10 novembro 2018

Mr. Guache e seus Zeladores


Humor, aventura, lendas urbanas e folclore brasileiro no formato de história em quadrinhos. Assim é o álbum Zeladores. Produzida por Roberto d’Avila, com arte de Anderson Almeida (Mr. Guache) e roteiro de Nathan Cornes, Zeladores traz personagens míticos e seu universo lendário para o nosso tempo, os coloca no contexto urbano de São Paolo - cidade fictícia baseada na capital paulista – e brinca com o reconhecimento de lugares, pessoas e eventos reais em meio a acontecimentos bombásticos.

Os autores criaram suas versões para a história de personagens do folclore brasileiro, como Zé Pilintra, protagonista de Zeladores. Malandro, afrodescendente, habitante da noite e da boemia, é o mais humano dos seres do imaginário popular brasileiro. Acompanhado pelo melhor amigo – Opala 78, detetive paranormal – Zé Pilintra protege São Paolo de ameaças mágicas, agindo como um xerife do além. Nesta edição, ele enfrenta uma banda funk, reencontra o homem que o matou e visita a Caroxinha, o Barbarruiva e a Mulher de Branco, antes de ser invocado por uma bruxa e o Lobisomem verde dela. Isso tudo no primeiro terço da história.


A ficção propõe uma nova roupagem para as lendas e personalidades folclóricas brasileiras. Trazendo os mitos para o nosso tempo e os colocando no contexto urbano de São Paolo. O herói da história é a entidade sobrenatural Zé Pilintra, protetor da cidade de São Paolo (com "o" mesmo). Pilintra detém uma bengala que lhe dá força espiritual para cuidar da cidade.

Ramalho, um ex-traficante de escravos que adquiriu a imortalidade e, para variar, quer dominar o mundo, pretende libertar o deus Anhagá, aprisionado em um lugar desconhecido. Para localizá-lo e libertá-lo, Ramalho precisa da bengala. Ele já teve a bengala uma vez, quando conseguiu a façanha de matar Zé Pilintra, e agora ambos terão de se confrontar novamente para um tira-teima.

A história começa bem, mas perde o fôlego no meio. O leitor não se identifica com qualquer dos personagens, todos entidades sobrenaturais impiedosas, verdadeiros monstros. O que resgata o trabalho do simples pastiche são as citações à mitologia brasileira de fundo africano e indígena, que deve ser o que garantiu a simpatia da Secretaria da Cultura para aprovar o financiamento da obra. Essa história em quadrinhos foi contemplada pelo PROAC - programa de apoio a cultura da Secretaria do Estado de São Paulo - e publicada por uma editora especializada, a Devir Editora em 2010, mas também está disponível online para quem não pode adquirir a versão impressa.


O desenho de Mr. Guache (Anderson Almeida) é moderno e de cores vibrantes, com uma estilização forte e angulosa. O argumento, do espanhol Nathan Cornes, tem contornos míticos e cosmológicos de textura lovecraftiana.


07 novembro 2018

Gonçalo Jr revela a vida e o tempo do Deus da Sacanagem


A vida humana tem uma história que pode ser contada e pode servir de documento.  Pode servir de lente através da qual se vê e compreende o mundo todo. Contar histórias é algo intrínseco ao ser humano e faz parte da nossa vida. Depois de escrever sobre Benício, Alceu Penna, Flavio Colin, José Luis Salinas, Evaldo Braga, Assis Valente, Rubem Alves, Vadico e muitos outros, o jornalista, escritor e pesquisador baiano Gonçalo Junior se debruçou na trajetória do Deus da Sacanagem: a vida e o tempo de Carlos Zéfiro, obra lançada há poucos meses pela Editora Noir.


Zéfiro indiscutivelmente foi o mestre supremo das HQs pornográficas tupiniquins. Durante mais de quatro décadas ele foi uma das lendas mais intrigantes no mundo dos quadrinhos brasileiros. Em 1991 a revista Playboy fez o mito sair do anonimato. Carlos Zéfiro era o pseudônimo de Alcides de Aguiar Caminha (1921 - 1992), um discreto funcionário público carioca cujo currículo, além das cerca de 800 historinhas pornográficas escritas entre o final dos anos 40 e os anos 80, também ostentava alguns dos maiores clássicos do samba brasileiro – a maior parte dos quais composto em parceria com Nelson Cavaquinho. Zéfiro era o autor de quadrinhos que fizeram a educação sexual dos brasileiros nos anos 1950 e 1960. Nas suas revistas clandestinas, que ganharam o apelido de “catecismos” (por terem o mesmo formato dos livretos usados nas igrejas para o ensino de religião), havia sempre histórias picantes.

A escolha de um pseudônimo veio da necessidade, uma vez que seus quadrinhos eram repreendidos pela sociedade conservadora da época, porém fazia sucesso nas vendas às escondidas, sendo, por vezes, a única fonte de informação erótica de muitos jovens da época. A repressão só aumentou com a Ditadura Militar, época em que foi perseguido incansavelmente, mas nunca conseguiram o prender, afinal só foi revelado em 1991.


Carlos Zéfiro (o mestre dos quadrinhos pornôs brasileiros) soube como ninguém retratar o sexo como ele o é na vida real, sem falsos pudores, sem hipocrisia, com tesão, com poesia, não respeitando nenhum tabu e desvendando-nos todas as fantasias. Ele dizia-se honrado por fazer parte da história do Brasil. Mas não se importa muito. Afinal, "tudo na vida é muito efêmero. Hoje se está no apogeu, amanhã no ostracismo".

Em 1970, durante a ditadura militar, foi realizada em Brasília uma investigação para descobrir o autor daquelas obras pornográficas que chegou a prender por três dias o editor Hélio Brandão, amigo do artista, mas que terminou inconclusa. Em 1992 recebeu o prêmio HQMix, pela importância de sua obra. Após sua morte teve um trabalho publicado como homenagem póstuma em 1997 na capa e no encarte do cd "Barulhinho Bom" da cantora Marisa Monte.

Utilizando uma linguagem chula, Zéfiro permeou todo o imaginário popular. Por suas páginas, desfilaram as grandes musas da garotada: viúvas sedentas, desquitadas carentes, padres devassos, freiras pecaminosas, refletindo a realidade provinciana e reprimida do nosso velho Brasil.


Artista clandestino, desenhista lascivo, sacana naïf, lenda. Carlos Zéfiro colecionou muitas definições durante o período em que alimentou os sonhos eróticos de milhares de adolescentes, entre as décadas de 50 e 70. Para uns, os desenhos de traços simplórios de Zéfiro eram nada mais que perversão e projeções de uma mente doentia. Para outros, arte underground, "cult" total.

Para melhor compreender o fenômeno, é fundamental transportar à época em que esses quadrinhos foram produzidos, com governos autoritários e conservadores, bem como forte influência da Igreja Católica no comportamento da juventude. Naqueles tempos, onde a pornografia era proibida por lei e tudo tinha sabor de descoberta, representações visuais e explícitas do sexo eram praticamente inexistentes no Brasil, fazendo com que os adolescentes aliviassem suas tensões com compêndios de medicina, imagens de tribos indígenas ou quando muito com alguns romances mais picantes de Jorge Amado. As "casas de luz vermelha" eram verdadeiras instituições, onde o garoto era levado pelo pai para "ter sua primeira vez", no que era auxiliado pela prostituta, profissional e expert que lhe daria todo o suporte e conhecimentos básicos para não fazer feio na lua-de-mel, já que a noiva do cliente era "moça de família" e nunca transaria antes do casamento. Embora a "moral" e os "bons costumes" já fossem verdadeiras piadas, as pessoas ainda fingiam levá-los a sério, e em meio a este cenário deveras bizarro, a obra zefiriana surtiu como uma bomba atômica.

Vários foram os artistas que se dedicaram a estas publicações, mas devido à peculiaridade de seu trabalho e ao fato de ser o mais prolífico de todos, Zéfiro foi o único que se destacou, angariando uma legião de fãs e imitadores. Como desenhista, era medíocre: faltava-lhe conhecimento de anatomia, as imagens eram visivelmente decalcadas de outras fontes e, de um quadrinho para o outro, os personagens costumavam sofrer mudanças físicas inexplicáveis. Todavia, estes desenhos toscos tinham um charme especial e eram cheios de estilo, bastando uma rápida passada de olhos para reconhecer o autor, que supria as deficiências de seu traço com textos envolventes e ótimos roteiros.


As revistinhas de Zéfiro marcaram várias gerações e começou a sair do campo proibitivo e a ganhar status na área da sociologia. Duas obras regataram Zéfiro do mundo da subliteratura: O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro, uma análise de Otacílio d´Assunção, e A Arte Sacana de Carlos Zéfiro, edição organizada por Joaquim Marinho com textos de Roberto da Matta, Sérgio Augusto e Domingos Damasi. Agora com a obra de Gonçalo Junior há descobertas enriquecedoras numa narrativa fluente, prazerosa, tudo cuidadosamente reconstruído e explícito, como revela Franco de Rosa no prefácio.

São dez capítulos e um epílogo (Em busca da verdade) onde toda a obra de Zéfiro é lida com as mãos, “através dela, Gonçalo escancarou um universo da cultura brasileira do qual pouco sabíamos – porque, até agora, escondido por portas fechadas”, conta Ruy Costa. Vale a pena conferir!

A Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro
Gonçalo Junior
Formato: 14x21 cm, 384 páginas
Preço: R$ 59,90 (frete grátis para todo o Brasil): https://www.editoranoir.com/zefiro