15 julho 2016

Poesia, poesia, poesia



Definição do Amor (Felix Lope de Vega - 1562-1635)
           
Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso,
áspero, terno, liberal, esquivo,

alentado, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e valoroso;

não ver, fora do bem, centro e repouso,
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
enfadado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;

furtar o rosto ao claro desengano,
beber veneno qual licor suave,
esquecer o proveito, amar o dano;

acreditar que o céu no inferno cabe,
doar sua vida e alma a um desengano,
isto é amor; quem o provou bem sabe.
           


Restos (Ildásio Tavares)

Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.

Há um resto de mim em toda parte
Que nunca pude ser inteiramente.


Canção matinal (Ruy Espinheira Filho)

Acorda bem cedo o homem
da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.

E eis que a vida não é mais
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã

orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.

Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã

é a própria alma do homem
da casa de telha-vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.


Canção de depois de tanto (Ruy Espinheira Filho)

Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.

Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.

Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.

Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.


Um deus também é o vento (Paulo Leminski)

um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
árvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zarpar

me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar

a este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro

nele cresça
até virar vendaval

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