30 novembro 2006

Irreverência baiana no traço simples e caligráfico de Lage (1946 2006)

Helio Roberto Lage pertence a história dos nossos quadrinhos/cartuns. Homem simples, de bom papo e cultivador dos momentos humorísticos da vida. Desde seu relacionamento com as pessoas que lhes cercam, até o momento em que executa um trabalho, é um humorista nato. Além de humorista, é arquiteto e pintor nas horas vagas. Desenvolvendo sua atividade de cartunista com bastante brilho, Lage é um nome respeitado entre os que fazem humor e quadrinhos. Seus desenhos são sua melhor forma de expressão, que compensam o seu lado introvertido. O lado humorístico, presente não só nas tiras mas também nas charges políticas, são a contrapartida do seu temperamento melancólico.

De traço simples, Lage consegue captar todo o momento histórico político vivenciado nacionalmente. Cartunzão, L´amou tuju L´amu, Tudo Bem, Brega Brasil, Ânsia de Amar mostra um humor sem retoques – autêntico e mordaz. O humor caligráfico de Lage tem uma marca pessoal muito forte e traz, por inteiro, a perplexidade nossa de cada dia. É um quadrinho cartunístico que se cristaliza através de questões sociais e culturais. Conferindo ainda seus efeitos ideológicos e sua marcante criatividade. Enquanto muitos desenhistas se distanciavam dessa nossa realidade em seus trabalhos, Lage procurava se aprofundar mais em nossas questões políticas e culturais.

Se o humor de comportamento conquistou leitores nos anos 50, foi forçado pelo clima político estabelecido pela Revolução a dar lugar ao humor político, engajado. Os cartunistas se armaram contra o ataque, mas os meandros do comportamento humano, o sexo, o casamento, a cultura, enfim tudo aquilo que faz os costumes do cidadão brasileiro foi posto de lado pelos desenhistas de humor. Mas Lage, como grande crítico do cotidiano dissecou as leis e pacotes vindos de Brasília, além de mostrar a política local em suas charges diárias. Nas suas tiras ele mostrou o relacionamento humano, seus conflitos e insegurança, o dia-a-dia do baiano.

Nascido no dia 16 de setembro de 1946, desde cedo teve contato com as formas e a criação. Ainda criança, fazia bonecos de cera, e ganhou até um prêmio no concurso da Toddy. Aos 15 anos se apaixonou pelo desenho. Em 1967 foi trabalhar como ilustrador na Revista de Turfe. Em 1969 começou a desenvolver charge e tiras de humor no jornal recém fundado, Tribuna da Bahia. Na série Estorinha do Lage começou a publicar um herói espacial, sátira ao super-herói. Ainda na serie ele criou o papagaio Put. Nos anos 70 começou a desenhar uma página inteira de humor no jornal O Dia, de Piauí. Durou um ano. Em seguida começou a ilustrar a coluna esportiva de Carlos Eduardo Novaes mo Jornal do Brasil. Depois veio a serie Cartunzão, muito irreverente. Para o suplemento A Coisa criou L´amu tuju L´amu abordando os costumes e comportamentos populares. Nos anos 80 começou outra serie de tiras diárias, Tudo Bem onde a mulher, Kátia Regina por exemplo, era a personagem principal, mesmo com a presença constante de Arlindo Orlando. Em 1989 foi ao ar na Radio Educadora FM o especial Lage, Cartunista Baiano onde as tiras diárias Tudo Bem foram transportadas para a linguagem radiofônica.

De 1976 a 1980 foi editor de arte da revista Viverbahia quando começou a fazer quadrinhos coloridos. Em 1981 passou a ser editor de arte da revista Axé Bahia e publica os quadrinhos da sensual Dora Mulata. Em 194 no Jornal da Pituba cria o quadrinho Pituboião, satirizando o dia a dia da comunidade. Mais tarde faz diversas ilustrações e cartuns para o jornal O Bocão, da Boca do Rio, bairro de Salvador. Em 1990 lança a revista de humor e quadrinhos Pau de Sebo, deboche puro.

Uma das primeiras publicações de humor e quadrinhos que surgiu em Salvador na década de 70, começou em formato de jornal, como suplemento da Tribuna da Bahia, A Coisa. O seu editorial dizia: “Esquecidos como profissionais sérios, confundidos muitas vezes com o seu trabalho que faz rir ou divertir, os desenhistas de humor e quadrinhos lutaram com dificuldade até serem reconhecidos como artistas importantes, ou mesmo artistas (...) A importância do humor e quadrinhos e indiscutível hoje em dia, pois nunca se discutiu tanto a respeito (...) Trata-se então de tomar consciência de nossa própria importância como profissionais e nos impor através da qualidade de nossos trabalhos. Consciente disso, foi que nós de A Coisa, lutamos e conseguimos reunir um grupo de pessoas interessadas que tem como meta principal uma maior valorização do autor brasileiro e em particular baiano. Acreditamos ter chegado em momento oportuno procurando suprir a falta de uma publicação desse gênero entre nos. Pretendemos também divulgar e abrir novas perspectivas aos humoristas e desenhistas que ainda não tiveram oportunidade de publicar seus trabalhos”.

A Coisa durou de 1975 a 1976. Ainda em 76 a equipe se mobilizou e lançou o tablóide Coisa Nostra, cujas 20 paginas incluíam reportagens, colunas de cinema, música e cartuns. O editorial do número um alertava que o “importante é que o riso não fique na boca. Ele tem que dar uma chegadinha na consciência”. Coisa Nostra só teve quatro números. De 1985 a 88 Lage produz vídeo charge (ou charge eletrônica) na TV educativa de Salvador. Foi o primeiro a trabalhar nessa área na Bahia. Participa de diversos salões de humor, sendo premiados nos da Mackenzie, SP em 1971 e 1973. Participa ainda nos salões do Rio, Bahia, Piracicaba, Curitiba, entre outros. Em 1984 é premiado no Salão de Humor em Stutgart, Alemanha.

“Seu humor é engajado, militante sem ser partidário, contestador, enfim. Portanto, mais que obvio, é essencial, puro, em estado bruto. Exatamente como deve ser”. A opinião é do jornalista e pesquisador Gonçalo Junior. Para o jornalista Vitor Hugo Soares Lage é “iluminado, demolidor, integro, traço reto como o seu caráter. Talento incomum que dignifica a imprensa em geral e a arte do cartunismo em particular. Notável e instigante chargista político”. Já o poeta, escritor, ensaísta e professor Ruy Espinheira Filho comentou: “A arte de Lage nasceu madura. Desde o princípio ele se igualou aos melhores do

país – traço leve, ágil, carregado de expressividade. Humor finíssimo e capaz de falar plenamente tanto ao público comum quanto ao mais exigente”.

O talento do chargista conquistou um espaço excepcional num jornal que sempre escolheu a opinião pela noticia sem comentários. Cada dia novo que surge é sempre o primeiro dia para o jornal que sofreu investidas ferindo seu direito de pensar e agir livremente, mas continua resistindo. Antes de se debruçar sobre a prancheta, Lage, cercado de fatos por todos os lados, gasta uma hora diária com a leitura dos jornais locais e nacionais. Depois e só deixar o lápis correr sobre a folha de papel em branco. Mais uma hora e a charge sai finalizada em nanquim. O prazer do desenhista é descobrir detalhes de alguns políticos, seus defeitos, suas virtudes e ampliá-los para o publico leitor. Em sua trajetória, militou na imprensa nanica (independente, alternativa) dos tempos da ditadura, fez crônicas na TV e deu até aulas sobre desenhos de humor. Na trilha de humor de comportamentos, ele criou personagens impagáveis, fazendo a melhor crítica de costumes dos quadrinhos baianos. Ele se foi, ontem (dia 29) e seu enterro hoje às 09h30 no Cemitério Bosque da Paz (Paralela). Descanse em paz amigo Lage. (Gutemberg Cruz)

29 novembro 2006

Desejo atrai tragédia?

Desde tempos remotos que existe uma conexão entre o desejo e a tragédia. Basta lembrar Édipo e Antigonas nas tragédias gregas entrelaçando o desejo e a morte. O mesmo para Paola e Francesco na romântica e cruelmente encarcerados no Inferno de Dante. E o desejo devastado entre Romeu e Julieta? Essa dupla temática básica – desejo e morte – são questões humanas fundamentais e muito antes da formalização do conceito (com Freud) já nasceu com a origem do homem, marcado pelo pecado bíblico e sua punição maior, a perda do paraíso.

Enquanto a tragédia (que permeava a cultura grega) lida com o destino inevitável, o drama surge a partir do Renascimento e caminhou junto à Revolução Industrial e aos ideais iluministas. A tragédia obedece a um destino fatalista, teocentrista, o drama enfoca a vida real onde o sujeito é um ser racional, senhor de si e do mundo. Nasce o herói que busca escapar do sofrimento, desafia o desígnio dos deuses ou enfrenta o peso da tradição e da moral vigente.

A civilização ocidental (o oposto da oriental) tem como um de seus pressupostos o controle de fluxos primais e estimuladores da potência do corpo. Esse mecanismo de controle utiliza-se da moral e da ética como forma de manipular as relações entre os corpos. Tenta-se esse controle também através dos artifícios da racionalidade e do conhecimento, que por vezes, estão a reboque de determinados interesses humanos. Apolo, em sua figura mítica, é o senhor da aparência, da forma e do equilíbrio. Dionísio, por sua vez, lhe opõe o movimento, é a transformação, a ruptura, o caos das sensações e das paixões. Energia, matéria, tensões e formas são os termos dessa equação existencial.

Na tentativa de se proteger e minimizar essa finitude, o homem monta para si, estratégias de permanência e controle desse caos iminente (nascer, amadurecer e morrer). Estende no espaço sua teia existencial: sua cultura, sua tecnologia, seus conhecimentos, os complexos organizativos e administrativos dessa condição finita.

A arte não tem tido dificuldade em ligar o desejo erótico ao desejo de morte e aniquilação. O próprio amor é uma espécie de morte – o amante é penetrado ou atacado. Nesta tradição, os delírios do amor, especialmente o orgasmo (em francês une petite mort, “uma pequena morte”), são símbolos da morte real. Argumenta-se que as mortes em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta indicam o desejo oculto dos amantes de extinção conjunta. Na arte é extraordinariamente perigoso ser uma mulher apaixonada, como nos lembra a interminável procissão de Ofélias, Violetas, Toscas e Mimis.

Até mesmo Eros (desejo) é contaminado por Thanatos (morte). Preste bastante atenção em algumas obras de arte e observe que o desejo erótico tem a morte no seu centro. Cada um de nós pergunta se a vida tem sentido. Depende. A vida é uma corrente de acontecimentos vividos no interior da qual há frequentemente bastante sentido para nós próprios e os que nos rodeiam. O sorriso do filho significa tudo para a mãe, a carícia significa beatitude para o amante, a mudança de frase significa felicidade para o escritor. O sentido vem da entrega e do prazer, da corrente de pormenores que são importantes para nós.

Se a vida humana algumas vezes é dor, outras vezes pode ser delícia. Experienciar o mundo, para qualquer criança, é pura maravilha. Descobrir e vivenciar o amor é descobrir o sentido religioso da vida, é viver momentos de entrega. A amizade pode ser a revelação e o aprendizado do outro, do diferente. O trabalho, a luta pelos ideiais, a realização de alguns de nossos objetivos (mesmo que não exatamente como os sonhamos) é pura transcendência. A velhice pode ser o momento de sabedoria. A vida humnana passa, a todo instante, pela beleza e pela epifania.

Como viver é muito misturado (dor e alegria, tragédia e comédia) é razoável supor que a melhor representação da vida humana na arte é aquela que mostra os dois pólos desta experiência: a dor, mas também a felicidade de existir. Mostrar a afirmação na tragédia e a tragédia na afirmação, eis a receita da grande arte de todos os tempos.

Sem os opostos não há progresso. Atração e repulsão, razão e energia, amor e ódio são necessários para a existência humana. O detalhe é a ênfase. O cinema do diretor Pedro Almodóvar, por exemplo, transita da tragédia à comédia, sem regras nem amarras. Nessa mescla de gêneros cinematográficos, Almodóvar nada mais faz do que uma atualização de um fenômeno verificado no teatro e na literatura e no qual se ilustraram Aristóteles (A Poética), Victor Hugo e Pierre Corneille (El Cid).

28 novembro 2006

Marketing nas telenovelas


A telenovela é fruto de vários antecedentes. Na sua formação estariam presentes entre outros, o melodrama teatral, o romance europeu do século 19; o romance em folhetim, por jornal, também no século 19; o romance em folhetim, por entregas (fascículo); a fita em série (seriado) norte americano. A radionovela; as histórias em quadrinhos e a fotonovela. Assim, o folhetim, nascido na França nos anos 30 do século XIX, irradia-se pela Europa, cruza o Atlântico, alcança a América, espraiando-se pela América Latina. O cinema o incorpora (a fita em série é um exemplo), o rádio dá-lhe sonoridade através da radionovela, as histórias-em-quadrinhos e a fotonovela roubam-lhe as páginas dos jornais e revistas com o gancho “continua no próximo capítulo”.

O melodrama (originário do século 18) ajusta-se facilmente na programação televisiva e renasce planamente na telenovela, comovendo e prendendo o interesse de milhões de telespectadores, assim como o fizeram as peças desse gênero de teatro com as platéias do passado. A narrativa envolve amores impossíveis, intrigas, conspirações, mistérios, segredos, crianças trocadas, filhos perdidos, juramentos, passagens secretas, noites tempestuosas, cortadas por relâmpagos e trovões. Tudo, de fácil apelo sentimentalista que, aos olhos do leitor desenha-se o sofrimento humano. O embate entre o bem e o mal (virtude e vício) é estruturado numa cenografia e paisagens por onde a câmera passeia, utilizando uma linguagem de planos que vão do geral ao close, valorizada pela iluminação e uma trilha musical adequadas à criação da ambientação necessária à história.

Tudo marketing. As roupas das personagens são vendidas em grandes lojas, os alimentos também, além da trilha sonora vendidas em CDs ou mesmo a divulgação do banco, do produto de beleza etc etc. A intenção explícita é cativar o público, pois o sucesso traz ao autor, produtor e atores e prestígio e retorno financeiro. Assim para se chegar a um grande sucesso é necessário abrir várias concessões para agradar platéias diferentes, tornando-o muitas vezes, graças à artificialidade da intriga, simplório e apelativo. Por outro lado, ao se aproximar da crônica da época, o melodrama trabalha elementos de clichê – os ingredientes de uma receita – com vestes de atualidade.

Valendo-se de pesquisas, ao monitorar as tendências e a reação do público, a telenovela não só procura oferecer histórias com temáticas que o agradem, mas também dá novos rumos à trama que está no ar, permitindo ao autor valorizar, suprimir ou introduzir personagens e criar novas peripécias. Se a novela é um grande sucesso, o autor “estica” mais o drama. Assim, apoiando-se na exploração de motivos sentimentais, na dinâmica da ação e no aspecto visual do espetáculo como um todo, que o autor teve a intriga e domina o gênero. As surpresas que se desdobra a cada dia, as fortes emoções, arranjos visuais e sonoros, tudo na intenção de seduzir o espectador que, eletrizado no seu lugar, assiste ao desenrolar da história e aos desdobramentos inesperados da trama, ora à base do pranto ou de indignação.

Em 1958 foi produzida a primeira telenovela do México, “Senda prohibida!. No Brasil, a primeira experiência de telenovela data de 1951 como “Sua vida me pertence”, transmitida duas vezes por semana. O ciclo das telenovelas diárias começaria mesmo em 1963, com “2-5499 Ocupado”, mas despertaria pela primeira vez a comoção popular só no ano seguinte, com a versão nacional de “O direito de nascer”. Com o tempo o Brasil e o México se tornaram agentes ativos do mercado latino americano. Em sua obra “Eu Compro Essa Mulher”, Cristiane Costa afirma que “no México, assim como no Brasil, a democratização política não foi acompanhada da democratização da televisão, a não ser daquela que apela para a ´popularização´ da programação, como sinônimo de baixa qualidade estética e de conteúdo. Nos dois países, o sistema de concessões de canais de TV é bastante permeável à corrupção”. Em seu trabalho sobre novelas ela conclui que os melodramas mexicanos e brasileiros mais se aproximam do que se diferenciam. “Nas telenovelas latino americanas, a questão social será tão silenciosa quanto obsessivamente repetida”.
É antológico a cena final de Vale Tudo (Globo, 1988), de Gilberto Braga em que a personagem vivida pelo ator Reginaldo Farias, responsável por golpes no estilo “crime de colarinho branco”, foge de helicóptero e do alto, a paisagem distanciando-se, faz o gesto caracterizado de “dar uma banana” ao país e aos que aqui ficaram. Realidade da atual situação do país com os políticos? O que predomina no folhetim eletrônico é o final feliz, pois talvez fosse crueldade demais para com o público que acompanha a luta pela vitória do amor e do bem, frustrá-lo com um desenlance infeliz, não seria “comercialmente” correto.

27 novembro 2006

Jegue é sinônimo de força e resistência

O jumento esteve presente por três vezes na vida de Jesus: no seu nascimento, na fuga para o Egito e no domingo de Ramos, conforme conta a Bíblia. No Brasil, este animal foi o meio de transporte mais importante para o redescobrimento do país pelos Bandeirantes, sendo também um elemento decisivo para o fim da escravatura, pois substituiu a força de trabalho escravo a partir de meados do século XIX. Por fim, o jegue terminou por assumir um papel fundamental no Nordeste brasileiro, e claro, no estado da Bahia.

A população de jumentos no Nordeste era de 17 milhões em 1964, depois, passou para oito milhões em 1977, diminuiu para dois milhões em 1981, atualmente, chega a um milhão. O motivo da matança deste animal que um dia já foi sagrado era para o fabrico da vacina anti-rábica, bem como o consumo de sua carne tida como muito saborosa.

A idade de vida de um jumento no Brasil é de 15 anos, enquanto que em países como a Espanha e o Egito, o animal chega a viver de 30 a 40 anos. O desprezo pelo jumento é resultado da urbanização das cidades do interior do Nordeste, como a Bahia, por exemplo. Por mais pobre que seja a família, hoje se adquire uma motocicleta por apenas R$ 50 mensais, um carro por R$ 200 mensais, e estes automotores são mais rápidos, agüentam cargas cada vez mais pesadas e não empacam.

Chama-se asinino o jumento de bom porte e orelhas grandes, o muar é o animal fruto do cruzamento de uma égua com um jumento, já o híbrido é mais resistente, no entanto, não gera descendente. O jegue carregou em suas costas a prosperidade que o Recôncavo baiano esbanja hoje, tanto que se para o Nordeste ele foi a “mola propulsora” do desenvolvimento, se não fossem os asininos e os muares, certamente, boa parte da economia baiana não existiria.

Ter um jumento hoje em dia, é sinônimo de atraso, de lentidão, e no mundo moderno a palavra de ordem é rapidez, agilidade. Atualmente, compra-se um jegue por um mísero R$ 1, o pobre animal está tão desvalorizado que seus donos terminam por deixá-los à beira de estradas, dando-lhes um destino nada justo. Não podemos esquecer que o jegue é um dos símbolos fundamentais da cultura nordestina, sua contribuição para a economia desta região é inegável. O jegue é para o nordestino o mesmo que o camelo é para beduíno do deserto.

Quase 70% do rebanho de jegues da Bahia foram dizimados em nome da exportação para consumidores japoneses e europeus que gostavam de sua carne. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os maiores rebanhos baianos estão em Itamarajú, Monte Santo, Mata do São João e Miguel Calmon.

Os tempos áureos do uso do jegue se deram nos canaviais e nas fazendas dos barões do cacau, mas quando estas duas culturas entraram em crise, junto com a mecanização do campo, foi decretada a restrição do emprego do bicho como ajudante do trabalho rural. Mas, apesar de tantos desprezos, o animal ainda sobrevive em muitos municípios baianos como principal transporte humano e de cargas.

A corrida de jegue é uma das manifestações mais engraçadas das cidades baianas. A disputa mistura competição e festa num hilário espetáculo da zona rural do Recôncavo. Proporcionando boas gargalhadas, a competição feita sobre jegues fantasiados acontece anualmente em vários municípios, a mais tradicional é a de São Gonçalo dos Campos, a 105 quilômetros de Salvador. A corrida de jegue foi criada há 20 anos como forma de estimular a preservação dos animais, na época ameaçados de extinção. Atualmente, a festa faz parte do calendário de eventos da região. Trata-se de uma grande festa com muita comida típica e música noite a dentro, sem hora de acabar. Tudo isto só para homenagear os maiores trabalhadores do nordeste, os jegues. Ao longo do dia, diversos páreos de corrida de jegues são disputados, até a escolha do grande campeão da festa.

Foi o jegue quem inspirou Monteiro Lobato a criar o personagem “Burro Falante”, do Sito do Pica Pau Amarelo. Se Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, fez versos em louvor asinino, o consagrando em canções como “O jumento é o nosso irmão” e “Apologia ao jumento”, até hoje Genival Lacerda procura sucesso maior do que a música “De quem é esse Jegue?”. Como somente um artista é capaz de traduzir tão bem a importância de algo ou de um sentimento, bem melhor é terminar o texto valendo-se dos versos tão sábios de Luiz Gonzaga: “O jegue foi o transporte que levou nosso Senhor, vosmicê fique sabendo que o jumento tem valor/ Agora, meu patriota, em nome do meu sertão, acompanhe o seu vigário nessa terna gratidão, recebe nossa homenagem ao jumento, nosso irmão”.

24 novembro 2006

Música & Poesia

O Amor Aqui de Casa (Gilberto Gil)

A menstruação não desce
A chuva não dá sinal
Quem seu mal no mel padece
Seu bem conserva no sal
Vai doer de novo o parto
Vai secar de novo o açude
Vida aqui tem sala e quarto
Quem não couber que se mude
O amor daqui de casa
Tem um sentimento forte
Que nem gemido na telha
Quando sopra o vento norte
Que nem choro de boi morto
Três dias depois da morte
Quem só conhece o conforto
Não merece boa sorte
O amor daqui de casa
Tem um sentimento forte
Com gosto de umbu travoso
Com cheiro de couro cru
O amor daqui de casa
Bate asas no verão
Faz parte da natureza
É arte do coração

Cadê? (Luis Turiba)

Se a poesia do dia-a-dia se evaporar, não se apavore
Se o buquê do vinho tinto fugir do cálice, não se cale
Se o vapor do teu calor não mais chover, não chore
Se uma lágrima rolar na face o meu habitat, álibi-se.

Se o fogo azul do travesseiro negar-se às trevas, trave
Se o tempo virar rotina e o apetite pitar teu cinto, sinta
Se a chama suave do amor chamuscar tua nave, chave
Se as estrelas perderem a trilha e o sol murchar, minta

Se a fere louca apertar tua boca e te deixar verde, sede
Se o Deus das trevas voar, fluir, dançar em ti, não toque
Se a fome, a sede, o sol do senhor secar teu pasto, saque

Se o silêncio penetrar tua alma com luz extrema, que pena!
Final, se não sou traço, se não sou virgula, tampouco tremas
Sou linguagem. E de todas as fuselagens – saco um poema.

23 novembro 2006

Antônio de Lacerda

Engenheiro. Antônio de Lacerda era um dos seis filhos de Antônio Francisco de Lacerda, comendador, descendente de uma nobre família de Portugal, que chegou à Bahia por volta de 1820 e se estabeleceu em Valença, onde instalou uma importante fábrica de tecidos. Ele estudou nos Estados Unidos numa escola de engenheiros, em 1851, com 17 anos de idade. Regressou em 1856, antes de completar o curso, atendendo ao chamado paterno. No entanto, sua permanência por cerca de cinco anos nos EUA, somada à educação recebida em Genebra, Suíça, entre março de 1844 e dezembro de 1850, lhe propiciara um sólido conhecimento das ciências físicas e naturais. Publicou numerosos trabalhos científicos em boletins, revistas e jornais especializados, sendo laureado duas vezes pela Societé d’Acclimatation de Paris, e manteve contatos com grandes cientistas do seu tempo, como Charles Frederick Hartt e Louis Agassiz. Pelo seu renome e, também, certamente, por ter se casado com uma jovem belga, Adèle de Montobiou, foi nomeado pelo Imperador Leopoldo II, Cônsul Honorário da Bélgica na Bahia. E havendo obtido o beneplácito do Imperador do Brasil em novembro de 1873, assumiu o posto no mês seguinte permanecendo até janeiro de 1884.

No período entre 17 de outubro de 1869 e 08 de dezembro de 1873 o engenheiro baiano idealizou o Elevador Hidráulico da Conceição. No início, quando apresentou seu projeto, Antônio de Lacerda foi desacreditado por uma parcela da população de Salvador, que considerava a realização da obra uma coisa megalomaníaca e inconcebível do ponto de vista técnico. A idéia da construção era antiga mas fora julgada por muito tempo, impraticável. Graças ao idealismo do comendador Antonio de Lacerda, acabou por tornar-se realidade. Em 17 de outubro de 1869 ele iniciaria a perfuração da rocha, a parte mais difícil da empresa, pois pretendia, como aliás o fez, abrir um túnel de comunicação entre a Conceição (Praça Cairu) e o ponto a ser atingido pela base da torre através da qual circulariam as cabinas do elevador, bem como fazer com que esta torre atravessasse a rocha no seu trecho final. Durante 50 meses haviam prosseguido, em meio à expectativa de todos e a descrença e oposição de muitos.

No dia 08 de dezembro de 1873, dia da Conceição, o elevador foi inaugurado. Tratava-se de um elevador hidráulico de fabricação inglesa Hoisting Machinery e foi apelidado pela população como Parafuso da Conceição, com uma capacidade de 25 cavalos de força, utilizada para a operação de injetar água no maquinismo que faria elevarem-se as suas duas cabines. A época em que foi instalado, era o mais alto elevador público do mundo, com 191 pés, pouco mais de 58 metros. Seu mais próximo concorrente, era, naquele tempo, o elevador de Albert Hall, em Londres, com 47,854 metros de altura. Somente muitos anos depois de inaugurado, em 1908, foram as suas máquinas eletrificadas, e em 1930, concluídos as obras que deram ao elevador a sua feição atual em estilo art-decó. Foi nessa reforma que o elevador passou a funcionar por meio de energia elétrica e foram construídas a torre externa, com duas cabines, e o passadiço em concreto armado sobre a Ladeira da Montanha.

Com 72 metros de altura, desde sua base, no Comércio, até o topo na Praça Municipal, o Elevador Lacerda foi criado com a intenção de tornar mais prático o acesso dos pedestres entre a Cidade Baixa e Cidade Alta, interligando as duas principais linhas de bonde de Salvador na época (Calçada/Praça Cayrú e Praça Municipal/Graça). E segundo a versão brasileira do Guinness Book de 1995, O Livro dos Recordes, o Elevador Lacerda é o maior elevador comercial do Brasil. Em 21 de junho de 1896, por recomendação do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, o elevador foi rebatizado com o nome de Elevador Antônio de Lacerda, em homenagem ao esforço de seu idealizador, e mais tarde simplificado para Elevador Lacerda. O engenheiro não foi apenas o idealizador do Elevador Lacerda, mas também o sócio majoritário do empreendimento, tendo tirado do próprio bolso 35% dos recursos empregados na obra e inclusive associou à Empresa de Transportes Urbanos. No tempo da inauguração do Elevador, além de dirigir a Companhia Transportes Urbanos, participava da diretoria do Banco da Bahia, e representava na praça de Salvador várias companhias de navegação nacionais e estrangeiras. Nessa mesma época exercia a superintendência interina da Companhia de Navegação Bahiana. E colocou, por ocasião da chegada ao nosso porto, em dezembro, do navio Hooper que conduzia o cabo submarino, à disposição da Associação Comercial da Bahia, o vapor Paulo Afonso para transportar a sua junta diretora até a entrada da barra e acompanhar o barco inglês ao longo do último trecho de colocação do referido cabo, que uniria, por via telegráfica, as províncias do Pará, Pernambuco e Bahia.

Logo após, em janeiro, passaria a participar da junta diretora da referida Associação. A Companhia Transportes Urbanos continuou a expandir-se. Inaugurado o elevador e prolongada a linha de bondes da Piedade à praça do Palácio, tratou Antônio de Lacerda de estabelecer a ligação entre o Campo Grande e o Rio Vermelho, valendo-se de uma concessão obtida em junho de 1872. Bem como de estender a linha de bondes do largo da Vitória na direção da Barra, através da ladeira da Barra Avenida. E em 1878 contratava com a Presidência da Província os serviços para a abertura de uma nova rua na cidade, ao longo da encosta para o mar, a conhecida Ladeira da Montanha, inaugurada em 1881. Parece contudo que a situação financeira de Antônio de Lacerda tinha se deteriorado. Fora já forçado a afastar-se da Companhia que fundara e dirigira. E quando recusou o título de Barão de Lacerda que lhe ofereceu o Imperador D. Pedro II, alegou não possuir condições para sustentá-lo. Em agosto de 1885 faleceu o construtor do elevador que tomou o seu nome.

22 novembro 2006

Shakespeare, virtuoso das palavras


O mais famoso dramaturgo e poeta inglês de todos os tempos. Um virtuoso das palavras e dos sons. William Shakespeare (1564/1616) foi um inventor de palavras em uma escala ímpar na literatura inglesa. Havia 150 mil palavras na língua inglesa em sua época, das quais ele usou cerca de 20 mil, assim suas invenções totalizam mais de 10% de seu vocabulário. Criou palavras transformando substantivos em verbos e vice-versa, ou acrescentando-lhes sufixos.

Há 314 exemplos de uso do prefixo “um” (equivalente ao nosso prefixo “in”). Acrescentou também o prefixo “out”. Muitos desses neologismos não pegaram. Há 322 palavras que apenas Shakespeare usou. Outros foram logo incorporando ao vocabulário. Alguns foram rejeitados na época, mas depois redescobertas. Se ele apenas se divertia com as palavras inventadas outras vezes ele usou palavras curtas para conduzir a trama e produzir ação, como na tensa e concisa cena do assassinato de Macbeth ou mesmo da beleza de A Fênix e a Tartaruga.

A Inglaterra dominava o mundo, a época era musical e o teatro refletia esse amor pela música. A música era usada para sinalizar tragédias ou aumentar a tensão, marcar as mudanças nos personagens ou o tom da ação. Sonho de uma Noite de Verão, Um Conto de Inverno e A Tempestade são peças musicais.

Shakespeare escreveu 39 peças (entre históricas, comédias e tragédias) que chegaram até nós e colaborou em muitas outras. Escreveu também muitos poemas e centenas de sonetos. Durante sua vida, as peças já eram encenadas tanto na Inglaterra como em outros países. De lá para cá foram traduzidas para todos os idiomas conhecidos e encenadas ao redor do mundo. As 103 canções que pontilharam suas peças receberam arranjos de inúmeros compositores, suas obras inspiraram mais de 300 filmes e milhares de adaptações para a televisão, além de terem fornecido material ou idéias para a maioria dos dramaturgos profissionais.

Ele compôs suas peças durante o reinado de Elizabeth I (1558/1603) e de James I que a sucedeu. Em 1592 ele já fazia sucesso como ator e dramaturgo. Mas eram suas poesias – e não suas peças – que eram aclamadas pelo público. Em virtude da peste, os teatros permaneceram fechados entre 1592 e 12594, impossibilitando seu contato com o público. Vênus e Adônis, O Rapto de Lucrécias, dois poemas, e Sonetos tornaram-se famosos por explorar todos os aspectos do amor e trouxeram-lhe reconhecimento como poeta.

Segundo os especialistas, Shakespeare raramente demonstrava com clareza suas opiniões, preferindo deixar pistas e indícios, insinuar e sugerir, a declarar abertamente suas crenças. Seu evangelho é a moderação em todas as coisas. Sua preferência, a tolerância. Ele aceitava as pessoas como elas eram, imperfeitas, inseguras, fracas e falíveis ou voluntariosas e tolas, muitas vezes desesperadas e, mesmo assim, sempre interessantes, em geral dignas de amor ou comoventes.

“Muitas vezes, nossos remédios estão dentro de nós”. “Melhor um tolo espirituoso do que um espírito tolo”. “A gratidão é o único tesouro dos humildes”. “Somos o tecido de que são feitos os sonhos”. “As mais belas jóias, sem defeito, com o uso o encanto perdem”. São algumas das citações de Shakespeare. Seus textos são animados com palavras e frases que ele retirava de ruas, invenções verbais. Elas se tornaram parte do idioma, às vezes da fala cotidiana. Ele espalhou milhares de confetes verbais sobre o nosso discurso. “Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar”, “o resto é silêncio”, “o destino me chama”, etc.

Shakespeare foi um homem de tantas palavras que muitas vezes as usamos de maneira quase inconsciente suas citações. “Ser ou não ser, eis a questão” (Hamlet), “Quanto um tempo se estende numa palavra breve”. “Quanto longos invernos e quatro pródigas primaveras. Findam numa palavra: tal o respirar dos reis” (Ricardo II), “a vida...é uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada” (Macbeth).

Para o crítico norte americano Harold Bloon, a arte de Shakespeare é tão infinita que nos contém e há de continuar abraçando os que vierem depois de nós. As suas peças nos lêem de maneira definitiva. E não é à toa, portanto, que depois de Jesus, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente.


21 novembro 2006

Na natureza e na vida, tudo está intimamente relacionado. Observe

Tudo está intimamente relacionado. Basta observar que nas quatro estações o ciclo que regula ou prevê o clima, crescimento e declínio, mudanças do clima, sons e sabores, emoções na psicologia humanas. Assim, as cinco fases da energia (madeira, metal, água, terra e fogo) representam vários estágios de vazio e cheio pelas quais essas energias passam ao equilibrar um determinado sistema energético. O inverno é marcado pelo frio, de uma paisagem que mostra árvores com aspecto de mortas e poucos animais. A água é a fase da energia associada ao inverno, quando prevalece a força yang. O inverno é o tempo do descanso, da quietude, quando a energia é poupada, recolhida, condensada, conservada e armazenada. A água é um elemento muito concentrado, contendo um grande potencial, um grande poder esperando para ser liberado.

A próxima fase do ciclo das estações do ano é a primavera, surge o elemento madeira do potencial energético da água, assim como as plantas florescem na terra durante a primavera. Na primavera essas árvores parecem ressuscitar cobrindo-se de folhas e flores. Árvores e animais retornam para se alimentar da nova vegetação e procriar. Este é o novo estágio yang do ciclo das energias. A fase madeira é expansiva, alegre, explosivas, é uma geração criativa de energia, despertando o desejo sexual de procriar. Está associada ao vigor, à juventude, do crescimento e ao desenvolvimento. Na primavera, o elemento predominante é a madeira, o fator climático característico é o vento, a direção é leste, a cor é o verde e é quando tudo nasce. A fase da vida correspondente á a infância. O órgão interno mais sensível na primavera é o fígado, que rege os tendões. Sua víscera correspondente é a vesícula biliar. Fígado e vesícula biliar se manifestam nos olhos. O saber é o ácido, a emoção predominante do fígado é a raiva (ressentimento e frustração).

No verão ocorre o nascimento dos filhotes e as árvores frutíferas fornecem mais alimentos. No outono os filhotes já estão crescendo, a disponibilidade de alimento diminui, as folhas começam a cair deixando as árvores quase nuas anunciando a chegada de um novo inverno. Assim a grande roda da vida segue caminhando entre os ciclos das energias elementares, acordando e dando vida a todas as coisas, seguindo um processo ordenando de seqüência rítmica.

No verão os elementos predominantes são fogo, calor, a direção sul e a cor vermelha. O coração é o órgão interno mais solicitado, cuja víscera correspondente é o intestino delgado, que rege os vasos sanguíneos e se manifesta na língua. A emoção predominante do coração é a euforia, a alegria desmedida. E o sabor predominante na natureza é o amargo. Assim, no verão, devemos evitar os amargos (café, chocolate, pimenta, gengibre, cravo e canela). As gorduras e frituras agridem os vasos sanguíneos e devem ser evitados nesta época do ano. O verão é a adolescência de vida. Nossas energias e emoções emanam do nosso interior em direção ao exterior. Nosso calor sai pelos poros sob forma e suor, espinhas, cravos e irritações da pelo. É preciso estar em ambientes abertos, lugares frescos e pouca roupa. Tomar banho de mar, cachoeira ou rios são purificantes. É o período quando a energia sexual está mais ativa.

No outono a direção é o oeste e o elemento é o metal. O órgão em evidência é o pulmão, que além de sua ação respiratória, controla o nosso volume de água, ou seja, a umidade no nosso organismo. As emoções que debilitam o pulmão são a tristeza, melancolia e o luto. Os bons antídotos são cultivar a alegria, não abusar dos elementos picantes e evitar apanhar frio e chuva. Já o inverno corresponde o elemento água e o órgão rim. A direção é o norte e a cor é o preto. A emoção que desequilibra o rim é o medo. O sabor presente no ar é o salgado. Devemos reduzir o sal e o açúcar na alimentação. É hora de comer feijão, sojas e carnes. É hora também de se recolher a ambientes fechados e aquecidos e planejar, meditar, silêncio interior, auto-conhecimento. Assim é a vida, como uma onda, tem altos e baixos.

As cinco fases da energia ou cinco elementos mantêm o equilíbrio interno e a harmonia entre as energias Yan e Yang, através de ciclos de equilíbrio e checagem, chamados ciclo criativo e ciclo de controle. O ciclo criativo gera energia e nutre a energia (como a relação entre mãe e filho). Água gera a madeira nutrindo seu crescimento. Madeira gera fogo dando-lhe combustível para queimar. Fogo gera terra, fertilizando-a com suas cinzas. Terra produz metal pela extração e refinamento. Metal se torna líquido com água quando fundido, somando-lhe propriedades especiais, quando ele se mistura (como na água mineral).

20 novembro 2006

Época das grandes colheitas. É a estação da nostalgia

No outono (que começa no dia 02 de março e termina no dia 19 de junho) os dias ficam mais curtos e mis frios, anoitece mis cedo. Depois de tanto calor nada como uma brisa fresca. Sinal que o outono está chegando. As folhas de muitas árvores, arbustos e outras plantas começam a pintar-se de muitas cores: amarelo, castanho e vermelho. Todas vão cair ao longo dos meses de março, abril, maio e junho e cobrir o chão dos parques e das ruas, formando tapetes coloridos. As frutas, já amadurecidas, também começam a cair no chão.

Esta é a época das grandes colheitas. Isto por que os países do hemisfério norte precisam se preparar para o inverno que vem chegando. É necessário armazenar bastante comida para que nada possa faltar. O outono é a natureza a envelhecer. Di-se que uma pessoa está no “outono da vida” quando a sua idade se aproxima da velhice. É tempo de hortência, azaléia, flor de maio e margarida.

Quando o verão passa para o outono, a energia da terra se transforma em metal. Nessa fase a energia começa novamente a se condensar, se contrair, voltar-se para dentro para acumular e se armazenar, assim como armazenamos nossos alimento no outono, para sobreviver no inverno. É a fase de liberar tudo que está gasto como as folhas das árvores que caem para poupar a essência, que é então armazenada para suportar a fase não produtiva da água, do inverno. Se nesta fase não houver bastante energia para contrair, não haverá força suficiente para passar o inverno e o próximo ciclo da madeira primavera será fraco. A energia do metal controla o pulmão, que extrai a energia essencial e expele as toxinas do sangue e do intestino grosso, que elimina a sujeira pesada enquanto retêm e recicla toda a água do organismo.

A cor da fase metal é o branco, que dá origem a todas as cores, cor da pureza e da essência, relacionada com a espiritualidade. O outono é a estação da introspecção e da meditação, de reciclar sentimentos antigos, apegos externos e o excesso de emoções adquiridas durante o verão, assim como as árvores se livram das folhas secas e buscam os nutrientes de suas raízes. Se resistirmos a esta energia e ficarmos aprisionados no passado podemos criar estados de melancolia, de tristeza e de depressão que se manifestam em dificuldades respiratórias, dores nas costas, problemas de pele e baixa resistência a doenças. Assim como o metal é a energia refinada extraída da terra e lapidada pelo fogo, o outono é a estação onde devemos extrair aprendizagens das atividades e experiências do verão, transformando-as na quietude e sabedoria do inverno.

O outono chega e, com ele a brisa que nos percorre o corpo ainda quente, vamos aos poucos começar a acalmar depois de tanta energia consumida no verão. As primeiras folhas caem no chão, sabemos que agora começa a época de acalmar de novo, de voltar a pôr os pés no chão ao mesmo tempo que vamos saboreando e recordando as emoções que acabamos de sentir no pico do verão. Procuramos o melhor aconchego, descansando um pouco pra que as forças regressem para um novo ciclo. Estamos no momento de reflexão e relaxamento após o êxtase, estamos a saborear tudo o que vivemos e a incorporar em nós o que aprendemos. É o fim de um ciclo e o preparar um novo ciclo. Um ciclo se encerra e outro vai começar.

No outono, as folhas de muitas plantas caem, porque aqui se completa seu ciclo de vida. Como esta estação antecede ao inverno, alguns animais já se previnem hibernando, enquanto outros constroem esconderijos. A temperatura começa a cair, e a paisagem adquire um tom ocre. É a estação da nostalgia. Os resíduos do verão ainda passeiam por entre as cores e os comportamentos, mas o aconchego do inverno já espreita e, timidamente vai se tomando o seu espaço.

O amor no outono se reveste de sinais: sorrisos repentinos, olhar de devaneio, suspiros de veludo, taquicardia, calafrios no estômago, sonhos acordados e uma sensação de estar em outra galáxia. O sentimento nessa estação da vida possui os mesmos idênticos sintomas de qualquer outra época porque ele não tem idade. Quando o amor acontece, desperta o melhor de cada ser, sublima o que estava encerrado a sete chaves, abre janelas, areja todos os cantos da alma, sacode poeiras e dá sentido a todas as coisas. Ele é soberano e sábio. Escolhe seus parceiros e lhes oferece a chance da felicidade. O amor outonal é conquista, é direito adquirido, é superação, é serenidade.

17 novembro 2006

Música & Poesia

Debaixo D'água (Arnaldo Antunes)


Debaixo D'água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido
só faltava respirar, mas tinha que respirar.
Debaixo D'água se formando como um feto, sereno, confortável,
amável, completo, sem chão, sem teto, sem contato com o ar,
mas tinha que respirar, todo dia

Todo dia, todo dia, todo dia (2x)
Debaixo D'água por enquanto, sem sorriso, sem pranto, sem lamento,
sem saber o quanto esse momento poderia durar, mas tinha que respirar.
Debaixo D'água ficaria para sempre ficaria contente longe de toda
gente para sempre no fundo do mar, mas tinha que respirar, todo dia.

Debaixo D'água protegido, salvo, fora de perigo, aliviado, sem perdão
e sem pecado, sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar,
mas tinha que respirar, Debaixo D'água tudo era mais bonito, mais azul
mais colorido só faltava respirar, mas tinha que respirar, todo dia.


Poema de Sete Faces (Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

16 novembro 2006

Ana Montenegro

Escritora, historiadora, advogada, poeta e militante política baiana. Ana Montenegro nasceu em Quixadá, no Ceará, no dia 13 de abril de 1915. Quando pequena olhava para as terras do pai e só conseguia imaginar que os verdadeiros donos eram aqueles que ali labutavam. Enviada para um colégio de freiras, não cogitou crer nos santos - apesar da admiração pelo “moço de Nazaré” e pelo Sermão da Montanha (“dai de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede”). Assim cresceu a jovem com idéias socialistas. Foi morar, em seguida, no Rio de Janeiro. No México, prestou concurso para as Organizações não-governamentais e daí então seguiu palestrando sobre questões femininas e acabou vindo parar em Salvador, a trabalho, antes de se formar em Direito. Formada em História e bacharel em Direito, ela tem o título de Cidadã de Salvador pela atuação destacada que teve ao longo da sua vida em defesa das liberdades democráticas e os direitos humanos.

Veio morar na Bahia em 1979, depois de 15 anos no exterior, porque a filha, a fotógrafa Sônia Carmo, já morava aqui. E foi nesta terra que soube mais sobre a luta do Corta-Braço, jacinta Passos (poetisa politizada) e as freiras do Convento do Desterro que no começo do século passado impressionaram Frei Caneca com suas atitudes sociais. Era 1947, tempos difíceis para a invasão do Corta-Braço. De noite as mulheres ficaram de fazer vigília para que a polícia não pegasse todo mundo desprevenido. Ana temeu pela sorte das semelhantes naquele escuro e aprendeu um pouco mais sobre a fibra feminina. Foi aqui que Ana Montenegro guardou seu arquivo de pesquisa - pastas e mais pastas de coisas escritas à mão, conforme surgem as informações e observações. Ela fez o primeiro concurso público do Departamento de Administração do Serviço Público no começo da década de 40 e foi nomeada, trabalhando no serviço de previdência social no IAPI, a primeira instituição de previdência que surgiu no Brasil. Aqui ela ficou dois anos. Esteve em Cuba apoiando o então recém instalado governo de Fidel Castro, aprendeu sobre a revolução conversando com Che Guevara, escreveu para a revista Mulheres do Mundo Inteiro, distribuída em nível planetário pela Unesco, foi conferir de perto as guerrilhas da Guiné-Bissau na década de 70.

Ana Montenegro destacou-se por uma ativa participação da mulher, desde a redemocratização do país em 1945, após a ditadura de Getúlio Vargas. É uma das fundadoras da Federação de Mulheres do Brasil, e do extinto jornal Momento Feminino. Até 1964 participou da Frente Nacionalista Feminina, ocupando a Secretaria da Liga Feminina, do Estado da Guanabara (hoje Estado do Rio de Janeiro). No Rio, atuou na imprensa, principalmente os jornais Tribuna Popular e Novos Rumos. Foi casada, teve dois filhos. Primeira mulher exilada após o golpe de 1964, sem nunca abrir mão de suas bandeiras por igualdade social, foi perseguida, viveu por 15 anos exilada na Europa. Participou de congressos, seminários e delegações junto ao Conselho Econômico e Social da ONU e da UNESCO, de delegações da Europa, na África, no Oriente Médio e na América Latina. Ela sempre ocupou a linha de frente dos movimentos sociais (como a liga camponesa), anistia, pelo direito de moradia, contribuiu para que o povo conquistasse vitórias nas invasões (a exemplo de Corta Braço, hoje Pero Vaz), dentre outros. Funcionária pública, participou da criação da União dos Trabalhadores Públicos do Brasil, inimiga da guerra, foi para as ruas gritar contra a guerra da Coréia. Ela abraçou a causa do menor, falou, em prosa e versos, contra o racismo, em defesa da mulher, em defesa das riquezas nacionais. Guerreira, manifestou-se contra as aberrações praticadas pelo governo de nosso país contra o povo, e foi exilada. Combativa, foi membro do 1º Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, e braço armado na luta pelos Direitos Humanos (contra a violência e em defesa da cidadania). Libertadora, acredita que se nasce a cada dia.
Pertenceu desde 1945 à direção do Partido Comunista Brasileiro, onde desenvolveu um trabalho sério e respeitado, em defesa dos direitos humanos, pela valorização da participação da mulher nos movimentos sociais, pela elevação do nível de organização da classe operária brasileira. Foi membro do Conselho Nacional da Mulher e integrou o Conselho Municipal da Mulher. O conceito de feminismo da militante, que escreveu longos artigos para os jornais locais, deu palestras e lutou pelos direitos dos sem teto nas favelas e invasões, vai muito além das bandeiras comportamentais popularizadas a partir dos anos 60. Boa parte de seu arquivo particular está na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA que abriu um espaço, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher.

Tem vários livros publicados: Ser ou Não Ser Feminista (1981), Mulheres Participação nas Lutas Populares (1985), Tempo de Exílio (1988), Crônicas e Poemas (1995) e Uma História de Luta (sobre Marighela). Entre seus ensaios estão sobre Simon Bolivar, O Papel da Universidade, Esterilização, Contracepção e Efeitos Democráticos, O Papel da Advogada na Comunidade, Pelourinho, entre o Colorido das Paredes e a Injustiça Social, e Mulher e Constituinte. Devota de Jesus Cristo, no sentido filosófico, Ana Montenegro comoveu-se com os fatos que a cercam e, às vezes perdia a paciência com intolerância. Baixinha ela gostava de andar nas ruas da cidade de braços dados com os amigos, procurando ajudar a todos. Já foi agraciada com medalhas do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicação da Bahia, da OAB, entre outras. A Câmara Municipal de Salvador outorgou em agosto de 1993 a Medalha Maria Quitéria a Ana Montenegro pelo exemplo de vida da militante, sempre dedicada as lutas das mulheres de Salvador, principalmente num momento em que o Brasil vive uma crise ética e valores morais. A memória histórica das lutas populares - dos trabalhadores, dos negros, das mulheres - está, sempre presente no que escreve e em suas palestras e conferências. Sua poesia é a expressão de seus sentimentos de solidariedade a essas lutas. Montenegro faleceu no dia 30 de março de 2006, aos 90 anos, de falência múltipla dos órgãos.

14 novembro 2006

Na primavera a natureza é o centro das atenções. Época da fertilidade

A primavera, do latim prima verna ou primeiro verão, é a primeira das quatro estações do ano. Ela é saudada desde os tempos mais antigos e possuía um significado muito especial para os povos. Templos gloriosos eram erguidos para os rituais das mudanças das estações. Durante cerca de três meses, a natureza promete ser o centro das atenções e vai revelar todo seu esplendor nos bosques, campos e cidades, nesta que é considerada a estações das flores.

As estações do ano ocorrem aproximadamente a cada três meses e são resultado da inclinação do eixo de rotação da Terra, combinando com o seu movimento de translação em redor do sol, que é de 23 graus e 27 minutos. As estações dependem do ângulo de incidência dos raios do sol nas mais diversas regiões do planeta. A partir da primavera, o sol passará a iluminar mais o hemisfério sul – África, Austrália e quase toda a América do Sul. Isto significa dias mais quentes e longos e noites mais curtas. Já no hemisfério norte, onde se localizam Europa, Ásia e América do Norte, os dias ficarão mais curtos e frios com a chegada do outono.

A origem das quatro estações do ano está na inclinação do eixo de rotação da Terra com relação a sua órbita. Este ângulo é chamado de obliqüidade. Devido a essa inclinação, a medida que a Terra gira em torno do Sol, os raios solares incidem mais diretamente em um hemisfério ou outro, aquecendo mais um ou outro. A primavera é a época da procriação, da fertilidade, sexualidade e sedução. No Hemisfério Sul a primavera ocorre em setembro, na evidência é o pulmão, que além de sua função respiratória, controla o nosso volume de água, ou seja, a umidade no nosso organismo. As chuvas se foram. Predomina a secura. As frutas são fartas e maduras e começam a cair juntamente com as folhas da árvores que envelhecem, amarelecem e caem, formando tapetes para nossos pés e adubo para a terra.

Na primavera (que começa no dia 2 de setembro e termina no dia 20 de dezembro) as noites e os dias se tornam iguais em duração. As flores começam a brotar, o vento ganha perfume mais adocicado, os animais saem dos seus habitats e passam a circular livremente. Enfim, é a época de regenerar o velho e receber a nova vida. Do latim tardio prima verá, de primavera, a primeira estação.

É o início do plantio tanto físico como espiritual, a hora de cultivar sentimentos positivos. Esta é a época do acasalamento e do nascimento da maioria das espécies na natureza. Dentro de nós come;a a surgir uma agradável sensação de que a vida, após os frios e escuros meses de inverno, recupera seu esplendor. A primavera faz renascer a vida de um modo mais flexível e com todo o seu esplendor busca o equilíbrio.

Sabemos que a força da vida é exigente e a eterna lei da ação e reação também funciona quando pensamos no modo como a vida responde às nossas ações – a vida sempre nos trata do mesmo modo que a tratamos. O que acontece em nossa vida é um reflexo de nossa realidade interna, de nossa saúde psicológica, da maneira como lidamos com nossos problemas, carências pessoais, tempestades emocionais, furações de pensamentos, maremotos financeiros que acabam por desestabilizar toda a natureza de nossa personalidade.

Com a chegada da primavera, ocorre o equinócio, quando o sol cruza a linha do equador em direção ao Hemisfério Sul, determinando que a noite e dia tenham a mesma duração. A previsão é que as noites fiquem, cada vez mais curtas, e os dias mais longos. No ciclo da primavera é que surge o elemento energético da madeira. Trata-se do ciclo expansivo, alegre e explosivo. É uma geração criativa de energia, despertando o desejo sexual de procriar. Está associado ao vigor, à juventude, ao crescimento e ao desenvolvimento. A energia da madeira pede livre expressão e espaço para dar vazão à sua expansão. Se bloquearmos seu desenvolvimento, criamos sentimentos de frustração, raiva, ciúme e estagnação.

A primavera lembra a suavidade da inocência, em voltar a ser criança, de ficar alegre por nada, porque a felicidade consiste em ver tudo com olhos encantados, em ter uma eterna primavera. O sol aparece, as andorinhas regressam, nossas roupas vão ficando mais leves e as peças de roupas vão desaparecendo dos nossos corpos. Somos capazes de nos encantar com as sensações de leveza e doçura desta época, respeitando a Natureza para que a caminhada seja cada vez melhor. Nessa época as árvores começam a receber novas folhas, o ar fica mais perfumado e os jardins mais coloridos. A alma das pessoas parece também acompanhar a fragrância e o matiz da estação, abrindo-se para a descoberta de novos amores, renovação de antigos ou revitalização dos atuais. As floreiras se banham de novos encantos, e os jardins se tornam mais convidativos.

13 novembro 2006

No inverno o tempo é de descanso, recolhimento, coberta e abraço

No inverno (que começa no dia 20 de junho e termina no dia 21 de setembro) os dias são mais curtos. As plantas parecem encolher, e os animais se recolhem aos seus abrigos. O frio se faz presente quase que diariamente. As pessoas, mergulhadas em roupas pesadas se encolhem, e restringem seus movimentos. É a estação de procura por ambientes mais aconchegantes, e esse mesmo aconchego parece infiltrar-se na alma das pessoas.

As árvores estão desfolhadas estendendo seus ramos despojados na paisagem cinzenta. Elas perderam suas folhas e seus frutos, sua beleza e riqueza. Ficam solitárias, aparentemente estéreis e mortas. Elas renunciaram à maravilha de suas folhagens e à fecundidade de seus frutos, e o vento já não canta em suas ramagens. São como velhos que perderam a beleza e o vigor, que compreenderam que tudo passa e que só o dever comprido tem valor.

A água é a fase da energia associada ao inverno. O inverno é o tempo do descanso, da quietude, quando a energia é poupada, recolhida, condensada e armazenada. A água é um elemento muito concentrado, contendo um grande potencial, um grande poder esperando para ser liberado. No corpo humano, a água está associada com os fluídos essenciais como os hormônios, os líquidos linfáticos, a medula, as enzimas, todos com grande potencial de energia. Sua cor é o preto ou o azul-noite. A cor que contém todas as outras cores de forma concentrada. Na natureza, água evapora com o excesso de calor, nos seres humanos a energia da água dispersa pelo excesso de estresse e de emoções fortes. A forma de se conservar a energia da água é através da quietude e do repouso, é se manter frio. Afinal, o inverno é a estação da coberta e do abraço.

Aqui no nordeste do Brasil não temos inverno com temperatura baixa por estarmos próximos do equador, temos época das chuvas. Os ipês ficam cobertos de flores, as plantas rasteiras conhecidas como ‘flor de São João’, presentes nas fogueiras de festas juninas. É tempo da orquídea, begônia, lupino e azulzinha.

O tempo está fresco e, por vezes cinzento, é o inverno que chegou. Para aproveitar melhor a estação coloque a roupa que você gosta mais de usar e os sapatos mais agradáveis e vá para fora de casa. Encha de ar os pulmões. Respire profundamente e comece a andar e olhar a paisagem em volta. A caminhada não pede mais do que a colocação de um pé à frente do outro. Pratica-se não importa onde, não importa quando, a sós ou com outros. Ela é de todas as idades e de toda a condição. Ela não exige mais que vontade e uns bons sapatos nos pés. Ao fim de 30 minutos ou talvez mesmo uma hora, de regresso a casa, descontraído, tranqüilo, oxigenado, estica as suas pernas, estira a sua coluna e retoma as suas tarefas. Neste inverno combata o sendentarismo. Ele tem o mesmo significado para o corpo do que a seca tem para a terra. Ele enfraquece. A mobilidade é a vida, a liberdade, o desafogo.

Você sabia que o inverno tem muito a ver com depressão? Para se ter uma idéia, com o início dos dias frios, os casos de depressão chegam a aumentar em até 20% em relação à média normal. Os especialistas batizaram o surto de depressão sazonal, um problema que afeta mais as mulheres do que os homens. A depressão sazonal tem início no inverno, mas pode ocorrer em outras épocas do ano, desde que o clima propicie o seu aparecimento. Os sintomas são típicos da depressão clássica, como desânimo, intensa fadiga, perda de energia, aumento do sono, alteração no apetite, irritabilidade, sonolência e mau-humor.

A explicação para o problema está principalmente nas funções biológicas do organismo. A diminuição de horas diárias à exposição solar pode levar a mudanças neuroquímicas. A intensidade da luz é importante para a secreção, por exemplo, da serotonina, um neurotransmissor que regula o humor, o apetite e o sono. Em alguns casos, a chegada da primavera pode amenizar o sofrimento, mas isso não é regra.

Um dos tratamentos mais conhecidos para a depressão sazonal é a fototerapia, um método que expõe o paciente a uma luz especial ultrabrilhante, a potência varia de acordo com os sintomas, e a aplicação deve ser feita com aparelhos específicos sem emissão de radiação ultravioleta. A depressão sazonal é mais recorrente – por questões obvias – em países mais frios. Imagine que no inverno de Londres a temperatura varia entre 2 e 6 graus! Nessa época do ano o Sol vai dormir logo após as 16 horas. No verão a coisa não melhora muito, os termômetros marcam de 13 a 23 graus em média durante a estação.



10 novembro 2006

Música & Poesia

Herói (Caetano Veloso)

Nasci num lugar que virou favela
cresci num lugar que já era
mas cresci a vera
fiquei gigante, valente, inteligente
por um triz não sou bandido
sempre quis tudo o que desmente esse país
encardido
descobri cedo que o caminho
não era subir num pódio mundial
e virar um rico olímpico e sozinho
mas fomentar aqui o ódio racial
a separação nítida entre as raças
um olho na bíblia, outro na pistola
encher os corações e encher as praças
com meu Guevara e minha coca-cola
não quero jogar bola pra esses ratos
já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos
quero ser negro 100%, americano,
sul-africano, tudo menos o santo
que a brisa do Brasil briga e balança
e no entanto, durante a dança
depois do fim do medo e da esperança
depois de arrebanhar o marginal, a puta
o evangélico e o policial
vi que o meu desenho de mim
é tal e qual
o personagem pra quem eu cria que sempre
olharia
com desdém total
mas não é assim comigo.
é como em plena glória espiritual
que digo:
eu sou o homem cordial
que vim para instaurar a democracia racial
eu sou o homem cordial
que vim para afirmar a democracia racial

eu sou o herói
só Deus e eu sabemos como dói


Canção da moça de dezembro (Ruy Espinheira Filho)



A moça dança comigo
nessa noite de dezembro.
Na sala onde giramos
se alguém mais há não me lembro.

O ondear da moça ondeia
uma melodia ainda
mais doce que a da vitrola
— e uma alegria vinda

dessa doçura me envolve.
Cabe bem no meu abraço
esse perfume com que
vou girando e em que me abraso

em meus quinze anos (a moça
terá, talvez, dezessete
ou dezoito). Como a valsa,
a vida o melhor promete.

E já oferta: esse corpo
a cada instante mais perto.
Ao qual responde meu corpo,
como nunca antes desperto.

E a moça vai-me queimando
em seu hálito, afogando-me
nos cabelos, e nos olhos
luminosos siderando-me!

E eis que, dançando, saímos
além da sala e do tempo.
E dançando prosseguimos
sempre que sopra dezembro,

nos mesmos giros suaves,
nos mesmos ledos enganos:
eu, o antigo rapaz,
e a moça, morta há treze anos.

09 novembro 2006

Nélson de Araújo

Professor, jornalista, teatrólogo, folclorista e escritor. Nélson Correia de Araújo nasceu em Capela, no estado de Sergipe, a 04 de setembro de 1926. Desde pequeno, a curiosidade despontou para epopéias em folhetos de cordel, lendas de botijas e lobisomens, histórias sobre pastores e gente de circo. Rapaz, interessou-se vivamente pelo rádio, sintonizando emissoras de todo o mundo, o que levou-o a desenvolver aprendizado de idiomas estrangeiros. Veio a residir em Salvador na década de 40. Foi casado por três vezes e deixou numerosa prole baiana. Militou durante longos anos como jornalista, revisor, tradutor, fotógrafo documentarista e laboratorista, repórter e articulista em muitos órgãos da imprensa na Bahia e Sergipe e trabalhou como editor, sendo um perfeccionista. Publicou 16 livros.

Em 1956 ele era o factotum da Livraria Progresso Editora, na época a melhor da Bahia. No ano seguinte, publicou o seu primeiro livro, Um Acidente na Estrada e Outras Histórias, tendo recebido o Prêmio Gerhard Meyer Suerdieck. Mais dois anos, veio a lume A Companhia das Índias (teatro). Junto com Milton Santos, criou em 1960 a Coleção Tule, seção editorial da Imprensa Oficial da Bahia para dar apoio ao escritor baiano. Nesse mesmo ano foi convidado para lecionar disciplinas História do Teatro e Expressões Dramáticas do Folclore na Universidade da Bahia. Já em 1965, foi um dos editores da Coleção Imagens e Documentos, e co-fundador da Revista Afro-Ásia, do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia. Data de 1967 sua publicação da Coleção Recôncavo, do Museu Wanderley Pinho.

No ano seguinte, era redator-chefe da Revista Universitas, veículo impresso das muitas unidades da Universidade da Bahia. No final dos anos 70, produziu o selo editorial O Vice-Rey. Foram produzidos nessa década os textos para teatro: Rosarosae, rosaerosa e Auto do Tempo e da Fé, uma casa em seu nome se ergueu, este último para as comemorações do tricentenário da Arquidiocese da Bahia. Como consequência de quase duas décadas de ensino acadêmico, escreveu, em 1977, Alguns Aspectos do Teatro no Brasil nos séculos XVIII e XIX e, em 1978, sua principal obra universitária, História do Teatro, que foram acompanhadas no ano seguinte, por Duas Formas de Teatro Popular do Recôncavo Baiano e O Baile Pastoril na Bahia.

Como diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, em 1980, promoveu eventos acadêmicos marcantes, com a participação da comunidade negra local. Publicou pela Nova Renascença, de Porto, Portugal, A Percepção da Realidade Africana no Brasil e, em 1981, publicou por La Nacion, de Buenos Aires, Argentina, La Percepcion de la Realidade Africana em el Brasil, e criou a série de edições Ensaio/Pesquisa. Em 1982 editou os livros Entre Melpômene e Clio (ensaios) e o Teatro do Pobre (pesquisa-ensaio). Em 1982 recebeu o Troféu Martim Gonçalves, como prêmio pelo conjunto de suas obras sobre teatro. Nos próximos cinco anos, editou as suas novelas O Império do Divino visto pelos Olhos de Pisa-Mansinho, Vida, Paixão e Morte Republicana de Dom Ramon Fernandiz y Fernandez e Aventuras de um Caçador de Arcas em Terra, Mar e Sonho, depois reunidas no volume Três Novelas do Povo Baiano. Com data de 1988, saiu Folclore e Política. Em 1986 conseguiu que fosse editado o primeiro volume da trilogia Pequenos Mundos.

Em 1988 foi lançado o segundo volume, e não conseguiu meios para publicar o terceiro volume, o que só aconteceu em 1996. Trata-se de uma extensa investigação de campo sobre as formas populares de espetáculos e o folclore em todo o interior da Bahia, mapeando as regiões geo-culturais do Estado. Um rastreamento e levantamento documental das manifestações vivas, ainda existentes, oriundas dos antigos complexos cultural-civilizatórios no território baiano. Na busca do registro e da análise das expressões coletivas do povo humilde, de modo especial o “teatro do pobre” e o “drama circense”, criou o Grupo de Estudos do Teatro Popular, com o qual efetuou pesquisas nas várias regiões do estado da Bahia.

Teve também participação em produções áudio-visuais como editor do disco Som e Voz da Bahia (1968); direção dos documentários A Baía de Tinharé (1973), Garimpos e Garimpeiros da Bahia (1974), Frederico Edelweiss (1976, ao lado de Getúlio Vargas Menezes) e O Último Major (1971). Recebeu, em 1969, menção honrosa pela foto Carroussel, no II Salão Baiano de Fotografia Contemporânea. Trabalhou na redação do jornal A Tarde, onde foi tradutor de telegramas e atuou também como colaborador. Recebeu o título de Cidadão da Cidade do Salvador em 1985, concedido pela Câmara Municipal. Em 1990, surgiram as peças Joana Angélica, Um Homem Maduro para Morrer e A Guerra de Gabali, juntados no volume Quatro Textos para Encenação. Também deste ano é A História de Duas Famílias. Em 1991, quatrocentos anos depois da passagem do Visitador do Santo Ofício pelas terras baianas, inspirou-se, escreveu e publicou sua maior obra de ficção, 1591 - A Santa Inquisição na Bahia, e também mais um livro, Oliveira dos Campinhos, passado e presente de um arraial do Recôncavo. Em 1992 produziu O Amor Amargo de Belira e Roque, e começou a sua derradeira obra, Os Sinos do Pilar, cujos originais preparou pouco antes de falecer, e que aguarda publicação pela Editora da UFBA. Em 1997 o Instituto Baiano do Livro lançou o volume de estréia da série Conversa de Editor, intitulado Editoração, Ato de Amor ao Livro, em que divulga a palestra que Nélson de Araújo proferiu na abertura do I Encontro de Editoração da Bahia, em setembro de 1990.

Após longo período de enfermidade, Nélson Araújo faleceu aos 67 anos de idade no dia 07 de abril de 1993 e foi sepultado no Cemitério do Campo Santo. O seu funeral, que saiu da Escola de Teatro da UFBA para o Cemitério do Campo Santo, foi cercado por muitas demonstrações do elevado conceito que sempre teve no mundo intelectual e na imprensa.

08 novembro 2006

De olhos bem abertos

Olhar em italiano (guardare) e em francês (regarder) significa cuidar, zelar, guardar, ou seja, ações que trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito: olhar por uma criança, olhar por um trabalho. Já no sentido de vigilância: estar de olhar, ficar de olho. A pessoa pode ver com bons olhos (esperança) ou mau olhado que seca as plantas (inveja, do latim invidia que significa mau olhado – in-contra, ved-tema de visão).

Há diversos modos de olhar com que a antropologia popular descreve. Se há sinais de ganância o povo diz olho gordo. Se o desejo é voraz tem olho comprido, se é parado (olho de peixe morto), agudo (olho de lince), infiel (olho de gato), tímido (olho de coelho), cruel (olho de cobra), sensual (olho de macaca).

Detetive, em inglês, se diz private eye, olhar que espia, espreita e espiona. Há uma crença perceptiva de que “o pior cego é aquele que não quer ver”, pois as coisas aí estão, visíveis. O olhar sempre foi considerado perigoso: as filhas e a mulher de Ló, transformadas em estátuas de sal. Orfeu perdeu Eurídice. Narciso perdeu de si mesmo. Édipo cego para ver o que, vidente, não podia enxergar. Perseu defendendo-se da Medusa forçando-a a olhar-se. Os índios, recusavam espelhos, pois sabiam que a imagem refletida é sua própria alma e que a perderão se nela depositarem o olhar.

Olhos nos olhos, quando há sinceridade, o olhar expõe no e ao visível nosso íntimo e o de outrem. Olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. A cegueira, disse Sócrates no Fédon, é a perda do olho da mente. Olhar em direção ao passado, na memória. A educação dos sentidos sempre fascinou os filósofos enciclopedistas. Para eles, os sentidos não educados são incapazes de perceber o mundo. Através da história o homem aprendeu a ver, criou modos de ver. O Barroco é um dos modos de ver a realidade, assim como o Expressionismo, Modernismo etc.

No mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia, dizem alguns autores. Os sentidos, como as paixões, perturbam a alma, e, sem esperança, conduzem ao vício e à loucura. O filósofo Platão nos convida a desconfiar da percepção. Já Epicuro, os sentidos são os mensageiros do conhecimento. E Merleau-Ponty diz que “todo o saber se instala nos horizontes abertos pela percepção”.

É a aptidão visual para o discernimento que leva Horacio, na Arte Poética, a afirmar que “a mente é movida mais lentamente pelo ouvido do que pelo olho, que faz as coisas parecerem mais claras”. Os olhos são espelhos do mundo, janela da alma, escreveu Leonardo da Vinci. Giordano Bruno disse que “a vista é o mais espiritual de todos os sentidos”. Já o padre Antônio Vieira disse que nos olhos estão compreendidos todos os sentidos. E Hegel acreditava no olho do espírito.

“A vida que ninguém vê” da jornalista Eliane Brum é um bom exemplo do que é capaz o poder do olhar e de um bom texto para que se possa tocar o leitor. No livro, Eliane conta a história de pessoas normalmente tidas como parias, ou invisíveis. São personagens do nosso cotidiano, mas fingimos que não os vemos, ou somos levados a achar que sua condição é natural. Com grande sensibilidade, Eliane descobre o tema da grande reportagem mudando apenas o ângulo, o foco, ou, numa palavra, o olhar. No texto que encerra o livro, “O olhar insubordinado”, ela faz sua profissão de fé: “Quem consegue olhar para a própria vida com generosidade torna-se capaz de alcançar a vida do outro”, “Olhar é um exercício cotidiano de resistência”, “Olhar dá medo porque é risco”.

Contrariando o último filme do cineasta Stanley Kubrick, “De Olhos Bem Fechados/Eyes Wide Shut”, abra bem os olhos, ou melhor, faça uma visita a reserva biológica Abrolhos, área destinada exclusivamente à preservação da fauna e flora. O nome Abrolhos provém da advertência Abra os Olhos, contida em antigas cartas náuticas portuguesas, aos navegantes daquela região, devido aos perigos que ela oferece dada a grande quantidade de recifes submersos. Distante aproximadamente de 70 Km da costa brasileira na região sul do estado da Bahia, é composto por um grupo de recifes de corais, ilhas vulcânicas e a plataforma continental dentro de seus limites (um polígono e um quadrilátero de interdição, visualizados nas cartas náuticas). O complexo recifal mais importante do Atlântico Sul, sabe, como poucos, enfeitiçar turistas do mundo inteiro encantando-os com seus infinitos recursos naturais.

Como o poeta Fernando Pessoa, que em seu leito de morte, segundo relata o biógrafo João Gaspar Simões, profere suas últimas palavras: “Dá-me os óculos!”. E Goethe em suas palavras finais disse: “Mais luz!”. E para encerrar essa crônica do olhar, nada melhor do que rever a composição “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque: “Quando você me deixou, meu bem/Me disse pra ser feliz e passar bem/Quis morrer de ciúme/Quase enlouqueci/Mas depois como era de costume, obedeci//Quando você me quiser rever/Já vai me encontrar refeita, pode crer//Olhos nos olhos/Quero ver o que você faz/Ao sentir que sem você eu passo bem demais//E que venho até remoçando/Me pego cantando sem mais nem porque//E tantas águas rolaram/Tantos homens me amaram bem mais e melhor que você//Quando talvez precisar me mim/Você sabe que a casa é sempre sua, venha sim//Olhos nos olhos/Quero ver o que você diz/Quero ver como suporta me ver tão feliz”




07 novembro 2006

É tempo de Ruy Espinheira Filho

Numa manhã de novembro, em Barra de Jacuípe, deitado na rede, contemplo os versos de Ruy Espinheira Filho. E que versos, lindos, livres a passear pelo meu corpo, minha mente e transcender por todo o ambiente. Não há como resistir. As pulsações de seus poemas, sereno e profundo, transparente como águas do rio que passa e deixa recordações. Cada palavra tem seu tempo certo, fragmentos do passado tão presente, constante.

“Elegia de Agosto e outros poemas” (edição Bertrand Brasil) é de uma leveza melancólica que arrepia. “Canção Matinal”, por exemplo, produz prazer, reflexão: “Acorda bem cedo o homem/da casa de telha-vã/e abre janela e porta/como se abrisse a manhã.//E eis que a vida não é mais/nem triste, nem só, nem vã./É doce: cheira a goiaba/e brilha como romã//orvalhada. E ele caminha,/o homem, com passos de lã/para em nada perturbar/a quietude da manhã.//Já não há mágoas de perdas/nem angústias de amanhã,/pois a alma que há na calma/entre a goiaba e a romã//é a própria alma do homem/da casa de telha-vã,/que declara a noite morta/e acende em si a manhã”.

E o que dizer da beleza de “Soneto da Negra”? Faz fluir como sonoridade, feito de emoção, memória pessoal, impressão digital: “A cor da suavidade é que a modula./Nela se abisma a luz e se revela/incapaz de alterar nada daquela/penumbra que a atrai, absorve, anula.//Nessa paisagem que coleia, ondula/como um rio, ou o mar (e é dela e ela),/um vento violento me desvela/um animal que me trucida e ulula.//O tom da suavidade não se altera,/eleva um canto cálido e me diz/que são garras de amor, e é bela a fera.//E assim, em carne rubra e cicatriz,/entrego à cor profunda que me espera/estes despojos em que sou feliz”.

E naquele amanhecer de novembro, “os deuses estavam felizes e sopraram suavidade especial sobre a manhã”. Os versos de Ruy transpiravam, ascendiam. Estava saudoso de ritmo e de verso. “Chegar, assim, a um dia/como este, quem diria?//Ninguém, que não poderia/alguém saber deste dia.//Nem eu, que me prometia/varandas de calmaria//se a uma hora tardia/da vida chegasse um dia.//No entanto, eis-me neste dia,/o qual jamais urdiria//nem em pesadelos; dia/ardendo contra a alegria,//a paz, o amor, a poesia,/o corpo, a esperança; dia//como nenhum: pedraria/fulgurante de agonia” (Este dia).

E em sua canção da alma meditativa o poeta escreve: “Sopra o vento, sopra o tempo/- e o que se medita a alma?/Não diz. Mas, seja o que for,/será, como tudo, nada”. “Amor antigo, de quando/nem me sabia te amando//Sabia só que se abria/o dia quando te via//e alguma coisa doía/com uma dor de alegria//- ou como feliz desgosto/aceso à luz do teu rosto” (trecho de Canção do Amor Antigo). Dessa forma o poeta da memória cria um mundo de sentimentos ternos e melancólicos sustentado em suas lembranças e sonhos. Versos escritos de 1996 a 2004, numa consistente construção lírica, de peito aberto e língua franca. Dividida em duas partes, “Elegia de agosto” e “A cidade e os sonhos”, o poeta retorna ao passado e ilumina. Nessa abertura de temporalidade ele freqüenta o espaço de alma e sonho, de memória.

“O silêncio sonha nas telhas” abre o poema “Insônia” onde o poeta tenta em vão dormir e mostra sua natureza frágil e perene, restando apenas, memórias: “e guardo/como vêem/memórias/que o tempo faz cada vez mais fundas”. E é nessa memória que o poeta encontra a fonte de sua poesia. E registra: “depois ainda escreve/mais; escreve (e até/escreve que escreve)//para que a vida/seja um pouco menos/obscura e breve” (Epígrafe). Assim o homem existe porque existe como memória (“e por isso escrevo estas palavras que parecem/fáceis e indiferentes mas são/difíceis e dolorosas”).

Entre um verso e outro, voltado para o humano, vividos na alma, interligando tempos, sentimentos, o poeta transporta suas experiências existenciais. E recorda amigos, mulheres, parentes e os momentos marcantes. E como escreveu Miguel Sanches Neto na orelha do livro, “Ruy Espinheira encontra no tempo morto os símbolos da permanência. Somente olhando para o que acabou, podemos descobrir aquilo que sobrevive à morte. Na verdade, cantar o presente é que nos deixa confundidos, pois não conseguimos distinguir no agora aquilo que guarda possibilidades de transcendência”.

A intensidade poética dos versos de “A Musa” e “Nome” imprime em toda sua obra. E mesmo navegando nas águas do rio heraclitiano em corrida permanente, suas águas aparecem represadas seja em cacimba, açude ou moringa. Água em repouso, tranqüila, transparente. “Cai a tarde, indiferente,/sobre os muros e o jardim./Nunca me senti tão vasto/na história contada em mim” (Epílogo). E assim ficam os versos de Ruy, naquela manhã de novembro, um feriado de finados, em minha memória. Versos impregnados de sonoridade, lirismo, saudade, verdade. (Gutemberg Cruz).


06 novembro 2006

Cecília Meireles e a reinvenção da vida


Há 105 anos, no dia 07 de novembro, nascia no Rio de Janeiro a grande poetisa brasileira Cecília Meireles. Ela surgiu na literatura sob o signo do Parnasianismo. Eram dos últimos anos da adolescência os sonetos reunidos em 1919 num livro, “Espectros”, que seria banido da obra ceciliana já a partir do livro seguinte. Houve silêncio da crítica a respeito de suas estréia. O motivo: ela cometia a temeridade de viajar contra a corrente estética e a visão social predominantes naqueles agitados anos. Começara parnasiana, numa hora em quer o Parnasianismo agonizava. Derivara para o Neo-Simbolismo justamente quando se espraiava a onda do Modernismo.

Filha de um modesto funcionário de banco e de uma professora municipal, Cecília destacou-se nos estudos desde os primeiros anos e tornou-se professora tempos depois. Mas seus interesses estavam voltados pelo estudo de línguas e música e pela cultura oriental. Ela não conheceu o pai (que morreu muito jovem, três meses antes do seu nascimento), e ficou órfã de mãe aos três anos de idade. Foi então entregue aos cuidados da avó materna, D.Jacinta, natural dos Açores, que emigrou cedo para o Brasil, mas manteve a alma sempre fiel ao arquipélago distante, transmitindo à neta muito desse legado.

Cecília cresceu em estreito contato com a cultura da saudade, a nostalgia, o apego às tradições religiosas e à imagem das ilhas como uma espécie de paraíso terrestre: exílio, solidão e misticismo. A música, o canto e a literatura disputavam a vocação da adolescente, que rapidamente se decidiu pela última.

Os livros “Nunca mais... e Poemas dos Poemas” (1923) é de inspiração neo-simbolista e “Baladas para El-Rei” (1925), marcada pela mística ansiedade. Em 1930, Cecília começa a escrever em jornais do Rio de Janeiro sobre educação, folclore e literatura infantil. Em fins de 1934, visita Portugal, em cuja tradição se adentram suas raízes. As novas aquisições da arte de Cecília Meireles se concentram na coletânea de “Viagem”, que em 1938 é distinguida com o prêmio da Academia Brasileira de Letras. A premiação da obra era de fato de extrema singularidade, pois pela primeira vez se concedia a um artista de corrente renovadora uma láurea acadêmica. Modernidade, intenção renovadora, universalidade, mas, ao mesmo tempo, tradição, equilíbrio, casticismo: assim se marcava a voz diferente que se erguera na poesia brasileira.

Transitando do mundo interior para o mundo das concreções, abriam-se os olhos do poeta para novas impressões que se transmudavam em canto: daí a busca da musicalidade, a variação melódica observada de poema para poema, como este “Motivo”: “Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa/Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta//Irmão das coisas fugidias,/não sinto gozo nem tormento./Atravesso noites e dias/no vento.//Se desmorono ou se edifico,/se permaneço ou me desfaço,/-não sei, não sei. Não sei se fico/ou passo.//Sei que canto. E a canção é tudo./Tem sangue eterno a asa ritmada./E se um dia sei que estarei mudo:/- mas nada”.

De 1939 a 49, publicam-se os quatro livros que enfeixam as linhas típicas da poesia ciciliana: “Viagem” (39), “Vaga Música” (42), “Mar Absoluto e Outros Poemas” (45) e “Retrato Natural” (49). Elementos pré-modernistas e manifestações neo-simbolistas estão nesses livros. Em 1952 ela retomou o verso livre em “Doze Noturnos da Holanda”. Em 53, “Poemas Escritos na Índia”, que só publicariam nove anos mais tarde. Ainda em 53, lança “Romanceiro da Inconfidência”, considerada sua obra mais depurada e madura. O lírico-abstrato veio com “Canções” (56) e “Metal Rosicler” (60). A abstração da linguagem e a insistente indagação estão presentes em “Solombra”.

As viagens pelo mundo resultaram em belíssimos poemas de circunstâncias. É nos anos 40/50 que ela atinge a maturidade literária. Na sua poesia encontram-se a habilidade artesanal, o domínio das formas e sonoridades e a especial predileção pelo introspectivo e as atmosferas vagas, etéreas. A atmosfera de sua obra é de serenidade, silêncio, suavidade e alegria, sempre em comunhão com a natureza, por retratar as coisas comuns, e essa característica múltipla manifesta-se num momento mágico.

Injustiçada em vida, teve, após seu desaparecimento (em 09 de novembro de 1964), o mérito reconhecimento pelo conjunto de sua obra, quando lhe foi atribuída pela Academia Brasileira de Letras o Prêmio Machado de Assis, em 1965. A partir da década de 70, seus poemas foram musicados por cantores de renome nacional. Hoje, mesmo sendo considerada a maior poeta na língua portuguesa, sua poetisa já não exerce a mesma atração, especialmente nos mais jovens. Mesmo assim ninguém pode negar o valor e o brilho de sua obra. “O pensamento é triste, o amor insuficiente;/a vida, a vida, a vida só é possível/reinventada”.

01 novembro 2006

Sedução do mito

O drama do mito tem no herói, desde tempos imemoráveis, o personagem principal. É impossível pensar a mitologia sem o heroísmo, porque se entrelaçam e se confundem naquilo que podemos definir como transcendência do Eu. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior do que ele mesmo. Mas é bom lembrar essa frase: “Basta um instante para fazer um herói, mas precisa-se de uma vida inteira para fazer um homem do bem”. Os deuses gregos nasceram enraizados em reações humanas diante da vida. Seres carnais, seu comportamento ainda sobrevive na cultura moderna e permanecem vivos exatamente porque são mitos criados à semelhança de seu criador: o homem.

No princípio, era o Caos. O Caos engendrou o Érebro, as trevas infernais, a noite, o dia e o éter, o céu superior. Depois veio Géia, a Terra, e Eros, o Amor. De Géia, nasceu Urano, o céu. E de Géia e Urano surgiu a primeira geração divina da mitologia grega. Nunca se viu mitologia tão humana como a grega. Tão humana que os deuses frequentemente desciam do Olimpo para se intrometer na vida dos mortais, quando não para se entregar a eles.

Hermes, por exemplo, capaz de atravessar o espaço repentinamente, graças às suas sandálias aladas, é o Superman de hoje (ou o Flash, o homem relâmpago, para ser mais preciso). E Afrodite, exuberante, que encarna a fecundidade, mas também o erotismo, um tipo de Marilyn Monroe ou Catherine Deneuve do cinema. A mitologia era a projeção, na tela do céu, da imaginação, dos desejos e dos temores dos gregos. Os combates do Olimpo refletiam fielmente as rivalidade reais entre as cidades. Segundo as lendas, cada cidade possuía seu deus fundador. Zeus (senhor do raio e do trovão) é originário de Creta; Dionísio (deus da força vital), da Trácia; Afrodite (deusa do amor), de Rodes; Atemis (deus da caça), de Esparta. Os habitantes dessas cidades consideravam os deuses como seus longínquos ancestrais. Assim deuses e humanos são quase a mesma família.

A figura do herói fascina o cidadão comum. Com ele nos transportamos para um mundo mágico, onde as soluções dependem desse ser encantado. Na Antiguidade, o herói era cantado em prosa e verso (Ilíada, Odisséia). A mitologia grega era povoada de herói (Aquiles, Heracles, Ulisses). Mas todas as culturas tiveram ou têm os seus heróis e seu significado é modelo exemplar para a sua comunidade. E mesmo na mitologia, o herói nem sempre é perfeito. Heracles matou os próprios filhos. Teseu abandonou Ariadne que o havia ajudada a percorrer o Labirinto.

Há heróis da pátria (Tiradentes, Bolívar, Bonaparte) que merecem um lugar no panteão, há outros que são produtos de biógrafos e historiadores. São alguns dos homens públicos que acabam recebendo coroa de louros nas páginas da História porque tiveram enriquecimento ilícito de parentes ou propina das empreiteiras. É do poeta Jean Cocteau esta convicção: “A História prefere a Mitologia, porque a História parte da verdade e ruma em direção à mentira; a Mitologia parte da mentira e se aproxima da verdade”. E o que dizer do anti-herói? O sem nenhum caráter Macunaíma, de Mário de Andrade, ou do herói bandido como Robin Hood nos bosques de Sherwood, Giuliano nas montanhas da Sicília ou Lúcio Flávio nos morros do Rio. Tem ainda os heróis trágicos, os mártins como Saco e Vanzetti do movimento comunista, Joana D´Arc, Maria Quitera entre outros.

Sabemos apenas que nos dias de hoje os heróis mitológicos foram substituídos pelos heróis da moderna ficção: cinema, televisão, histórias em quadrinhos e videogame. Os do cinema são mais perenes (por graças aos mitos criados pelo celulóide que a arte cinematográfica construiu a ponto que faz com que o mundo bidimensional da tela e o tridimensional do espectador entram em confluência), enquanto os da TV são mais voláteis, têm vida curta. Gary Cooper, Errol Flynn, Greta Garbo, Claudia Cardinale, Brigitte Bardot encantaram gerações e gerações, agora os tempos são outros e a TV vai competir com o cinema mas sem a mesma capacidade de sedimentar a figura do herói. A TV fabrica mitos e os devora. Já nas histórias em quadrinhos os super-heróis continuam imbatíveis. Abrangendo um público que vai da criança ao adulto, o culto é de encantamento. Por isso o cinema e a TV estão sempre aproximando os mitos dos quadrinhos para permanecerem atuais e atingir o grande público.