29 novembro 2021

Olfato, o sentido mudo, que não tem palavras

 

Quando respiramos, inalamos o mundo que passa por nossos corpos, assimilamo-lo ligeiramente e expiramo-lo, deixando-o livre novamente, levemente alterado por nos ter conhecido. Escreveu sabiamente Diane Ackerman em “Uma História Natural dos Sentidos”. Ao respirar percebemos os odores. Os cheiros envolvem-nos, giram ao nosso redor, entram em nossos corpos, emanam de nós. Vivemos em constante banho de odores. No livro “O Cão dos Baskervilles”, Sherlock Holmes identifica uma mulher pelo cheiro de seu papel de cartas, esclarecendo que “existe 75 perfumes, e um especialista criminal tem que ser capaz de identificar perfeitamente um do outro”. O escritor Kipling tinha razão ao dizer que “os cheiros são mais capazes de ativar as batidas do coração do que as imagens e os sons”.

 


Os sentidos da olfação e da gustação são considerados químicos, pois dependem do estímulo de substâncias químicas sobre receptores especiais. O olfato é o sentido que nos permite sentir os odores. As substâncias têm cheiro quando desprendem partículas que, levadas pelo ar, impressionam as terminações das células nervosa olfativa, localizadas na região superior da mucosa que reveste as fossas nasais. Estimuladas, as células olfativas transmitem impulsos nervosos ao nervo olfativo, que, por sua vez, os transmite à área cerebral responsável pela olfação. Aliás, muito do que geralmente chamamos paladar é realmente olfato.

 

Embora possa soar estranho, não é óbvio que com o olfato tudo esteja 100%. Existem pessoas que não conseguem sentir o cheiro de nada. Isso afeta o cotidiano tanto quanto a surdez ou a cegueira. Apesar de imprescindível, o olfato foi até pouco tempo um dos menos pesquisados órgãos dos sentidos. Somente há 15 anos, sabe-se como ele funciona. Na Europa, nos Estados Unidos, como também em outros países, pesquisadores trabalham tentando desvendar os mistérios do olfato. Cada pessoa possui cerca de 350 receptores olfativos diferentes. Isto não significa, entretanto, que possamos distinguir somente 350 tipos de cheiro. Os diferentes receptores são necessários devido à complexidade da estrutura molecular dos odores. Somente o espectro completo do aroma do café reivindica muitos e muitos receptores, afirma o professor de Neurofisiologia da Universidade de Stuttgart-Hohenheim, Heinz Breer. A cada odor corresponde, por assim dizer, um conjunto de receptores e, desta forma, também um conjunto de células sensoriais que podem ser ativadas por este cheiro, enquanto outras não.

 


Em 2005, o Prêmio Philip Morris para a Ciência foi concedido a pesquisadores do olfato da cidade de Bochum. Eles descobriram que os espermas possuem receptores olfativos semelhantes aos do nariz. Tudo o que é gostoso cheira bem? "É discutível se o fato de se estar com muita fome faz com que as coisas cheirem melhor. Que ovo podre fede e que pão fresco tem bom cheiro, isto se aprende com a experiência olfativa, pois somente com a língua não se pode distinguir mais do que se a comida é doce, azeda, salgada ou amarga. Em compensação, existem dezenas de milhares de odores – morangos frescos, café moído, baunilha, anis, canela, chá de menta...", responde Breer.

 

O sentido do olfato é o mais espiritual de todos os sentidos. A palavra hebraica para "olfato", rei'ach, é cognata àquela para espírito (ruach). Nossos Sábios ensinam que o olfato é o único sentido que "a alma desfruta, e não o corpo". O sentido do olfato é o mais sensível e complexo e, o menos entendido. É um sentido sutil e misterioso. Um odor nos passa uma sensação instantânea de prazer, nostalgia ou aversão.

 


Inúmeros estudos têm sido realizados com o objetivo de desvendar o poder do cheiro sobre o comportamento humano. Quando sentimos um cheiro, a nossa mente vai mergulhando numa viagem pelo tempo e as lembranças vão escorrendo, se derramando. E chegamos muitas vezes a tempos tão remotos que não sabemos explicar o sentimento que nos aflora. Cheiramos o tempo inteiro, sempre que respiramos. Os cheiros nos envolvem, giram ao nosso redor, entram em nosso corpo, emanam de nós. Se fecharmos os olhos, deixaremos de ver; se taparmos os ouvidos, deixaremos de ouvir; mas, se bloquearmos o nariz para não sentir o cheiro, morreremos.

 

O olfato é o sentido mudo, o que não tem palavras. O sentido do olfato é a própria imaginação. O bairro de Brotas, em Salvador, cheira a cajá. O bairro da Saúde em Nazaré é pura manga. Na Federação amêndoa tem cheiro forte e na Paralela o cheiro é de jaca. O mundo dos aromas é, portanto, um mundo sem palavras, um mundo de imagens, para ser explorado desde a ponta do nariz até o centro do nosso cérebro - um mundo de surpresas sutis e de um êxtase silencioso, com ondas de deleite percorrendo nosso corpo e produzindo sensações novas.

 

O mundo é cheio de sensações. O verão traz o sol iluminando a todos e trazendo um perfume doce no ar. No inverno o som matinal dos pássaros acorda os que teimam em ficar debaixo dos lençóis. No outono as folhas caem trazendo o sopro do vento e na primavera, as flores se abrem exalando perfume de todos os aromas. Os sentidos dividem assim a realidade em fatias vibrantes, juntando-as de modo a formar um padrão significativo. Os sentidos fornecem milhares de informações ao cérebro como se fossem microscópicas peças de um quebra-cabeça.

25 novembro 2021

A força de Marighella #LIVRE em quadrinhos

 

Viabilizada através de financiamento coletivo no Catarse em 2019, Marighella #LIVRE da Editora Draco traz a história do revolucionário comunista Carlos Marighella desde a década de 1930, em meio à ditadura de Getúlio Vargas até a sua morte, em 1969. O roteiro é de Rogério Faria  e arte de Ricardo Sousa nas duas primeiras histórias, e Jefferson Costa na última. A HQ percorre diversos momentos de Marighella e é baseada em diversas obras e relatos, como a biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães. Há também muito material de pesquisa em arquivos públicos, como jornais e revistas da época. O prefácio é de Cynara Menezes e posfácio de Luis Nassif.  A capa é fruto de uma colagem, feita pelo artista Phillzr, com milhares de pedaços de papel que remontam uma das mais famosas fotos de Marighella.

 


A obra conta três diferentes histórias da trajetória do ativista, começando pela prisão e tortura que viveu aos 24 anos, em 1936 e foi torturado na véspera do que seria o Estado Novo em 1936; nos Anos de Chumbo da ditadura civil militar iniciada em 1964 quando levou um tiro no peito e enfrentou 14 policiais; pós AI-5, quando foi executado em 1969.

 


O gibi destaca ainda o legado do personagem para os dias de hoje. “Esta é uma HQ maldita. O simples nome Marighella é capaz de despertar o ódio de um povo sem consciência de classe e ignorante da sua própria história de luta. Uma eficiente estratégia de manipulação dos seus verdadeiros inimigos, aqueles que detêm o poder”, diz o texto de apresentação da obra. “Marighella é uma ideia. Uma ideia de insubordinação, de revolta. Seus ideais de igualdade e justiça valiam mais que a própria vida. E, mesmo hoje, ele ainda vive, ainda inspira.”

 

Homem simples, que nessas breves histórias sequer tinha chance de discursar. Sua voz é resumida nos momentos onde lhe faltava fôlego, mas nas suas ações sobrava verve e vontade de lutar. Uma vida poética e inspiradora, que mira a revolução como única alternativa a classe trabalhadora. Ricardo Souza, artista que produziu duas das três histórias em quadrinhos que o livro retrata, conta que o fato de desenhar, sobretudo, a história de um jovem que tinha ideais de liberdade, foi o que mais lhe fez querer compor o projeto da HQ junto com Rogério.

 

Para Ricardo, o processo de conhecer Marighella vêm de antes do projeto da HQ. “Eu fui me interessar mesmo pelo Marighella quando o Racionais lançou o clipe ‘Mil Faces de Um Homem Leal’. E aí eu fui estudar e entender um pouco mais sobre Marighella”. Carlos Marighella, como diz Mano Brown, corresponde a um homem de mil faces, leal às suas ideias revolucionárias, que dedicou sua vida pela liberdade e pela soberania do Brasil, assim como pela possibilidade da construção de uma democracia e contra toda a forma de opressão e de domínio dos povos e dos territórios.

 

07 novembro 2021

Doce lembrança

Odemar era um rapaz com seus 68 anos bem vividos. Alto e forte, de olhos castanhos numa face bronzeada que nunca envelheceu a não ser o grisalho dos cabelos castanho, a barba aparada com precisão e toda a figura muito correta. Seu olhar de observador era doce quando o animava a curiosidade ou a compaixão, mas tornava-se duro na luta contra opressão.

 

Amava tudo que fazia:  no  artesanato, na culinária, na costura, no encontro com crianças especiais (ele foi professor), na conversa de rua com os amigos (que fazia diariamente). Ele amava sem esperar ada em troca e todos aqueles que ele levava no coração era inundado pelo seu amor e generosidade. E o  que nele predominava era a simplicidade ou ingenuidade que nos dias de hoje não se encontra com facilidade.

 


O amor entrou em sua vida e vivia a seu lado, inquieto, laborioso, tranquilo. O amor  pelos animais, plantas, mar. Era o  amor de Odemar. Uma criatura gentil, afetuosa, servil. Não era muito chegado a beijos ou abraços grudados, mas quando  abraçava sentia-se o calor de seu corpo, o pulsar rápido do coração, o tremor no corpo, o desejo em resistência, o silencio no olhar. Ele sabia se doar,  se entregar a tudo o que pudesse ajudar alguém. Passava conhecimento de vida e a arte de aproveitar-se dela.  Um presente precioso. Sensato, todos confiavam nele

 

Minha vida assumiu um aspecto inteiramente novo com sua presença. Amante dos quadrinhos, cinema e música,  via minha própria vida como um caminho reto, uniforme, atravessando um vale tranquilo (isso nas minhas fantasias, pois a realidade foi trágica). Com ele o caminho se curvava, desviava-se para uma paisagem de árvores, flores, animais e colinas. Era um caminho encantador, colorido e aventureiro.

 


Vivíamos tranquilos um ao lado  do outro. Não falava muito, era pisciano e sentia-se seguro como o avestruz que pensa iludir o caçador se não o olha. Mas quando estávamos à sós perdia a timidez e resistência movendo-se a um afeto paternal que pedia carícia e proteção. E assim, beijava levemente meus cabelos, um ato mais gentil durante o  relacionamento. Parecia uma nota suave de música, um sopro de vento  relaxante no  corpo, um sussurro  de paixão.

 

As cores da vida ressaltavam sobre sua face. Muitas vezes íamos a praia para observar. Ficávamos horas a fio sentindo  a brisa no  corpo aquele imenso mar e o  silencio eterno. O som desaparecia para nós no mesmo momento. Nossos ouvidos casavam muito bem. Não sentíamos nenhuma necessidade de falar. E,   em toda sua existência, ele espalhou sementes de delicadezas, gentilezas,  proezas e muitas certezas do bem viver. E essa lembrança que guardo em todo meu coração.  

06 novembro 2021

Ousadia, reverência e esperança no Entardecer, poemas de quarentena

 

Poesia, mesmo que no mundo atual seja tida como inútil, no mundo dos sonhos tem alto valor simbólico, uma fortuna para poucos.  Viver a poesia é viver o mundo. É se comunicar por meio dos sentidos com os acontecimentos que se passam ao nosso redor. A poesia dá voz a existência simultânea, aos tempos do tempo que ela invoca, evoca e provoca.

 

O cair da tarde, ser próximo da noite, assim é o entardecer. Para a quarentena, serenidade e mente plena. Tempo de recolhimento para viver de isolamento. E é nesse espaço de tempo que a poesia faz um bem a alma.

 


A Doutora em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia, Fernanda Priscila Alves da Silva lança pela MouraSA, de Curitiba, o livro Poemas de Quarentena: Entardecer. São 58 poemas que “fala do cotidiano que é gerido pelas relações familiares, pelos afetos e pela diversidade. É também uma atitude de gratidão àqueles e àquelas que nos antecederam: nossos pais, mães, avós, avôs. Uma reverência aqueles que nos tomaram pelas mãos e nos ensinaram a trilhar nossos próprios caminhos. É também um convite aos nossos filhos e filhas a aprender que o caminho se faz caminhando, sempre, todos os dias, com ousadia, reverencia e esperança”.

 

Herança abre a obra: “Pelo canto do olho/a gente vê quem nos vê/através deste canto de olho/vemos quem nos continua...”. Um recado urgente: “É urgente e necessário que o mundo comece a acordar. É hora e não dá pra deixar para amanhã que nessa gentese levante e se cuide. Humanizar-se é revolucionário”.

 


Fala do tempo: O tempo parou por uma fração de segundos/e este tempo/foi longo/inteno/e restaurador”. Coração: “Coração incerto/ coração   errante / anseio! / temor!/noite passada tive sonhos medonhos”. Ancestralidade: “Uma ânsia/uma dor/o grito!/faltou ar!/opressão e silencia/resistência no  caminhar”. Entardecer: “Te vejo entre nós!/ao telefone/palavras que vão  e vem/ao entardecer, te vejo, Pai/tornando-se um pouco maais/afeto/amor/gratidão!”.

 

No poema Mistério ela olha seu interior, serena, com estranho  afetos, emudeço...”Aqui bem perto/e bem longe, ali, acolá,  tão  sedento/e tão farto/o mistério de mim”. Costura: “Costuro palavras/pra ver se suporto/a tristeza cinzenta/e o coração sem brilho//Costuro palavras/porque alinhavando a vida e o  tempo/compreendo os passos e compassos”. Em “Familia” ela lembra das memorias guardadas e cantigas narradas, lugares, prantos e desejos.  “Escuto nossas histórias/e me espanto com tantas surpresas/o inesperado em nós/as outras versões de nós”.

 

E nos Versos, o caos e o pranto: “Versos sem nexo/nexo  sem versos/poesia que cura e liberta/poesia da vida!!!”. E ainda em Versos: “Faço versos/busca de razão/clareza pra meus inversos/minha melhor canção”. Esses poemas soam como sopros ao  vento,   sopros-encontros, sopros vivencias, sopros de vida! É a sua segunda obra de esperança!