19 agosto 2022

Monstro que dorme em cada quadrinho: estereótipo (5)

 

Os estereótipos são manifestações das mais antigas em nossa cultura, estão nos contos de fadas, nas narrativas populares, nas canções da Idade Média. Provém dos rituais, dos mitos, das belas construções verdadeiramente originais (rupturas): comparações e metáforas, que, utilizadas pela primeira vez, caíram no gosto do popular (e da ideologia). À medida que são repetidas, tornaram-se frases feitas, que nos vem ao espírito ao primeiro pensamento, as quais é preciso evitar empregar e, sobretudo, esforçar-se por não crer nelas, ou pelo menos, desconfiar delas. É na leitura do discurso midiático (no seu pior e no seu melhor) que o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) alerta: “em cada signo dorme este monstro: um estereótipo) (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988, p.15)

 


O pesquisador espanhol radicado na Colômbia, Jesús Martin-Barbero (2003) cita as histórias em quadrinhos norte americanas das primeiras décadas do século XX como exemplo, ao mesmo tempo, de ruptura e continuidade: “A ruptura, na ´marca registrada´ firmada pelos syndicates, que midiatizam o trabalho dos autores até estereotipar em último grau os personagens, simplificar ao máximo os argumentos e baratear o traço do desenho[...]. No entanto, há continuidade na produção de um folclore que busca no antigo o anonimato, a repetição e a interpretação ao inconsciente coletivo que ´vive´na figuro dos heróis e na linguagem de adágios e provérbios, nas facilidades de memorização e na transposição da narrativa para a cotidianidade que se vive (BARBERO, 2003, p.208).

 


O professor de História da Arte, argentino, radicado no México, Néstor García Canclini ao falar de culturas híbridas, denomina os quadrinhos “gênero impuro”, com a capacidade de transitar entre a imagem e a palavra, entre o erudito e o popular, reunindo características do artesanal e da produção de massa. O autor aponta para a necessidade de novos instrumentos que deem conta de fenômeno como as migrações, o desemprego e os mercados informais (CANCLINI, 2000).

 

As artes se relacionam umas com as outras, de uma forma desterritorializada, o que amplifica seu potencial de comunicação e conhecimento. E é dessa barreira “oblíqua”, enviesada, que as práticas culturais atuam no desenvolvimento político. Traduzidas em imagens, as lutas cotidianas ganham formas e podem germinar a partir de metáforas usuais, posturais e ações diferenciadas (CANCLINI, 2000).

 


Já o teórico indiano Home Bhabha (1998) a cultura deve ser interpretada como estratégia de sobrevivência. A partir dos discursos pós- coloniais marcados pela questão da diáspora, do exílio e dos deslocamentos, Bhabha discute a troca de experiências entre culturas diversas que, por diferentes motivos, passam a coexistir, desencadeando um movimento de construção e circulação de significados. O híbrido, não é algo concreto, mas é um processo, em constante estado de ajuste, simultaneamente negando e afirmando a semelhança com aquilo que o gerou.

 

É no século XX que se desenvolve a filosofia do bem estar, motivando-se os indivíduos a consumir o que se produz. Como consequência inevitável da era tecnológica surge um tipo de cultura que se chamará inicialmente cultura de massa. Segundo Morin, numa optica sociológica, o termo cultura aparece como resultado de uma mistura entre razão e emoção, que vai “estruturar”, “orientar”, “construir”, “operar”, “suprir”. Seu tempo de ação se estende entre o real e o imaginário, numa simbiose do instintivo com o representativo. Seu código ultrapassa o simples objetivo. O termo massa expressa uma ideia de multiplicação ou de difusão maciça.

 

Referências:

 

APPEL, John e Selma. Comics. Da imigração na America. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994

 

BARBAREO, J.M. Dos meios às Mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

 

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1985

 

--------------, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988

 

BHABHA, Home. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

 

CANCLINI. Nestor García. Culturas Híbridas: estratégia para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da USP, 2000.

 

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2001

 

FONSECA, Joaquim da. Caricatura. A imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999

 

HANDLIN, Oscar. Race and Nationality in American Life, Garden City, NY, 1957

 

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. (Texto publicado em 2011)

 

18 agosto 2022

Monstro que dorme em cada quadrinho: estereótipo (4)

 

Estereótipo é um conjunto de características presumidamente partilhadas por todos os membros de uma categoria social. Quando nossa primeira impressão sobre uma pessoa é orientada por um estereótipo, tendemos a deduzir coisas sobre a pessoa de maneira seletiva ou imprecisa, perpetuando, assim, nosso estereótipo inicial.

 

A mulher é um ícone de estereótipo trabalhado pela propaganda ao longo dos anos. Desde o início, foi retratada como mãe, dona de casa e sexo frágil. Nos quadrinhos de super-heróis a partir de 1930 a maioria dos personagens negros eram estereótipos de criminosos ou pessoas com sérios problemas sociais.

 

Hoje ainda permanece uma ideia de que as histórias em quadrinhos reproduzem todo o estereótipo da indústria cultural, constituindo mero artigo de entretenimento concebido em laboratórios de vendas de grandes companhias. Independentemente de qualquer mérito apresentado pelas críticas aos produtos de uma indústria cultural, o que preocupa é o desconhecimento das mais variadas expressões que a arte dos quadrinhos já conquistou, desde Winsor McCay (autor de enquadramentos que anteciparam em muitos anos as ousadias de Orson Welles) ao expressionismo de Mort Cinder de Alberto Breccia ou Corto Maltese, um personagem psicologicamente muito complexo resultado das experiências de viagem e da capacidade infinita inventiva de seu autor, o italiano Hugo Pratt.

 

O estereótipo mantém relação estreita com o conceito de estigma, que, originalmente, designa ferimento, cicatriz. Seus derivados, "estigmatizar", "estigmatização", têm o sentido de censurar, condenar, aviltar o nome, a reputação de alguém. No sentido usual, significa prejudicar, ou fazer um julgamento prematuro de alguém; julgar pela aparência. Embora seu caráter disfórico, a estigmatização é um processo comum tanto nas relações interpessoais quanto sociais e ocorre sempre que o individual passa a caracterizar o coletivo. Daí as generalizações estigmatizadas: "o nordestino", "o turco", entre outros, que caracterizam o discurso xenófobo, que há anos tenta transformar em ódio os males da sociedade, tais como o desemprego, a exclusão social, a delinquência, a droga, etc.

 

Empregado pelos diferentes meios de Comunicação de Massa, muitas vezes, numa enunciação passional revestida por figuras que resgatam antigos valores ou impõem outros, o estereótipo adquire status de mito e sua utilização revalida valores da cultura (ideologia).

 


 

A percepção de que a cultura de massas estava fundando uma constelação de “mitos modernos” permeia a obras de alguns teóricos (Eco, 2001: Morin, 1977; Barthes, 1985). Mais do que recriarem, a atmosfera das velhas heranças mitológicas, na eterna disputa do bem contra o mal, as HQS recriaram a própria definição do mito, reificando paradigmas cooptados do social, como grande apelo à sua sobrevivência. Como ilustra Morin: “Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de auto-realização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticas para a vida privada. (…) E é porque a cultura de massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer, da felicidade, do amor, que nós podemos compreender o movimento que a impulsiona, não só do real para o imaginário, mas também do imaginário para o real. (MORIN, 1977, p.90).

 

Se partirmos da mitologia barthesiana, entenderemos as representações sociais nas HQs como um desvio do real, por meio de um recorte de uma realidade possível, na qual se abstrai o conteúdo. A intenção da significação está “de algum modo petrificada, purificada, eternizada, tornada ausente pela literalidade” (BARTHES, 1985, p.145), ou seja, destituindo os significantes de conotação histórica, “transformando a história em natureza” (idem, p.145).

 

O estereótipo pode não ser verdadeiro, mas é verossímil. E parte da naturalização das características encontradas no entorno social de seu tempo. Seja no Gato Felix (Pat Sullivan, 1923) que é tão ladino, noir e sinuoso quanto o Spirit (Will Eisner, 1940). Jogos de luzes e sobras e a máscara negra impregna de mistério estes dois anti-herois. Blondie (Chic Young, 1930) e Aninha, a órfã (Harold Gray, 1924) reciclam o mito da Cinderela: a jovem virtuosa que ascende socialmente pelas mãos do herói romântico. No primeiro caso, o mocinho regride ao renunciar à herança da família em nome do amor verdadeiro, e de forma platônica, no segundo, na historia da menina órfã quer cai nas garras do benfeitor milionário. Ambas surgem num momento de emergência dos valores burgueses, em meio à recessão americana dos anos 30.

 

Já no caso dos heróis, tidos como fantásticos, supremos, sublimados à última esfera, o sentido mitológico torna-se ainda mais latente. Ideologicamente comprometidos, atados a um conceito abrangente de nação, possuíam um patriotismo obstinado (denunciado pelas cores e símbolos de seu uniforme) apesar dos poderes advindos do contato com forças estranhas ao seu universo, sejam partículas radioativas, extraterrestres ou deuses de uma mitologia ancestral. Todos esses personagens deixam de ser puro entretenimento para deleite do público, para tornarem-se estrelas, donos de fama e evidência. Assim, os títulos (seja do Batman, Superman, Homem Aranha etc) passaram ao status de marcas, e a euforia consumista resultava em produtos híbridos (desenhos animados, séries de TV, filmes, trilhas sonoras, musicais, bonecos, álbuns de figurinhas, jogos de videogame, RPG, linha de produtos escolares, de higiene, beleza, em brindes nas redes de fast foot. As possibilidades são infinitas). As HQs eram então um viável empreendimento do star system. (Texto publicado em 2011)

 

17 agosto 2022

Monstro que dorme em cada quadrinho: estereótipo (3)

 

Historiadores sociais falam que a variedade humorística anterior (antes de 1880), era de orientação regional, mais suave, despretensiosa, excêntrica, apoiava-se principalmente nas relações pessoais e convencionais comumente subentendidas. O novo humor urbano, que substituiu o anterior, começou a florescer na década de 1880. Era uma mistura de influência locais e estrangeiras, desenvolveu-se sobre tensões raciais e interétnicas e sobre os equívocos e impasses verbais. O historiador Gunter Barth (em seu City People) afirma que esse humor novo e mais agressivo “unia pessoas heteogêneas num movimento de harmonia que para eles justificava rir das condições de uma minoria hostilizada”. Será que os estereótipos étnicos também não reforçam, ao invés de contradizer, noções ultra simplificadoras sobre negros e estrangeiros, oriundos de encontros superficiais nas ruas, lojas ou no trabalho?

 

Os judeus eram caricaturados como avaros, agiotas, desonestos, financistas velhacos e comerciantes ou alfaiates de roupas de segunda mão, ou mascates que operavam à margem do comércio e da sociedade. Muitos chargistas eram judeus e tentavam “suavizar” e humanizar seu material. Estudiosos da comunidade imigrante judaica da virada do século informaram que os judeus tem uma longa tradição de rir de si mesmos, sabiam que na sociedade cristã as artes, nas diversas níveis, lidavam com eles de forma irônica.

 

No Antiguidade os judeus já eram representados como narigudos. Os impressos europeus dos séculos XV e XVI dependiam de personagens simbólicos para interpretar judeus e judias: sacos de dinheiro, chapéus especiais e insígnias que eram forçados a usar. O século XVII trabalhava com rótulos de identificação fisiológica: barbas longas ou tufos estreitos que circundavam o rosto, o nariz grotescamente dependurado.

 

Os chargistas dos séculos XVIII e XIX aperfeiçoaram os indícios básicos que retratavam os judeus: grandalhão, narigudo, gesticulando com as palmas abertas, e, na Inglaterra e nos EUA, o sinal de três bolas caracterizando o “tio” ou agiota. Os chargistas alemães acrescentaram os pés chatos, as pernas curvas e o gosto pelo alho no século XX. Assim judeus coniventes, trapaceiros, ricos e não obstante cômicos da tradição usurária elisabetana predominaram entre os judeus personificados nas peças teatrais, romances e charges. Nunca se acusaram os chargistas do século XIX por sua sutileza, pois na época suas charges não eram excepcionais. Havia estereótipos atribuídos a judeus e irlandeses. Mas nenhum grupo nos EUA deve ter escapado a algum estereotipagem humorística, satírica e, via de regra, prepotente, humilhante e até mesmo hostil. Isso faz parte da história e do legado comum.

 


Abie, o Representante

 

Personagem fumante, de olhos arregalados, baixinho, gorducho, de nariz acebolado e bigodinho, proferindo um inglês com sotaque, expressões e inflexões ídiches, assim é Abie, o Representante, criado para as tiras de quadrinhos por Harry Hershfield (1885-1974), cuja carreira de chargista, radio comediante, escritor e humorista, estendeu-se a vários meios de comunicação. Sua estreia aconteceu em 1914 e seu encerramento definitivo, com várias interrupções, em 1940. Abie foi a primeira figura judaica em tira de uma cadeia de jornais.

 

O vendedor de carros Abie estreou no New York Journal em 02 de fevereiro de 1914. Abie era uma réplica positiva de muitos judeus estereótipos em caricaturas, e mostrou, com humor leve um bem sucedido de classe média de imigrantes. O personagem perdeu muitas de suas características mais típicas judaicas ao longo de décadas, mostrando a sua integração bem sucedida, mas também a diminuir lentamente o caráter especial que defina essa tirinha para além dos outros.

 


Suas tiras eram distribuídas pelas agências (syndicates) que impunham limitações à liberdade de expressão de chargistas que, em sua maioria, ainda tentavam evitar temas tidos como ofensivos ou antipáticos aos leitores. Abie, o Representante, concordavam seus estudiosos, divertia leitores judeus e não judeus de classe média, que gostavam e compartilhavam de suas estripulias de trabalhador, cidadão e marido. Para John e Selma Appel (Comics. Da Imigração na America, Ed. Perspectiva, 1994, p.152) “as personagens judaicas de Hersfield eram os judeus aculturados da mistura de raças, em conformidade com o ideal teuto-judaico de agir em público como ´americanos` e de confinar as expressões do Judaismo ao ambiente doméstico. Essa postura evitou um envolvimento visível ou ativo dos judeus em assuntos tipicamente judaicos que chamariam a atenção, numa sociedade propensa (ao menos potencialmente) a reações anti-semitas, para sua identidade étnica ou religiosa”.

 

Outras personagens judaicas das tiras de jornais apareceram ocasionalmente nas HQs da década de 1920 e do início da década de 1930. Nenhum, entretanto, alcançou a longevidade ou a fama de Abe Kabibble. (Texto publicado em 2011)