26 setembro 2020

75 anos de Gal Costa

 

Neste sábado, dia 26 de setembro, Gal Costa comemora seus 75 anos. Dona de um dos melhores timbres de nossa música, sua voz era capaz de soar doce e suave cantando os mais simples dos sambas, ao mesmo tempo que podia extravasar toda energia do rock’n’roll do final dos anos 60 nas canções da fase mais experimental de sua carreira. João Gilberto definiu como “a maior cantora do Brasil”. Em sua fase “tropicalista”, que absorveu influências do canto rasgado de Janis Joplin e da psicodelia de Jimi Hendrix, lançou seu primeiro disco solo “Gal Costa” (1969). Em 1971 lançou “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor”, gravado ao vivo, que serviu para carregar a bandeira do Tropicalismo, enquanto seus dois principais compositores, Caetano e Gil, estavam no exílio.

 


O disco Índia sai em 1973. Cantar, produzido por Caetano e com arranjos de João Donato foi lançado em 1974. Em 1975 gravou a música de abertura da novela Gabriela, a canção “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, que fez grande sucesso. Gal Canta Caymmi, lançado no ano seguinte, quando Gal, Gil, Caetano e Bethânia se reuniram para o espetáculo Os Doces Bárbaros, que deu origem ao disco homônimo. Em Aquarela do Brasil (1980), a cantora revisitou a obra de Ary Barroso. Fantasia, do ano seguinte, alcançou sucesso nas rádios. O disco “Bem Bom”, de 1985 foi o mais vendido da cantora. Em 1988, recebeu o Prêmio Sharp de melhor cantora. Plural (1990), retomou a parceria com Waly Salomão. Em 1993, a cantora lançou O Sorriso do Gato de Alice, com show dirigido por Gerald Thomas (1954). O disco Mina D’água do Meu Canto, dedicado à obra de Caetano Veloso e Chico Buarque, gravado em 1995. Em 1997, revisitou o repertório no álbum Acústico e, em 1999, um disco com canções de Tom Jobim.

 

Em 2001 foi incluída no Hall of Fame do Carnegie Hall, sendo a única cantora brasileira a entrar no Hall, após participar do show “40 anos de Bossa Nova”, em homenagem a Tom Jobim. Em 2005 lançou o álbum “Hoje”. Em 2011 foi a vez do álbum “Recanto”, concebido e composto por Caetano Veloso. Esse disco tirou a cantora de um autoexílio fonográfico de seis anos. Em 2015, Gal Costa lançou “Estratosférica”, em três formatos: LP, CD e download.

 


Ao lado de Elis Regina (1945-1982) e Maria Bethânia, Gal Costa é considerada uma das principais referências vocais femininas de sua geração e influência para cantoras posteriores, como Marisa Monte, Tulipa Ruiz e Roberta Sá. Em comparação às cantoras de sua geração, Gal diferencia-se por trazer o grito do rock para o canto popular – Bethânia destaca uma interpretação mais teatralizada para seu timbre grave e Elis faz uso de todos recursos vocais para potencializar a expressividade passional. Samba, bossa nova, tropicalismo, ou rock’n’roll, Gal Costa canta com maestria tudo o que lhe vem na voz. Sua voz é doce, bárbara, fatal, estratosférica.

 

 


DISCOGRAFIA BÁSICA

 

Domingo (1967), com Caetano Veloso.gal-costa-capa-cd-3

Tropicalia (1968), com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé.

Gal Costa (1969).

Gal (1969).

Legal (1970).


Índia (1973).

Cantar (1974).

Gal canta Caymmi (1976).

Caras e Bocas (1977).

Água Viva (1978).

Gal Tropical (1979).

Aquarela do Brasil (1980).

Fantasia (1981).


Minha Voz (1982).

Baby Gal (1983).

Profana (1984).

Bem Bom (1985).

Lua de Mel como o Diabo gosta (1987).

Plural (1990).

Gal (1992).

O Sorriso do Gato de Alice (1993).gal-costa-capa-cd-0

Mina d´Água do Meu Canto (1995).

Aquele Frevo Axé (1998).

Gal de Tantos Amores (2001).

Bossa Tropical (2002).

Todas as Coisas e Eu (2003).

Hoje (2005).

Recanto (2011).

Estratosférica (2015).

A Pele do Futuro (2018).

 

Álbuns ao vivo

 

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor (1971).

Temporada de Verão (1974), com Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Doces Bárbaros (1976), com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

Acústico MTV (1997)

Gal Costa Canta Tom Jobim (1999).

Ao Vivo (2006).

Live at the Blue Note (2006).

Recanto ao Vivo (2013).

Live in London 71 (2014), com Gilberto Gil.

Estratosférica ao Vivo (2017).

Trinca de Ases (2018), com Gilberto Gil e Nando Reis.

21 setembro 2020

Árvores, os pulmões da Terra

O poeta St. John Perse gostava de dizer que todo livro nasce da morte de uma árvore. E como escreve o jornalista Sérgio Augusto, a dívida da palavra impressa com a celulose de que se alimenta é grande. Basta observar que book, bouquin e Buch derivam de boscus, bosque, e livro vem de líber, o tecido condutor da seiva das árvores. Poetas e prosadores utilizaram, a árvore como fonte de inspiração. Pinhos e magnólias eram celebrados por Francis Ponge, o baobá no imaginário de Antoine de St. Exupéry e Roger Caillois, no tronco do ipê de José de Alencar ou no meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. E os versos que Drummond criou pensando nas mangueiras de sua infância e nas amendoeiras de sua idade adulta.

 

E não ficou só na literatura. A árvore encontrou campo fértil na gravura e na pintura a partir do Renascimento. Durer, Bruegel, Corot, Poussim, Cézanne e muitos outros desenharam de tudo quanto é jeito. Nos desenhos animados, Walt Disney é imbatível. As árvores falam e contam todo o seu sofrimento e alegrias com os humanos.

 


Pulmões da Terra e abrigos seguros, sem as árvores as paisagens murcham e o ar empobrece. Elas nos dão além de brisa e vento, flores, frutas, êxtase, lenha e matéria-prima para uma infinidade de coisas: casas, móveis, papel, rolhas, embarcações, talheres, armas, tamancos, instrumentos musicais, pneus, etc... O biólogo australiano Tim Flannery, autor do livro “The Weather Makers” lembrou que, até hoje, nós mal sabemos o que vem a ser, precisamente, uma árvore. Até duas décadas atrás podíamos estar convencido de sabermos, mas o estudo do DNA balançou todo o conhecimento, colocando o cogumelo mais perto do homem que da couve-flor e provando que a teça, árvore indiana de grande porte, é parente muito próxima do orégamo e do manjericão. Flannery se espanta ao registrar que, últimamente, os botânicos põem os carvalhos mais ou menos ao lado dos pepinos. Desta forma, as árvores têm uma história épica, com grandes aventuras migratórias gravadas em seu genoma.

 

Colin Tudge, autor de “The Tree” informa que há espécies que podem ser árvores ou arbustos, dependendo d onde resolvam fincar raízes. Além de árvores que, no passado, foram trepadeiras ou mesmo ervas rasteiras. E árvores já é assunto do momento. Enquanto o inglês Thomas Pakenham retrata com sua câmara Linhof plantas de vários continentes, o engenheiro florestal Harri Lorenzi já está na nova edição de “Árvores Brasileiras”.

 


Uma pesquisa publicada na Califórnia afirma que remover as árvores do planeta pode esfriá-lo. Segundo o novo estudo, como as florestas são muito verdes e fechadas, elas conseguem absorver mais o calor do sol que outra vegetação, tornando o clima mais quente. As árvores, até hoje, eram consideradas fundamentais por sequestrar o carbono da atmosfera (presente nas moléculas de CO2 que aquecem o clima).

 

As árvores se transformaram num símbolo ímpar, apresenta em quase todas as religiões arcaicas. Sejam maias, babilônicos, nórdicos e germânicos representavam com eles o cosmo. Os gregos as veneravam. Os lituanos (antes de serem convertidos ao cristianismo) praticavam abertamente a dendrolatria, o culto à árvore. E até o cristianismo tem uma simbólica macieira em sua mitologia. Suas características morfológicas, sua verticalidade, imobilidade, frondosidade e longevidade, pela força de sua presença e seu poder de regeneração, elas são símbolo ímpar, presente em quase todas as religiões arcaicas.

 


As árvores exercem um fascínio imenso sobre nós. No livro “O Homem e Seus Símbolos”, sobre a obra de Carl Gustav Jung, Marie Louise von Franz compara o desenvolvimento do ser humano ao das plantas. A semente contém o futuro pinheiro. Mas reage às circunstâncias, como qualidade do solo e vento, inclinando-se em direção ao sol e modelando o crescimento da árvore. Assim também acontece com o homem, de maneira espontânea e inconsciente, ela escreveu. Os celtas acreditavam que há muito em comum entre as árvores e as características das pessoas. Tanto que criaram um oráculo baseado nas plantas. Há 20 anos, Liz e Colin Murray resgataram esse conhecimento e escreveram The Celtic Tree Oracle, com 24 cartas, que incluem bétula, álamo, freixo, árvores típicas da Europa. Esse oráculo tem relação com o alfabeto celta, e criado pelos druidas com base em gestos dos dedos, conta a pesquisadora Wicca Mirela Fahur, autora do livro O Legado da Deusa. Adaptado para o Hemisfério Sul, o oráculo traz árvores tropicais, como coqueiro e goiabeira. Carvalho, ipê, oliveira e jacarandá representam as pessoas que nasceram em datas especiais de mudança de estação no Hemisfério Norte.

 


E o nome Brasil foi tirado de uma leguminosa, imortalizamos a chegada da corte de D. João VI com o plantio de uma palmeira imperial, cultuamos o mito de que “nossos bosques têm mais vida” e cultivamos o hábito de dar as pessoas e lugares patronímicos como Oliveira, Carvalho, Laranjeiras e Mangueira. Agora falta ter um relacionamento mais afetuoso com as árvores.

 

 

18 setembro 2020

Cinquentenário da morte de Jimi Hendrix

 

Há 50 anos, no dia 18 de setembro de 1970 morria o guitarrista Jimi Hendrix (1942-1970), com apenas 27 anos. 50 anos após a sua morte ele continua sendo um dos maiores ícones do mundo da guitarra, e imortalizou a sua obra através de músicas como "Foxy Lady", "Purple Haze", "Hey Joe", "May This Be Love", "Voodoo Child" e "Gypsy Eyes". Mais do que qualquer outro artista, Hendrix alterou radicalmente o conceito que as pessoas tinham da guitarra. Independentemente de estilo, ele se tornou o mais importante guitarrista do século 20.

 


 

Jimi Hendrix era autodidata e canhoto, tocava de maneira completamente estranha uma guitarra Fender Stratocaster para destros, com as cordas invertidas. Ele revolucionou a maneira de tocar guitarra, desenvolvendo o uso da alavanca e principalmente dos pedais conhecidos como wha-wha. Mais do que isso, colocou a figura do guitarrista como principal personagem nas bandas de rock. Seus solos e riffs foram uma das principais raízes para o nascimento do heavy metal. Em todo seu trabalho misturou elementos do rock e do blues, até hoje é considerado o guitarrista número 1 de toda a história do rock e música pop de todos os tempos. Um guitarrista que segurou a chama do blues preservando sua mensagem para que as novas gerações a descobrissem. Em sua viagem explorou territórios desconhecidos para depois recontar em suas músicas.

 

“Para mudar o mundo, você precisa antes mudar a sua cabeça."

 


O som é incendiário, elétrico, faiscante. Quem ouve não esquece jamais. Como um alquimista do som, ele buscava novos acordes, efeitos, sonoridades. Tentava imitar ao máximo os sons e músicas que vinham de sua mente. Excelente compositor e arranjador, ele era, antes de tudo, um experimentador. A experiência em misturar os sons para descobrir o que cada nota revelava, as cores que transcendia. E tudo isso porque ele tinha uma intensa relação com seu instrumento que não era apenas uma simples ferramenta de trabalho, mas uma extensão de seu corpo e alma. Seu universo sonoro cheio de estranhas e, ao mesmo tempo atrativas texturas e timbres, produzidas na sua uivante Stratocaster, jamais foi repetida. Ninguém ousou como ele. Sua guitarra elétrica não era mais obrigada a tocar só meras notas ou ritmo. Nas suas mãos, a guitarra transformou-se numa máquina geradora de sons tridimensionais. Eram cores e sons feito caleidoscópio na pele de quem ouvia, no som que irradia. E foi assim que ele revolucionou todo o conceito de música de sua época.

 

"Me dá licença que vou beijar o céu."

 


Seu primeiro nome artístico foi Jimmy James, montou a banda “Jimmy James and The Blues Flames”, Chas Chandler, baixista do The Animals, torna-se empresário da banda, no momento em que já haviam conseguido contrato com a Columbia. Rapidamente deixa de ser figurante e monta sua própria banda, Jimmy James and The Blue Flames. O jovem guitarrista canhoto chama a atenção não apenas pelos solos imprevisíveis e de estilo inédito até a época, mas também pela extrema habilidade em tocar a guitarra com os dentes ou nas costas. Depois de algumas reformulações no grupo, a banda mudou de nome, para “The Jimi Hendrix Experience”. Com o novo nome foram para Londres, nesta viagem surge a gravação da imortalizada música “Hey Joe”, além de “Purple Haze” e “The Wind Cries Mary”, fizeram grande sucesso na Inglaterra, desta viagem amadureceu a idéia do primeiro álbum “Are you Experienced”, lançado em 1967. Após uma turnê como banda de apoio na Europa fazem sua estréia na America no Monterey Pop Festival na California, logo após seguindo em turnê americana como banda de abertura dos Monkees.

 

“O dia em que o poder do amor for maior que o amor pelo poder, o mundo encontrará paz”

 

Este álbum até hoje é considerado um marco na história do rock. No mesmo ano lançaram o segundo trabalho, “Axis : Bold as Love”, e em 1968, “Eletric Ladyland”. A banda acaba em 1969, Hendriz monta com Mitch Mitchell, Billy Cox , Larry Lee , Juma Sultan e Jerry Vélez, a “Bando of Gypsys”. Em agosto de 1969, a banda estoura no festival de Woodstock. Em 1970 a banda Experience seria reformulada e lançariam The First Rays of the New Rising Sun, logo depois mudando novamente de nome para Cry Of Love. Em 18 de setembro de 1970 Jimi Hendrix entrou em coma em um quarto de hotel de Londres, sozinho, sendo encontrado desacordado por uma equipe de paramédicos. A caminho do hospital foi constatada a sua morte em virtude de sufocamento por seu próprio vômito. Existem muitas controvérsias sobre a real causa da morte, mas provavelmente Hendrix sofreu uma overdose de comprimidos tranquilizantes. Ele morreu, mas sua enorme influencia exerce até hoje sobre o mundo da música.

 


“O conhecimento fala mas a sabedoria escuta”

 

Desde os singles “Purple Haze”, “Little Wing”, até “All Along the Watchtower” e “Voodoo Child”, Hendrix conduziu com maestria seu trabalho musical que percorria o Blues, R&B, Jazz e por fim chegava nos acordes estridentes e concisos de sua guitarra. Canhoto, inovou diversos novos estilos, seja com o uso de pedais, amplificação dos efeitos sonoros, ou até mesmo a utilização da alavanca de trêmolo, fator que possibilitava o guitarrista “entortar” acordes e inventar novos efeitos com a guitarra.

13 setembro 2020

Personagens do cartunista Lage

Quem quiser entender a Bahia de 1969 a 2006 precisa levar a sério o trabalho do cartunista Helio Roberto Lage (1946-2006) e olhar com atenção o comentário cáustico e agudo de suas charges. Mais do que jornalistas, são cronistas do desenho, que respondem diretamente aos acontecimentos com traço e legenda. De traço simples, ele conseguiu captar todo o momento histórico político vivenciado nacionalmente. Cartunzão, L´amou tuju L´amu, Tudo Bem, Brega Brasil, Ânsia de Amar mostra um humor sem retoques – autêntico e mordaz. O humor caligráfico de Lage tem uma marca pessoal muito forte e traz, por inteiro, a perplexidade nossa de cada dia.

Em 1969 começou a desenvolver charge e tiras de humor no jornal recém fundado, Tribuna da Bahia. Na série Estorinha do Lage começou a publicar um herói espacial, sátira ao super-herói. Ainda na tira ele criou o papagaio Put. Nos anos 70 começou a desenhar uma página inteira de humor no jornal O Dia, de Piauí. Durou um ano. Em seguida começou a ilustrar a coluna esportiva de Carlos Eduardo Novaes no Jornal do Brasil. Depois veio a serie Cartunzão, muito irreverente. Para o suplemento A Coisa criou L´amu tuju L´amu abordando os costumes e comportamentos populares. Nos anos 80 começou outra serie de tiras diárias, Tudo Bem onde a mulher, Kátia Regina por exemplo, era a personagem principal, mesmo com a presença constante de Arlindo Orlando.

 


De 1976 a 1980 foi editor de arte da revista Viverbahia quando começou a fazer quadrinhos coloridos. Em 1981 passou a ser editor de arte da revista Axé Bahia e publica os quadrinhos da sensual Dora Mulata. Em 1994 no Jornal da Pituba cria o quadrinho Pituboião, satirizando o dia a dia da comunidade.

 

Segue abaixo algumas das tiras de Lage incluídas em minha pesquisa inédita A,B,C dos personagens do quadrinho brasileiro (De Nhô Quim, de Agostini aos Zeróis, de Ziraldo) para ser publicada em livro:

 


ÂNSIA DE AMAR – Tira diária publicado no rodapé da página 2 do  Caderno de Cultura da Tribuna da Bahia a partir de 1993 mostrando os problemas afetivos. Aborto, traição, ciúme são analisados nas tirinhas. Do preconceito ao amor sublime, a tira diária Ânsia de Amar é um retrato das relações contemporâneas entre homens e mulheres. Com a mesma sagacidade, retratada em seus cartuns, a hipocrisia social e política são vistas nessa obra. A proposta é desmistificar o sexo e até mesmo a pornografia. Sua fonte de trabalho: as conversas em mesas de bar, telefones públicos, histórias contadas por amigos e ele próprio. Neste último caso, Lage (1946-2006), o autor,  aproveita para fazer uma autocrítica. Ou seja, nem o próprio escapa.

 


ÂNSIA DE MAMAR – Publicada na Tribuna da Bahia esta série criada pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) nos anos 1990 desnudava de forma satírica e impiedosa as maracutaias tramadas por um parlamentar e sua incorrigível genitora. O lápis, o espírito crítico e o talento eram os seus materiais de trabalho. As grandes festas do verão baiano, o sofrimento do povo e as artimanhas políticas, sua fonte de inspiração. Rapidamente conquistou o seu mercado. Começou sua carreira em 1967, fazendo charges para a Tribuna da Bahia, jornal onde permaneceu até seu falecimento. Em 1997, foi eleito o melhor cartunista brasileiro pelo Troféu HQ Mix. Treze anos depois de sua morte, é um patrimônio da cidade de Salvador. Ele criou tipos, retratando situações, um grande cronista local. Lage atravessou 40 anos de charges, cartuns e quadrinhos como um observador vigilante e de fino espírito crítico. Como conseqüência, submeteu a seu olhar os presidentes, governadores e prefeitos que administraram o País e a cidade de Salvador durante os anos em que trabalhou em jornais e revistas.

 


BREGA BRAZIL – Série publicada na Tribuna da Bahia a partir de 1991, do cartunista baiano Lage (1946-2006). A tira Brega Brazil satirizava os desmandos do governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) através de caricatos personagens. O desenhista contava também as peripécias entre o tesoureiro Paulo César Farias, o PC Farias e seu filho Faria Junior, um garoto de respostas rápidas e muitos dólares na cabeça. Depois da ditadura, finalmente os brasileiros iriam escolher direta e abertamente o seu presidente da República. A primeira eleição da Constituição Cidadã de 1988 elegeu o desconhecido governador das Alagoas, Fernando Collor de Mello. Ele juntou um discurso oposicionista com a moralidade administrativa e conseguiu mobilizar a multidão. Personalista, autocrata, demagogo, conseguiu mobilizara multidão. Ao chegar no poder congelou as contas bancárias para conter a inflação. Não adiantou. Com a economia enfraquecida, uma turbulência política começou a inviabilizar o governo: acusações de corrupção ficaram cada vez mais intenso. Em vez de mandar apurar, Collor reagia atacando a oposição, o Congresso e a mídia com diversas manifestações, passeatas e protestos, a OAB e a ABI deram entrada no Congresso a um pedido de impeachment do presidente. Para tentar fugir da perda dos direitos políticos, Collor renuncia à Presidência da República. Foi o mais negro capítulo da história política do Brasil. Assim, com o apoio das elites, o jovem alagoano vence as eleições e o palácio do governo começava a se tornar o centro de uma vasta rede de corrupção e negociatas, na qual projetos só andam se movidos a propina (e ainda continua hoje). Multidões saem às ruas e o presidente sofre impeachment, mas se livra da prisão. Meses depois ele e a esposa estavam numa ilha do Taiti. Mais tarde o casal se muda para Miami, onde o ex-presidente nega ter a Ferrari de US$120 mil e a casa com torneiras folheadas a ouro que estaria construindo... A suposta quadrilha durante a era Collor em Brasília não seria a única a saquear os cofres da nação. Em suas tiras Lage mostra o povo sem pão nem circo, reclamando de melhorias de vida. Já não existe mais amor em Brega Brazil, o povo lá só quer saber de sexo. Brega Brasil, para o autor, será sempre um país falido, um mero pedaço de terra de ninguém que anos atrás foi confundida como uma pátria e agora grande parte do povo é composta de bichos escrotos, reflexo do grande poder escrotão. E graças ao poder corrupto, irresponsável e inconseqüente, as coisas se deteriora em ritmo acelerado.

 


DORA MULATA – Quadrinho criado pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) na revista Viverbahia a partir de 1981. A sensual Dora era uma nativa da ilha de Itaparica, na Bahia. Ela se relaciona com um gringo, um francês e um nativo. Triângulo amoroso onde ela tinha preferência pelo francês. Foi publicada também na revista Axé Bahia. Sua maneira objetiva de apresentar, com a simplicidade de seu traço, os vários problemas diferentes ao ser humano, descrevendo com capacidade, firmeza os muitos quadros públicos. O olhar “malandro” das suas personagens, desta vez apresenta o empoderamento da mulher que começa a se emancipar do machismo da época. Artista consciente do seu trabalho e possuidor de um senso crítico bastante apurado, as personagens de Lage são aparentemente simples, feitas de poucos traços que demonstram, na maioria das vezes, a perplexidade das situações de desumanização da vida cotidiana, mas não perde a alegria do viver, seja na orla de Salvador ou nas festas de largo.

 

HISTORIHA DO LAGE – Tira diária publicada pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) na Tribuna da Bahia a partir de 1969. Conta as aventuras de um herói espacial, sátira ao super heroi. Um sujeito que vivia no futuro, mas tinha muitas coisas no presente e passado, ambientado na Bahia. Na série ele criou o papagaio Put, personagem irreverente.

 


L´AMU TUJU L ´AMU – Série cômica de autoria do cartunista baiano Lage (1946-2006) em 1975 no suplemento A Coisa da Tribuna da Bahia e no independente Coisa Nostra, em 1976. Trata-se do comportamento amoroso, o relacionamento homem/mulher. O desgaste, a rotina e os problemas que afetam os relacionamentos são abordados no diálogo de um casal que, na maioria das vezes, aparece no ambiente de um quarto. Lage utiliza uma linguagem coloquial, simples, bem popular. “São textos pequenos, mas cheios de malandragem e de erotismo característicos do povo baiano”, atesta Hilda Guanais Fausto no seu projeto de pesquisa para análise do Curso de Comunicação da UFBa. Talvez influenciado até pela sua vida de casado, o autor resolveu apresentar um personagem ligado ao problema de sexo e amor. A tira ajudou também aos leitores. Seu humor é baiano em cada traço, em cada frase e atinge em cheio o alvo traduzindo o estado de espírito, as frustrações e os desejos de cada um dos baianos. Humor que se mistura na multidão, nas festas de largo, que persegue o trio elétrico, que mija a vista de todos nas ladeiras íngremes, que passa fome na semana e vai ao estádio da Fonte Nova aos domingos. Humor moleque, humor povo...

 


PITUBOIÃO – História em quadrinhos criada por Lage (desenho) e Helcio, Ethel Viña, Cesio Roberto, Wander Pinheiro e Renato Oliveira em 1984. A narrativa é construída em torno do candidato a política de Salvador, Bahia, Adalberto Pituboião, sujeito engravatado cuja cabeça não passa de um “tôloco de merda”. Ele está sempre cabisbaixo, meditabundo, desolado e em profunda depressão. Sempre que é possível, consulta na tenda dos milagres de Madame Ethel Vinna, mas, aconselhado por assessores, recorre à psicanálise; E, tomando algumas preocupações, o famoso analista Valter Setubal de Castro Lacerda aceita o caso de Adalberto que quase iria parar numa mesa de bar para “enchera cara”, num boteco lá na Boca do Rio. Na consulta, o psicanalista não agüentava o fedor exalado pelo político baiano mas preocupado procura acalmar o paciente e aconselha a rever suas alianças. Mais tarde na Câmara, diante de toda a mídia presente, Pituboião faz seu discurso: “Neste momento solene em que todo `covarde faz força e todo valente se caga`, quero declarar de pronto a minha renúncia, deixando claro porém, que forças ocultas determinaram esta minha atitude. Portanto, companheiros, sinto-me premido a abandonar esta arena de trabalho inolvidáveis e partir saudoso...”. E Adalberto Pituboião levanta ancoras no seu belíssimo iate `flauta de pan` com destino ao Morro de S.Paulo. “Voltará o nosso herói às lides políticas?. Os leitores suportará tal retorno?. Aguardem”, anuncia o letreiro final da historieta que ocupava duas páginas do Jornal da Pituba (bairro de Salvador) que circulou em 1984 e 1985, publicação da Empresa Jornalística Expansão. Com muito humor, além de política, a série do jornal independente, do bairro, satirizava o dia adiada comunidade. A historieta ocupava duas páginas do jornal criticando o quadro sucessório político, as músicas de sucesso, os buracos de rua, a poluição do Rio Camurugipe, do trânsito caótico e dos problemas sociais da cidade.

 

 

 

01 setembro 2020

Império dos Gibis desvenda a Editora Abril

 

Curiosidades, intrigas e reviravoltas. É assim que os jornalistas Manoel de Souza e Maurício Muniz mostram toda a saga da Abril, desde os obscuros gibis e livros que a editora fez questão de esquecer, até os títulos que encantaram várias gerações por mais de seis décadas. E a dupla foi a fundo nas origens da editora dos Civita e sua relação com os quadrinhos, uma trajetória que passou pela Itália, Estados Unidos e Argentina, até chegar ao Brasil, onde provocou uma revolução cultural. A incrível história dos quadrinhos da Editora Abril, O Império dos Gibis é o título do livro lançado pela Editora Heróica.

 


Para os autores, a Abril foi a editora que mais lançou quadrinhos em nosso país. Foram 17.970 lançados pela Abril em um registro de quase112 mil edições brasileiras registradas até junho de 2020.

 

César Civita investia primeiro em publicações destinadas acrianças e jovens. Seu projeto tinha a ver com esperança, vida nova. “Como a  aquecida mudança das estações na  Europa, quando o inverno dá lugar à primavera no mês de abril. Veio daí o nome Editorial Abril, cujo logotipo traria uma pequena árvore estilizada, que representava a fertilidade” (pag.15). A nova Editorial Abril debutou no mercado em 1941 na Argentina. Passados três anos, César começou a investir nas historietas (como os quadrinhos são chamados na Argentina). Em 1944 surgiu El Pato Donald, revista de 32 páginas e formato 19,5cm por 28cm. Com periodicidade semanal, trazia parte das páginas coloridas (em quatro cores), parte duas cores (em preto e magenta) e o restante em peto e branco. A revista chegava a vender 120 mil copias semanais – número que chegaria a 300 mil em 1948, o que motivou César a investir em outras historietas.

 


A tríade “livros infantis, quadrinhos e fotonovelas” sustenta a Editorial Abril em sua primeira década. Em 1947 César criou uma espécie de filial de sua editora no Brasil. Nascia a Editora Abril Ltda.

 

“Entre janeiro e junho de1950, as bancas brasileiras receberam cerca de 250 edições do gênero, lançadas por diversas editoras, como Ebal (com Aí, Mocinho!, Edição Maravilhosa, O Herói e Superman), O Globo (Biriba Mensal, Gibi, Gibi Mensal, Globo Juvenil, Globo Juvenil Mensal, Novo Gibi, Shazam! e X-9), O Cruzeiro (O Guri), Grande Consórcio Suplementos Nacionais (O Lobinho), Vecchi (O Pequeno Sheriff) e O Malho (O Tico Tico e Tiquinho), entre outras. Para concorrer com todo esse pessoal, Victor Civita investiu em dois títulos mensais: um de aventuras (Raio Vermelho) e outro focado nos personagens Disney (O Pato Donald). Ambos extremamente calcados nas experiências de seu irmão na Argentina” (pag.28).

 

A revista O Pato Donald seria totalmente impressa em quatro cores a partir de julho de 1956. E em dezembro de 1959, foi publicada a primeira HQ da Disney 100% criada no Brasil: Papai Noel por Acaso, com 12 páginas desenhadas por Jorge Kato, publicadas em O Pato Donald 424. Kato faria parte de um rol de funcionários que teria longa carreira na Abril. Teve ainda Reinaldo de Oliveira, Claudio de Souza, Alvaro de Moya, Waldyr Igayara, Ignácio Justo e muitos outros.

 


“A primeira metade dos anos 1960 foi um período de decisões que mudaram profundamente a cara da Abril” (pag. 57). Victor Civita tornou-se sócio majoritário da empresa. “Essa entrada tardia se deu por conta da demora de sua naturalização brasileira”. Assim o intercâmbio com a Editorial Abril diminuiu bastante e as empresas que nasceram como irmãs, tomariam rumos bem diferentes. “Enquanto o governo argentino continuaria considerando César Civita um inimigo estrangeiro, seu irmão Victor soube lidar melhor com os militares que tomaram o poder no Brasil e com as instituições locais” (pags 57, 58).

 

Passados quase 15 anos da vinda de Victor Civita ao Brasil, a editora contava com 18 publicações e mais de 4,5 milhões de exemplares vendidos mensalmente. Em 1970 a Abril já dominava o segmento de quadrinhos infantis e a editora mirou em Mauricio de Souza. Em maio chegava às bancas Mônica e sua Turma com tiragem de 200 mil exemplares. Cebolinha ganharia seu título solo em janeiro de 1973. No final de 1970, a Disney-Abril contava com quatro revistas – as quinzenais O Pato Donald e Zé Carioca e as mensais Mickey e Tio Patinhas. Ao completar sua primeira década no final de 1973, Tio Patinhas era umas das publicações mais vendidas do Brasil, com picos de mais de 500 mil exemplares por edição. Era a maior revista em circulação do Brasil.

 


Para suprir os títulos, a editora contratou mais quadrinhistas e sentiu necessidade de formar jovens talentos. Jorge Kato coordenou a Escolinha Disney auxiliada por Primaggio Mantovi. Surgiu a revista Crás! com Nico Roso, Walmir Amaral, Jayme Cortez, Jose Lanzellotti, Ruy Perolti entre outros. A revista durou seis edições, lançadas entre 1974 e 1975. Experiência vanguardista que pagou o preço alto pela falta de estrutura e planejamento editorial mais coerente, avaliaram os autores do livro.

 


Em 1985, a editora dos Civita havia colocado 403 diferentes títulos de quadrinhos nas bancas. Dessas, 97 eram da Mônica e sua turma. Em 1986, foram 489 gibis no total, com 102 vindos do universo da baixinha dentuça. Naquele período, as revistas de Mauricio de Sousa representavam algo entre 20% e 25% do setor de quadrinhos da Abril. Nascia ali um clima de disputa entre Abril e Globo.

 

Na Globo a revista da Mônica subiu de 268 mil exemplares mensais (1986) para 347 (1987). O mesmo período, Cebolinha subiria de 210 mil pra264 mil, Chico Bento de 174 mil para 264,5 e Cascão de 174 mil para 240 mil. O ápice de Mauricio na Globo foi entre 1987 e 2006, que chegou ater 6,3 milhões de revistas vendidas em um mês e nunca ficou abaixo dos3 milhões de exemplares mensais. O autor se consolidou como um fenômeno à parte no instável mercado editorial.