30 janeiro 2019

Pioneiro da caricatura brasileira


Há 140 anos (em dezembro) morria o primeiro caricaturista brasileiro Manuel de Araújo Porto-Alegre.  Gaúcho, ele foi o primeiro artista a publicar uma caricatura no Brasil, em 1837. Entre 1837 e 1839, de volta de sua viagem à Europa, Manuel de Araújo Porto-Alegre produziu uma série de litografias satíricas que eram vendidas em unidades separadas nas ruas do Rio de Janeiro.

 


O aparecimento relativamente tardio da caricatura na nossa história é revelador da demora que a imprensa levou para chegar até nós. Embora no período colonial o Brasil tenha sido privado da imprensa por determinação real, a caricatura já se manifestava de outras formas como expressão do povo nas festas de carnaval, de bumba-meu-boi, na malhação de Judas, e através de bonecos e fantasias que satirizavam pessoas e costumes da época. Foi em 1837 o ano da primeira caricatura brasileira.

 


Pintor, arquiteto, autor dramático, poeta e diplomata, Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), depois Barão de Santo Ângelo, tão logo volta ao Brasil, tratou de divulgar a arte desenvolvida nos seus anos no exterior, publicando em dezembro de 1837 a primeira charge brasileira no Jornal do Commercio, que satiriza Justiniano José da Rocha, político de relevo da época.

 


Com a vinda para o Brasil da família real portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, é que estabeleceram aqui as primeiras oficinas gráficas. Começou, a partir daí, o desenvolvimento da impressão de livros e periódicos. Os jornais, no entanto, eram apenas tolerados, e quem se manifestava contra o governo sofria as sanções da censura e da perseguição. Os jornais, até então, não publicava caricaturas. Estas circulavam apenas como estampas avulsas, ainda de forma tosca e sem qualidade. As inovações técnicas, chegadas ao Brasil em meados do Século XIX, permitiram o advento da gravura e, consequentemente da caricatura, na imprensa brasileira, causando considerável impulso, assegurando novas condições à crítica e ampliando sua influência. Nesse sentido, o texto humorístico foi precursor da caricatura, que somente apareceu quando as técnicas da gravação permitiram conjugar as palavras coim a atração visual do desenho e da imagem.



A primeira caricatura brasileira, atribuída a Manoel de Araújo Porto Alegre (1837), apareceu como uma estampa avulsa e foi exibida pelo Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, nº277, de 14 de dezembro de 1837. A caricatura, mais propriamente a charge, tratava de uma crítica às propinas recebidas por um funcionário do governo relativas ao Correio Oficial.

 


O aparecimento da caricatura passou a dar à imprensa recursos de enorme amplitude e a anunciava uma mudança que iria justificar o processo político. Era uma época de grandes mudanças, marcadas pela extinção do tráfico negreiro (lei de 1850), pela Guerra do Paraguai (1864-1870) e pela consolidação do Império.



A profusão de imagens nas mídias emergentes (jornais, cartazes, estampas e espetáculos teatrais) constitui uma revolução visual. São sinais de uma consciência da cidade em transformação. A imprensa ilustrada provoca um impacto no imaginário, nos costumes, na consciência dos fatos do tempo vivido, na percepção da cidade. As evoluções técnicas tipográficas, como a da gravura em bois de bout (“em madeira de topo”), fazem com que texto e imagem possam se associar na mesma página, barateando a produção de jornais, que se sucedem: La Silhouette (1829-1830), La Caricature (1830-1835, que une o romancista Honorpé de Balzac ao editor Charles Philipon), Le Charivari (1832-1872), Le Magasin Pittoresque, entre outros.

29 janeiro 2019

Um ano sem Ângelo Roberto, mestre do desenho


No dia 28 de janeiro de 2018, há um ano, morria o artista plástico Ângelo Roberto. Ele nasceu em 1938 na antiga Palestina, atual Ibicaraí. Quando veio morar com a família em Salvador, participou do programa do professor Adroaldo Ribeiro Costa, Hora da Criança. E descobriu a vocação para desenho. Simplicidade, sensibilidade, harmonia, força, beleza, expressividade plástica, olhar da infância (puro). Tudo isso estão contidos no desenho do mestre baiano Ângelo Roberto. Impossível não parar diante de seus desenhos ternos de traço límpido e preciso.

 


No misterioso traçado quase invisível que compõe o desenho de Ângelo Roberto, há às vezes a impressão de que o artista tem um poder incomum de criar um nobre sentimento entre suas figuras humanas e seus animais. Nos gestos mais sutis das figuras de Ângelo, o sentimento de amor infinito pela liberdade compreende o direito das criaturas de conquistá-la e deixá-la ir e vir, quando quiser. Como a tristeza feita em lágrimas nos olhos das meninas, diante de pássaros engaiolados; ou feita em alegria incontida e fluida no momento de ver outro pássaro alçar vôo e sumir pela janela. Em todos os segmentos que extrai da vida, Ângelo é sublime e sua linguagem não é meramente emocional – é hipnótica. Na avaliação de Ângelo, a marca da sua arte é a linha precisa. “É ela que me fascina, é o ponto de partida de tudo, eu não acredito num pintor que não é desenhista. Atualmente, eu ando querendo fazer pintura, mas estou emaranhado pela linha, e é difícil sair dela“.

 


O desenho, para o artista, “é a alfabetização”, a grande escola de pintores, caricaturistas, os mestres das artes visuais. A peça mais importante do jogo, assim como “o escritor tem que saber soletrar”, o pintor tem que saber desenhar, para ser perfeito em sua arte. Por isso, Ângelo não pensa duas vezes para dizer que desenho é fundamental, “porque sei que todo desenhista pode pintar, mas nem todo pintor desenha”. Assim como nem todo caricaturista sabe desenhar, mas todo desenhista pode ser um bom caricaturista. E Ângelo Roberto é bom em tudo o que se propõe a fazer, porque de desenho ele entende.

 


Ele se dedicou, em vida, a desenhar cavalos. Esses seres peraltas, encantados, quase mitológicos, ternos e cheios de façanhas surgem do imaginário lúdico do artista. E como escreveu o escritor Paulo Martins para o Caderno Cultural d´A Tarde, Paulo Martins, o tema recorrente do conjunto de sua obra sempre foi a infância. “Assim, os desenhos de Ângelo são mais do que meras recordações da infância: ele os concebe, sempre, com os olhos da infância. São desenhos mnemônicos, mas é como se ele enxergasse tudo não com os olhos de hoje, mas com os olhos da criança que foi um dia”.

 


O bico de pena é uma característica forte na arte de Ângelo Roberto, mas a caricatura é algo que “nunca saiu de mim”. Ele já foi caricaturista de diversos jornais baianos como o Jornal da Bahia, A Tarde, Diário da Bahia e Folha da Bahia. Segundo o professor e artista plástico Juarez Paraíso, “Ângelo Roberto é, precipuamente, um artista da linha e do tracejado, das impressionantes tramas de bico-de-pena. O contraste elegido é simples, mas eficaz. O completo domínio artesanal do artista tece uma incrível tessitura gráfica, um incrível trabeculado, estrutura linear composta por traços pacientemente superpostos, com mais ou menos transparência, jamais obstruindo a passagem da luz que emana do papel”.

 


“A volumetria – continua Juarez – é reduzida e controlada com sutileza, e o segredo está no controle da transparência e da natureza da textura visual, na dependência da acumulação e posição espacial do tracejado retilíneo, sendo notável a passagem da luz entre as figuras e o fundo. Mestre do bico-de-pena, Ângelo Roberto já produziu centenas de desenhos de grande beleza plástica (gráfica). Com os atuais, demonstra uma prodigiosa imaginação e memória visual no desafio de um só tema e com o máximo de economia dos recursos materiais. Um sensível e intenso sentimento de harmonia emana da conjugação de linhas, atraindo o movimento do olhar, seduzido pela suavidade do ritmo criado pelo artista. A expressividade plástica sobrepõe-se à simples configuração temática, graças ao desenho despojado e contemplado pelo talento do artista, pela depurada percepção seletiva e notável poder de síntese, próprio dos grandes desenhistas figurativos”.

24 janeiro 2019

Território da alma humana (4)


A imagem gráfica foi um dos primeiros e mais presente elemento para o estabelecimento de diferentes formas de comunicação e registro narrativo da aventura humana. A pintura rupestre, presente até os nossos dias, é um exemplo das primeiras narrativas por sucessão de imagens (MOYA, 1970).



E em outro momento histórico, em que a comunicação já procedia de uma linguagem falada inteligível e codificada, o nascimento dos primeiros alfabetos reteve o caráter da imagem gráfica. Até os nossos dias, algumas culturas vivas preservam estas estruturas primordiais da escrita em alfabetos ideogramáticos, como é o caso da escrita do idioma chinês. A aproximação entre a escrita e a fala, contudo, foi essencial para a apropriação crescente da leitura como atividade cotidiana das populações, encaminhando sua democratização a constituir-se em um direito e patrimônio da humanidade.

 


A difusão das linguagens de matriz visual verbal continuou na Europa, nos séculos XVII e XVIII, como forma universal de comunicação impressa, o humor gráfico dá o próximo passo quando um imigrante italiano radicado no Brasil, Ângelo Agostini, lança a obra As Aventuras de Nhô Quim em 1869, considerada a primeira história em quadrinhos do mundo por certos especialistas (RIANI, 2002, p.38). No entanto, para efeito de internacionalização da linguagem, o primeiro registro mundial fica com Yellow Kid, história em quadrinhos de autoria de Richard Felton Outcault, lançada em 1895 (MOYA, 2003, p.95).



Consolidando-se como linguagem da mídia na imprensa norte-americana do século XIX, a história em quadrinhos concentrou-se em conteúdos humorísticos e esteve inicialmente voltada para o público menos letrado, abordando com comicidade as mazelas do operariado, dos núcleos familiares de classe média e baixa, contemplando também a possibilidade do protagonismo feminino, de minorias sociais e étnicas. A distribuição destas primeiras HQs, denominadas na época comic strips (chamadas no Brasil de “tiras”) foram levadas dos EUA para o mundo por meio dos syndicates, que são até hoje organizações distribuidoras de notícias e material de entretenimento para jornais do mundo.



Além de difundir o trabalho de seus artistas gráficos, a distribuição sindicalizada dos quadrinhos norte-americanos colaborou, juntamente com o cinema, para a internacionalização de diversos elementos da cultura e formas de produção de bens culturais nesse país. A ampliação dos parques gráficos norte-americanos, aliado ao aprimoramento da linguagem das HQs, fez com que estes obtivessem um veículo próprio, uma publicação periódica chamada comic book (conhecido no Brasil como gibi).



O efeito de despertar o gosto pela leitura não se perdeu para as histórias em quadrinhos, segundo os especialistas, mesmo quando outras mídias foram crescidas nas vivências domésticas e comunitárias das pessoas, como o rádio, a televisão, o cinema e, mais recentemente, as mídias digitais e o advento da Internet. Uma das características que resgata as histórias em quadrinhos como componente geracional, ou seja, traço inerente à geração atual, é determinado pelas propriedades hibridizadas de sua linguagem, devido aos elementos semânticos de sua matriz visual verbal. Assim, a geração de jovens que cresceram sob a égide da informática se identifica com a mídia quadrinhística, sentindo-se atraída também pelas possibilidades que cada leitor tem de criar suas próprias narrativas por meio desta linguagem.



Em seu estudo sobre culturas híbridas, Nestor Garcia Canclini abordou dois “gêneros impuros: grafites e quadrinhos”: “São práticas que desde seu nascimento abandonaram o conceito de coleção patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular, aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva” (CANCLINI, p. 337)



E mostra a sua aliança inovadora, desde o final do século XIX, entre a cultura icônica e a literária. Participam da arte e do jornalismo, são a “literatura” mais lida, o ramo da indústria editorial que produz maiores lucros: “Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos. Contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas. Já se analisou como a fascinação de suas técnicas hibridizadoras levou Bourroughs, Cortazar e outros escritores cultos a empregar sua síntese de vários gêneros, sua ´linguagem heteróclita´ e a atração que suscita em públicos de várias classes, em todos os membros da família” (CANCLINI, p. 339).



Mais adiante Canclini informa: “Se a história em quadrinhos mistura gêneros artísticos prévios, se consegue que interajam personagens representativas da parte mais estável do mundo – o folclore – com figuras literárias e dos meios massivos, se os introduz em épocas diversas, não faz mais que reproduzir o real, ou, melhor, não faz senão reproduzir as teatralizações da publicidade que nos convencem a comprar aquilo de que não precisamos, as ´manifestações´ da religião, as ´procissões´ da política” (CANCLINI, p. 345).




23 janeiro 2019

Território da alma humana (3)


As histórias em quadrinhos apresentam-se como mídia financeiramente acessível, democrática e abrangente em matéria de popularidade, e preparam o cérebro humano para a apropriação de uma ampla oferta de bens culturais. A distinção entre alta e baixa cultura é uma página virada, que não deixa lugar nem para apocalípticos, nem para integrados. No livro Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco (1979) relaciona as diversas “peças de acusação” e também as de “defesa” para em seguida fazer uma reflexão sobre o tema. Em nenhum momento, Eco toma partido de apocalípticos ou integrados, mas oferece uma análise livre de preconceitos, que, no fim, sugere alternativas para o que chama de uma utilização valorativa dos meios de comunicação de massa.



Confrontando as diversas características “pró” e “contra”, Eco afirma ser possível perceber que os níveis culturais são complementares, o que significa que podemos chegar aos biscoitos finos de Oswald de Andrade pela cultura de massas. Ele chama a atenção para a raiz aristocrática da crítica à cultura de massas, como nostalgia de uma época em que os valores da cultura eram privilégio de uma classe, mas que agora se difundiram junto a massas que não tinham acesso aos bens de cultura. A cultura de massas se desenvolveu diante da crise de um modelo cultural anterior. E, se hoje o excesso de informações sobre o presente pode distorcer o que os conservadores chamam de “consciência histórica”, antes não havia nem isso para a maioria, o que impossibilitava sua inserção na sociedade. A tão criticada homogeneização dos gostos também pode ter servido para eliminar algumas diferenças de castas, ao mesmo tempo que permitiu uma produção cultural que barateasse os custos.

 


Enfim, diante de “prós” e “contras”, Umberto Eco sugere que a problemática de apologistas e integrados foi mal formulada. Para Eco não se deve perguntar se a cultura de massas é boa o ruim, mas como se pode veicular valores culturais em seus meios de difusão. Estes valores seriam definidos e veiculados por uma comunidade de cultura, formada por intérpretes das sociedades em que vivem, constituindo-se em grupos de pressão sobre o mercado. Esta seria uma relação dialética e não paterno elitista, na medida em que uns interpretariam as exigências e instâncias dos outros. Fica clara a ideia que Umberto Eco faz de sua pólis. A discussão em torno de seu texto permanece atual, embora, hoje, não haja mais espaço para a divisão entre apocalípticos e integrados, já que a paisagem tecnológica se sobrepõe ao real, praticamente nos obrigando a refletir em cima dela. A sociedade já está impregnada pela estetização (até mesmo virtual), pela culturalização da realidade. As superfícies já se transformaram em interfaces de um universo tecnocultural. E os limites se converteram em passagens.



Os estudos de Richard Hoggart, Raymond Williams e Stuart Hall articularam-se contra as concepções elitistas de cultura. A subdivisão entre cultura de elite, cultura de massas e cultura popular torna-se muito mais frágil, com a legitimação dos saberes que todos os membros da civilização produzem, enfatizando também o domínio político que direciona a própria produção cultural. Esses estudiosos redirecionaram a teoria da Comunicação, por meio da inserção do povo como elemento fundamental da cultura. Para eles, e muitos outros, a cultura é emanada das vivências, das relações inter pessoais e das histórias de vida, ou seja, do modo de vida social. Entre os teóricos latinos que resgataram o conceito de mediação (desenvolvido pelo soviético Lev Vygotsky nos anos 1930), definido como o estabelecimento da relação inter-pessoal que perpetua e renova a cultura, por meio da linguagem estão Jesus Martin Barbero, Nestor Garcia Canclini e Guilhermo Orozco Gomes.



Estudiosos como Nestor Garcia Canclini, nos recentes aportes dos Estudos Culturais, elencam as histórias em quadrinhos como bens culturais de vital importância para a Cultura. Através desta reconciliação, foi possível a uma comunidade internacional de pesquisadores da pedagogia neo piagetiana inserir, finalmente, as histórias em quadrinhos nas práticas pedagógicas. Mesmo assim, ainda há o conceito da história em quadrinhos como literatura intermediária, precursora da leitura de obras bibliográficas ditas “superiores”, como livros, jornais e revistas. Aparentemente, existe uma associação estranha entre o valor de um bem cultural e sua reprodutibilidade técnica, que prejudica o estabelecimento de políticas culturais voltadas para a indústria cultural. Para Nestor Garcia Canclini,



Sem dúvida, é necessário expandir o apoio à literatura e às artes não industrializadas, mas no final do século XX não parece convincente dizer que estamos promovendo o desenvolvimento e a integração cultural quando carecemos de políticas públicas para os meios de comunicação de massa, através dos quais 90% dos habitantes do continente (americano) se entretêm e se informam (CANCLINI, 1997, p. 211).


22 janeiro 2019

Território da alma humana (2)


A aparente quietude das HQs esconde a dinamicidade e a riqueza expressiva que saltam de suas páginas coloridas e transforma esse meio de comunicação impresso em um dos produtos culturais mais ágeis dessa indústria do espírito. E essa indústria organiza a cultura de massa para orientar o indivíduo durante o lazer, convertendo este mesmo lazer no tecido da vida pessoal do indivíduo.



O divertimento, inoculado no cerne do lazer, transforma-se ao maior atrativo dos meios de comunicação de massa. As mesmas imagens e palavras, aparentemente inócuas, que encantam crianças e divertem adultos, escondem por trás de suas cores e traços mensagens tremendamente eficazes que nos fazem falar, escrever, amar, vestir e nos portar como os nossos protagonistas preferidos das histórias em quadrinhos.

 


Protegido pela tinta e pelo papel, os personagens das HQs materializam representações que são constantemente retomadas, reatualizadas e normatizadas sob a forma de um simples exercício de leitura. E desse jogo lúdico entre palavra e imagem (aparentemente desvinculado do mundo real), retoma, recria e fundamenta modelos e saberes.



Assim, os quadrinhos convertem-se em possibilidades de naturalização de valores, modelos e paradigmas que são decalcados na memória coletiva sob a forma de representações, que são absorvidas como normas e verdades. Sobre a produção dessas verdades, Michel Foucault é claro quando diz que (...) vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha “ao compasso da verdade” – ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detêm, por esse motivo, poderes específicos. A produção de discursos “verdadeiros” (e que, além disso, mudam incessantemente) é um dos problemas fundamentais do Ocidente. (FOUCAULT, 1979, p. 231).



Os quadrinhos e demais produções do imaginário reatualizam e revitalizam as narrativas místicas, matrizes de paradigmas seculares, assumindo o lugar dos contos de fadas ou das antigas epopeias heroicas. Esses produtos reintroduzem antigos heróis, seres semidivinos, suas obras, dores, amores e ódios, assim como as ideias de bem e mal em nosso cotidiano, instaurando modelos e criando funções.

 


Em 1924 Harold Gray começa a publicar sua tira Little Orphan Annie, a pequena órfã conhecida por causa dos olhos redondos desenhados sem pupilas, cabelos encaracolados, sempre protegida pelo milionário da indústria bélica “Daddy” Warbucks. Annie vivia sempre acompanhada de um cachorrinho chamado Sandy e representou talvez o máximo de conservadorismo que as histórias em quadrinhos puderam um dia refletir. Sustentada por um magnata da indústria de guerra que enfrentava greves mandando assassinar os seus cabeças (Daddy Warbucks), a menina personificava o apoio à plutocracia como modelo ideal de sociedade.



Nunca cresceu, permanecendo por mais de cinquenta anos congelada no tempo, vagando pelas regiões inóspitas dos Estados Unidos, sendo raptada por bandoleiros - normalmente ligados a etnias diversas ou a classes pouco privilegiadas -, e esperando que seu papai retornasse de uma de suas intermináveis viagens para salvá-la dos perigos, com os quais parecia ter contrato de exclusividade. Talvez por personificar a mentalidade tacanha e retrógrada que dominava (e domina ainda) boa parte da população de seu país, foi um dos grandes sucessos dos quadrinhos, sendo desenhada por seu autor até a morte deste, em 1968, e depois tendo sua continuação por outras mãos. Virou até musical na Broadway e produção cinematográfica. A série provocou críticas severas em sua época, teóricos da área são unânimes em suas afirmações:



“A órfã das pupilas sem luz, sempre perseguida e sempre triunfante, é o pretexto para celebrar as pretensões, os privilégios, os abusos de certa porção da sociedade americana: a necessidade de ganhar muito, o gosto pelas obras de caridade, ou seja, o dinheiro, como fim e como meio”. (BUONO, 2007, p. 7). “As histórias eram parábolas, contos moralistas, cheios de alegorias caracterizações” (MOYA, 1993, p. 55)



“Gray, que sempre desenhou Aninha com olhos brancos, foi acentuando na sua série suas convicções políticas de direita extremada, colocando muitas vezes como ´vilões´ sindicalistas, grevistas ou operários simpatizantes do comunismo (GOIDA, 1990, p. 25). “As tiras de Little Orphan Annie são um exemplo da introdução da ideologia de direita nos comics: paternalismo, glorificação do mundo patronal, etc”. (GUBERN , 1979, p. 90). Apesar disso, Aninha, pela forma sentimental e esperançosa com que enfrentava perigos e situações difíceis, conquistou leitores no mundo inteiro.




21 janeiro 2019

Território da alma humana (1)


Depois de embalar duas grandes guerras, o século XX conheceu uma nova onda de colonização. Não mais horizontal ou geográfica, mas verticalmente, penetrando os territórios da alma humana. A industrialização do espírito, segundo Edgar Morin (2009, p.13), por meio do avanço tecnológico, se voltou para a organização do interior do homem, soterrando-o sob camadas de mercadorias culturais.

 


“...as palavras e imagens saíam aos borbotões dos teletipos, das rotativas, das películas, das fitas magnéticas, das antenas de rádio e de televisão; tudo que roda, navega, voa transporta jornais e revistas; não há uma molécula de ar que não vibre com as mensagens que um aparelho ou um gesto tornem logo audíveis e visíveis (…) Através delas, opera-se esse progresso ininterrupto da técnica, não mais unicamente votado à organização exterior, mas penetrando no domínio interior do homem e aí derramando mercadorias culturais. Não há dúvida de que o livro, o jornal eram mercadorias, mas a cultura e a vida privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial, nunca os murmúrios do mundo – antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de fadas, anões e duendes, palavras de gênios e de deuses, hoje em dia músicas, palavras, filmes levados através de ondas – não haviam sido ao mesmo tempo fabricadas industrialmente e vendidas comercialmente. Essas novas mercadorias são as mais humanas de todas, pois vendem a varejo os ectoplasmas da humanidade, os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma” (MORIN, 2009, p.13-14)



E desde a infância, o cidadão médio dessa sociedade de massa é inserido em uma sede de informações que mescla os mais diversos conteúdos, que são cuidadosamente elaborados para integrar diferentes categorias de consumidores aos meios de comunicação. E esse caráter emigra da imprensa para os outros meios. A maior parte das mercadorias que alimenta essa sociedade de massa associa palavras rápidas e sucintas a imagens suntuosas, fascinantes e dinâmicas.

 


As invenções técnicas foram necessárias para que a cultura industrial se tornasse possível. O crescimento de todo sistema industrial exigiu o máximo consumo para um público variado. E essa variedade é, ao mesmo tempo, sistematizada, homogeneizada. Asim a diversidade dos conteúdos foi homogeneizada. A maioria dos filmes, por exemplo, sincretiza temas múltiplos no seio dos grandes gêneros: num filme de aventura haverá amor e comicidade e num filme de amor haverá aventura e comicidade, assim como num filme cômico, haverá amor e aventura. Essa linguagem homogeneizada exprime esses temas.



O radio tende ao sincretismo variando a série de canções e programas, mas o conjunto é homogeneizado no estilo da apresentação radiofônica. A grande imprensa, a revista ilustrada tendem ao sincretismo se esforçando por satisfazer toda gama de interesse.



Informa Morin: “No começo do século XX, as barreiras das classes sociais, das idades, do nível de educação delimitavam as zonas respectivas de cultura. A imprensa de opinião se diferençava grandemente da imprensa de informação, a imprensa burguesa da imprensa popular, a imprensa séria da imprensa fácil. A literatura popular era solidamente estruturada segundo os modelos melodramáticos ou rocambulescos. A literatura infantil era rosa ou verde, romances para crianças quietas ou para imaginações viajantes. O cinema nascente era um espetáculo estrangeiro. Essas barreiras não estão abolidas. Novas estratificações foram formadas: uma imprensa feminina e uma imprensa infantil se desenvolvem depois de cinquenta anos e criam para si públicos específicos” (p.37). E conclui: “A cultura de massa é, portanto, o produto de uma dialética produção-consumo, no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade” (p.47).

 


Para concluir esse espírito do tempo onde a cultura de massa é um embrião de religião da salvação terrestre, mas falta-lhe a promessa da imortalidade, o sagrado e o divino, para realizar-se como religião, Morin assim afirma: “A contradição – a vitalidade e a fraqueza – da cultura de massa é a de desenvolver processos religiosos sobre o que há de mais profano, processos mitológicos sobre o que há de mais empírico. E inversamente: processos empíricos e profanos sobre a ideia-mãe das religiões modernas: a salvação individual”.



Assim a união entre o imaginário e o real é muito mais íntima do que nos mitos religiosos ou feéricos. O imaginário não se projeta no céu, fixa-se na terra. Os deuses (e os demônios) estão entre nós, são de nossa origem, são como nós mortais. Só não há resposta para as contradições da existência, estas estão em movimento, e esse movimento pode criar respostas, também em movimento.


18 janeiro 2019

Nélson Maleiro, um percussionista de peso


Ele inovou a estética do Carnaval baiano com seus instrumentos percussivos. Foi o primeiro negro a protagonizar uma propaganda comercial ao vivo na TV Itapoan. Um agitador cultural Há 110 anos nascia Nelson Maleiro.



Músico, carnavalesco, precursor dos instrumentos de percussão, artesão, desportista, animador cultural e compositor. Nascido em 20 de janeiro de 1909, em Saubara, então distrito de Santo Amaro da Purificação, Nélson Cruz, aos dez anos de idade foi trazido a Salvador por uma família amiga de seus pais para trabalhar como embalador na loja Bahia Elétrica, na Baixa dos Sapateiros. Mais tarde, tendo grande habilidade, dedicou-se a fabricar malas. O sucesso foi tanto nessa atividade que toda a Bahia passou a reverenciá-lo como Nélson Maleiro. A partir daí o artista passou a ser mais conhecido e participou com mais afinco dos eventos culturais da comunidade.

 


A arte sempre foi uma força que se apoderou daquele homem robusto que certamente ultrapassava a 100 quilos. Depois do fabrico de malas que lhe valeu o cognome, colocou a sua inteligência a serviço das alegorias que tanto marcaram o carnaval da Bahia. Os carnavais baianos sofreram grande influência de Nélson Maleiro, pois era integrante do bloco Mercadores de Bagdá e depois, em 1959, com uma ala dissidente dos Mercadores, fundou o bloco Cavalheiros de Bagdá, que em 1960 saiu às ruas pela primeira vez no carnaval, sendo vencedor com sua criação de O Gigante de Bagdá.



Dentro dos Cavalheiros de Bagdá fez várias criações que se tornaram inesquecíveis como a baleia jogando água no povo, dragão que expelia fogo, tubarão, King-Kong, e tantas outras. O sucesso do gigante nos Cavalheiros de Bagdá foi tanto que, durante 20 anos, foi destaque no carnaval. Como artista, foi ainda convocado a emprestar o seu talento ao clube carnavalesco Os Internacionais. Durante nove anos, confeccionou os carros alegóricos do referido bloco tais como pandeiro cigano, barco, lâmpada maravilhosa de Aladim, pirâmides do Egito e outros.

 


Nélson Maleiro foi o precursor dos instrumentos de percussão na Bahia. Ele fabricava, consertava e tocava instrumentos de percussão como tamborim com e sem ferragem, bongô, timbau, atabaque, tumbadora, bateria completa, pandeiro, agogô entre outros. Como percussionista e inovador, apresentava-se tocando bumbo com duas baquetas. Emprestou esse talento artístico a inúmeros blocos carnavalescos de sua época como Vai Levando, Barroquinha Zero Hora, Ritmistas do Samba, Nega Maluca, com abastecimento dos instrumentos de percussão. O Carnaval da Bahia ficou mais percussivo com os instrumentos do artista. Graças a ele, não era mais necessário comprar o atabaque ou o timbau fora, Maleiro fazia aqui mesmo. O grande sucesso alcançado pelos grupos de percussão atualmente tem muito a ver com Maleiro, pelo grande artista que foi, levando alta dose de criatividade e tudo de que participava com suas invenções. Na medida em que confeccionava os instrumentos, sabia tocá-los muito bem. Assim, ao se falar do carnaval e da musicalidade baiana, não se pode esquecer Nélson Maleiro, o gigante de Bagdá. Sua participação na vida cultural não foi só no carnaval. Criou na década de 40 a Orquestra de Jazz Vera Cruz que abrilhantava os bailes da época, onde tocava sax tenor e barítono. Fundou o Clube de Regatas Vera Cruz, participou de várias competições no Dique do Tororó, com um barco de sua própria fabricação.



No projeto A Hora da Criança, do professor Adroaldo Ribeiro Costa, tece participação nas peças de teatro Narizinho e Monetinho, realizadas no teatro do antigo Instituto Normal da Bahia, integrando a orquestra quer acompanhava peças, tocando maracas. Na tradicional Festa dos Santos Reis, Maleiro se fez presente por vários anos, como integrante dos ternos Arigofe, Estrela do Oriente e Terno do Sol, onde sagrou-se campeão por diversas vezes, tocando sax e barítono. Nesses festejos ele se preparava com extremo rigor e se entregava de corpo e alma. Era um apaixonado pelas tradições da terra. Na Lavagem do Bonfim, tradicional festa religiosa do verão baiano, sua presença era sempre esperada por todos que lá compareciam, pois sempre criativo trazia sia bicicleta sui generis de seis lugares, sobre a qual levava alguma alegoria como pote ou caixa d´água, enriquecida de algumas inscrições pertencentes à festa, tipo “a água que lava o bem lava o mal”, “a água que lava tudo só não lava a língua dessa gente”. Foi também homem de televisão, participando do programa Escada para o Sucesso, produzido pela TV Itapuã, canal 5 onde o Gigante, "gongava" os calouros que desafinavam. Como compositor fez a música Pescaria de Tubarão para os Cavalheiros de Bagdá.

 


Nélson Maleiro teve cinco filhos, 14 netos e dois bisnetos. Sendo católico, frequentava a Igreja do Bonfim no dia do seu aniversário e, nos outros dias. Visitava o Mosteiro de São Bento. Era a forma de demonstrar a sua fé. Homem altruísta. Sempre atendia a todos que o procurava, ajudava aos necessitados, seja de uma forma material ou espiritual. Costumava, às sextas-feiras distribuir esmolas ao imenso número de pedintes que se portavam em frente à sua lojinha, que era a sua morada e o seu local de trabalho – Rua Dr. J.J.Seabra, loja 28. Ele faleceu em 1982 e deixou uma imensa saudade em todos os cantos da Bahia.



Admiradores e vizinhos do artista, na rua da Barroquinha,. Ivan Lima e Ivete Lima iniciaram há anos, um movimento visando o reconhecimento público dessa importante figura. Com o apoio do professor e ex-vereador Germano Tabacoff, aprovaram a Lei nº9.215/96 que denominou de Nélson Maleiro, uma rua situada no Jardim São Cristóvão, na Liberdade. Trata-se da Associação dos Amigos de Nélson Maleiro (de caráter social e beneficente) para preservar a memória desse irrequieto artista popular, um dos difusores da moderna linguagem percussiva, que hoje lança nomes baianos no cenário mundial, como Carlinhos Brown. Em 1996 o Ilê Ayê saiu às ruas com o tema Pérolas Negras do Saber, fazendo uma homenagem ao carnavalesco. E em dezembro do mesmo ano, uma rua no Parque São Cristóvão passou a se chamar Rua Nélson Maleiro. É a lembrança do povo baiano a um de seus filhos querido. (Fonte: Gente da Bahia, volume 2, escrito por Gutemberg Cruz e publicado pela Editora P&A em 1998)

17 janeiro 2019

Um ano sem Luis Augusto, o criador de Fala Menino!


O criador da série em quadrinhos Fala, Menino!, o artista gráfico baiano baiano Luis Augusto, morreu no dia 20 de janeiro de 2018, aos 46 anos, em Salvador. O desenhista sofreu um infarto.

 


Seus quadrinhos abordam uma turminha muito especial. Lucas é mudo, mas sempre consegue passar o seu recado. Caio é cadeirante e sabe lidar muito bem com a trajetória da vida. Rafael é deficiente visual que gosta de filosofar sobre tudo o que ainda não viu, mas enxerga o mundo de uma perspectiva lúcida. Mateus é autista e consegue entender o que está em sua volta. Leandro, o melhor amigo de Lucas, é um garoto judeu super ativo e cheio de imaginação.

 


Os personagens possuem necessidades especiais, mas os traços de Luis Augusto não caem no arquétipo da cartilha contra o preconceito. Mesmo com limitações físicas, as crianças não permitem que isso impeçam de realizar as ações típicas da infância como as brincadeiras, as paqueras, os sonhos. Tudo isso com uma dose de humor e otimismo. Uma turminha que tem que lidar com os dilemas da infância, dialogando com o mundo dos adultos de um jeito muito especial.

 


Os desenhos de Luis Augusto Gouveia foram premiados pela UNICEF, inclusive no Prêmio Ibero Americano de Comunicação pelos Direitos da Infância. Além da tira publicada no jornal A Tarde, vários livros foram editados e uma série de desenhos animados de 15 capítulos (de 45 segundos cada) que ficou no ar na programação das emissoras baianas.

 


DIFERENÇAS - Ao colocar luz sobre a infância e juventude da garotada, Luis Augusto desmistifica e dá dignidade ao personagem. Em termos de inclusão e exclusão, Augusto mostra como as crianças ouvem o som do mundo, sente os perfumes, o calor do toque, do abraço amigo e sugere a inclusão, onde todos se tratam de igual para igual. Se seus personagens possuem limitação visual e/ou auditiva, são crianças felizes e com capacidade de sentir o mundo. O objetivo é falar sobre diferenças e deficiências. As crianças não nascem com preconceito, mas vão adquirindo no decorrer da vida, então o artista trabalhar na infância para ter uma sociedade melhor. “O Fala Menino! nos conta de diferenças físicas ou sociais,de superação de limites, de inclusão, de responsabilidade social com a naturalidade doce e subversiva das lições que apenas a infância sabe dar”, revelou o autor em seu blog: http://blogfalamenino.blogspot.com

 


Assim é o trabalho criativo de Luis Augusto, discute o relacionamento do mundo adulto com a infância apresentando a diversidade do universo infantil e contribuindo para que a criança tenha voz atuante na sociedade. Reflexivo, contemplativo e incisivo.“Com a honestidade da perspectiva infantil, falar da criança como o ser inteligente e crítico que é, capaz de discutir o comportamento adulto. E junto com o Lucas, discutir o relacionamento do mundo adulto com a infância, talvez o único momento da vida em que somos quem nascemos para ser, sem tantas máscaras sociais, sem tantos preconceitos”, diz o autor. O Fala Menino! nos conta de diferenças físicas ou sociais, de superação de limites, de inclusão, de responsabilidade social com a naturalidade das lições que apenas a infância sabe dar.

 


O que chama atenção nos quadrinhos de Luis Augusto é sua perspectiva nova em termos de linguagem, conteúdo e forma. Refletir e expressar o seu tempo é essencial para o desenhista. Ter consciência de sua época. Como expressar seu mundo, de que formas dispõem para a execução e que posições tomar frente à realidade do momento. Essas são perguntas que muitos desenhistas se fazem a todo instante, uns mais outros menos. Uma obra de arte significa sempre uma tomada de posição do artista perante a vida. Aqueles que procuram uma arte de consumo fácil, de puro ócio, dificilmente seu trabalho resistirá ao passar do tempo. O de Luis Augusto vai atravessar gerações, porque além de falar ao coração, chega junto na consciência, o que é essencial. Promove dignidade e emancipação das pessoas especiais.

16 janeiro 2019

50 anos sem Gordurinha


Compositor, cantor, radialista e humorista baiano, Waldeck Artur Macedo, conhecido por “Gordurinha” continua esquecido. Há 60 anos ele lançava o samba  "Chiclete com banana", parceria com Jackson do Pandeiro, foi gravado com grande sucesso. Primeiro por Odete Amaral, mulher do cantor Ciro Monteiro, e, posteriormente, pelo próprio Jackson do Pandeiro. Ela origina, em 1968, montagem dirigida por Augusto Boal, no Teatro de Arena de São Paulo, que aborda as relações históricas da música brasileira no exterior e da estrangeira no Brasil. É redescoberta pelo público com Gilberto Gil, no LP Expresso 2222, de 1972. Nos anos 1980 foi tema de uma tira de histórias em quadrinhos, do desenhista Angeli e é nome de uma banda de música baiana. Em 16 de janeiro de 2019 completa 50 anos de sua morte.



Cronista perspicaz dos costumes e questões culturais e sociais de seu tempo, Gordurinha  navega com desenvoltura por diversas temáticas e estilos musicais. É autor de melodias de gêneros nordestinos, como o coco e o baião. Essas canções têm usualmente como pano de fundo a cultura nordestina e seus dilemas sociais, expressos por meio de um personagem forjado no vasto repertório de seus tipos populares. Gordurinha elabora letras que captam a psicologia e o linguajar coloquial do universo retratado, interpretando as dicções regionais.




Magro na juventude, Waldeck Artur de Macedo, nascido no bairro da Saúde, em Salvador, no dia 10 de agosto de 1922, ganhou seu apelido em 1938, quando já trabalhava na Rádio Sociedade da Bahia.



Do seu repúdio à colonização americana, pela goma de mascar nasceu o bebop-samba, Chiclete com banana, em parceria com Almira Castilho, que acabou por pronunciar o tropicalismo ao sugerir antropofagicamente na letra: 'só boto bebop no meu samba quando o Tio Sam pegar no tamborim, quando ele entender que o samba não é rumba'.



Ele mesmo chegou a gravar, como que a tirar um sarro um rock entitulado Tô doido para ficar maluco. Mas não foi só de glória e reconhecimento tardio a vida deste que, ao lado do Trio Nordestino, iria se transformar no baluarte do forró na Bahia.

 


Sua estréia no mundo da música se deu em 1938, quando fez parte do conjunto vocal "Caídos do céu" que se apresentava na Rádio Sociedade da Bahia, fazendo logo depois par cômico com o compositor Dulphe Cruz. Logo se destacou pelo seu dom de humorista e pelo sarcasmo que iria ser disseminado em suas letras anos mais tarde.



Em 1942, cansado de tentar conciliar estudo e sessões de rádio, tomou a decisão se debateu com um dilema conhecido de muitos: medicina ou carreira artística? Como seus discípulos Zé Ramalho e Fred Dantas, Gordurinha caiu fora dessa estória de clinicar. Largou a Faculdade de Medicina e seguiu sua sina de cigarra.



Os passos iniciais seriam dados numa Companhia Teatral. Caiu na estrada, mambembeando e povoando de música e pantomimas outras plagas.



Seu próximo passo seria um contrato na Rádio Jornal de Comércio, em Recife, em 1951. Depois, o jovem compositor, humorista e intérprete Gordurinha passaria pela rádio Tamandaré onde conheceu o poeta Ascenso Ferreira, figura folclórica do Recife, Jackson do Pandeiro e Genival Lacerda. Estes dois últimos gravariam em primeira mão várias das suas composições.



Em 1952 partiu para o Rio de Janeiro onde penou sofrendo gozações preconceituosas. Sublimando estes pormenores, conseguiu trabalhar nos programas Varandão da Casa Grande, na Rádio Nacional, e Café sem Concerto as Radios Tupi e Nacional, duas das maiores do país, sempre fazendo tipos humorísticos. Ficou neste circuito até que almejou um sonho que já alimentava desde os magros dias do Recife: um contrato na mais importante mídia do Brasil na época que era a Rádio Nacional.

 


Gordurinha gravou, em 1955, pelo selo Continental, duas canções voltadas para o Carnaval do ano seguinte: Sonhei com Você, de Roberto Martins e Mário Vieira; e Soldado da Rainha, marcha que assina com João Grimaldi e interpreta em duo vocal com Leo Vilar e acompanhamento de Severino Araújo (1917-2012) e Orquestra Tabajara. Em 1957, comanda o programa Varandão da Casa Grande, na Rádio Nacional, e, em 1958, produz Café sem Concerto e Boate Ali Babá, respectivamente na Rádio Tupi e na TV Tupi. No ano seguinte, lança Vendedor de Caranguejo, que faz sucesso com Ary Lobo, regravada por Clara Nunes (1943-1983) e Gilberto Gil (1942).



Compõe com José Gomes (1919-1982), verdadeiro nome de Jackson do Pandeiro, sua canção célebre, o samba Chiclete com Banana, em 1958, lançada nesse mesmo ano por Odete Amaral, mulher do cantor Ciro Monteiro, e, posteriormente, pelo próprio Jackson do Pandeiro. Ela origina, em 1968, montagem dirigida por Augusto Boal, no Teatro de Arena de São Paulo, que aborda as relações históricas da música brasileira no exterior e da estrangeira no Brasil. É redescoberta pelo público com Gilberto Gil, no LP Expresso 2222, de 1972. Também dá nome à tira em quadrinhos do cartunista Angeli (1956) e à banda baiana de axé music, ambas formadas nos anos 1980. É citada por Marcelo D2 (1967) na música A Maldição do Samba, de 2003.



Ainda em 1959, Gordurinha faz sucesso como intérprete de outra canção autoral, Baiano Burro Nasce Morto, cujo título vira bordão popular. Em Baianada, Baiano Não É Palhaço e Baiano Burro Nasce Morto, Gordurinha combate o preconceito ao nordestino que detecta no Rio de Janeiro com a construção de personagens pitorescos, orgulhosos de sua origem. Ele a grava com a participação do humorista Mário Tupinambá, que faz um personagem na televisão em que interpreta um deputado baiano que adora longos discursos, como faz no disco. A música também faz sucesso com o alagoano Luiz Wanderley, em 1959. É regravada por Moraes Moreira (1947), em 2000. Em 1960, interpreta o baião-toada Súplica Cearense (parceria com Nelinho), sucesso na voz de Merino Silva (1967), Luiz Gonzaga (1912-1989), Fagner (1949), Elba Ramalho (1951) e gravada pelo conjunto O Rappa. Entre diversos compactos, Gordurinha lança quatro LPs na década de 1960.



Meu enxoval, um samba-coco em parceria com Jackson do Pandeiro seria um dos carros chefes do disco ‘forró do Jackson’, de 61. Outro que se daria bem com uma composição do baiano seria o forrozeiro paraense Ary Lobo que prenunciou o Mangue beat ao cantar: ‘Caranguejo-uçá, caranguejo-uçá/ A apanho ele na lama/ E boto no meu caçuá/ Caranguejo bem gordo é gaiamum/ Cada corda de 10 eu dou mais um”. Vendedor de caranguejo seria gravado por Clara Nunes, em 74, e por Gilberto Gil no seu ‘Quanta’, de 1997. Outros sucessos foram Baiano não é palhaço que fala do seu orgulho de ser baiano, Súplica cearense e Baiano burro nasce morto.

 


Gordurinha faleceu em Nova Iguaçú/RJ em 16/1/1969 e seria homenageado na década de 70 com Gilberto Gil, que regravou Chiclete com Banana e Vendedor de Caranguejo no Quanta.



O cantor carioca Jards Macalé, também o homenagearia com a regravação de Orora analfabeta, no seu 2º LP, ‘Aprendendo a nadar’, de 1974.



Elba Ramalho se rendeu ao talento do mestre ao dar sua versão de Pau-de-arara é a vovozinha, no seu CD Flor da Paraíba, de 1998.



A última homenagem recebida foi o lançamento do CD A Confraria do Gordurinha, em rememoração aos 30 anos sem o artista. Morre no início de 1969, no Rio de Janeiro. Nesse ano, é lançado pela Musicolor o disco póstumo Gordurinha. Em 1999, com patrocínio do governo do estado e lançamento da Warner Music, o selo Sons da Bahia grava A Confraria do Gordurinha, com 16 faixas de sua autoria, interpretadas por Gilberto Gil, Marta Millani e o conjunto Confraria da Bazófia. No mesmo ano, Carmélia Alves, a rainha do baião, grava pelo selo CPC-Umes o disco Carmélia Alves Abraça Gordurinha e Jackson do Pandeiro. Em 2000, a Warner Music lança, pela série Enciclopédia Musical Brasileira, o CD Jackson do Pandeiro e Gordurinha, que intercala faixas interpretadas por cada um, com composições próprias e de outros autores.


15 janeiro 2019

Edgar Allan Poe (1809-1849)


Há 210 anos, no dia 19 de janeiro de 1809, nascia, na cidade de Boston, o poeta, romancista e crítico literário Edgar Allan Poe. Precursor das literaturas policial e de ficção científica, foi também um dos primeiros autores a se dedicar aos contos literários. Sua obra é tão significativa que deixou rastros nos trabalhos de autores como Bradbury, Lovecraft, Doyle, Kafka, Henry James, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Proust, Maupassant, Verne, Thomas Mann, Fernando Pessoa, Machado de Assis e tantos outros.

 


Ele era um jovem aventureiro, romântico, orgulhoso e idealista. Foi expulsos das universidades por não se enquadrar nos padrões comportamentais daquela época. Boêmio, vivia no luxo, se entregando à bebida, ao jogo e às mulheres. Foi para a Grécia e ingressou no exército lutando contra os turcos. Perdeu-se nos Balcans chegando até a Rússia, sendo repatriado pelo cônsul americano. De volta a América, descobre que sua mãe adotiva havia falecido.



Aos 22 anos, vivendo na miséria, publica Poemas. Já em Baltimore procura pelo irmão Willian e assiste a morte dele. Allan Poe passa a viver com uma tia muito pobre e viúva com duas filhas. Durante dois anos vive em miséria profunda. Mas vence dois concursos de poesias e o editor Thomaz White entrega-lhe a direção do "Southern Literary Messenger".

 


Em 1833 lança Uma aventura sem paralelo de um certo Hans Pfaal. Dirige a revista por dois anos. Allan Poe gozava de uma certa reputação com leitores assíduos. Depois de sua vida estabilizada, aos 27 anos casa-se com sua prima de 13 anos, Virgínia Clemn. No ano de 1838 trabalha na Button’s Gentleman Magazine na companhia de sua esposa. O casal vivera na Filadélfia, Nova York e Fordham. Em 1847, sofre com a morte de sua esposa vitimada pela tuberculose.



Poe escreveu novelas, contos e poemas, exercendo larga influência em autores fundamentais como Baudelaire, Maupassant e Dostoievski. Mas admite-se que seu maior talento era em escrever contos. Escreveu contos de horror ou "gótico" e contos analíticos, policiais. Os contos de horror apresentam invariavelmente personagens doentias, obsessivas, fascinadas pela morte, vocacionadas para o crime, dominadas por maldições hereditárias, seres que oscilam entre a lucidez e a loucura, vivendo numa espécie de transe, como espectros assustadores de um terrível pesadelo.

 


Entre os contos, destacam-se O gato preto, Ligéia, Coração denunciador, A queda da casa de Usher, O poço e o pêndulo, Berenice e O barril de amontillado. Os contos analíticos, de raciocínio ou policiais, entre os quais figuram os antológicos Assassinato de Maria Roget, Os crimes da Rua Morgue (este considerado o marco inicial do moderno romance policial) e A carta roubada, ao contrário dos contos de horror, primam pela lógica rigorosa e pela dedução intelectual que permitem o desvendamento de crimes misteriosos.



Em seus contos, Poe se concentrava no terror psicológico, vindo do interior de seus personagens ao contrário dos demais autores que se concentravam no terror externo, no terror visual se valendo apenas de aspectos ambientais. Poe ressaltava suas virtudes intelectuais para fugir da desgraça pessoal.



Em 1849, Allan Poe lança O Corvo. Eureka e Romance Cosmogônico lhe atribuem a fama necessária para provocar a censura da imprensa e da sociedade. Desiludido, volta para Richmore e depois vai para Nova York e entrega-se à bebida. Antes de seguir para a Filadélfia, resolve encontrar-se com velhos amigos. Na manhã seguinte, Poe é encontrado por um amigo em estado de profundo desespero, largado numa taberna sórdida, de onde o transportaram imediatamente para um hospital.

 


Estava inconsciente e moribundo. Ali permaneceu, delirando e chamando repetidamente por um misterioso "Reynolds", até morrer, na manhã do domingo seguinte, aos 39 anos e deixando uma vasta obra em sua vida de sacrifícios e desordem. Era 7 de outubro de 1849, e os Estados Unidos perdiam o gênio visionário, o poeta de amplos recursos e contista conhecido sobretudo por suas histórias de mistério e horror, fonte de inspiração direta para a renovação literária europeia no final do século XIX.



A primeira obra de Poe adaptada para o cinema foi O Poço e o Pêndulo (1909), por Henri Desfontaines, há um século. Depois diversos cineastas tentaram adaptar outras obras do escritor, mas nenhuma chegou a qualidade de um Buñuel (que assinou o roteiro do filme dirigido por Jean Epstein em 1928, A Queda da Casa de Usher) e Fellini (que dirigiu Toby Dammit, episódio de Histórias Extraordinárias).  

14 janeiro 2019

Identidades: pensamentos filosóficos


Zygmunt Bauman desenvolveu a ideia da liquidez que desestabiliza as relações humanas.



Michel Maffesoli retoma a fluidez das identificações. Para o autor, passamos de uma lógica das identidades, no qual o indivíduo estava bem localizado, para uma logica das identificações.



Stuart Hall fez sua reflexão sobre as diásporas e sobre os deslocamentos do que seria o sujeito da modernidade tardia ou da pós modernidade.

 


Para Martin-Barbero, a pós-modernidade é uma nova maneira de estar no mundo e afeta o sentido do convívio social. Na sociedade na qual a linguagem multimídia impera, vivemos a simulação. A sociedade pós-moderna deseja viver o presente, fazer do hoje o mundo ideal. E assim morrem as grandes utopias e, em seu lugar, entra a performance.

 


Ferdinand de Saussure argumentava que nós não somos em nenhum sentido, os autores das afirmações que fazemos ou dos significados que nos expressamos na língua. A língua é um sistema social e não individual. Ela pré-existe a nós. Utilizamos a língua segundo padrões estabelecidos para nos posicionarmos de acordo com propostas pré-existentes.



De acordo com Michel Foucault, as sociedades modernas são formadas por uma rede de instituições disciplinares: a escola, a fábrica, a caserna. O sujeito é constituído por práticas disciplinares. A sociedade como um todo é constituída sobre o modelo carceral, formado pelas suas instâncias de vigilância, controle. O objetivo dessas práticas era a produção de corpos dóceis, a produção social da docilidade por meio das tecnologias do poder.

 


Jacques Derrida refletiu sobre questões como a pena de morte, a clonagem, o ciberespaço, o fim da cultura do papel. Notório pela sua teoria da desconstrução e pela ampla defesa da liberdade, ele propunha a desconstrução de certos aspectos tradicionais do pensamento metafísico. Para ele, nunca se sai totalmente da metafísica, apenas se busca uma forma de reverter e deslocar suas teses capitais. A isso, a partir de um certo momento, passou-se a chamar de desconstrução.

 


O gosto classifica e distingue, aproxima e afasta aqueles que experimentam os bens culturais. Pierre Bourdieu mostra a maneira que as preferências culturais dos agentes são estruturadas. As práticas culturais incentivadas por duas instâncias distinguem aquilo que será reconhecido como gosto legítimo burguês, de classe média ou popular. Para ele o gosto cultural é produto e fruto de um processo educativo, ambientado na família e na escola e não fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais.

 


Ao longo de seus ensaios contundentes o sociólogo Michel Maffesoli sugere que a vida é feita de jogo, de encenação, de astúcia, de ousadia e, principalmente, dos “insignificantes” acontecimentos de cada dia. O cimento social é tudo aquilo que se faz sem a pretensão de mudar a existência ou inventar algo grandioso. Assim, a vida é uma experiência de tentativas e de erros, cuja surpreendente coerência só pode ser vista a posteriori.