10 agosto 2018

Palavra em Movimento, de Arnaldo Antunes



A palavra, seja falada, escrita, desenhada, fotografada, filmada, construída ou cantada, está no centro das atenções na mostra que o artista, herdeiro da poesia concreta dos anos 1950, do rock and roll e do tropicalismo dos 1960 e 1970, da arte pop e do movimento punk dos anos 1980.

A exposição Palavra em Movimento, que abre na Caixa Cultural Recife, marca três décadas de produção visual de Arnaldo Antunes. A abertura ocorre no dia 16 de agosto. A mostra, em circulação desde 2016, já passou por cidades como São Paulo, Brasília, Fortaleza, Rio de Janeiro, Florianópolis e Salvador. Segundo o curador Daniel Rangel, a maneira integrada de criar de Arnaldo Antunes é inspirada na poesia concreta e remete à expressão joyceana “verbivocovisual”, que sintetiza a proposta, colocada em prática nos anos 1950 pelos concretistas brasileiros, dos novos modos de se fazer poesia, visando a uma “arte geral da palavra”.


“Palavra em Movimento” reúne caligrafias, colagens, instalações e objetos poéticos, além de adesivos, banners, áudios e vídeos de trabalhos realizados nos últimos trinta anos. É uma síntese da trajetória do artista vanguardista no circuito das artes visuais contemporâneas. “Trata-se de um artista do presente, que aborda temas atuais; conceitos políticos, comportamentais, ecológicos, espirituais e poéticos, para diversos públicos e em contato com diferentes mídias”, explica Rangel.


Na análise de André Gardel (http://www.sesc.com.br/portal/site/palavra/dossie/artigo/verbo+viajante+palavra+corpo+e+performance+poetica+em+arnaldo+antunes) Arnaldo estabelece um livre trânsito entre a indústria “major” e a “minor”, entre os espaços “cults” e “bregas”, oficiais e alternativos, entre o erudito e o popular, entre os “happy few” e a massa. E é justamente essa postura transicional, de Hermes-Mercúrio mensageiro multicultural e interartístico, que propicia o exercício e ampliação do viés “pedagógico” de sua produção. Pois é a partir da potencialização das forças que tencionam a palavra poética, nômade, distendendo-se e reverberando, de modo recorrente, em todos os meios de expressão a que se dedica, que vem à tona seu ideário último: a revitalização, multimídia, de um estado de linguagem – primitivo, semiótico, performativo – em que nome e coisa, objeto e signo surgem como um único e mesmo fenômeno pulsante. Num resgate de uma situação e de um momento originários em que a linguagem torna-se corpo e o corpo, linguagem.


Assim, a obra de Arnaldo Antunes vem trazendo para o universo da cultura popular, de modo sistemático e com grande poder inventivo, elementos expressivos que fincam raízes em algumas das mais importantes experimentações de vanguarda culta. Tentando, direta ou indiretamente, diminuir o fosso existente entre experimentação formal e ampliação de público. Outros artistas e movimentos na música popular comercial brasileira fizeram e/ ou fazem o mesmo. No entanto, a obra de Arnaldo Antunes, apesar de se inserir nessa tendência, mantém uma singularidade muito específica.


Dos poetas e do movimento concreto, Arnaldo devora, como bom antropófago que se alimentou da cartilha canibal do modernista Oswald de Andrade, o instrumental linguístico e semiótico; a inserção da escrita ideogramática na escrita alfabética, que incorpora a estrutura analógica à lógica discursiva ocidental; a pesquisa gráfica e caligráfica revitalizando o verbal; a contaminação multimeios; a poesia visual de fundo construtivista; a proesia; a busca isomórfica de significação entre signo verbal e referente, similaridades fônicas e ambiguidades semânticas etc. E do Momento Tropicalista que, por si só, já é uma deglutição pop de proposições modernistas, Arnaldo incorpora uma criação que enfrenta, de modo plural e muito pessoal, o jogo artístico que se desdobra da dialética contemporânea entre novidade e tradição, estética culta e de massas.

09 agosto 2018

Preconceito e empoderamento nos quadrinhos de Jeremias: Pele


O 18º título do prestigiado selo Graphic MSP estreou em 2012 e se tornou referência no segmento, reunindo o melhor do traço nacional em HQs produzidas pelos mais diversos artistas. Em uma reinterpretação ousada, porém necessária, como enaltece Mauricio de Sousa, em seu prefácio, o roteirista Rafael Calça e o desenhista Jefferson Costa dão vida a uma história forte, dura, emocionante, na qual a personagem lidará, pela primeira vez, com o preconceito por causa da cor de sua pele. A história é recheada de dor, superação, aprendizado e preparação para a vida. Trata-se de Jeremias: Pele.


Para Maurício de Sousa o lançamento dessa história é importante por diversos motivos e o maior deles é revelado no prefácio assinado pelo criador da Turma da Mônica: “Pele me ajudará, inclusive, a corrigir uma injustiça histórica: apesar de ser um de meus primeiros personagens, o Jeremias nunca havia protagonizado uma revista sequer. E o faz, agora, em grande estilo”.

Quem também deixou seu registro na obra foi o rapper Emicida, que escreveu o texto da quarta capa, onde diz que “a ausência de referências positivas nos rouba o direito de imaginar, estabelece um teto para nossos sonhos. Minhas lágrimas correram pelo rosto ao ler Jeremias – Pele. Eu a vivi inteira tantas vezes”.

Na história escrita por Calça, vemos Jeremias ser submetido ao Dia da Profissão, onde na escola, os alunos - ou a professora, no caso da história - escolhem com qual profissão melhor se identificam e Jeremias termina tendo como profissão algo que não desejava, pois outros acham que o seu desejo não seja viável e, com isso, ele começa a questionar tudo e a se revoltar com o que acontece a sua volta. A professora dita quem será engenheiro, médica, advogado, Jeremias quer ser astronauta, mas a professora diz que ele deve ser pedreiro. O incidente leva Jeremias a uma série de reações r isso afeta seus pais.


Jeremias aprende muito com isso, principalmente que a cor de sua pele não define nada na sua vida, somente que as pessoas não sabem reconhecer o verdadeiro valor da pessoa, não importando que cor de pele ela tenha. O pai explica ao filho o que é ser negro no Brasil e fala que, nesse mundo, você tem que criar uma casca e ser duas vezes mais forte e melhor que as outras pessoas para sobreviver e conseguir respeito. É isso, mas não é só isso. Cascas deixam a gente insensível e força não leva a nada. É preciso acumular sim, conhecimento sobre as falhas – das pessoas e da sociedade – e tentar criar pontes e não cascas, embora sempre tenhamos de bater de cabeça no muro da falta de respeito e da falta de educação e ética entre as pessoas. 


O álbum em quadrinhos traz os dois movimentos do empoderamento, segundo a pensadora americana Patricia Hills Collins: autodefinição e autoavaliação. Os dois autores, negros, autodefinem a sua própria condição, trazendo, assim, até suas experiências de vida e de exclusão, ao mesmo tempo que autoavaliam as formas como os negros são vistos pela sociedade opressora e, pelos próprios negros, como quando uma mulher branca prefere ficar em pé no ônibus do que sentar ao lado de Jeremias no banco vago.

Na própria introdução de Jeremias: Pele, Mauricio de Sousa disse que corrigia um erro histórico, que era dar a Jeremias sua própria revista. Ao mesmo tempo que confessa que essa graphic novel gerou um rebuliço nos Estúdios MSP e que “daqui pra frente, estaremos mais atentos à realidade que nos cerca”.


Jeremias foi um dos primeiros personagens cridos por Maurício de Sousa. Em 1960, um ano depois de ter publicado suas primeiras tiras no jornal Folha da Tarde em São Paulo, o autor estreava também no mercado de revistas com Zaz Traz. Jeremias e seus amigos seguiam como elenco de apoio para o Franjinha e seu cachorro de estimação, integrando a Turma do Bermudão no Bairro do Limoeiro.







08 agosto 2018

Marcel Duchamp, um provocador


O pintor, escultor e poeta francês Marcel Duchamp (1887/1968) morreu há 50 anos e foi um dos precursores da arte conceitual e introduziu a ideia de ready made como objeto de arte. Quando tirava uma peça de seu ambiente natural - como fez com uma roda de bicicleta e um banquinho de madeira ou até com uma louça de sanitário masculino - e dava aos objetos a envergadura de um objeto de arte, o que desejava era instigar o pensamento, provocar um raciocínio, destruir a quietude das coisas aceitas e estabelecidas. Ele contribuiu para o infindável debate entre o que é e o que não é arte. Quando pintou bigodes na Monalisa, de da Vince, colocava nitidamente o seu desprezo pela arte clássica. Colocar a Monalisa e um urinol no mesmo patamar é uma provocação. Duchamp foi um provocador.

Começou sua carreira como artista criando pinturas de inspiração impressionista, expressionista e cubista. Dessa fase, destaca-se o quadro Nu descendo a escada, que apresenta uma sobreposição de figuras de aspecto vagamente humano numa linha descendente, da esquerda para a direita, sugerindo a ideia de um movimento contínuo. Esse quadro, na época, foi mal recebido pelos partidários do Cubismo, que o julgaram profundamente irônico para com a proposta artística por eles pretendida.


Como escultor ele atingiu grande fama. Deixou a Europa e foi para Nova York. Em 1917 ele lançou a revista Blind Man (Homem Cego). O objetivo era criar polêmica sobre o urinol que mandou para a exposição de vanguarda em Nova York, e que foi recusado pelo júri, também de vanguarda. O urinol comum, branco e esmaltado que foi enviado ao júri foi um gesto iconoclasta de Duchamp. Há quem veja nas formas do urinol uma semelhança com as formas femininas, de modo que se pode ensaiar uma explicação psicanalítica, quando se tem em mente o membro masculino lançando urina sobre a forma feminina.


Levar uma peça de banheiro para uma exposição de arte atrai adversários. Um mictório não é uma peça bonita por si só, embora isso possa ser discutido. Por outro lado, a arte não significa apenas a apreciação do bonito e mesmo o conceito de bonito é algo muito subjetivo. Com o seu posicionamento, Duchamp não buscava o belo e nem a aprovação do público. Ele procurava o âmago das emoções humanas, as reações instintivas. “Transformar todas as pequenas manifestações externas de energia, em excesso ou desperdiçadas, como por exemplo, o crescimento dos cabelos ou das unhas, a queda da urina ou das fezes, os movimentos impulsivos do medo, do assombro, do riso, a queda da lágrima, os gestos da mãos, o olhar frio, o ronco ao se dormir, a ejaculação, o vômito, o desmaio, etc", disse na época. Compreende-se através dessas preocupações, um pouco sobre a maneira como Marcel Duchamp olhava o mundo.

O que o artista propunha era uma arte conceitual, na qual a ideia era mais importante que a execução da obra pelas mãos do artista. Daí a sua série ready-made (o transporte de um elemento da vida cotidiana, a priori não reconhecido como artístico, para o campo das artes), objetos industriais que ele expunha como obra de arte. Com isto ele deixava de ver toda a arte do passado e cegava o artista moderno deixando-o com um só olho na direção de um pretenso futuro. Ele pretendia despertar uma nova maneira de ver o mundo e as coisas.


Os ready made passaram, então, a ser o elemento de destaque da produção de Duchamp. Mais tarde ele dedicou-se ao estudo da "quarta dimensão", o que, de alguma forma, orientou a sua criatividade artística para problemas óticos. Os Rotoreliefs, discos coloridos que, quando girados com extrema rapidez, produziam efeitos óticos, é mais uma de suas tentativas de se aproximar das pesquisas que fazia. O estudo do olhar sobre a arte interessou muito a Duchamp, que se opunha àquilo que ele próprio dizia ser a "arte retiniana", ou seja, uma arte que agrada à vista. Pode-se, de certo modo, compreender toda a arte de Duchamp como um esforço para se afastar da "arte retiniana" e passar para uma arte mais "cerebral", em que se ressaltam os aspectos mais intelectuais do labor artístico. Dessa forma, os ready made, inclusive, são uma tentativa de escapar da "arte retiniana", uma vez que confrontam o público, oferecendo-lhes algo que ele próprio já viu algures, forçando-o a pensar e refletir sobre a questão da arte enquanto linguagem.

Vale a pena ressaltar que a obra de Duchamp deixou um legado importante para as experimentações artísticas subsequentes, tais como o Dadaísmo, o Surrealismo, o Expressionismo Abstrato, a Arte Conceitual, entre outros. No século da hiper visualidade é necessário rever a arte. O desafio é ver com novos olhos.

07 agosto 2018

A fama eterna de Andy Warhol (2)


Personagem obrigatório nos acontecimentos sociais de Nova York, ele usava seus cabelos, tintos, platinados e quando rarearam foram substituídos por perucas no mesmo tom e corte. Óculos de aros coloridos ele já usava na década de 50. Na moda, lançou o clássico e trivial look despojado: calça jeans, tênis e paletó escuro. No universo povoado por pessoas e situações do então “submundo das artes”, Warhol foi o responsável pelo lançamento do grupo Velvelt Underground na cena pop novaiorquina dos anos 60. O grupo não só apresentou Lou Reed ao mundo como mostrou aos hippies que havia muito mais sujeira embaixo do tapete do que o movimento flower power imaginava. Além de Lou Reed e John Cale, cabeças do Velvet, no Greenwich Village, Wahol introduziu a cantora alemã Nico ao grupo e passou a incluí-la na maioria de suas performances, projetos multimídia e filmes.


Em 1969, Warhol fundou a revista Interview, uma espécie de órgão oficial do grupo eclético que ele frequentava: artistas, modelos, fotógrafos, roqueiros, estilistas de moda, atores e gente famosa simplesmente por ser famosa. Ele editou livros, produziu filmes e apresentações no estúdio que mantinha em Manhattan, chamado Factory (Fábrica) e viveu cercado por uma fauna de gente pouco convencional. Depois era visto com frequência na discoteca Studio 54.


SURPRESA

Warhol foi um dos fundadores da pop art nos Estados Unidos. A pop art nasceu na Inglaterra, mas iria se desenvolver plenamente nos EUA, onde, em pouco tempo, tornou-se o primeiro movimento realmente norte-americano em arte, o que foi confirmado em 1964, quando Robert Rauschemberg tirou o grande prêmio da Bienal de Veneza, para surpresa dos europeus, que se consideravam os donos da arte mundial e inventores de todos os movimentos de arte do século XX. A pop floresceu nos EUA porque é essencialmente uma expressão estética da sociedade de consumo e da cultura de massa.


Responsável pela frase de que todo mundo, no futuro, seria famoso por 15 minutos, Warhol foi um marco na arte norte americana. Retratou personalidades e produtos com a frieza de uma máquina tendo conquistado fama e prestígio só comparáveis aos grandes artistas do século. Na época, o diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, Richard Oldenburg resumiu o perfil do artista que ajudou a criar as bases da pop art: “Warhol fez seu estilo de vida uma obra de arte... Foi uma das primeiras pessoas a se transformar, por ser artista plástico, em estrela”.

AMIZADE

Em 1982 aproxima-se da tv a cabo e cria Andy Warhol's TV e Andy Warhol's Fifteen Minutes para MTV, em 1986. Data dessa época a sua intensa colaboração e amizade com Jean-Michel Basquiat, jovem e promissor artista que ele promoveu e ajudou a se firmar no universo das artes plásticas novaiorquinas, tanto quanto outros, como Francesco Clemente e Keith Haring. Seus últimos trabalhos datam de 1986 com a série de pinturas intitulada The Last Supper, baseados em Da Vinci e um revival do grande tema da pop art intitulado Ads que remetem aos trabalhos iniciais baseados nos apelos da publicidade e do consumo e nos objetos do cotidiano.


Warhol morreu no dia 22 de fevereiro de 1987, aos 58 anos, de complicações cardiovasculares, depois de uma operação da vesícula. A tempo de ver quase concretizada uma de suas profecias: “no futuro, todo mundo será mundialmente famoso por 15 minutos”. Ele ganhou a eternidade. Em 1994 foi inaugurado o The Andy Warhol Museum em Pittsburgh, Pensilvânia. Quando morreu ficou-se sabendo que esse homossexual assumido e torturado, que não consumava suas paixões (a primeira delas foi Truman Capote), era um católico ortodoxo, que mantinha em seu quarto uma imagem do Sagrado Coração. Era este talvez o lado mais fascinante da personalidade de Warhol: sua capacidade de surpreender-se, e de surpreender.


06 agosto 2018

A fama eterna de Andy Warhol (1)


Há 90 anos nascia o filho caçula de uma família de humildes imigrantes tchecos (o casal Warhole), e criado em Pitsburg (Pensilvânia), Andy Warhol. Ele nasceu em 1928. Antes de dormir, sua mãe lia para ele histórias em quadrinhos de Dick Tracy. Com 12 anos perdeu o pai e precisou trabalhar vendendo frutas de um caminhão. Com isso, terminou os estudos e, em 1945, foi estudar pintura no Carneggie Institute of Tecnology. Chegou a Nova Iorque por duas ambições: ser tão famoso quanto uma estrela de cinema e rico o suficiente para sustentar sua mãe com quem viveu sempre, até perdê-la em 1972. Começou como artista comercial, em 1949. Foi vitrinista, fez todo tipo de desenho para todo tipo de publicidade, gravura, capa de livro, cartão de Natal, etc.

Os anos de publicidade inculcaram nele a propensão de fazer uma arte absolutamente privada de estilos ou emoção. A transição da publicidade para a arte pura se deu através das histórias em quadrinhos. Os primeiros trabalhos de Andy foram versões ampliadas das tiras de Dick Tracy usadas como elemento decorativo nas vitrines da loja novaiorquina Lord and Taylor. Uma das características de sua arte é justamente esta qualidade ou nitidez de imagem da publicidade ou da imagem produzida mecanicamente. Ele foi um dos primeiros a empregar a serigrafia para multiplicar os seus trabalhos. Para ele, como para a produção industrial, o que conta é a quantidade, e esta que acaba por gerar a qualidade.


Warhol não estava interessado em idéias mas em objetos. Ou melhor, imagens de objetos industrializados – a lata de sopa Campbell, a garrafa de Coca Cola, a tampinha Pepsi Cola, o vidro de ketchup ou as caixas de sabão em pó Brillo. Para ele estas imagens tinham o mesmo valor que as outras que ele também repetiu exaustivamente de personalidades famosas como Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor, Elvis Presley, Marlon Brando, Mao Tsé-tung e até Pelé, além do símbolo da foice e do martelo. Tudo neutro, asséptico e brilhante como os esquemas gráficos de livros de bolso. Nenhuma emoção ou subjetividade – o seu rosto deixava transparecer o mesmo tédio dessas imagens colhidas aleatório da sociedade de massa.

Quando em 1960 Warhol realizou as primeiras pinturas baseadas em Dick Tracy, Popeye e Super Homem, além de duas garrafas de Cola Cola, inaugurando assim, em meio a um dos mais sofisticados cenários das artes plásticas contemporâneas, um novo filão: a elevação da banalidade e da vulgaridade cotidiana a estatuto de arte (ou vice-versa).


NOVA ARTE

A consagração viria mais tarde, em 1962, quando, além de realizar a série de pinturas de notas de um dólar (da qual uma das telas do vendida em 1986, num leilão, em NY, por 385 mil dólares, um dos maiores preços já alcançados por um de seus trabalhos), Warhol expôs suas já clássicas latas de sopa Campbell´s (reproduções quase que fotográficas, como na ilustração publicitária do produto) na Ferus Gallery, em Los Angeles. Estava confirmada uma nova arte, uma das últimas correntes artísticas do século 20 a manter uma profunda tensão estética em seus propósitos, um questionamento entre o lugar da arte e a banalidade do mundo.

Quando lhe perguntaram porque resolveu pintar latas de sopa, na época, respondeu: “Porque eu comia aquela sopa. Comi-a durante vinte anos, quase todos os dias, sempre a mesma coisa. Alguém me disse que a minha vida me dominou, esta idéia me agrada”. Depois de séries de ícones de personalidades conhecidas, veio a série Disasters – terríveis acidentes de estrada, tumultos raciais e execuções em cadeiras elétricas. No auge de sua fama e também de riqueza, passou a pintar menos e se dedicar ao cinema. Seus filmes undergrounds fizeram época.

Trabalhando com super-8 e vídeo-taipe num primeiro momento, Warhol realizaria filmes fundamentais dentro da história do cinema como Sleep (o registro, durante seis horas ininterrupta, de um homem dormindo), em 1963, Empire (um único plano de oito horas do Empire State Building, em NY), em 1964, e Chelsea Girls (o registro de “pessoas fazendo várias coisas”, durante sete horas, no mitológico Chelsea Hotel, em NY) em 1966. Andy Warhol rodou cerca de 80 filmes entre 1963 e 1967.

03 agosto 2018

A invenção do Nordeste (3)


Durval Muniz de Albuquerque Jr informa ainda que no Sul, a partir da década de 20, pensa-se a identidade nacional dividida em pólos antagônicos. São Paulo, Pernambuco e Bahia são tomados como células iniciais do tecido nacional. O discurso histórico centra-se na história dessas três áreas, para construir a história do Brasil. “O Brasil seria um país cindido entre a inteligência do Sul, mais bem aparelhada em seus conceitos de realidade; e, de outro lado, o ´nortista´, fantasioso, imaginoso e sensitivo, delirante e compadecido. Razão e sentimento, dilema em que se cindia a identidade nacional, representada pela divisão entre suas duas regiões”. E assim ele apresenta o pensamento de Menotti del Picchia, Mario e Oswald de Andrade, Amadeu Amaral, entre outros. Para o estudioso, o Nordeste, espaço da saudade, da tradição, foi também inventado pelo romance, pela música, pela poesia, pela pintura, pelo teatro etc.

O Nordeste como o lugar da tradição é sempre tematizado como uma região rural, onde as cidades aparecem, como símbolo da decadência, do pecado, do desvirtuamento da pureza e d inocência camponesa. Embora muito antigo, o fenômeno urbano e metropolitano no Nordeste é praticamente ignorado por sua produção artística e literária. Sendo o local de uma das primeiras manifestações industriais no país, a indústria é vista com desconfiança, como um corpo estranho numa “região agrícola”. “Olhar o Nordeste da cidade grande é como olhar do lado averso de um binóculo. Tudo longe, muito embaraçado”. Em algumas formulações, o Nordeste aparece como o mundo “primitivo”, em oposição à degenerescência do mundo “civilizado”.



Para o doutorado em História na Unicamp, e professor das universidades federais do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, os romances der Graciliano Ramos e Jorge Amado. Da década de 30, a poesia de João Cabral de Melo etc, a pintura de caráter social, da década de 40, e o Cinema Novo, do final dos anos 50 e início dos anos 60, tomarão o Nordeste como o exemplo privilegiado da miséria, da fome, do atraso, do subdesenvolvimento, da alienação do país. “Tomando acriticamente o recorte espacial Nordeste, esta produção artística ´de esquerda´ termina por reforçar uma série de imagens e enunciados ligados à região que emergiram com o discurso da seca, já no final do século passado. Vindo ao encontro, em grande parte, da imagem de espaço-vítima, espoliado; espaço da carência, construído pelo discurso de suas oligarquias. Eles lançam mão de uma verdadeira mitologia do Nordeste, já fabricada pelos discursos anteriores, e a submete a uma leitura ´marxista´que a inverte de sentido, mantendo-a, no entanto, presa à mesma lógica e questões. Do Nordeste pelo direito, passamos a vê-lo pelo avesso, em que as mesmas linhas compõem o tecido, só quer, no avesso, aparecem seus nós, seus cortes, suas emendas, seu rosto menos arrumado, embora constituinte também da própria malha imagético-discursiva chamada Nordeste”.

Ele aborda a questão das contradições de uma literatura presa a um dispositivo de poder e às sua lógica vivido pelo povo brasileiro. “Na literatura realista, o significado e o significante ficam unidos por ligações inseparáveis. Nesta, a linguagem denotativa impõe um sentido como verdadeiro, enquanto o autor impõe um sentido ao leitor, que tende a participar pouco da construção do sentido da obra. Ela não é uma prosa dialógica, mas monológica, em que as identidades dos personagens são sempre fichadas, em que não se permite a afirmação da negação, que é excluída numa síntese dialética ou conciliada por um trabalho de harmonização pelo uso da linguagem simbólica”.


O Nordeste destes romances é o Nordeste artesanal, no qual o industrial é visto como dramático e feio. Um Nordeste mais dos marginais, dos malandros, dos trabalhadores informais e autônomos. Um Nordeste da fuga do trabalho rotineiro e da disciplina industrial.

Em sua conclusão, Durval Muniz escreveu que o Nordeste é uma invenção recente na história brasileira, se gestou no cruzamento de uma série de práticas regionalizantes, motivadas pelas condições particulares com que se defrontam, as províncias do Norte, no momento em que o dispositivo da nacionalidade, que passa a funcionar entre nós, após a Independência, coloca como tarefa, para os grupos dirigentes do país, a necessidade de se construir a nação. “O Nordeste é, portanto, filho da modernidade, mas é filho reacionário, maquinaria imagético-discursiva gestada para conter o processo de desterritorialização por que passavam os grupos sociais desta área, provocada pela subordinação a outra área do país que se modernizava rapidamente: o Sul”.

“O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do pais, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.

Assim a obra de Muniz questiona esta representação regional e a prisão dos discursos a este dispositivo de força que a sustentou e a sustenta. “É preciso fugir do discurso da súplica ou da denúncia da miséria; é preciso novas vozes e novos olhares que compliquem esta região, que mostrem suas segmentações, as cumplicidades sociais dos vencedores com a situação presente deste espaço. Se o Nordeste foi inventado para ser este espaço de barragem da mudança, da modernidade, é preciso destruí-lo para poder dar lugar a novas espacialidades de poder e de saber”.

02 agosto 2018

A invenção do Nordeste (2)


Para Durval Muniz de Albuquerque, a região Nordeste surge na “paisagem imaginária” do país, no final da primeira década do século XX, substituindo a antiga diversão regional do país entre Norte e Sul, e foi fundada na saudade e na tradição. Surgiu da construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos por parte de produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. Assim, lança-se mão de topos, símbolos, de tipos, de feitos para construir um todo que reagisse à ameaça de dissolução, numa totalidade maior, agora não dominada por eles: a nação.

A questão da influência do meio era a grande arma política do discurso regionalista nortista, desde que a seca foi descoberta em 1877, como um tema que mobilizava, que emocionava, que podia servir de argumento para exigir recursos financeiros, construção de obras, cargos no Estado etc. O discurso da seca e sua “indústria” passam a ser a “atividade” mais constante e lucrativa nas províncias e depois nos Estados do Norte, diante da decadência de suas atividades econômicas principais: a produção de açúcar e algodão.

Assim, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagem e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público federal. O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877. Veio colocá-la como o problema mais importante desta área.

A seca de 1877/79, a primeira a ter grande repercussão nacional pela imprensa e a atingir setores médios dos proprietários de terra, trouxe um volume considerável de recursos para as “últimas do flagelo” e fez com que as bancadas “nortistas” no Parlamento descobrissem a poderosa arma que tinha nas mãos, para reclamar tratamento igual ao dado ao “Sul”. A seca tornou-se a partir daí o problema de todas as províncias e, depois, dos Estados do Norte.

Para o estudioso Durval, que possui pós-doutorado pela Universidade de Barcelona, a produção sociológica de Gilberto Freyre, bem como a dos chamados “romancistas de trinta”, têm no trabalho com a memória a principal matéria. Eles vão tentar construir o Nordeste pela rememoração de suas infâncias, em que predominavam formas de relações sociais agora ameaçadas. Eles resgatam a própria narrativa como manifestação cultural tradicional e popular, ameaçada pelo mundo moderno, e a tomam como expressão regional. Enquanto em São Paulos os modernistas procuravam romper com a narrativa tradicional, assumindo a própria crise do romance no mundo moderno, no Nordeste o movimento regionalista e tradicionalista volta-se para resgatar as narrativas populares, a memória como único lugar de vida para este homem moderno dilacerado entre máquinas, a narrativa como o lugar de reencontro do homem consigo mesmo, de um espaço com sua identidade ameaçada. 


Em seus estudos ele mostra que até nas músicas de Luiz Gonzaga, no trabalho teatral e literário de Ariano Suassuna o Nordeste parece estar sempre no passado, na memória. Para ele, “este Nordeste é uma máquina imagético-discursiva que combate a autonomia,m a inventividade e apóia a rotina e a submissão, mesmo que esta rotina não seja o objetivo explícito, consciente de seus autores, ela é uma maquinaria discursiva que tenta evitar que os homens se apropriem de sua história, que a façam, mas sim que vivam uma história pronta, já feita pelos outros, pelos antigos; que se ache ´natural´ viver da mesma forma as mesmas injustiças, misérias e discriminações. Se o passado é melhor que o presente e ele é a melhor promessa do futuro, caberia a todos se baterem pela voltados antigos territórios esfacelados pela história”.

Para Gilberto Freyre, o ponto de vista regional devia nortear os estudos de sociologia e história, porque a noção de região é aproximada à do meio ou local, habitat, um espaço da natureza sem o qual era impossível pensar a sociedade. A região é vista como a unidade última do espaço. Um espaço genético fundante de qualquer atividade humana. Freyre é também um dos fundadores do discurso que tenta modificar a negatividade das condições ecológicas do Brasil e, principalmente, do Nordeste. Sua visão é oposta à de Paulo Prado, por exemplo, para quem o meio era responsável pela tendência de o brasileiro ser teimoso, taciturno, triste, desconfiado, anulado. Para Prado, a tropicalidade nos condenava ao fracasso como nação, para Freyre ela nos singularizava como civilização, nos dava identidade, nos dava caráter próprio.


01 agosto 2018

A invenção do Nordeste (1)


Vivemos um momento de desidentificação com a memória nacional e regional. O livro de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, “A Invenção do Nordeste e outras artes” (Cortez Editora, 2006) é uma boa prova disso. O trabalho de pesquisa para a realização do doutorado em História na Unicamp, defendido em 1994 apresenta o surgimento de um recorte espacial, de um lugar imaginário e real no mapa do Brasil, que todos nós conhecemos profundamente, não importa de que maneira, mas que nunca pudemos imaginar com uma existência tão recente. E falar do Nordeste é inventariar os muitos estereótipos e mitos que emergiram com o próprio espaço físico reconhecido no mapa composto por alguns estados e cidades. É mobilizar todo o universo de imagens negativas e positivas, socialmente reconhecidas e consagradas, que criaram a própria idéia de Nordeste.


Um trabalho de pesquisa aprofundado que desconstrói foucaltianamente os discursos que deram visibilidade e que tornaram dizível a região nordestina. O que o livro interroga não é apenas por que o Nordeste e o nordestino são discriminados, marginalizados e estereotipados pela produção cultural do país e pelos habitantes de outras áreas, mas ele investiga por que há quase 90 anos dizemos que somos discriminados com tanta seriedade e indignação. Como, por meio de nossas práticas discursivas, reproduzimos um dispositivo de poder que nos reserva o lugar de pedintes lamurientos. “Nós, os nordestinos, costumamos nos colocar como os constantemente derrotados, como o outro lado do poder do Sul, que nos oprime, discrimina e explora. Ora, não existe esta exterioridade às relações de poder que circulam no país, porque nós também estamos no poder, por isso devemos suspeitar que somos agentes de nossa própria discriminação, opressão ou exploração. Elas não são impostas de fora, elas passam por nós. Longe de sermos seu outro lado, ponto de barragem, somos ponto de apoio, de flexão. A resistência que podemos exercer é dentro desta própria rede de poder, não fora dela, com seu desabamento completo”, escreveu no prefácio.

“O Nordeste é tomado, neste texto, como invenção, pela repetição regular de determinados enunciados, que são tidos como definidores de caráter da região e de seu povo, que falam de sua verdade mais interior”. As fontes utilizadas foram desde o discurso acadêmicos, passando pela publicação em jornais de artigos ligados ao campo cultural, à produção literária e poética de romanistas e poetas nordestinos ou não, até músicas, filmes, peças teatrais, que tomaram o Nordeste por tema e o constituíram como objeto de conhecimento e de arte.


Divididos em três capítulos, o primeiro, Geografia em Ruínas acompanha as transformações históricas que possibilitaram a emergência da idéia de Nordeste, desde a emergência do dispositivo das nacionalidades, passando por uma mudança na sensibilidade social em relação ao espaço, à mudança da relação entre olhar e espaço trazido pela modernidade e pela sociabilidade burguesa, urbana e de massas.

O segundo capítulo, Espaços da Saudade, aborda esta invenção regional, o surgimento do Nordeste como um novo recorte espacial no país, rompendo com a antiga dualidade Norte/Sul. A seca, o cangaço. O messianismo, as lutas de parentela pelo controle dos Estados, são temas que fundarão a própria idéia de Nordeste, uma área de poder que começa a ser demarcada, com fronteiras que servirão de trincheiras para a defesa dos privilégios ameaçados.

No terceiro capítulo, Territórios da Revolta, é abordado uma série de reelaboração da idéia de Nordeste, feitas por autores e artistas ligados ao discurso de esquerda. Nordeste gestado, a partir dos anos 30, por meio de uma operação de inversão das imagens e enunciados consagrados pela leitura conservadora e tradicionalista que dera origem à região. Obras como as de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Portinari, João Cabral de Melo Neto produzem Nordestes vistos pelo avesso, Nordeste como região da miséria e da injustiça social. Estes Nordestes, construídos pelo avesso, ficam presos, no entanto, aos mesmos temas, imagens e enunciados consagrados e cristalizados pelos discursos tradicionalistas.