28 julho 2016

Humor armado de Henfil (4)



Procurando fugir às esquematizações, Henfil não se conformou em ficar apenas como desenhista. Em
1980, criou a TV Homem, um quadro satírico dentro da TV Mulher, levado ao ar pela Rede Globo todas as manhãs. Colocou seu talento também a serviço do teatro e do cinema. Junto com o jornalista Oswaldo Mendes, escreveu o roteiro de A Revista do Henfil, que fez sucesso no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, a partir de setembro de 1978. Em 1979 concluiu o filme Tanga – Deu no New York Times, feito em parceria com Jofre Rodrigues, filho do dramaturgo Nélson Rodrigues.

A linguagem coloquial, cheia de sua poderosa lucidez, funcionou como uma bomba, idêntica ao estouro dos Fradinhos, Essa experiência, o incentivou a continuar. Em Henfil na China ele revelou o fechado país de Mao Zhe Dong, depois de uma viagem a convite do governo. Cartas da Mão é uma antologia de sua colaboração semanal na revista Isto É, onde trabalhou de 1977 a 1984. Outra obra, Diretas Já, mostrou plenamente seu engajamento político em artigos e cartuns. Em Fradim da Libertação, Henfil retomou sua mais contundente personagem, nascida no seu livro de estreia, Hiroxima Meu Humor, publicado em Belo Horizonte, em 1967, antes de sua mudança para o Rio.

“Não existe nada mais perigoso do que uma mulher quando vê em perigo a preservação da espécie. Por isso elas estão na frente de todos os movimentos revolucionários do mundo” (Suplemento Mulher, Folha de S.Paulo, 1983)

Antes de viajar para Natal, Rio Grande do Norte, para se aproximar ainda mais do sertão, Henfil esteve em Salvador e travou contatos com alguns desenhistas. Mais tarde, quando José Wilson Lopes Pereira tornou-se coordenador da Rádio Educadora da Bahia fizemos experiência com quadrinhos e cartuns no radiojornalismo com experiência dos trabalhos de Lage e Henfil. “Sou contra a sofisticação do sorriso”, definiu-se, faz algum tempo. Simples, direto, apaixonado, lúcido. Henfil deixou Graúna,. Zeferino, Bode Orelana, Ubaldo, Baixim, Cumprido, muita saudade. Seu traço era tão refinadamente estilizado que até hoje vários profissionais brasileiros o têm como referência

“Fui educado na religião do terror. Essa formação, mistura de puritanismo, tradicionalismo, patriarcalismo e matriarcalismo, aliada a uma terrível fobia por qualquer espécie de pecados, originais, veniais, e mortais, me inoculou magníficas neuroses, responsáveis por toda essa graça...” (Revista Domingo, Jornal do Brasil, 1978)


“Os Fradinhos foram aceitos pelo Sindicato, eu assinei um contrato de 15 anos com os americanos, mas...depois de algum tempo veio a constatação: eram sick. A tradução literal de sick é doente, mas pode ser muito mais. É pornográfico, imoral, escatológico, sádico, neurótico, desajustado. Eles davam opinião e faziam humor com os fatos, de maneira desrespeitosa e sick, contra os padres assépticos e puritanos da grande massa norte-americana” (Sobre sua experiência para produzir cartuns nos EUA, Jornal do Brasil, 1975)

O escritor Dênis de Morais conta a trajetória do cartunista da perigosa expedição pelos porões da ditadura ao mergulho no calvário da Aids, passando pela desilusão precoce com o modelo social – democrata do então príncipe Fernando Henrique Cardoso e da amizade com o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. O livro O Rebelde do Traço – A Vida de Henfil, com 580 páginas foi lançado pela José Olympio em 1996. “Henfil, seu herói, era rebelde que trabalhava com a indignação, a revolta e a fúria, matérias-primas do panfleto, mas que nele eram fonte de graça. A convivência com a hemofilia lhe deu defesas imunológicas contra a piedade – a alter-piedade e a autopiedade -, fazendo-o tão impiedoso com os outros quanto era consigo mesmo. Nele conviviam, politicamente, o correto e o incorreto. O seu humor era, como dizia, ´pé na cara`. Ao mesmo tempo radical e amoroso, intolerante e generoso, doce e caustico, Henfil foi o humorista do senso incomum, da grossura, da inconveniência, dos gestos escatológicos e do mergulho nas zonas de sombra: do medo, do sadismo, da perversão e da paranoia”, escreveu Zeunir Ventura na orelha do livro de Dênis de Moraes.

Avesso à luta armada, que considerava uma armadilha dos militares para derrotar mais facilmente uma esquerda em frangalhos. Embora estivesse convicto de sua opção pelo humor armado, Henfil ajudou os militantes da Ação Popular e do PC do B de todas as maneiras. Liderava as cotizações para contratar advogados para os presos políticos, escondia militantes em sua casa e servia como motorista, guiando seu próprio carro nas ações dos grupos. Dênis retrata a vida cultural brasileira dos anos 30 e 40 com a biografia de Graciliano Ramos. Em Oduvaldo Vianna, os anos 50 e 60. E rastreando a vida de Henfil conseguiu com fecundidade os anos 60, 70 e 80.


O escritor observa que a vida do barulhento cartunista, “homem multimídia já naquela época”, pode ser resumida em três palavras: comédia, drama e angústia. Comédia quando se pensa nos Fradinhos, Cabôclo Mamadô e seu Cemitério dos Mortos-Vivos e no trio da caatinga – Zeferino, Graúna e Bode Orelana. O drama seria tanto a hemofilia que nunca lhe deu sossego (não podia sequer dar uma topada com medo de hematomas e derrames), quanto o exílio de Betinho, seu irmão mais velho e modelo de vida. Por fim, uma angústia permanente varou-lhe a vida. Angústia por viver em um Brasil que “não era o que ele queria”. “Foi um diabo de humorista e (tudo nele era assim tão contraditório) um anjo muito puro que passou por aqui feito um vendaval escaldante, mas deixando tudo arejado, ventilado. Foi muito rápido”, comentou o desenhista Cássio Loredano.

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