29 novembro 2022

Polêmica em torno do cartunista George Herriman

 

Por mais de três décadas (1913 e 1944) o norte-americano George Herriman (1880-1944) publicou Krazy Kat com uma fórmula bem simples: o rato Ignatz Mouse comprava tijolos apenas para arremessá-los na cabeça do/a inocente Krazy Kat. O Guarda Pupp, um cachorro, procurava evitar a agressão ou, quando não conseguia, punia Ignatz, deixando-o alguns dias na cadeia. Há uma mistura de surrealismo com linguagem poética.

 

Foi a primeira história em quadrinhos a ser reconhecida como obra de arte, sendo criticada por Gibert Seldes, um notável crítico de arte da época, escreveu um longo artigo para as tiras em 1924, chamando-lhe "a mais engraçada e fantástica e satisfatória obra de arte produzida na América hoje" (SELDES, 1924, p. 231). O famoso poeta E.E.Cummings, como outro admirador de Herriman, escreveu a introdução à primeira edição da banda desenhada na forma de livro. Quando o autor morreu, ninguém conseguiu continuar o trabalho.

 


Krazy Kat é um curioso triângulo amoroso entre o seu personagem-título, um despreocupado e inocente gato de gênero indeterminado (referido tanto como macho, quanto como fêmea); o antagonista do gato, o rato Ignatz; e o protetor cão policial, o oficial Bull Pupp. Krazy nutre um amor não correspondido pelo rato; mas, Ignatz despreza Krazy e constantemente planeja atirar um tijolo à cabeça de Krazy, o que Krazy interpreta como um sinal de afecto. O oficial Pupp, como o defensor da lei e da ordem no condado de Coconino, toma como sua firme missão interferir nos planos de lançamento de tijolos de Ignatz e tranca o rato na cadeia do condado.

 


Contudo, existe outro aspecto pouco comentado. O primeiro gênio reconhecido dos quadrinhos era um homem negro. Isso, porém, só veio à tona em 1971. Nascido mulato em Nova Orleães em 1880, mudou-se para Los Angeles, onde inventou que era descendente de gregos para justificar a sua aparência e conseguiu "passar" a vida inteira como "branco". O crítico Rafael Campos Rocha comentou: E que um mestiço da Louisiana, no início do século XX, publique, nos maiores jornais de seu país, histórias de um personagem hermafrodita negro, encharcado da cultura mestiça do sul, amante da sua presa e amado pelo braço branco e opressor da sociedade, e ainda adornado com as perigosas iniciais KK, é uma lição de malemolência difícil de ser digerida.

 

Como ele foi um dos primeiros desenhistas negros do meio, muitos estudiosos identificarem neste fato a razão da ambigüidade de sua protagonista (não se sabe se Krazy é gato ou gata). Outros insistem que, não por acaso, ele a retratou como uma gata negra. Os tijolos que lhe são atirados personificariam, então, toda uma revolta contra os preconceitos e perseguições raciais. A idéia tem algum fundamente, mas uma explicação dessas restringiria demais a riqueza de Krazy Kat.

 


Krazy Kat permite camadas e camadas de interpretações, e já gerou, ao longo das décadas, diversas discussões. Para começar há a questão do amor entre espécies diferentes e, ainda por cima, vistas como inimigas pelo senso comum. Some a isso o fato de nunca ficar clara a sexualidade da gata. Em algumas HQs, Herriman se refere à Krazy Kat como ela, em outras como ele (até ficamos com dúvida aqui se usávamos a crase ou não). Ou seja, não sabemos o gênero dos personagens ou suas orientações sexuais. E estamos falando do início do século XX! Era tudo apresentado de forma tão inocente que algo assim passou por qualquer censura que poderia existir na conservadora sociedade dos EUA.

 

Será que esse triângulo amoroso é uma metáfora para a vida? De como ficamos correndo atrás de algo ou alguém mesmo sabendo ser impossível? Ou será uma poética forma de se discutir política, como Herriman já tinha feito no Major Ozone, com cada um dos três personagens representando tendências ou mecanismos da sociedade?

 


Ou será tudo um jeito do artista falar da sua própria vida e a questão da identidade que precisou esconder? Leia Krazy Kat e decida. Como ensinou Umberto Eco, a obra é aberta. Eco, aliás, era fá declarado de Krazy Kat, obviamente. Krazy Kat era a leitura predileta de pessoas como Chaplin, Picasso e Walt Disney. Quem deseja conhecer a obra a editora  Skript publicou recentemente no Brasil uma edição de luxo cobrindo os anos 1916/1918.

 

O crítico Ciro I. Marcondes em seu blog Raio Laser escreveu: “O que eu vejo nos quadrinhos que se difere das outras formas de expressão? É uma pergunta dura, cheia de armadilhas, mas seu aspecto capcioso está, na verdade, correto: o quadrinho é a forma de arte que nos permite abolir uma linha distintiva entre as subjetividades infantil, adolescente e adulta. Permite uma formação cíclica, nietzschiana, de uma ética humana sem fronteiras disciplinares, institucionais. Charlie Brown, Mônica, Calvin, Mafalda: são crianças que rompem estes muros que nos formatam como `cidadãos`. E Crumb, Alan Moore, Al Capp, etc., são crianças grandes que imaginam e escrevem para nos alertar disso. E assim falou Zaratustra”.