30 setembro 2008

Roberto Mendes, entre a fonte e a ponte


O violonista, compositor, intérprete Roberto Mendes é a mais completa tradução do Recôncavo. Desde criança, com os irmãos, aprendia a cultuar o violão, e na sua terra Santo Amaro da Purificação conheceu os músicos Dilermando Reis e Dino Lopes. “Foram eles que me informaram o que era a chula e suas variantes”, confessou. “Eu sou uma pessoa privilegiada porque conhecer a chula na fonte e não através de discos ou de rádio. Foi através de seus criadores, pessoas que me ensinaram tudo o que sei. Eu não sou a fonte, só faço a ponte. Quisera eu ser um chuleiro, pois isto é mais nobre. O que sei bem é copiar”, brinca, modestamente.

No seu primeiro disco, Flama, ele reinventa o estilo em três canções: “Esse sonho vai dar” (chula-de-estiva, estilo também conhecido como samba amarrado), “Minha terra” e “Tudo de melhor” (uma fusão de chula com candombe, gênero musical procedente do Uruguai). Flama abriu novas possibilidades para a música popular brasileira, reciclando e resgatando gêneros esquecidos. Recria a cultura popular com suas idéias inventivas e simples, sem erudição.

Seu segundo disco, Matriz, o artista passeia pelo candombe (Salvador daqui), o ritmo da Guiana Francesa, cavaxá (Humana), servilhana (Doce esperança), chulas (Caribe, calibre amor, Chula de lá). E o santo-amarense não parou mais, resgatando cada vez mais o gênero musical muito cultuado no recôncavo baiano. Não se sabe por que ele foi abandonado pelos criadores da região, ficando relegado a uma manifestação folclórica. E Roberto Mendes cada vez mais compondo muitas chulas.
Mendes começou a vida artística profissional em 1976, participando de festivais universitários e oficinas musicais com o companheiro Jorge Portugal. Pouco depois, ainda com Portugal e mais Raimundo Sodré, Luciano Lima, Carlinhos Profeta, Arthur Dantas, Benza e Rubem Dantas, formou o Sangue e Raça, grupo inovador que trazia propostas miscigenadoras de vários ritmos e estilos musicais. Com o Sangue e Raça, pode conhecer, por dentro, o meio artístico e excursionar por todo o país.
Com a separação do grupo provocado pela saída de Raimundo Sodré, Mendes e Portugal retornam para Salvador, onde passaram a se dedicar às suas carreiras específicas de professor (Mendes ensina Matemática). Esta fase dura até que uma nova convocação de Sodré para que o acompanhasse na música “A Massa” e obrigasse a retornar ao Rio, enfrentando uma verdadeira maratona de festivais. Com a boa classificação da música num dos eventos patrocinados pela Globo, Sodré parte para o disco e Mendes o acompanha em “Coisa de Nego” e “Beijo Moreno”, ambos com bons resultados.
A partir das gravações com Sodré, Roberto encoraja-se a abandonar definitivamente a matemática pela música. Passa a acreditar mais nas suas possibilidades artísticas e investe em apresentações individuais, ou em dupla com Jorge Portugal, além de participar como músico acompanhante de discos de outros artistas. Em 1988, ainda com Portugal, concorre ao Festival da Globo com “Caribe, Calibre Amor”, retomando as influências da música caribenha praticamente abandonada por músicos de sua geração.
A grande contribuição de Roberto Mendes à música popular contemporânea foi o resgate de um dos gêneros mais populares e cultuados no recôncavo baiano: a chula. Estilo híbrido de harmonia européia e ritmo originário do batuque africano, a chula ficou restrito à tradição. Ponte entre a tradição e a modernidade, entre o passado e o presente, resgatando gêneros esquecidos, ampliando o painel da música regionalista ou misturando-a com estilo contemporâneo, o compositor e violonista Roberto Mendes é um dos mais inventivos músicos baiano da nova geração. Aplicado aluno dos ensinamentos tropicalistas do conterrâneo Cartão Veloso e discípulo confesso do eclético violão de Gilberto Gil, Mendes revela-se um músico-síntese, cabeça de ponta de um movimento em crescente depuração.
Desde 1985, Maria Bethânia vem registrando em seus trabalhos anuais músicas de Roberto Mendes e seus parceiros Jorge Portugal e Mabel Veloso. “Esse Sonho vai Dar” está no disco A Beira e o Mar; “Filosofia Pura” e “Lua” no disco Ciclo; “Iorubahia”, em Dezembros; “Ofá” em Maria, onde Bethânia funde o toque afro da canção de Mendes com os vôos vocais do grupo sul-africano Lady Smith Black Mambazo, “Vida Vã”, “Búzios” no disco Olho D´Água. E mais recentemente “Memória das Águas” e “Francisco, Francisco” no disco Pirata, e “Beira-mar” no premiado Mar de Sophia. Sarajane, Daniela Mercury, Beijo, Margareth Menezes e muitos outros artistas já gravaram suas composições mas quem acreditou há um bom tempo na criatividade de Mendes e continua levando fé é Maria Bethânia.
Assim é Roberto Mendes, de uma nobreza que encanta, “envolto em onda ancestral, o artista absorve e traduz em sons”, a matriz, o universo cultural que lhe deu régua e compasso. Pesquisador ritmo muito comprometido com a riqueza sonora e cultural de sua região, recôncavo baiano, Roberto Mendes confessa-se um “chuleiro”, aquele que toca e ama a chula, um ritmo primo-irmão do samba angolano, pai do nosso samba. O apego à chula não impede Roberto de mostrar sua fina sensualidade e talento como compositor em outros gêneros, como os influenciados pela cultura ibérica no Brasil,. A bossa nova e o romantismo melódico herdado de Caetano Veloso, seu grande amigo.
“Eu estou mais para a rebeldia do tribal do que para o clássico. Onde tiver um tambor e qualquer tradução irresponsável que o conceitue o minimalismo, é desse lado que fico”, definiu. E numa apresentação o parceiro Jorge Portugal afirmou que os olhos de Mendes estavam cravados no rosto da sua terá, Santo Amaro, e através desses olhos que ele vê o mundo.

29 setembro 2008

Sonho navarriano

Desde o início, a trajetória do cineasta Edgard Navarro tem sido marcada pela ousadia com que trata os temas polêmicos que aborda. Suas primeiras incursões do período em que o Super 8 estava em voga, inscrevendo-se nesta fase a trilogia freudiana, na qual mesclam-se irreverência, escatologia, agressividade e humor: “Alice no País das Mil Novilhas” (o oral), “O Rei do Cagaço” (anal) e “Exposed” (fálico). Trata-se de uma explosão de signos pródiga e eloquente, em que anuncia, já então, o estilo irrequieto que tantas críticas e prêmios irá merecer.
No final da década de 80 ele lança o seu média-metragem “O Superoutro”, arrebatando os principais prêmios do Festival de Gramado. Em novembro de 2006 o primeiro longa-metragem de Navarro arrebata seis candangos (filme, diretor, ator coadjuvante, atriz, atriz coadjuvante e roteiro) e o prêmio da crítica no 38º Festival de Brasília, o mais importante do país. “Eu me lembro” entrou para a história da cinematografia brasileira. O filme de atmosfera nostálgica faz uma radiografia da Bahia dos anos 50 e acompanha as profundas transformações no país e no mundo e seus ecos na provinciana capital da Bahia.
Em suas reminiscência, Navarro buscou inspiração na obra de Fellini mas imprimiu sua identidade numa trama que se desenrola em duas décadas com as angústias, dores e delícias de sua geração. Na história de Guiga (alter ego de Navarro), filho caçula de uma família de classe média de Salvador dos anos 50, até o fim do período universitário dos anos 70, vem os novos desafios que se apresentam para esse jovem. Os questionamentos e inquietações desse jovem são observados com uma autenticidade rara pelo olhar sensível do cineasta. “A luz é a matéria-prima do cinema, e a nossa vontade é transformar toda a dor do mundo em luz”, revelou ele nas entrevista à imprensa. “Eu me lembro é, antes de tudo, uma sucessão de páginas do álbum da minha vida, da vida de alguém que nasceu e cresceu em Salvador. E isso fica muito claro no filme”. “Eu me lembro” já está disponível em DVD.
Expondo suas vísceras, seus dilemas e tormentos, Edgar Navarro flui nessa arte dos sonhos que é o cinema, nessa luz que ilumina as salas escuras. E ao mergulhar de cabeça nesse retrato dolorido dos anos 50 aos 70, da fase mais perversa da vida brasileira, a ditadura, ele mostra seu talento. Afinal, ter consciência naquela época era ser perigoso, perseguido, mutilado. E Navarro mostra todo aquele delírio de uma geração conturbada. Um filme de vida de uma pessoa nobre, sensível, estimulante e, acima de tudo, ético.
Navarro sempre nos surpreende. Pela densidade de suas obras, de um fôlego que não deixa baixar a bola do começo ao fim. Ele sempre se debate nas fronteiras entre arte e vida. Excita estranheza e naturalidade, faces de um mesmo rosto. As fagulhas da contracultura convivem, com ou/e sem conflitos, com a consciência de linguagem. Foi essa sua inquietude que o levou a se aventurar no começo, desafinando o coro dos contentes. Em cada fotograma um desafio e um desejo. Não fazia filme para comemorar a vida, mas para estar vivo. Segundo por segundo, inspiração por expiração. E ele conseguiu, apesar de todos os percalços.
Em sua linguagem fílmica, que confirma e ao mesmo tempo vai além, aprimora e continua gerando fruto original, surpreendente. E a cada momento as texturas de suas imagens em movimento não rompem o transe expressa muito do seu princípio criativo e irrequieto, perturbador, reflexivo, provocativo. Edgar Navarro siga em frente com esta sua arte exemplar que todos nós estamos lhe apoiando nessa sua trajetória. Rotulado de maldito, você sempre foi do bem, como escreveu o colega jornalista Emiliano José, “os benditos na terra dos sonhos”. E que seus sonhos tornem-se luz.







12 setembro 2008

Música & Poesia




Pra Poder Te Amar (Martinho da Vila)


O amor não tem cor
O amor não tem idade
O amor não vê cara
Nem religião
Não faz diferença
Do rico e do pobre
O amor só precisa
De um coração...
O amor não tem tom
Nem nacionalidade
Dispensa palavras
Basta um olhar
O amor não tem hora
Nem fórmula certa
Não manda recado
Chega prá ficar...
O amor entrou na minha vida
Quando te encontrei
Olhei no teu olhar
E me apaixonei
Foi tanta emoção
Não deu prá segurar
Não deu!...
O amor contigo ao meu lado
É cada vez maior
Quero me batizar
No sal do teu suor
E ter a vida inteira
Prá poder te amar...
O amor não tem cor
O amor não tem idade
O amor não vê cara
Nem religião
Não faz diferença
Do rico e do pobre
O amor só precisa
De um coração...
O amor não tem tom
Nem nacionalidade
Dispensa palavras
Basta um olhar
O amor não tem hora
Nem fórmula certa
Não manda recado
Chega prá ficar...
O amor entrou na minha vida
Quando te encontrei
Olhei no teu olhar
E me apaixonei
Foi tanta emoção
Não deu prá segurar
Não deu!...
O amor contigo ao meu lado
É cada vez maior
Quero me batizar
No sal do teu suor
E ter a vida inteira
Prá poder te amar...
O amor entrou na minha vida
Quando te encontrei
Olhei no teu olhar
E me apaixonei
Foi tanta emoção
Não deu prá segurar
Não deu!...
O amor contigo ao meu lado
É cada vez maior
Quero me batizar
No sal do teu suor
E ter a vida inteira
Prá poder te amar
Prá pode te amar...
Prá pode te amar
Amar, amar, amar
Amar, amar, amar
Prá poder te amar!...




O Guardião dos Livros (Jorge Luís Borges in Elogio da Sombra)



Ai estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A exata música e as exatas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que outorga o Firmamento aos homens,
O decoro daquele imperador
Cuja serenidade foi refletida pelo mundo, seu espelho,
De sorte que os campos davam seus frutos
E as torrentes respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para marcar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que custodio na torre.
Os tártaros vieram do Norte
em crinados potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar sua impiedade,
Ergueram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para o Sul,
Inocentes como animais de presa,
Cruéis como facas.
Na aurora dúbia
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre onde jazo,
Recordando os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.
Em meus olhos não há dias. As prateleiras
Estão muito altas e não as alcançam meus anos.
Léguas de pó e sonho cercam a torre.
Por que enganar-me?
A verdade é que nunca soube ler,
Mas me consolo pensando
Que o imaginado e o passado já são o mesmo
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
E agora volta a se;. o deserto.
Que me impede sonhar que alguma vez
Decifrei a sabedoria
E desenhei com aplicada mão os símbolos?
Meu nome é Hsiang. Sou o que custodia os livros,
Que talvez sejam os últimos,
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Aí estão nas altas estantes,
A um tempo próximos e distantes;
Secretos e visíveis como os astros.
Aí estão os jardins, os templos.





Caros leitores: a partir de segunda feira (dia 15) estarei de férias e vou aproveitar para ler uns livros reservados para ocasião, ouvir algumas músicas necessárias para o coração, colocar a mão na terra para saber da estação, mimar meus cachorros e plantar o que a natureza espera de cada um de nós. Dia 29 de setembro estarei de volta. São poucos dias afastados. Voltarei com mais energia. Obrigado pela atenção.

11 setembro 2008

Liberato, um apaixonado pelo cinema de animação

Pintor, escultor, desenhista, cineasta – numa palavra, multidisciplinar – Chico Liberato é pioneiro do desenho animado na Bahia. O artista plástico baiano Chico Liberato sempre foi um apaixonado pelo cinema de animação. Ao se enveredar pelo sertão de Monte Santo, terra mística de beatos e rezadeiras, ele produziu o primeiro longa-metragem animado do Nordeste: Boi Aruá, com trilha sonora do maestro Ernest Widmer e do cantor Elomar. O filme lançado em 1983, sensação da Jornada de Cinema da Bahia, projetou Chico Liberato, conquistou Menção Honrosa no Fest Rio daquele ano e prêmios no Festival da Juventude em Moscou e da Unesco (por estimular a juventude para a cultura sertaneja).

O filme já divertiu platéias, sobretudo crianças e adolescentes do Brasil e da Europa, com a história do vaqueiro cuja obsessão é apanhar o boi misterioso, o touro mandingueiro dos relatos de cordel. Plasticidade, dramaticidade, riso e emoção acompanham o frenético galopar do fazendeiro que parte no encalço da fera, na verdade uma introjeção de seus próprios fantasmas. Boi Aruá é também a história de uma busca que só termina quando o homem domina uma fera, que se revela um manso cordeiro, mas que serve de catarse para que o brutamontes que a perseguia recupere a paz – metáfora telúrica – o campo, antes calcinado pela seca, volta a florir.
Com o longa-metragem, que demonstra o amor do autor pelas coisas do campo (o mandacaru, os bichos e a gente do sertão), Chico Liberato fez o que se poderia chamar de “poética das vidas secas”, para usar a imagem da família de retirantes imortalizada pelo escritor Graciliano Ramos. O cotidiano de luta e a alegria dos catingueiros perpassa todo o filme: o ferrar do gado, a reza das beatas, as brincadeiras dos garotos do sertão, a feira, o trabalho no eito, a casa de farinha, nada disso escapou aos olhos sensíveis do artista. A toada sertaneja de Elomar soa como um contraponto do desafio de caçar e aprisionar o boi encantado do cordel.
Boi Aruá não é o único filme de animação de Liberato. Sua animada filmografia inclui também curtas como Ementário, Antistrof (1972) interpretação gráfica da obra musical do argentino Rufo Herrera; O que os Olhos Vêem (1973), Prêmios Instituto Nacional de Cinema (INC), Caipora (1974) e Pedro Piedra (1975), Prêmio Alexandre Robatto Filho, também do INC. Em seguida realiza os desenhos Eram-se Opostos, sobre a permanente luta entre as dualidades - com raízes nordestinas sobre o percurso dos personagens "Um" e "Outro". (1977) e Muçagambira (1982). Representante da geração 60, nas artes plásticas da Bahia, Chico Liberato agitou o cenário das artes plásticas no estado dos anos 70 para cá e foi responsável pelo surgimento de novos talentos. Como diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), fundou as oficinas de artes plásticas e deu chances a muitas vocações sufocadas e desconhecidas, com a exposição Cadastro.
Liberato acredita que o homem tem de criar seu universo e seu próprio acervo e desfrutar dele. Se as pessoas não buscam na arte uma fonte de alimento para abastecer-se de energia e bons fluidos, elas se perdem em curto circuitos, por incidentes banais no trânsito ou por qualquer motivo, e desenvolvem uma preocupação e raiva que as impedem de sentir prazer em viver. Na música, na pintura ou na poesia, por exemplo, o homem pode encontrar a tranqüilidade que precisa para enfrentar com mais sabedoria os seus problemas.
A ancestralidade e a ecologia são temas presentes na arte de Liberato que procura, na técnica, alcançar o domínio do índio na utilização de elementos primitivos em seus trabalhos, fazendo o caminho inverso do academicismo e aproximando-se mais e mais da natureza, usando madeira, iniciando-se nos traçados de cipós, e abusando das cores fortes.
O crítico Frederico Morais comentando sua última mostra, em 2005, comemorativa dos 40 anos de vida profissional dedicados a arte e a cultura afirmou: “Ouso afirmar que a pintura atual de Francisco Liberato tem o caráter de uma obra-manifesto. Sem abrir mão de uma linguagem internacional e perfeitamente contemporânea, ela reflete questões geopolíticas. Mas não se trata mais de denúncia social e menos ainda do panfleto político – mas de crítica cultural. É um manifesto em defesa de uma cultura brasileira em sua relação dinâmica com a cultura local, afro-baiana e latino-americana. Em seus quadros, Liberato recria continuamente os signos `antropomórficos, arquetípicos e iconográficos´ da cultura brasileira em sua dimensão étnica e universal, mas sem abrir mão de sua imaginação criadora e intelectual e, naturalmente, de sua subjetividade e espiritualidade”.

10 setembro 2008

Ingridianamente

Ela apareceu no final de outono, trazendo ao mesmo tempo vento frio do inverno e o calor intenso no olhar. Irrequieta, intranqüila, instável feito adolescente solar. A garota in. Seu olhar é seguro, firme, verdadeiro. E no seu rosto transparece o sorriso mais bonito do lugar. Tímida, ela passeia pela instituição solarizando as salas obscuras, iluminando as faces turvas daqueles sem paixão. E sem sequer saber dessa força que irradia, ela transpirou magia a todos. Foi como uma luz que se acende na escuridão, um rio de águas límpidas cortando todo o sertão, uma estrela brilhante na imensa noite, solidão.

Quando o seu rosto foi cercado pelo tempo, invernos, verões, primaveras e outonos passarão sem nada do seu tesouro mudar, pois seus olhos tão fundos, cavados e atraentes, não podem tirar a beleza dessa tarde poente, pois o tempo não pára, e conduz a solidão em que tudo se torna nada, sem viço feito folhas ao chão. Não vai desfigurar a minha doce lembrança que emprestado toma, alegre, paga e fica. Nada mais resta só a imagem edifica.

Só se ouvia o toque do salto do seu sapato, em passos lentos, mas fortes, sons compassados e sublimes. E do alto de seu salto ostenta um corpo onde não há lugares para coisas pesadas, na sua dança de luz sem fachada, no equilíbrio que oscila calor e frio, céu e inferno, dia e madrugada. E nesse vai e vem de delicadas paisagens, cintila a vida pulsante de afetos, repletos, inquietos, discretos.

Só de passar nos corredores vazios de vida intensa, ela plana nos ares o sol de primavera, que não queima, mas deixa tatuado na pelo e gosto, o desejo, o apego. E quando o verão chegar, não há saída para o labirinto do ocaso, ela estará queimando a todos como luz no deserto. E daquela meiguice que encanta e arrebata, transformará numa potência que floresce e resplandece. Exalando um perfume oculto no tempo, mas tempera a vida da gente.

Porque não dizer seu nome cabrocha fingida que se esconde em gestos recônditos, em frases entrecortadas, em palavras desordenadas e nos olhos que me prometem estrelas. Ah, sei! Ela é tímida como a chuva fina que cai na manhã, como um rio que corre silencioso entre curvas e relvas, como o sopro do vento nas tardes de primavera. Ela espera. E na esperança de um dia melhor, vai tecendo sua caligrafia que cala, mas liga, fia não solta. Sua escrita marca a pele em lacunas imensas, nada definitivo. Mas quem disse que a vida é definitiva? Que tal palavra é a certa quando o mundo se transforme e a lua nos devora.


Hoje é isso, amanhã é aquilo. Ingredientes perfeitos para uma mutação. Ingridianamente irresistível como força de uma paixão. Só mesmo fogo do vulcão que queima, arde, mata e não deixa cinzas pelo chão. Nessa ruína lembro dos melancólicos redondilhos de um poeta romântico brasileiro pouco divulgado, Paulo Eiró: “O homem sonha monumentos/e só ruínas semeia,/para pousada dos ventos”.

E neste mundo de comunicação eletrônica onde a troca de mensagens é grande, não existe a troca de afetos, do calor do afago, do toque, da carícia. Assim essa menina sorriso discreto parece ter necessidade de afeto, observo numa sensação de que lhe falta algo interiormente, definido de vazio, de carência afetiva. Mas é uma sensação que pode ter muitas faces ou muitas interpretações. Só a psicologia poderá explicar ou meus olhos estão a me enganar e o carente sou eu. No mundo atual as relações afetivas são cada vez mais descartáveis, como disse o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos numa sociedade líquida, onde todas as coisas sólidas começaram a se desmanchar. Mas é o caso dessa menina in, tipo carente, latente, descrente. Ela é muito mais que aparência, muito mais que negligência. E por dentro dessa pele tatuada, há uma garota levada, transada, mal criada e muito mais ousada. Ariana como o signo impõe. Dispõe e supõe. Como o ar de pequena Cherry, quem decide o seu destino é você. E para mim só resta a perplexão: o que? O que? O que?.

09 setembro 2008

Tem jegue na pista (2)

Na década de 60 o então prefeito de Ipiaú, o ex-secretário da Agricultura e Reforma Agrária, Euclides Neto, decretou a Lei do Jegue. Desde então ficou permitido a todo o jegue ipiauiense trafegar livremente pelas ruas e se alimentar dos pastos públicos. Reconhecimento raro e digno pelos anos de trabalho escravo pela economia da cidade. O reconhecimento político-social como este só é superado pelo reconhecimento científico que veterinários tem para com o animal. A biologia molecular explica que a mistura do sangue eqüino com o sangue do jumento dá muito mais resistência aos muares com o aumento do teor da hemoglobina, apesar deste híbrido ser geralmente estéril. Por outro lado, não são poucos os relatos de memória prodigiosa e habilidades especiais, a exemplo de abrir porteiras e passar por debaixo de cercas.

Carlos Querino, técnico da Secretaria Municipal de Transporte, que conhece a história do transporte de massa de Salvador com a palma da mão, garante que a introdução do jegue como animal de tração dos antiguíssimos bondes (antes da eletrificação do sistema), foi a grande tecnologia para colocar o sistema soteropolitano entre os mais eficientes do país. “A vantagem sobre o cavalo é porque o jegue tem memória de ponto, inclusive do tempo de parada do bonde. Salvador foi a primeira capital a experimentar o jegue, depois foi São Paulo, Rio de Janeiro e Recife a aposentarem os cavalos. Isso é o que os cientistas querem inventar e ainda não conseguiram: Um transporte ecologicamente correto, silencioso e de energia facilmente renovável”, pontua Querino.
Também assim como o baiano, o jegue povoa o imaginário fantástico de brasileiros e estrangeiros com piadas, músicas, peças teatrais e literárias, passando pelo o universo sexual até chegar na iconografia política. Política sim, e porque não? Se nos Estados Unidos o jumento é o símbolo do Partido Democrata, na Bahia o candidato a vereador pelo PMDB mais votado nas eleições de 1986 foi, nada menos, que Bira do Jegue, que montou no jumento “Nino” para fazer campanha e foi flagrantemente copiado por Fernando Henrique Cardoso e por Carlos Menen, da Argentina. Humorista criado com “leite de jega preta”, Bira escreveu uma peça no melhor estilo besteirol: Sou um Jegue na Cama, que, “injustiçada tal qual o animal”, não recebeu a merecida atenção dos patrocinadores.
Foi o jegue quem inspirou Monteiro Lobato a criar o personagem “Burro Falante”, do Sito do Pica Pau Amarelo, invariavelmente dono dos conselhos mais sensatos. Se Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, fez versos em louvor asinino, o consagrando em canções como “O jumento é o nosso Irmão”e “Apologia ao Jumento”, até hoje Genival Lacerda procura sucesso maior do que a música “De quem é esse Jegue?”. Para completar, a sabedoria popular nos diz que o jegue é o único animal que já nasce alfabetizado, comparando o rincho (quem relincha é cavalo) do jumento ao A, E, I, O, U, sempre repetindo o ipsilone (Y) no final. Por isso, baiano, se em alguma briga de trânsito o compararem a este animal de carga, não se sinta inferiorizado. Levante a cabeça, estufe o peito e passe soberano, tal qual jegue enfeitado na Lavagem do Bonfim.

08 setembro 2008

Tem jegue na pista (1)

Ainda é possível, com um certo custo, se ver em ruas e avenidas da terceira maior cidade do país, Salvador, um certo animal que todos reconhecem pela alcunha de jegue. Hoje desprezados, os jegues estão entre os primeiros animais valorizados e domesticados pelo homem. Originalmente do deserto, que credenciou sua fácil adaptação a circunstâncias que exijam a capacidade de se manter vivo com uma alimentação grosseira e escassa, o jegue tira de letra qualquer situação que um cavalo dificilmente suportaria. Quem dirá os de “puro sangue”. Por esta e outras características, o jegue que lhe atravessa o carro em plena pista bem que poderia ser, em nosso imaginário, o animal símbolo do povo baiano. Povo que apesar de todas as adversidades nutricionais, educacionais, políticas e econômicas, não desiste de sobreviver. E o faz com toda graça, gargalhando feito um jegue.

A ingrata reputação de lentidão e teimosia do baiano, perdão, do jegue, contraditoriamente se dá em virtude de sua inteligência e senso de sobrevivência bastante apurado. Obriga-lo a uma obediência "cega" a um comando geralmente é perda de tempo. Ele o faz se assim concordar. Tal qual os baianos, os jegues são bastante criativos e se adaptam muito bem ao serviço pesado, sendo usado em todo mundo com meio de transporte de cargas. Mas apesar de seu rincho poder ser ouvido até três ou quatro quilômetros de distância, o jegue, hoje, agoniza nas filas dos desempregados, sem qualquer amparo, transformado em charque para abastecer de carne os mercados de cidades da Europa e Ásia. Tal qual seis milhões de baianos que agonizam de fome, contabilizados pelo programa do governo federal: Fome Zero. Mas não devemos baixar nossa auto-estima.

Foi sua força de tração que moveu o primeiro sistema de transporte de massa de Salvador, naquela época, o mais eficiente do país. Foi nas costas do jumento que o Recôncavo baiano se fez poderoso, carregando em seu lombo sagrado toneladas de cacaus e canas. Todo baiano sabe que o jegue é o animal preferido do menino Jesus. O jumento esteve ao Seu lado na manjedoura, durante o nascimento; foi montaria para fugir da perseguição de Herodes, quando lhe marcou as costas com Seu mijo sagrado; e também montaria em Sua entrada triunfal em Jerusalém, no Domingo de Ramos. Por fim, segundo a lenda popular, o jumento assistiu ao calvário de Cristo, se oferecendo para carregar a cruz na qual Ele foi crucificado. Se Deus é brasileiro, com certeza Jesus é baiano.

Gradualmente substituída por jipes e motocicletas, a força motriz do jegue vem perdendo importância como meio de transporte nos grandes centros urbanos. Mas, no grande sertão baiano, em cidades como Macururé, Euclides da Cunha ou Canudos, o jegue ainda é artigo de primeira necessidade, carregando cargas para onde nenhum outro meio jamais conseguiria chegar. É especialmente nas localidades de vida mais difícil, sem abastecimento de água ou rede de esgoto, que o jegue mostra seu valor, carregando a baixíssimo custo o precioso líquido em seus cassuás. Assim lembra Maria da Glória Almeida Gonçalves, que já andou muito de jegue pelo sertão de Macururé.

“Lá em casa somos oito homens e quatro mulheres. Os meninos sempre estudaram em Salvador, mas, quando retornavam pro sertão, meu pai os colocava para trabalhar pesado, fazendo serviço de carrego com os jegues”, conta Maria da Glória, que presta serviço à Prefeitura de Macururé. Ela lembra dos parentes que o criticavam por obrigar os meninos, “quase doutores”, a trabalharem como verdadeiros jumentos. “Foi por causa do trabalho desses jegues que eu consegui sustentar estes meninos estudando lá em Salvador. E vai ser trabalhando com esses jegues que eles vão aprender a dar valor a isso”, dizia o pai de Maria da Glória que, segundo ela, lançou as bases da “pedajeguia” na criação dos filhos. “Lá em casa ninguém tem medo de trabalho e todos respeitam muito quem vem de baixo”.
Não é de hoje que isto acontece na Bahia, mas tem muita gente que “vem de cima” só para montar naqueles que “vem de baixo”. Este é o caso do jegue-tour, um pitoresco passeio ecológico, grande sucesso entre turistas estrangeiros e brasileiros em Salvador. O serviço turístico já foi tema de cartaz da Bahiatursa, afixado nas melhores agências de viagem do exterior. Foi o ex-guia de turismo Moisés Cafezeiro quem teve a idéia, levando grupos de até 40 pessoas para andar nas areias de ilha de Maré. Todos montados em jegues. “Um deles, inclusive, é jegue-bar, carregando provisão de água, refrigerante e, lógico, cerveja gelada”, explica Cafezeiro, que possui 42 animais, mas que consegue tantos quantos forem necessários.

O passeio começa com a travessia de escuna a partir da praia de Inema. Uma vez na ilha, o turista escolhe o jegue da preferência e esquece a pressa do dia a dia, apreciando os encantos da ilha de Maré, uma das mais belas da Baía de Todos os Santos. São três horas de belezas, de Mata Atlântica intocada, de produção artesanal, de azeite de dendê, rendeiras de bilro, além de conhecer uma colônia onde se fala dialeto africano. É justamente o jegue quem dá o mais puro ritmo baiano, quer mais? “Certa vez um mangangão de Salvador não resistiu a visão dos turistas alemães andando de jegue pelas areias da Ilha de Maré e queria me obrigar a alugar um jumento. Eu disse que não poderia pois o grupo já estava fechado. Em sua arrogância ele puxou o dinheiro da carteira e me disse que dava cinco mil no pau, ou seja, na hora. Eu respondi que só vendia o bicho inteiro”, brinca Cafezeiro.

05 setembro 2008

Umas & outras...

Carnaval
Carmen Miranda será o tema do Carnaval de Salvador de 2009. A festa momesca homenageará o centenário de nascimento da artista portuguesa (09/02/2009). A pequena notável contribuiu muito para a divulgação da Bahia no exterior. Em 1938, ao gravar a música “O que é que a baiana tem”, de Caymmi, para o filme “Banana da Terra”, ela consagrou aquela baiana estilizada, de torço, balangandãs e saia rodada. E projetou o próprio Caymmi.

Esperança no lixo

Esperança no lixo Como o povo pode ter alguma esperança diante de tanta corrupção no país? Já não bastam os políticos, o Judiciário, agora a educação entra no rol dos sujos. Primeiro foi o reitor da Universidade de Brasília. Depois o reitor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ulysses Fagundes Neto, acusado de ter usado indevidamente o cartão corporativo, renunciou ao cargo. Qual o próximo?





Sertão

Continua aberta até o dia 05 de outubro no Centro Cultural Correios (Pelourinho) a mostra Paisagens Nordestinas que reúne 50 trabalhos, entre pinturas e gravuras do artista Juraci Dórea. A temática do vaqueiro e do povo sertanejo está exposta à visitação pública. Essa retrospectiva da obra do artista feirense comemora 20 anos do Projeto Terra. Vale a pena conferir.


Carta de São Paulo

Os jornalistas brasileiros, reunidos no 33º Congresso Nacional da categoria, realizado na cidade de São Paulo, de 20 a 24 de agosto de 2008, para discutir o tema O Jornalismo, o mundo do trabalho e a liberdade de imprensa, manifestam publicamente à Nação brasileira a preocupação com os constantes ataques à profissão de jornalista, à democracia na comunicação e à liberdade de expressão e de imprensa.

No momento em que se comemoram os 200 anos de imprensa no Brasil, o direito da sociedade brasileira de ter acesso à informação de qualidade, plural e democrática está seriamente ameaçado pela mais contundente ofensiva de desregulamentação da profissão dos jornalistas: a tentativa de eliminar a exigência da formação específica em Jornalismo para o exercício profissional. O ensino superior em Jornalismo é o alicerce sobre o qual se constitui legalmente a profissão há quase quarenta anos. É uma conquista da categoria e da sociedade brasileira, fruto de um século de luta pela qualificação e pela consolidação do jornalismo como uma atividade de interesse público e um instrumento de fortalecimento da democracia.

Os jornalistas denunciam publicamente a tentativa de grande parte dos empresários dos meios de comunicação de confundir a opinião pública quanto à importância da regulamentação de nossa profissão. Na verdade, o jornalista atua como um mediador das diversas opiniões que constituem a esfera pública contemporânea e, por dever ético, não expressa opinião pessoal nas notícias e reportagens que produz. A mesma tentativa de manipulação se dá em relação ao Conselho Federal de Jornalistas que, além de constituir uma instância de organização profissional, a exemplo de outras categorias, é um mecanismo a serviço da sociedade para garantia do exercício ético da profissão.

O 33º Congresso Nacional dos Jornalistas, em decisão histórica, aprovou a criação da Comissão Nacional pela Igualdade Racial e selou um compromisso pela superação de todas as formas de assédio e discriminação no ambiente de trabalho e social. Os jornalistas brasileiros também repudiam as diversas formas de aviltamento da profissão, que se manifestam na sobrejornada, no acúmulo de funções, na desvalorização salarial, na terceirização de serviços, no desrespeito à condição de autor e na perda dos direitos sociais e trabalhistas pela contratação de jornalistas como pessoa jurídica. A precarização das relações de trabalho é uma prática que não espelha a realidade econômica das empresas de comunicação que, ano após ano, vêm apresentando lucros.

O problema se agrava com a oligopolização da comunicação no Brasil. Oito famílias e grandes corporações controlam a grande mídia nacional. A concentração dos meios de comunicação, facilitada pela propriedade cruzada, não apenas reduz postos de trabalho e obriga o jornalista a produzir para diversos veículos do mesmo grupo empresarial, mas restringe o direito da sociedade à pluralidade de informações.

Diante do atual cenário, os jornalistas brasileiros reafirmam a sua luta histórica pelo direito da sociedade à informação e pela liberdade de expressão e de imprensa, exigem a realização imediata de uma Conferência Nacional de Comunicação, convocada pelo governo brasileiro para discutir políticas públicas que democratizem a comunicação no Brasil, defendem a aprovação de uma lei de imprensa democrática e cobram do Estado brasileiro políticas públicas de segurança que garantam a dignidade dos cidadãos brasileiros e assegurem aos jornalistas a integridade no exercício da profissão e a liberdade de informar a sociedade em todo o território nacional. (São Paulo, 23 de agosto de 2008).

04 setembro 2008

Besouro, o homem mais valente do Recôncavo

A história dos grandes capoeiras, vive até nossos dias, na imaginação popular e cantigas que narram suas façanhas. Em Salvador por volta de 1920 a polícia perseguia não só as rodas de capoeira, mas também o samba e o candomblé. Nessa mesma época surge em Santo Amaro, Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro, que foi um dos maiores capoeiristas da Bahia e um dos mais admirados e citados em canções nas rodas de capoeira. Manoel Henrique Pereira, homem negro e pobre, nascido no fim do século XIX, numa época em que ser praticante de atividades ligadas à herança africana era considerado um crime, se tornou a figura mais respeitada no universo da capoeira. Sua fama cruzou os limites do Recôncavo, chegou à capital baiana, ao restante do país e alcançou os quatro cantos do mundo.
Capoeirista corajoso num tempo em que não havia a divisão entre os estilos angola e regional, muito menos escolas de ensino da arte-luta, Besouro Cordão de Ouro – como também era conhecido – conseguiu a façanha de hoje ser um herói tanto para os seguidores do mestre Bimba (criador da regional), quanto para os discípulos do mestre Pastinha (líder máximo da capoeira angola). Mais impressionante ainda: teve menos de 30 anos de vida para construir toda essa fama, antes de ser assassinado em 1924.
Hoje, não há nome mais cantado nas rodas de capoeira. Besouro inspirou a música “Lapinha”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, vencedora do Festival de Música da TV Record, na voz da cantora Elis Regina. Serviu de fonte também para um dos capítulos do livro “Mar Morto”, de Jorge Amado, e para o filme “Besouro Capoeirista”, com o ator baiano Mário Gusmão. A mesma coragem e valentia lembradas nas canções, que o transformaram num herói, fizeram com que, em vida, tivesse fama de arruaceiro e fosse perseguido pela polícia em inúmeras ocasiões.
Justiceiro para uns, arruaceiro para outros, o exímio capoeirista virou lenda com a alcunha de Besouro Mangangá. Ele foi uma espécie de Lampião da capoeira, e sua valentia correu mundo. Saveirista, vaqueiro, amansador de burro brabo, chegou a ser soldado do Exército. Sua personalidade permanece envolta em mistério, fortalecendo ainda mais o mito em torno de seu nome. Sua certidão de nascimento nunca foi encontrada, nem documentos de identidade. Também não há qualquer imagem – seja fotografia ou pintura – dele. Besouro não deixou filhos conhecidos nem mulher. Houve até quem desconfiasse de sua existência.
Ele nasceu no antigo quilombo Urupy, localizado entre Santo Amaro e o distrito Oliveira dos Campinhos, filho de João Matos Pereira e Maria Auta Pereira. Aos 13 anos ganhou o mundo quando saiu de casa para trabalhar e começou a escrever seu nome na história através de suas aventuras. Seu forte era a agilidade, destreza, manha, rapidez de raciocínio, a calma e a surpresa. Muitas crianças, mesmo a contragosto dos pais, se apaixonavam por aquele homem do povo e seus movimentos perfeitos.
Seu jeito crônico de brigar, cheio de malandragem e sorrisos de provocação irritava a polícia. Suas fugas espetaculares ajudaram a criar o apelido: Mangangá também é o nome popular de um peixe venenoso. Já o apelido Cordão de Ouro teria surgido muito tempo depois, quando passou a haver a gradação de capoeiristas através da cor do cordão. O cordão de ouro sereia superior a qualquer outro nível de capoeira.
Besouro se saía tão bem das situações de perigo que as pessoas acreditavam que ele possuía poderes sobrenaturais. Muitos falavam que ele tinha o corpo fechado. O próprio apelido vinha dessa crença: quando ele se encontrava numa situação difícil, diante dos inimigos numerosos demais, Manoel se transformava em besouro e saía voando. Besouro vivia num mundo em que, para sobreviver, era preciso ter malícia dentro e fora da roda da capoeira.
As brigas eram sucessivas e por muitas vezes Besouro tomou partido dos fracos contra os proprietários de fazendas, engenhos e policiais. Certa vez estava sem trabalho e foi a Usina Colônia, hoje Santa Elisa. Deram-lhe trabalho. Trabalhou uma semana. Quando foi no dia do pagamento ele sabia que o patrão tinha o hábito de chamar o trabalhador uma vez, e na segunda dizia: "quebrou para São Caetano", que quer dizer: não recebe mais; e se reclamasse era chicoteado e ficava preso no tronco de madeira e depois mandado embora. No dia do pagamento, deixou que o patrão o chamasse duas vezes sem responder. O patrão disse o seu quebrou para São Caetano. Todos receberam o dinheiro menos Besouro. Besouro invadiu então a casa do homem, pegou-lhe pelo cavanhaque e obrigou que pagassem seu dinheiro. Besouro tomou o dinheiro e foi embora.
No dia 08 de julho de 1924 Besouro se despedia da vida de valentão com apenas 28 anos. Foi em Maracangalha quando foi golpeado com uma faca de ticum, (a árvore dos mistérios), à traição, por um de seus colegas. Somente uma arma de mandioca poderia ferir mortalmente quem tem o corpo fechado. Sua história foi construída em menos de três décadas mas até hoje alimenta a fantasia do povo de Santo Amaro, onde nasceu. Nas palavras inspiradas de Jorge Amado, “Besouro brilha no céu, é uma estrela”.

03 setembro 2008

Liberato, um apaixonado pelo cinema de animação

Pintor, escultor, desenhista, cineasta – numa palavra, multidisciplinar – Chico Liberato é pioneiro do desenho animado na Bahia. O artista plástico baiano Chico Liberato sempre foi um apaixonado pelo cinema de animação. Ao se enveredar pelo sertão de Monte Santo, terra mística de beatos e rezadeiras, ele produziu o primeiro longa-metragem animado do Nordeste: Boi Aruá, com trilha sonora do maestro Ernest Widmer e do cantor Elomar. O filme lançado em 1983, sensação da Jornada de Cinema da Bahia, projetou Chico Liberato, conquistou Menção Honrosa no Fest Rio daquele ano e prêmios no Festival da Juventude em Moscou e da Unesco (por estimular a juventude para a cultura sertaneja).

O filme já divertiu platéias, sobretudo crianças e adolescentes do Brasil e da Europa, com a história do vaqueiro cuja obsessão é apanhar o boi misterioso, o touro mandingueiro dos relatos de cordel. Plasticidade, dramaticidade, riso e emoção acompanham o frenético galopar do fazendeiro que parte no encalço da fera, na verdade uma introjeção de seus próprios fantasmas. Boi Aruá é também a história de uma busca que só termina quando o homem domina uma fera, que se revela um manso cordeiro, mas que serve de catarse para que o brutamontes que a perseguia recupere a paz – metáfora telúrica – o campo, antes calcinado pela seca, volta a florir.

Com o longa-metragem, que demonstra o amor do autor pelas coisas do campo (o mandacaru, os bichos e a gente do sertão), Chico Liberato fez o que se poderia chamar de “poética das vidas secas”, para usar a imagem da família de retirantes imortalizada pelo escritor Graciliano Ramos. O cotidiano de luta e a alegria dos catingueiros perpassa todo o filme: o ferrar do gado, a reza das beatas, as brincadeiras dos garotos do sertão, a feira, o trabalho no eito, a casa de farinha, nada disso escapou aos olhos sensíveis do artista. A toada sertaneja de Elomar soa como um contraponto do desafio de caçar e aprisionar o boi encantado do cordel.


Boi Aruá não é o único filme de animação de Liberato. Sua animada filmografia inclui também curtas como Ementário, Antistrof (1972) interpretação gráfica da obra musical do argentino Rufo Herrera; O que os Olhos Vêem (1973), Prêmios Instituto Nacional de Cinema (INC), Caipora (1974) e Pedro Piedra (1975), Prêmio Alexandre Robatto Filho, também do INC. Em seguida realiza os desenhos Eram-se Opostos, sobre a permanente luta entre as dualidades - com raízes nordestinas sobre o percurso dos personagens "Um" e "Outro". (1977) e Muçagambira (1982). Representante da geração 60, nas artes plásticas da Bahia, Chico Liberato agitou o cenário das artes plásticas no estado dos anos 70 para cá e foi responsável pelo surgimento de novos talentos. Como diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), fundou as oficinas de artes plásticas e deu chances a muitas vocações sufocadas e desconhecidas, com a exposição Cadastro.

Liberato acredita que o homem tem de criar seu universo e seu próprio acervo e desfrutar dele. Se as pessoas não buscam na arte uma fonte de alimento para abastecer-se de energia e bons fluidos, elas se perdem em curto circuitos, por incidentes banais no trânsito ou por qualquer motivo, e desenvolvem uma preocupação e raiva que as impedem de sentir prazer em viver. Na música, na pintura ou na poesia, por exemplo, o homem pode encontrar a tranqüilidade que precisa para enfrentar com mais sabedoria os seus problemas.

A ancestralidade e a ecologia são temas presentes na arte de Liberato que procura, na técnica, alcançar o domínio do índio na utilização de elementos primitivos em seus trabalhos, fazendo o caminho inverso do academicismo e aproximando-se mais e mais da natureza, usando madeira, iniciando-se nos traçados de cipós, e abusando das cores fortes.

O crítico Frederico Morais comentando sua última mostra, em 2005, comemorativa dos 40 anos de vida profissional dedicados a arte e a cultura afirmou: “Ouso afirmar que a pintura atual de Francisco Liberato tem o caráter de uma obra-manifesto. Sem abrir mão de uma linguagem internacional e perfeitamente contemporânea, ela reflete questões geopolíticas. Mas não se trata mais de denúncia social e menos ainda do panfleto político – mas de crítica cultural. É um manifesto em defesa de uma cultura brasileira em sua relação dinâmica com a cultura local, afro-baiana e latino-americana. Em seus quadros, Liberato recria continuamente os signos `antropomórficos, arquetípicos e iconográficos´ da cultura brasileira em sua dimensão étnica e universal, mas sem abrir mão de sua imaginação criadora e intelectual e, naturalmente, de sua subjetividade e espiritualidade”.

02 setembro 2008

Agressão aos sentimentos éticos do brasileiro

“A frustração maior da sociedade consciente é com a impunidade da corrupção nas atividades públicas, que se tornou, nos últimos tempos, uma acintosa agressão aos sentimentos éticos do brasileiro. Desta imoralidade alastrada e deste exemplo derivam as violências das ruas, as negociatas nas empresas, as especulações aventureiras nos mercados, a degradação dos comportamentos, desde a derrubada da floresta amazônica até o tráfico de drogas”. A opinião é do consultor-geral da República e ex-ministro da Justiça, Saulo Ramos numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo (20/08/2007). Para ele, o sentimento ético do brasileiro tem sido agredido. Em seu livro de memórias, “Código da Vida”, ele narra detalhes da vida política do país. Para o economista e professor da UFBa, Armando Avena, “combater a corrupção com vigor e rigor faz bem à economia e é fundamental, não só para garantir o padrão ético de uma sociedade, mas também para elevar seu crescimento econômico”.

A Comissão pela Efetividade da Justiça da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lidera campanha nacional contra a corrupção e tem, entre outros temas, a prioridade para a tramitação de processos envolvendo crimes contra a administração pública. “Temos de acabar de vez com a impressão do brasileiro de que o País é um mar de corrupção, com a polícia prendendo e o juiz absorvendo quando o caso envolve político ou gente rica”, diz o presidente da entidade, Roberto Siegmann. Uma série de projetos de lei está tramitando nas duas casas do Congresso Nacional com o propósito de dar agilidade e eficácia à Justiça. Os congressistas avaliam que o excesso de recursos na Justiça encoraja o corrupto e deixa a sociedade desalentada ao ver crime sem castigo. Por essa razão, propostas além do pacote de reforma do Código de Processo Penal buscam também recuperar recursos desviados e combater o foro privilegiado para autoridades. Em 18 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) instaurou 130 processos criminais contra autoridades. Um terço dos réus foi denunciado por roubar dinheiro público, mas nenhum condenado.

“Combater a corrupção com vigor e rigor faz bem à economia”

O documento “Juízes contra a Corrupção”, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), prega que o Judiciário não tem conseguido produzir decisões definitivas e em tempo razoável, além de cumprir o papel educativo de implantar a ética na sociedade. As decisões judiciais têm caráter impositivo moral para a sociedade, mas o Judiciário acaba favorecendo pessoas que não têm compromisso com a ética. “A população tem hoje uma visão de que não adianta ir ao Judiciário porque as decisões são demoradas ou não chegam a se concretizar, como no caso de quem tem foro privilegiado”, diz Roberto Siegmann, da AMB.

Há ação punitiva diante de um roubo de alimento e mobilização contra um bárbaro assassinato, mas a sociedade precisa reagir mais contra o enriquecimento ilícito de grandes empresários, de gestores públicos e políticos às custas do dinheiro público. Antes nem poderíamos imaginar altas figuras do judiciário, de tribunais de contas, do legislativo e do setor empresarial investigadas, processadas e presas. As instituições de controle como Controladores, Tribunais de Contas, Ministério Público, entre outros, estão se fortalecendo, atuando. É preciso a fiscalização pela sociedade, a transparência dos atos e das contas públicas.

Antes da Revolução Puritana na Inglaterra (século XVII), o rei dizia que não tinha obrigação de prestar contas a ninguém. Estava acima da lei. O poder ficava concentrado em suas mãos. Sem atuação dos ministros e do Parlamento, o que havia era imensa corrupção na corte. A revolução exigiu que o parlamento funcionasse e fosse respeitado. Esse movimento prosperou em todo o mundo em defesa da prestação de contas públicas. Na Bahia a Revolta dos Alfaiates foi um movimento de caráter emancipacionista (século XVIII), surgiram outros. Os movimentos foram esmagados por Portugal. Afinal, as idéias democráticas européias era um escândalo. E assim, desde D.João VI existe a concentração d poder. Sempre foi difícil trazer de volta aos Estados e municípios o dinheiro que foi parar nos cofres da União.

“A Justiça é a porta de entrada para a inclusão”
A persistente corrupção, o enfraquecimento do pacto federativo, a invencível impunidade, o desprestígio do Judiciário e os ralos que impedem o funcionamento eficaz do Congresso Nacional tem saída no aperfeiçoamento da democracia nacional na opinião do filósofo e professor titular de ética e filosofia política da Unicamp, Roberto Romano. Uma entrevista ao jornal A Tarde (17/06/2007) ele afirmou: “A mudança precisa começar na sociedade. Que modelo de sociedade é esse que aceita prisão especial para quem possui diploma universitário? Temos aqui uma sociedade altamente elitizada. O acesso à renda é desigual e o acesso à Justiça desigual. A mulher que roubou um pente não tem condições de contratar um advogado (...) Nessa sociedade, é aceito que existam pessoas acima da lei. Quando existe aceitação de que ricos e famosos podem ficar impunes, é mais difícil passar para a cobrança e punição. Além disso, há ricos e famosos que só desfrutam dessa condição porque meteram a mão no dinheiro público”.

“A descrença na estrutura pública
passa, inclusive, pela Justiça”.
A Justiça é a porta de entrada para a inclusão. Se os brasileiros não têm a certeza de que vão ser atendidos, eles acabam desapontados e ficam também desacreditados”. A opinião é da cientista política e doutora em Ciência Política da USP, Maria Teresa Sadek. Pesquisando há 14 anos o Poder Judiciário, ela traçou um perfil detalhado da Justiça brasileira e reconhece a lentidão como um dos maiores problemas do Judiciário. “É preciso ampliar o acesso à população que procura por direitos. Uma justiça que tarda é uma justiça que falha. Se for perguntado a um juiz se a Justiça vai mal hoje, diferentemente de dez anos atrás, a maior parte vai dizer que sim e por causa da legislação. Eles nunca se vêem como a razão do problema”, afirmou numa entrevista ao jornal A Tarde (21/08/2006) e continua: “Ser réu compensa, quando se tem uma Justiça tão deficiente quanto a brasileira. A imagem negativa do Judiciário interfere em tudo. A descrença na estrutura pública passa, inclusive, pela Justiça”. “Pela pesquisa de 2005, o gasto do Judiciário por habitante é alto, a remuneração dos juízes é alta, o número de funcionários é alto. E porque a população diz que não funciona? Porque o índice de congestionamento é alto também”.

01 setembro 2008

Judiciário brasileiro em questão

O Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição Federal, o que dá a última palavra a respeito do alcance da carta republicana. Mas o STF peca por excesso de timidez, salvo algumas exceções. Há uma tendência dos colegiados judiciários ao conservadorismo – manter o que já existe, até por uma razão de segurança pública. É preciso uma reforma da mentalidade do próprio juiz brasileiro. Até parece que a toga lhe pesa excessivamente sobre o ombro. São raros os juízes que têm gestos de ousadia intelectual, coragem de romper com o passado, desconstruir paradigmas, enfim, de ser contemporâneo de sua época. A partir dessa mudança de mentalidade, talvez muitas das reformas legislativas se tornem desnecessárias. O juiz pode perfeitamente operar mais com princípios do que com simples regras. Nós não temos ainda uma cultura sedimentada nessa prevalência dos princípios sobre as chamadas simples regras.

O judiciário dispensa um tratamento excessivamente benévolo ao criminoso que tem alto poder ofensivo e destrutivo, como o narcotráfico. E uma tendência romantizada de querer dar sempre novas chances mas é preciso fazer uma distinção clara e precisa daquele que optou pela criminalidade e aquele que optou por ser homem de bem. Não se pode dispensar pessoas com opções tão desiguais o mesmo tratamento.

No Brasil, os recursos da lei permitem que um réu fique muitos anos sem cumprir a pena que recebeu. Pode até nunca ir para cadeia. Por isso, alguns juízes defendem não só penas mais rigorosas, mas que também não deixem brechas para os criminosos. O importante é que não haja impunidade. O Brasil não vai vencer a criminalidade enquanto forem comuns casos que esperam mais de 20 anos por uma justiça que nunca veio.

O Brasil precisa alcançar uma Justiça de excelente qualidade e célere, com um custo processual neutro mais barato para as partes. E isso não acontece. O Judiciário está distante da população, numa cúpula fechada. Se for fazer uma enquête com a população brasileira sobre o que acha da Justiça brasileira, o resultado vai ser bem negativo. Agora é preciso também assegurar uma quantidade de magistrados proporcional à demanda e à população de cada comarca. No Brasil, essa relação entre juiz e quantidade de jurisdicionados é desequilibrada em desfavor do poder Judiciário.

Com a Operação Furacão revelou-se o envolvimento de membros da alta cúpula do poder judiciário em escândalos. E se o povo não confiava tanto no Judiciário, agora então.... Afinal os desembargadores são pessoas que aparentemente não teriam qualquer razão, pelo menos de ordem financeira ou social, para se envolverem com a delinqüência. Mas os fatos mostram o contrário. A opinião pública agora parece que está se organizando e vigilante, sem temor reverencial ao poder judiciário, e a profissionalização da Polícia Federal é bastante positiva, pois de agora já não se intimida mais com pessoas que ocupam altos cargos na República.

É preciso uma reforma verdadeira pois todos os instrumentos criados para agilizar a prestação jurisdicional resultaram num quase completo fracasso. Um bom exemplo, os hábeas corpus que levam anos transitando pelos tribunais. Determinados remédios jurídicos inspirados na necessidade de agilizar o curso dos processos e assegurar uma razoável direção do processo tornaram precocemente envelhecidos e inadequados. Numa entrevista ao caderno Ilustrada o Folha de S.Paulo (07/04/2007) o antropólogo Otávio Velho (professor da UFRJ) disse que a modernidade de redoma está em crise: “Não está mais conseguindo construir as suas redomas, que de certa forma criavam um espaço privilegiado e garantido. A solução com mundinhos fechados já não se sustenta. Isso cria uma época de muita turbulência, aparentemente de caos, mas também muito interessante”.



Uma tartaruga. Esse é o animal que a maioria dos entrevistados associou à imagem do Poder Judiciário, por sua lentidão, longevidade e sapiência. A constatação é o resultado de uma pesquisa feita pelo Ibope a pedido da Associação dos Magistrados do Brasil para avaliar a imagem do Poder Judiciário no País. A morosidade é tanta que não é raro o indivíduo abrir mão de acionar a justiça por saber que a conclusão do caso vai exigir muito do seu tempo, seu dinheiro e, principalmente, sua paciência

O desgaste da confiança que os cidadãos depositam nas instituições de seus estados nacionais é crescente. Exemplo disso, para o Brasil, é a pesquisa IBOPE, realizada em setembro de 2005, indicando que a população brasileira não confia no Poder Judiciário, no Poder Legislativo e na polícia, descrê do sistema partidário e dos políticos e coloca sub-judice diversas categorias sociais e profissionais, inclusive os empresários. Vê-se que instituições fundamentais para administrar a crise e propor saídas não contam mais com a confiança da opinião pública. Aqueles que deveriam auxiliar no encaminhamento da solução tornam-se também uma parte do problema. Recentemente a Vox Populi fez uma pesquisa com a população onde o resultado é que ela não acredita no judiciário.