucesso da Literarte, que se transformou num point da juventude antenada e que fazia parte da vida cultural da cidade, decidi vender a parte que me cabia e montar o primeiro atelier de humor de Salvador, na Vila Matos, no bairro do Rio Vermelho. Nesse novo espaço dediquei-me a criação de cartuns, charges e quadrinhos para a imprensa alternativa, associações de bairros, movimentos sindicais e entidades civis organizadas. Foi aí que decidi criar “Bahia, Odara ou Desce”, livro de cartuns coloridos, não verbais e atemporais sobre o modo de ser do baiano e que terminou se transformando numa enorme e premiadíssima campanha publicitária da Secretaria de Turismo do governo do estado da Bahia. Vale salientar, que essa foi a primeira campanha publicitária baiana criada a partir de um livro já publicado, além de ser uma das mais premiadas campanhas da propaganda local e, graças à ela participamos do Festival Publicitário de Cannes, na França.


Você começou a desenhar influenciado por quem?

N - Meu primeiro contato com o humor foi através das páginas da revista “O Cruzeiro”. Na última página desse semanário publicavam um cartum do “O Amigo da Onça” personagem marcante de autoria de Péricles Maranhão e que teve grande popularidade nas décadas de 50, 60, 70 do século passado. Após a morte do seu criador, o personagem continuou a ser publicado pelo Carlos Estevão. O Cruzeiro também lançou o suplemento de humor semanal “O Centavo” com a participação de Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Borjalo, etc. Foi através desse time de talentosos cartunistas que eu comecei a me interessar mais por cartum. Mais tarde, esse vibrante núcleo de humoristas criou o jornal “O Pasquim” semanário que revolucionou a minha cabeça e o jornalismo brasileiro. Numa linguagem coloquial e moderna, os cartunistas do “Pasquim” imprimiram uma marca original na imprensa brasileira e influenciaram legiões de novos cartunistas por todo o país. 
           
O humor esta no sangue brasileiro e, mais ainda, no baiano.  O que riem os baianos?

N - O senso de humor está presente em todas as culturas humanas e as sociedades que o cultivam com mais intensidade tendem a ser mais leves, pacíficas e tolerantes. Aqui no Brasil não é diferente: rimos dos poderosos e das nossas próprias desgraças. Na Bahia, por ser um estado onde predominou a escravidão, o humor sempre funcionou como uma forma antagônica ao poder. Através dos chistes, da música e da própria dança, os oprimidos e humilhados ridicularizavam os poderosos. Com o advento da imprensa em nossa cidade, o humor se consagrou através de textos, cartuns, caricaturas e quadrinhos, ressaltando sempre as diferenças sociais e destacando a exploração da maioria por uma poderosa minoria.


Tanta graça só pode significar que o Brasil vai mal?

N - Para o psicanalista Daniel Kupermann, “o humor é uma sabedoria trágica acerca da própria finitude, pois ele tem a capacidade de nos libertar do medo atávico que temos do acaso. Ele evita o nosso abatimento perante o infortúnio.” Num país como o Brasil, onde os infortúnios e as desigualdades saltam aos olhos, o humor funciona como um exercício de descrença em todas as verdades difundidas socialmente, libertando o pensamento e a imaginação da moral e dos ideais dominantes.

A facilidade com que seus cartuns provocam ranger de dentes em meia dúzia e gargalhadas no resto da população até dá no que pensar...

N - Procuro criar meus trabalhos sempre tendo em mente a ridicularização do poder e a defesa intransigente dos injustiçados e excluídos. Não existe humor a favor de governos estabelecidos, humor chapa branca não funciona, ele tem que estar de acordo com as aspirações populares. A meia dúzia que range os dentes, certamente não quer perder seus privilégios e mamatas, não valoriza a meritocracia e sempre se deu bem, graças à cordialidade das elites. 


Todos os principais desenhistas de humor no Brasil têm hoje características bem pessoais, definidas, inconfundíveis. Podemos chamar de estilo. Para chegar ao seu estilo demorou muito?

N - Hoje eu me considero como o Millôr Fernandes: um cartunista sem estilo. Fui obrigado a aprender a desenhar para que as minhas idéias de humor ganhassem vida. Não sou um bom desenhista, meu traço é duro e compenso essa deficiência buscando aprimorar as idéias, indo atrás de temas originais e nunca explorados por outros artistas do traço. Acredito que a originalidade das idéias me ajudou a superar a deficiência que tenho como desenhista. Desenvolvi outras linguagens de humor que não precisam do traço, como as montagens gráficas, criação de falsos anúncios e logotipos, memes e o uso da palavra, através das máximas e de pequenos e bem humorados poemas.

Apesar de todos os problemas, a charge foi uma das formas de humor que mais cresceu na imprensa..

N - Durante um longo período, a charge política teve uma grande importância nos jornais impressos de todo o mundo. Aqui no Brasil ela sempre serviu de referência para os historiadores que pretendem contar a verdadeira história do Brasil. Por exemplo: Se você quiser ter uma noção clara de como era a política aqui na Bahia no período que vai de 1970 a 2005, recomendo consultar o trabalho do chargista Hélio Lage, que revelou de forma irônica e ferina as relações do poder local, através de suas charges diárias, publicadas na Tribuna da Bahia.

Com o advento das redes sociais as charges perderam espaço para os “memes”. Os memes surgiram há poucos anos atrás na internet, num site chamado “4chan”, como uma forma inusitada de expressão e ficaram tão populares que se tornaram memes, isto é, algo que vira mania e se reproduz sem controle. Hoje eles dominam a internet e em parte, substituíram as charges e os cartuns.


(CONTINUA AMANHÃ)

18 abril 2018

Humor sutil do baiano Café


José Carlos Café Alves (Café) nasceu em Santa Inês – BA, no dia 02 de fevereiro de 1960. Viveu ali, parte da sua infância. Em Santo Antônio de Jesus– BA iniciou os estudos, concluindo em 1981 o segundo grau como técnico em contabilidade. As primeiras habilidades manuais foram aprendidas na marcenaria do seu pai, José Alexandre Alves. Nas horas vagas, gostava de construir seus próprios brinquedos. Já adulto, deixou de lado o ofício de marceneiro e passou a se dedicar a outras atividades como office boy, auxiliar de escritório e balconista. Paralelamente aos estudos e trabalho, serviu o Tiro de Guerra local e, também passou a se dedicar a tocar violão. Em 1986 parte em aventura para Salvador a fim de estudar Artes. Em 1994 forma-se em Artes Plásticas na UFBA- Universidade Federal da Bahia.

Sua experiência com o cartum deve-se principalmente a dois conceituados cartunistas que Café conheceu na década de 80: Caó e Nildão. “Os considero como meus mestres na arte de desenhar cartum. O primeiro me ensinou a usar a pimenta; o segundo, o azeite”,  finaliza o autor. Café teve cartuns selecionados em salões e festivais de humor nacionais e internacionais como:  V PortoCartoon – Portugal 2003; 1º Festival Internacional de Humor Dst & Aids do Ministério da Saúde, Brasília-DF 2008. Seu primeiro livro de cartuns intitulado Hora do Café foi lançado em 2016. Vamos conhecer um pouco mais desse artista gráfico baiano:



Como começou sua paixão pelas artes gráficas?

CAFÉ - Acho que essa paixão se inicia por volta de 1983, em Santo Antonio de Jesus  -BA, quando tive acesso a livros dos cartunistas Caó e Nildão. Foi por aí que descobri Saul Steinberg. O semanário O Pasquim, Henfil, Jaguar, Ziraldo, Nani, Borjalo, etc. Descobri outros famosos do traço como, Quino e Mordillo. Em S.Antonio eu sempre encomendava aos amigos que vinham para Salvador um exemplar do Pasquim. O momento que mais me aproximou das artes gráficas foi durante o curso de Artes Plásticas na UFBA, concluído em 1994. Lembro que eu garimpava nas bibliotecas da capital baiana tudo que estivesse ligado ao humor gráfico. Era muito prazeroso.

O que você mais gosta de fazer:cartum, charge, caricatura ou historias em quadrinhos?

CAFÉ - Cartum.

O que lhe inspirava na hora de produzir esses trabalhos?

CAFÉ - Qualquer fato curioso. A finalidade é sempre o riso e a reflexão. O cartum é uma arma poderosa capaz de mostrar o lado ridículo, contraditório que o ser humano não admite, não gosta.


Quais são as suas principais influências?

CAFÉ - Charle Chaplin, embora seja de outra linguagem. No início da minha carreira tive bastante influência de Caó.

Você já participou de diversas exposições. Fale um pouco delas?

CAFÉ - Centro de Cultura de Cachoeira - Ba, 1987; Centro Cultural de S. A de Jesus- Ba, 1987; Galeria do Aluno na EBA, UFBA, 1992; Bar Sax - Bairro da Graça, 1992;  Extudo Restaurante, Rio Vermelho, Salvador -Ba, 2006;  Participações em vários festivais de Humor tipo: XXX Salão internacional de humor de Piracicaba; V e XII Portocartoon - PT ,2003 e 2010, respectivamente ; Ricardo Rendón, Colombia, 2003; I Festival Internacional de Humor DST & AIDS, Min. Saúde, BR, 2004; FHUBA no TCA, 2012; Considero essas exposições e festivais como um importante exercício para o meu crescimento como  cartunista. Os temas são sempre desafiadores, envolve muita pesquisa. Aprendi muita coisa praticando e vendo a prática de outros cartunistas. Tenho vários catálogos desses festivais.

Quando foi publicado seu primeiro trabalho?

CAFÉ - Primeiro cartum, em 1986 num jornal de época que surgiu em S. A. de Jesus chamado Reconvale, onde um náufrago anuncia a venda de ilha com plantio de coqueiro e bananeira.



Já criou algum personagem para tiras em quadrinhos?

CAFÉ - Muito pouco.  Tenho um chamado “O escultor”. Já no caso de HQ, tenho outros personagens como é o caso do “Jegue bom de carga”, publicado na revista Esfera do Humor, 1992; “Nestor filma cocô”, uma HQ que tenta conscientizar os donos de cães a apanhar o cocô dos seus animais postos em lugares públicos (essa HQ é inédita) Tenho outra, “Shopping praia”, inspirada em camelôs de uma praia aqui no litoral norte baiano (foi selecionada no V FIHQ-PE) A falta de incentivo, e espaço adequado para publicação, acabam contribuindo para que essas produções sejam esporádicas. Prefiro fazer HQ, a tira em quadrinhos.

Como é o processo de criação?

CAFÉ - A partir de uma ideia, faço esboços buscando uma forma capaz de mostrar por um determinado ponto de vista uma cena cômica imaginada. Aí entra duplo sentido, jogo de palavras, metáfora, etc.

O que você anda lendo ultimamente?

CAFÉ - Tenho lido mais é sobre o golpe que aí está. Além de leituras diárias na internet (prefiro a blogosfera), já li A Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Jr.; O Quarto Poder, de Paulo Henrique Amorim;    literatura, O irmão alemão, de Chico Buarque, Traçando Porto Alegre, de Luis Fernando Veríssimo, ilustrado por Joaquim da Fonseca. Ed. Artes e ofícios, 2009; Lage 40 anos de humor. Org. Nildão; leio também literatura de cordel, quadrinhos nacionais tipo “Em terras americanas”, com Paulo Setúbal, Tom Figueiredo e Vitor Sousa. Ed. Cedraz, 2015; Billy Jackson, com Cau Gomez e Victor Mascarenhas, 2013. Enfim, não sou um leitor voraz, mas me interesso por diversos estilos de leitura. Gosto de estar alinhado com as produções gráficas dos colegas baianos. Sempre que posso vou aos lançamentos.


Como você analisa o atual cenário das artes gráficas no Brasil?

CAFÉ - As artes gráficas em papel impresso perderam muito espaço para o formato digital. Contudo, ainda se continua produzindo livros e revistas impressos. Os jornais impressos estão em extinção. E devido ao pequeno poder aquisitivo da maioria da nossa população, livro ainda é um objeto muito caro em nosso país. No meu caso, faço livro revista, por conta própria, quando posso, por necessidade de me expressar, por paixão pelo desenho. Ainda não consigo sobreviver apenas do desenho, do humor. Um dos  ramos que mais tem dado lucro no Brasil é o farmacêutico. Basta olharmos a quantidade de novas farmácias que são abertas todo dia. Sinal de que a população está muito doente. A nossa arte de humor, poderia ser um grande aliado na prevenção de doenças. O humor faz bem para o corpo e o espírito.

O mercado vive uma fase, isso está refletindo na produção independente também?

CAFÉ - Com certeza. Acho que toquei nisso na pergunta anterior. É muito caro fazer livro independente, mesmo com o advento do computador  (ele agiliza muito durante as diversas fases da confecção do mesmo). O papel, embora se invista tanto em sua reciclagem, em edições digitais, encarece muito o produto final impresso. Buscar patrocínio é uma tarefa árdua, desanimadora para quem se lança a fazer tudo sozinho, lidar com a burocracia complexa de editais, ufa! A gente acaba perdendo o tesão, e, consequentemente, o foco da  obra .

É fácil ser um profissional no Brasil? Quais são as maiores dificuldades?

CAFÉ - Não. O maior desafio é conseguir pagar as contas no final do mês.  Para isso, preciso dar aula em escola pública, (ensino na rede de Lauro de Freitas), faço free lancer quando aparece, e paralelamente vou praticando o humor gráfico com foco em cartum.

Você produziu um livro de cartuns em 2016 via independente. Fale sobre essa obra?

CAFÉ – Hora do Café. Trata-se de uma seleção de cartuns da minha trajetória como cartunista. Parte dos cartuns nele contidos foram selecionados em festivais de humor no Brasil e no exterior, e/ou publicados em outros meios de comunicação, como é o caso da revista Esfera do Humor, criada por mim em 1992. A outra parte é de cartuns inéditos. Hora do Café aborda a vida em toda a sua dimensão poética. São cartuns impregnados de humor sutil que tratam das múltiplas vertentes da natureza humana. Formato  11 cm x 15 cm, capa dura, 64 páginas impressas em 4 cores. Tiragem 500 exemplares, lançamento ocorrido no restaurante Póstudo, Rio Vermelho, Salvador - BA, outubro de 2016.  Fiquei muito feliz com esse projeto independente.

Que material você usar para desenhar e arte finalizar?

CAFÉ - Papel comum, lápis, borracha, caneta com tinta preta, preferência nanquim. Escaneio o desenho, e no computador uso Photoshop para colorir, e Corel draw, edição. Em breve passarei a usar o Illustrator, muito usado por designers. Uso  também uma caneta digitalizadora da Wacom pois o mouse é muito limitado e cansa a mão.


Quem são hoje, para você, os bons chargistas e cartunistas?

CAFÉ - Posso citar, Laerte, Angeli, Aroeira, Nildão, Caó, Cau Gomez, Lute, Setúbal e J. Bosco.

Você já viveu algum tipo de repressão no seu trabalho no jornal?

CAFÉ - Nunca trabalhei em jornal.

No Brasil já é possível viver só de humor?

CAFÉ - Pouca gente consegue.

Quais são seus próximos projetos?

CAFÉ - Publicar dois novos livros de cartuns. Um no formato de Hora do Café, e outro, em formato diferente sobre coisas ligadas ao futebol.