30 outubro 2008

Pasolini, o diagnosticador dos tempos


No dia 02 de novembro de 2008 completa 33 anos da morte de Pasolini. Profundo, mordaz e a favor da independência humana, o cineasta, escritor, poeta, jornalista político, homem de teatro e filósofo Pier Paolo Pasolini, morreu tragicamente há 33 anos, deixou uma obra que ainda causa polêmica.

Píer Paolo Pasolini (1922/1975), artista que hoje se chamaria de um multimídia – era prosador, poeta, repórter, articulador, pintor, e “também” cineasta. Quer dizer, o cinema era um meio de expressão, entre outros. E esse meio lhe servia para dar forma a uma posição determinada diante do mundo. Posição de esquerda, porém fora da esquerda oficial. Libertária do ponto de vista sexual, provocativa em política, conservadora na religião. Ele queria captar o discurso do povo e não fazer um discurso sobre o povo. Seus filmes mostram a disposição de encontrar essa força primitiva que viria dos estratos populares, livre de contaminação da cultura de elite. Forças primais, as forças da saúde – o sexo, a fome, o riso, o prazer em todas as suas formas, mesmo as mais escatológicas.

Pasolini nunca foi uma unanimidade, mas foi, incontestavelmente, um personagem decisivo da cena cultural italiana e não apenas da cinematográfica. Como Glauber Rocha no Brasil, ele foi acima de tudo um agitador. Revolucionou – e talvez tenha convulsionado – a estética e a política. Emerge do neo-realismo do após-guerra e mescla temas sociais a um cristianismo popular muito à sua feição. Ele é um retratista de primeira da periferia romana, como se vê em “Desajuste Social” (1962), e “Mama Roma”. Seu “Evangelho Segundo São Mateus” mostra um Cristo revolucionário e a crítica política em “Gaviões e Passarinhos”. Em “Teorema” é a sexualidade que vem desarranjar a sonolenta estabilidade da família burguesa. Da mesma forma, os filmes míticos como “Medeia” e “Édipo Rei”, seriam buscas de salvação na luta de classe sem-fim.
Enquanto o homem moderno acostumou-se a tratar com desdém a Idade Média, chamando-a de época das trevas, Pasolini lançou a sua trilogia da Vida como “Decameron”, “Os Contos de Canterbury” e “As Mil e Uma Noites” onde haveria alguma esperança no homem. Para ele, a idade da escuridão era esta, a nossa, a do capitalismo e da sociedade de consumo. Essa profecia do caos ele a realizou por completo no filme que acabou como sendo seu testamento, “Saló”, no qual identifica o fascismo com a obra de Sade. Ele fala da cidade de Saló, onde Mussolini fundou a República Social Italiana, sob proteção alemã, em 1943, já no epílogo da sua aventura. O filme é trágico, profético e fundamental.

“Pasolini foi um crítico radical da sociedade de seu tempo”, afirma a professora da Unicamp, Maria Betânia Amoroso no livro Píer Paolo Pasolini (Cosac & Naify). “Ele foi um dos que, por primeiro, souberam enxergar a virada irreversível do mundo”. A estudiosa preferiu tratar, entre as várias facetas de Pasolini, a do “diagnosticador” dos tempos que viriam, ressaltando os dois pontos que ele defendeu ao longo da vida. “O primeiro é que, para ele, o mundo está constituído de forças contrastantes, sem que, todavia, isso signifique o conformismo estéril; e o segundo é que a arte exige conhecimento prévio e técnico, não sendo ato de pura vontade nem dom natural. Quando fez crítica à ideologia, nunca foi cínico”. Ele radicalizou, como poucos pensadores, o discurso anticomunista e antifascista. Teve a intuição do que seria o mundo globalizado e o criticou com veemência. É esse seu maior legado.

Nos seus filmes, Pasolini se deslocava e se distanciava cada vez mais dos centros industriais. Suas criações desse período foram instrumentos de uma batalha desesperada contra a degradação neocapitalista do mundo. Temos, por exemplo, contra o materialismo burguês, o senso metafísico e o irracionalismo religioso em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e em Teorema (1968); contra o racionalismo pragmático, a magia e a força do irracional e do mito em Édipo-Rei (1967), Medéia (1970) e nas Notas por uma Oréstia Africana (1970); contra a ideologia do desenvolvimento e da eficácia tecnológica, o caos e a barbárie em Pocilga (1969). A partir de 1970 ele resolveu lutar contra seu pessimismo e consagrou sua “trilogia da vida” à exaltação da realidade corporal simbolizada no corpo nu e no sexo nos filmes Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e uma Noites (1974). O sexo é também o principal protagonista de Saló, ou Os 120 Dias de Sodoma (1975), o último filme de Pasolini. O sexo, não como fonte de prazer, mas como objeto de tortura: é com esta imagem da desrealização fascista do corpo – isto é, justamente do último reduto da realidade – que Pasolini compõe o retrato final do seu mais absoluto desespero.

Talvez o filme mais deliberadamente abusivo produzido por um diretor de primeira linha, Saló mostra perversões sexuais tão cruéis que uma cena comum de amor heterossexual logo é punida com a execução dos amantes. Apesar do realismo apocalíptico ser a tônica da narrativa de Saló, a força ficcional tem inspiração no romance Os 120 Dias de Sodoma, de Marquês de Sade, que faz Pasolini aproximar sadismo e fascismo como práticas correntes do mundo moderno. Ambos, para ele, refletem a economia política e o aviltamento consumista da sexualidade. Pasolini sintetiza sua luta contra o terror – da direita e da esquerda. É o grito contra o poder e sua força de manipulação, contra a violência ao pensamento e à mercantilização do corpo, no sentido do aprisionamento às regras de uma sociedade de consumo. Talvez o filme mais cruel, o grau máximo da ficção cotidiana mais subversiva em seu poder de crítica e desespero que o cinema produziu no século XX. Foi o último delírio de Pasolini.

Pasolini sabia que a sociedade de consumo, cujo poder é planetário, requer indivíduos massificados, dóceis, conformistas, que não perturbem a lógica do consumo. Muitas vezes, poetas e artistas tomados por Dionísio pagam caro seu inconformismo. Rimbaud, Lautreamont, Genet, Dino Campana, Sade, Artaud, Caravaggio, Crevel, Qorpo Santo, Nietzsche, Nerval, Trakl e muitos outros comprovam essa trajetória.

Morte (3)

“A morte tem corpo de modelo, roupa de poesia e o sorriso da sua melhor amiga. Ela usa uma cartola para se divertir, um colar com um ankh como pingente para ter força e carrega um guarda-chuva preto enorme para viajar às ´terras sem sol´. Fico aqui imaginando; qual será o cheiro dela?. Tenho certeza de que é fresco e limpo e de que a risada deve ser tilintante, ou talvez seja calorosa e de menininha, mas, seja lá como for, o negócio é que a Morte ri muito”.

“Falamos sobre o ´milagre do nascimento´, mas e o ´milagre da morte´?. Já entendemos muita coisa sobre a ciência da morte, mas a magia e a inevitabilidade dela são temidas e ignoradas há muito tempo. E se a Morte foi uma pessoa?). Esta Morte simpática e que adora as pessoas, que eu conheci aqui, não é amedrontadora nem distante. Ela está por aqui todos os dias e aproveita as coisas. Ela não está aqui para nos castigar nem para nos matar, mas sim para nos ajudar a descobrir como viver antes de precisarmos partir”. Esses trechos são de Claire Danes, protagonista de “Stardust”, adaptação para o cinema do livro de Neil Gaiman e Charles Vess.
VALOR DA VIDA
A mais popular personagem feminina dos quadrinhos norte-americanos, Morte surgiu em 1989, na edição número oito da revista Sandman, de Neil Gaiman. Nas histórias de Sonho. Os dois fazem parte da família dos Perpétuos, que acompanham a humanidade eternamente. Diferente de tudo o que se esperava, Morte é uma personagem divertida, carinhosa e gentil. Adora as pessoas e se preocupa com elas. E desde quando surgiu, a Morte não saiu mais de cena. De personagem coadjuvante nas histórias do irmão Sandman, Morte passou à estrela de suas próprias minisséries, com histórias ousadas e imprevisíveis.
A família dos perpétuos é composta por sete imortais anteriores à criação do universo. São todos irmãos: Morpheus, Destino, Delírio, Destruição, Desejo, Desespero e Morte. A personagem já foi desenhada por Dave Mckean, Chris Bachalo, Jill Thompson, Mike Dringenberg, entre outros. E se antes a imagem da morte na literatura, poesia, pintura era masculina, cadavérica, com um manto negro e uma foice ceifadora, o mestre dos quadrinhos criou uma personagem oposta da imagem estereotipada por quase todas as culturas. Na sua mensagem ela expressa o valor da vida, o quanto pode ser naturl e simples. Assim é uma forma diferente de entender e aceitar a Morte, como um fenômeno natural.
Sobre o tema Charles Chaplin escreveu um texto diferente de tudo o que se costuma escrever, confira: “A coisa mais injusta sobre a vida é como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo, ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante para poder aproveitar a sua aposentadoria. Aí curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara para a faculdade. Vai para o colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando, e termina tudo num grande orgasmo. Não seria perfeito!”. Perfeitíssimo Chaplin. Genial!

29 outubro 2008

Morte (2)

“Que vamos morrer todos sabemos; o tempo e a sucessão dos dias é que deixam os homens mais aflitos”, disse Bruto na peça Julio César, de William Shakespeare.

CEMITERADA

A Bahia herdou hábitos funerários de tradições portuguesas e africanas. Nessas sociedades, a preparação para a morte envolvia ainda a devoção a santos, deuses e ancestrais e a despedida do morto era feita com virgílias, cânticos, choros convulsivos, além de uma verdadeira festa onde se bebia e comia. Eram funerais pomposos e a realização dos enterros em igrejas também faziam parte da tradição. A população procurava a proteção das irmandades e ordens terceiras na Bahia. Santo Antônio da Barra é para os negociantes, São Jorge para os ferreiros, serralheiros, caldeireiros. São Crispim para os sapateiros e curtidores. Os suntuosos funerais, ou morte barroca, estavam entre as diversões preferidas dos baianos no século XIX

E no dia 25 de outubro de 1836 os baianos foram às ruas para garantir essa tradição de “bem-morrer”. Era a Cemiterada. O movimento rebelou-se contra a entrada em vigor da Lei Provincial número 17, aprovada pela Assembléia Legislativa da Bahia, que autorizou a construção do Cemitério do Campo Santo e concedeu o monopólio dos enterros à iniciativa privada, proibindo sepultamento nas igrejas. O movimento foi vitorioso e os enterros em igrejas e os rituais festivos que os antecediam continuaram por mais 20 anos. Somente nos anos 50 do século XIX, quando um grande surto de febre amarela dizimou boa parte da população, o Cemitério do Campo Santo passou a ser um local aceito pela comunidade para enterrar seus mortos.

Quem desejar se aprofundar mais sobre o assunto vale conferr a leitura da obra do historiador baiano João José Reis, “A morte é uma festa – Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX”.

CAMPO SANTO

Construído em 1836, o Campo Santo (o mais antigo cemitério da Bahia) – que antes tinha como cenário um local triste, sombrio e deprimente – passou em 2007 a atrair a atenção de curiosos e turistas, que ao invés de lágrimas, fixam os olhos nas placas informativas dos mausoléus que, além de resgatar a biografia de figuras da história, explica a simbologia da obra.

O projeto de criação do Círculo Cultural do Campo Grande – um verdadeiro museu a céu aberto – foi realizado pela Santa Casa de Misericórdia e envolvem várias etapas de construção, desde a pesquisa e identificação dos símbolos da arte cemiterial, até a associação da arte dos mausoléus com o desejo particular das famílias das pessoas até sepultadas.

O projeto aborda a simbologia das obras e não apenas resgatar a memória de personalidade. O museu ao ar livre é o primeiro do Brasil a desmistificar a morte explicando a arte cemitério, que utiliza elementos e símbolos para expressar um sentimento particular à sociedade.

Há 48 mausoléus inspirados em estilos clássicos, góticos e românticos, todos localizados em volta da igreja, divididos em sete quadras. No local estão o sepulcro do poeta Castro Alves, do médico Aristides Maltez, do governador Otávio Mangabeira e do comerciante sergipano Mamede Paes Mendonça.

28 outubro 2008

Morte (1)

A cultura ocidental tem dificuldade em reagir diante da morte. Várias culturas construíram sistemas e mitos destinados para ajudar ao ser humano refletir sobre a angústia, tristeza, perda, ruptura e a continuidade. Nos mitos e ritos das mais diversas sociedades, o morto não deixa de existir, ele se transforma. Os homens de Neandertal tinham rituais de sepultamento e práticas que sugerem uma crença na continuidade da vida após a morte. Idéias sobre a existência de espíritos, deuses e deusas, e seres ativos e forças do além do alcance da percepção humana direta têm também uma longa história.

Para os romanos, a morte é a porta da vida. O deus da morte, Thanatos extirpa as forças negativas e liberta as energias espirituais. Sua mãe, Nix (a morte) e seu irmão Hypnos (o sono) tem o poder de regenerar. Os estóicos, sobretudo nos textos de Sêneca, recomendavam a seus seguidores concentrar-se em atitudes suscetíveis de produzir grande satisfação individual. Sua filosofia não se baseava em nenhuma dimensão transcendental após a morte do indivíduo. A partir do século 13 as pessoas esperavam uma vida eterna após a morte, vida na qual seriam recompensadas ou punidas pelas ações praticadas durante sua existência terrena.

“O ser humano sempre teve medo de morrer. A morte é o grande motor da vida, porque tudo que o ser humano fez desde o princípio dos tempos, fez contra a morte e porque iria morrer. Em outras épocas, isso sim, havia consolos mais eficientes contra a morte. Por exemplo, as crianças religiosas podem ser um grande consolo. Mas a fé cega tem grandes custos, e eu, que sou agnóstica, me orgulho de não agarrar-me a fé somente por medo de morrer. Em todo caso, neste mundo cada vez mais individualizado, mais atomizado e mais laico, o indivíduo estacada vez mais sozinho diante da própria morte”. A opinião é da escritora espanhola Rosa Montero, autora de obras como “A filha do canibal”, “História do ser transparente” w A louca da casa”.
A religião e a crença na vida eterna ainda representaria uma possibilidade legítima nos séculos seguintes. Mais tarde, Nietzsche formulou o conceito de “morte em vida”, ou seja, morte como parte da vida humana, em lugar de uma passagem para a vida eterna na qual filósofos e intelectuais deixaram de acreditar no fim do século 19. Freud, Heidegger entre outros desenvolveram uma filosofia existencial da morte.

“A morte é um despertador que quer nos acordar para o significado da vida a todo momento”. A opinião é da psicóloga Bel César, autora de cinco livros sobre budismo. Ela acompanha pacientes terminais utilizando fundamentos filosóficos do budismo tibetano.

Se a vida é mudança, impermanência e que todos os seres são perecíveis, há dois modos de passar o luto de uma pessoa amada. As recomendações do budismo é não se apegar, porque estar apegado é estar ligado, não livre ou seja, privado da liberdade. Se quisermos nos libertar dos laços que o amor tece, precisamos exercitar a sabedoria do não apego.

Totalmente inversa é a das grandes religiões que professa a ressurreição dos corpos. Praticando o amor em Deus teremos a felicidade de reencontrá-los. Assim o apego não é proibido. Essas duas doutrinas da salvação, quase opostos, tratam da morte dos seres queridos. Para muitos filósofos o melhor a fazer é pensar no assunto o menos possível mas estar sempre preparado para tal catástrofe.

24 outubro 2008

Música & Poesia

Treze Fletes (Mauro Moraes)

Neste viver transumante, treze cavalos montei
Treze pelagens distintas, os treze fletes de lei
Era rosilho o primeiro, pêlo de brasas dormidas
Que se recolhem de cinzas velando noites compridas

Foi baio ruano o segundo, pêlo de libras e sóis
Crinas brancas como geadas, matizadas de arrebóis
O terceiro um colorado, pêlo da cor das sangrias
Tranqueava sonando as ventas nas madrugadas mais frias

Tive depois um tostado como pitangas maduras
Bom de campo e de carreira, vaqueano em noites escuras
O quinto foi um gateado, tinha a cor dos pajonais
Pêlo e negaça de puma que se esconde entre cardais

Depois encilhei um mouro, bom de boca e trote bueno
Com pêlo de um poncho pampa, respingado de sereno
Nesse cambiar de montadas, um tempo pra cada flete
Pêlo de açúcar queimado, foi zaino o número sete

Tordilho como as melenas encanecidas de um taita
O oitavo dos meus pingos gostava de um som de gaita
Depois tive um alazão, lindo como flor singela
Nos ranchos que eu não chegava vinham me olhar na cancela

Outro lobuno me lembra, fumaça de bamburral
Pêlo de nuvens escuras pressagiando temporal
Era o décimo primeiro picaço, estrela na cara
Na noite escura do pêlo um lunar na testa clara

Noutra feita um douradilho que em seu pêlo refletia
Lampejos de água correndo ao sol quando nasce o dia
Tem pêlo de seda negra, o pingo que encilho agora
Noite sem lua ou estrelas, sem um sinal pêlo afora

É ele o número treze dos que tive e encilhei
Treze pêlos sem parelhas, os trezes fletes de lei!


Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade)


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


23 outubro 2008

A questão do tráfico de drogas no Brasil (2)

Estamos dando continuidade a trechos importantes da obra “Cabeça de Porco” sobre o tráfico de drogas no Brasil:“Já se foi o tempo da glamourização do banditismo, em que se cultuavam os criminosos como se fossem heróis populares. Repito o que disse em capítulo anterior, para melhor trabalhar este ponto: houve um tempo, no Brasil da ditadura, em que Helio Oiticica podia conclamar à rebeldia, divulgando sua provocação subversiva: ´Seja marginal, seja herói`. A época obscurantista era um convite ao maniqueísmo. Vivemos um outro país, um mundo diferente. Hoje, o crime ameaça toda a sociedade, indistintamente, mas oprime com mais brutalidade justamente os mais pobres, aqueles que Oiticica buscava valorizar em sua ode à transgressão. Nada mais absurdo, hoje, do que a justificação do crime, em nome de um suposto compromisso democrático com classes populares (A Esperança como Dever)” .

“Violência é uma palavra que só na aparência é simples. Na verdade, guarda muitos sentidos diferentes. Pode designar uma agressão física, um insulto, um gesto que humilha, um olhar que desrespeita, um assassinato cometido com as próprias mãos, uma forma hostil de contar uma história despretensiosa, a indiferença ante o sofrimento alheio, a negligência com os idosos, a decisão política que produz consequências sociais nefastas, a desvalorização sistemática dos filhos por seus pais ou das mulheres por seus maridos, as pressões psicológicas exercidas no contexto de interações opressivas, a orientação econômica que se abate sobre setores da população como um desastre da natureza e a própria natureza, quando transborda seus limites normais e provoca catástrofes. Por isso, falamos da violências das águas, do vento ou do fogo, e nos referimos às desigualdades sociais injustas ou ao abandono de crianças nas ruas como formas de violência. Por outro lado, quando um pai luta com alguém para salvar a vida de um filho, não o descrevemos como violento, nem entendemos como um exemplo de violência o uso defensivo e bem-intencionado que ele faz da própria força (Os Sentidos da Violência, a Criminalidade no Brasil e no Rio de Janeiro)”. (...)

“O Brasil é pródigo em manifestações das formas mais diversas de violência, inclusive e crescentemente, da criminalidade violenta. A sociedade brasileira, em seu conjunto, tem sido atingida pela violência. Todas as classes, etnias e faixas etárias têm compartilhado o risco de tornarem-se alvo de algum ato criminoso. Nesse sentido preciso, a violência criminal brasileira, em suas múltiplas formas, é ´democrática´: vítima homens e mulheres, pobres e ricos, negros e brancos, indistintamente”. (...)

“Ou seja, a criminalidade violenta é um problema de todos nós, brasileiros, mas é sobretudo o drama dos jovens, especialmente pobres e, particularmente, negros. Claro que há inúmeras tragédias envolvendo jovens de classe média. Mas todos os diagnósticos convergem e apontam a mesma concentração, não nos autorizando tergiversões. Na realidade, o problema é tão grave que já deixou sua marca na estrutura demográfica. Há um déficit de jovens, entre 15 e 24 anos, na sociedade brasileira – fenômeno que só se verifica nas estruturas demográficas de sociedade que estão em guerra. Portanto, o Brasil vive as consequências de uma guerra inexistente e, mais que qualquer outro, determinado setor social está pagando com a vida o preço dessa tragédia” (...)

“A obsessão deste livro, de um modo ou de outro, é a invisibilidade dos jovens, especialmente dos pobres e, mais especificamente, dos negros. Invisibilidade que é sinônimo de rebaixamento da auto-estima. Quando socialmente invisível, a maior fome do ser humano é a fome de acolhimento, afeto e reconhecimento. Pressionado por esta fome profunda, os jovens recorrem aos expedientes acessíveis, até à violência. Claro que a realidade é bem mais complexa e que há sempre muitos outros fatores em ação. Mas a tese da invisibilidade é forte o suficiente para justificar algumas propostas que dirigimos a você, à sociedade e aos governos. (Rasga Coração)” (...)

“Quando as escolas, as comunidades, a sociedade ou os governos proporcionam aos jovens das periferias e favelas aceso à criação cultural e à expressão artística, na prática, lhes oferecem um campo em que podem exercitar a própria subjetividade e expressividade, mostrando-se e inventando-se como pessoas, ante olhares atentos e respeitosos da audiência, que os valorizam pela mera atenção que prestam. Tudo isso é amplificado se uma câmera acende sua luzinha, anunciando que, atrás de si, está presente um auditório virtual ilimitado. A luzinha representa a atenção em si mesma. Esta atenção valoriza quem se sente ninguém, quem se sente invisível. Ela ilumina a alma e alimenta um saudável narcisismo inatingível. Fica faltando o afeto? È verdade. Mas a atenção é uma forma tosca de afeto. Um primeiro passo”.

21 outubro 2008

A questão do tráfico de drogas no Brasil (1)

Um rapper, um empresário de hip-hop, e um antropólogo fazem reflexões sobre violência urbana com depoimentos de jovens envolvidos no tráfico de drogas no Brasil. A obra é reveladora: Cabeça de Porco, lançado pela Editora Objetiva. Nos últimos sete anos MV Bill e seu empresário Celso Athayde percorreram favelas de nove estados brasileiros sobre crianças e jovens que vivem no mundo do crime, suas razões e a dimensão humana de suas vidas. A esta pesquisa original, relatada com a emoção de quem assistiu de perto à situações perigosas, se associam os textos do antropólogo Luiz Eduardo Soares – um conjunto de registros etnográficos sobre juventude, violência e polícia.

MV Bill é autor de músicas como ‘Soldado do Morro’, Celso Athayde é o criador do Prêmio Hutuz, o mais importante do hip-hop no país, e Luis Eduardo Soares, um dos maiores especialistas em conflitos urbanos na América do Sul. Eles se encontraram pela primeira vez em 1999, logo após o lançamento do clipe de ‘Soldado do Morro’, que mostra imagens de jovens portando armas e vendendo drogas em bocas de fumo de várias cidades do Brasil. O encontro dos três resultou na parceria para escrever um livro sobre os jovens que se envolvem com o tráfico de drogas e violência armada organizada no Brasil.
Segundo os autores, o principal objetivo do livro é humanizar os jovens envolvidos no tráfico de drogas – sem, no entanto, tirar-lhes a responsabilidade por seus atos. E é justamente neste ponto que o livro tem seu maior mérito. Os relatos sobre famílias completamente desestruturadas e o desejo de deixar a vida do crime são uma constante.
O termo popular cabeça de porco (apartamento ou casa de péssima qualidade) surgiu no final do século 19 quando o então prefeito do Rio de Janeiro, Barata Ribeiro, determinou uma "mega-operação de limpeza", ordenando a demolição de todas as moradias que não respeitavam as regras de higiene estabelecidas. O alvo principal eram os cortiços do centro. O maior deles se chamava exatamente Cabeça-de-Porco. Para os governantes, não passava de um foco de doenças. Para as quase 4 mil pessoas que moravam lá, era a única opção barata de habitação no Centro. Na época, havia cerca de 600 cortiços em todo o estado do Rio, que abrigavam em torno de 25% da população. A decisão da prefeitura fez surgir uma legião de sem-teto na então capital do país. Sem opção, milhares de famílias subiram as encostas dos morros em busca de moradia. E assim nasceram as primeiras favelas.
Quando foi demolido, no dia 26 de janeiro de 1893, toda uma ala do Cabeça-de-Porco estava interditada pela Inspetoria Geral de Higiene. Dias antes do Cabeça-de-Porco ser derrubado, Barata Ribeiro autorizou os moradores a retirar pedaços de madeira de seus quartos para usá-los em futuras construções. Segundo relatos da época, a maioria das famílias teria usado a madeira para erguer pequenos barracos no morro que existia logo atrás do Cabeça-de-Porco. Poucos anos depois, em 1897, os soldados que voltavam da Guerra de Canudos se fixaram ali. Estava criada a primeira favela do Rio de Janeiro e do Brasil: o Morro da Favella, hoje conhecida como Favela da Providência. O escritor Aluísio de Azevedo, autor do clássico "O Cortiço", usou o Cabeça-de-Porco como fonte de inspiração para seu livro.
Mas voltando ao livro Cabeça de Porco, vamos reproduzir alguns trechos importantes:

“É difícil mudar. Muito difícil. Doloroso e angustiante. Primeiro, porque a ousadia de mudar-se a si mesmo envolve cortejar a morte. Na mudança, uma parte de nós parece; um modo de sermos nós mesmos entra em colapso. Segundo, porque enfrentamos a resistência organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo mundo que nos cerca. Unem-se numa brigada contra a mudança aqueles que, de uma forma ou de outra, nos conhecem, dão testemunho de nossa biografia e zelam pela imutabilidade (...) Todos os que aceitam o risco da mudança devem pagar por sua ousadia (Conspiração contra a Mudança)”
“Na história recente do Brasil, praticou-se tortura com método, a tortura como obra do Estado com fins pragmáticos e simbólicos. Era a política torta da ditadura. Antes, a tortura era praxe e quando os suspeitos eram negros e pobres. A ditadura estendeu o raio de ação das técnicas sinistras às camadas médias da sociedade. Veio a democratização e com ela o confinamento dos velhos procedimentos à esfera original. Hoje, são os novos pobres e negros as vítimas do terror de Estado. O carro volta aos trilhos, aos tristes trilhos de nossa longa escuridão. Na tortura, há ódio, mas o ódio aplicado com apuro, em canais institucionalizados, fluindo com ritmo e direção ditados por um regime de distribuição sistemático e previsível. É o ódio compactado e disciplinado dos profissionais da dor, que fazem carreira e usam crachá. Um ódio gramatical, de terno e gravata. (Ódio)”.

Crime e castigo na visão de uma antropóloga (2)


A evidência do modo como a religião contribui para a construção de processos de paz, mas também para a formação da intolerância religiosa é uma outra descoberta inovadora que Alba Zaluar traz para os seus leitores. Para a autora, a falência das instituições do Sistema de Justiça criou um ambiente de incerteza institucional, onde os indivíduos, principalmente os mais pobres, não sabem a quem recorrer diante das suas necessidades. Deste modo, a religião surge como um caminho para a paz e para a solução dos problemas – pelo menos de modo imaginário. Contudo, nem todos decidem buscar a religião. Os “ateus”, neste caso, passam a ser os representantes do mal; os “missionários” do diabo. Portanto, é neste instante, que se dar início a um processo de desenvolvimento da intolerância religiosa por parte dos que “aceitam” Deus.

Nos estudos de diversos analistas no assunto, as “causas” da violência no Brasil estariam nas “características da economia subterrânea, atrelada ao modelo de desigualdade social do país. Desde os anos 1980, chamo a atenção para a sinergia entre: a)o recrutamento de jovens pelo mercado de drogas nas favelas e bairros pobres, onde é comum o uso de armas de fogo; b)a pobreza, ou seja, as oportunidades educacionais e econômicas inadequadas ou inexistentes; c)as formações subjetivas desenvolvidas dentro e fora da escola e cristalizadas em torno do etos guerreiro que forja o orgulho do homem pela capacidade de destruir fisicamente o inimigo”.
“Este livro – escreveu Alba Zaluar na abertura da obra – procura trazer as várias vozes ouvidas na tragédia particular de uma guerra sem sentido e sem fim que ocorre nas mais ricas e maiores cidades brasileiras, divididas também pelos efeitos do fundamentalismo cristão que reencantou o mal posto nas outras religiões, pelos efeitos do facciosismo político brasileiro e pelos bairrismos e corporativismo que tanto atrapalham a execução de políticas públicas eficazes no combate à pobreza e na montagem da segurança cidadã”.
A elaboração de políticas públicas ocupa espaço nas análises de Alba Zaluar. Para a autora, as ações do Estado nas áreas de educação, cultura e saúde são de extrema necessidade para enfrentar a formação e até a consolidação do tráfico de drogas nos bairros pobres. Mas isto não é suficiente. É importante salientar que Zaluar deixa claro que as medidas nas áreas de saúde e educação são preventivas; e que os consumidores de drogas não estão apenas nas favelas, estão presentes em todos os estratos sociais. Em sua abordagem sobre políticas públicas, Alba Zaluar mostra as dificuldades dos pesquisadores de obterem dados criminais no Brasil. Estas dificuldades são motivadas por eles não existirem, não serem confiáveis ou não serem disponibilizados. E de fato isto é um grande problema. A escassez de informação sobre os homicídios no Brasil permite que as suas verdadeiras causas não sejam descobertas. Neste sentido, os pesquisadores ficam limitados em analisar o que possibilita o expressivo número de mortes violentas no País. Alba Zaluar, mais uma vez, mesmo reconhecendo as limitações das informações, procura causas para explicar a violência contra os indivíduos. Numa análise comparativa, envolvendo vários estados, a pesquisadora revela que pobreza e crescimento urbano não são variáveis satisfatórias para explicar os homicídios.
Outro livro que aborda a violência: “Sociedade do Medo” (Edufba), organizado pelo sociólogo Gey Espinheira. Traz três capítulos de autoria de Espinheira e textos de estudantes de graduação, profissionais e professores-doutores participando do projeto Convivência, Arte & Criação, realizado em Mata Escura, em 2007, com 45 jovens.

20 outubro 2008

Crime e castigo na visão de uma antropóloga (1)

Toda a história da República o aparelho estatal brasileiro submeteu as classes dominadas a maus tratos e torturas. Na República Velha, por exemplo, os operários foram sempre encarados como perigosos. E a questão social passou a ser considerada um caso de polícia. Foi a partir daí que se criava inúmeros mecanismos de intimidação e controle que perduram até hoje. Movimentos populares como a Cabanada, Balaiada, Canudos, Quilombos dos Palmares, Muckers, revolta da Chibata entre outros foram resolvidos através de violenta repressão. No auge da repressão (1964), o Estado preocupou-se em divulgar uma imagem do Brasil como sendo uma ilha de tranqüilidade num mundo conturbado. O Brasil era “um país que vai pra frente” e tratava-se de “amá-lo ou deixa-lo”.
Quando começa a “abertura”, o mito da índole pacificado brasileiro é relegado a um segundo plano no discurso oficial e a “violência urbana” é quase exclusividade da delinqüência da classe baixa. Na sociedade omitiu-se a desnutrição, a miséria, acidentes de trabalho e a falta de emprego. Assim a violência não é só uma estratégia de sobrevivência por parte das classes dominantes (para satisfazer necessidade econômica), mas se reveste de um caráter político para garantir privilégios e hegemonia.
Nesse esquema de bombardeio constante de violência na classe baixa nunca se questionou os crimes de colarinho branco, as grandes negociatas, os acidentes provocados por falta de segurança no trabalho, a morte pela miséria. Essas questões são esquecidas para criar uma imagem maniqueísta de realidade. Assim as camadas privilegiadas procuram o bode expiatório para aliviar sua culpa.
Depois de décadas de rigorosa pesquisa de campo, orientada por sólida formação antropológica e sociológica, a professora titular de antropologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Alba Zaluar, coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências coloca em debate público os efeitos provocados pela emergência e rápida expansão do crime organizado. Em 14 capítulos sua obra “Integração Perversa: pobreza e tráfico de drogas” (FGV Editora, 2004) passa em revista os principais argumentos que povoam o imaginário da opinião pública e, em particular, dos cientistas sociais. Ela examina detidamente teses clássicas que supõem “causas da violência” como pobreza e desemprego, crise da família, escolarização insuficiente, surgimento de gangues e a natureza “não-humana” dos delinqüentes. Discute ainda as relações entre democracia, cidadania e violência, o papel das agências encarregadas da lei e da ordem, o lugar da cultura popular na produção das imagens sobre crime, criminosos e criminalidade.
“A discussão pública sobe violência e a criminalidade criou uma perigosa divisão que ameaça a frágil democracia brasileira. De um lado estão os libertários que, a partir da afirmação de que a sociedade é que é criminosa – na medida em que, por ser desigual e iníqua, sustenta uma ordem que contém, controla e limita desejos e paixões individuais -, acabam por atacar qualquer ordem social, especialmente quando parte do Estado. Viva a desordem: eis o seu lema. No outro extremo estão os que, em virtude do medo e da indignação antes os horrores praticados pelos insubordinados bandidos de hoje, pensam que a ordem deve ser mantida a qualquer preço, sem considerar as perdas da liberdade individual. Viva a ordem, entregue-se tudo a Leviatã: eis o seu atual desejo. A manutenção do atual dilema pode nos levar ou ao caos e à extensão do estado de guerra a todos, ou então ao recrudescimento da ordem autoritária”, escreveu.

(...) “A correlação entre pobreza e criminalidade ou entre pobreza e violência deve ser problematizada. Atribuir apenas à pobreza – que sempre existiu no país e que teve vários indicadores melhores nas décadas de1970 e 80 – o incrível aumento da criminalidade e da violência observado nas duas últimas décadas, especialmente na última, é alimentar preconceitos e discriminações contra os pobres. Além de constituir um erro de diagnóstico, que pode tornar ineficazes as políticas públicas adotadas a partir dele, tal postura tem efeitos políticos desastrosos”.
Para a autora, a hiper valorização da masculinidade e conseqüentemente a necessidade que o indivíduo tem de mostrar que é superior, forte, o incumbe de coragem para enfrentar os inimigos, especificamente as organizações criminosas concorrentes e a Polícia. Deste modo, Zaluar não limita sua explicação apenas ao âmbito da racionalidade econômica – a busca do lucro cria coragem, o espírito guerreiro. Ela mostra que uma explicação cultural, mais concentrada no âmbito da antropologia, é necessária, adequada e útil.

17 outubro 2008

Música & Poesia

Dois Durões (lagoa) (Marina Lima)

E eu que achei
Que o mar ia subir
E o verão repartir
O ouro do pó
E sem dó conduzir
Dois durões numa expedição
Rumo aos locais e arsenais do coração
Mas nem sinal
Só ondas brandas ventos carnaval
Se a Bahia fosse só poesia e cor
Você não teria crescido
Nem eu percebido
Que é na Lagoa que mora o amor
E eu que achei
Que o mar ia subir
E fazer uma gente teimosa se redimir.



Os Peixes (Marianne Moore)
vade-
ando negro jade.
Das conchas azul-corvo um marisco
só ajeita os montes de cisco;
no que vai se abrindo e fechando
é que
nem ferido leque.
Os crustáceos que incrustam o flanco
da onda ali não encontram canto,
porque as setas submersas do
sol,
vidro em fibras sol-
vidas, passam por dentro das gretas
com farolete ligeireza —
iluminando de vez em
vez
o oceano turquês
de corpos. A correnteza crava
na quina férrea da fraga
uma cunha de ferro; e estrelas,
grãos
de arroz róseos, mães-
d'água tintas, siris que nem lírios
verdes e fungos submarinos
vão deslizando uns sobre os outros.
As
marcas externas
de mau-trato estão todas presentes
neste edifício resistente —
todo resquício material
de a-
cidente — ausência
de cornija, machadadas, queima e
sulcos de dinamite — teima em
ressaltar; já não é o que era
cova.
Repetida prova
demonstrou que ele pode viver
do que não pode reviver
seu viço. O mar nele envelhece.

16 outubro 2008

Espírito de nosso tempo


O tempo está na base dos problemas sociais. Quem não acreditar nisso basta ler o livro do economista Eduardo Giannetti (O Valor do Amanhã). Para Giannetti, a guerra contra o tempo faz o ser humano estabelecer suas prioridades e buscar sempre o prazer imediato, ignorando qualquer noção racional de planejamento ou aposta positiva na realização de seus sonhos no futuro. A questão da violência urbana (“quem tem fome tem pressa”) e política (a necessidade de enriquecimento rápido resultando na corrupção) estão relacionadas com o tempo.

O livro de Giannetti destrincha o porquê de o homem aceitar o pagamento de juros – “usufruir agora, pagar depois” e como “antecipar custa, retardar rende”, pagamos pela diminuição da espera. O que são os juros o não ser o valor que temos de pagar por não querermos esperar? Qual noção do tempo queremos ter: a da criança que não sabe esperar, a do jovem que nunca vê o futuro como previsão mas como sonho, ou a da velhice quando enxerga-se o passado como um tempo que nem demorou muito nem está tão distante e até que foi rápido e valeu a pena. Para o economista, toda a economia se reduz a “economizar tempo” e para pagarmos menos juros é melhor aprendermos a dominar o tempo.

Outro exemplo sobre a reflexão sobre o tempo é o recente filme “Flores Partidas” do cineasta Jim Jarmusch. Na fita o ator Bill Murray vive um velho rico e solitário que promove um acerto de contas com seu passado de conquistador, ao partir em busca de um filho desconhecido. Nessa busca ele reencontra três antigos amores e como lição o cineasta alerta que é melhor guardarmos os bons momentos na lembrança do que insistir em revivê-los.

Mesmo como os avanços científicos que aumentam a expectativa de vida, o homem tem cada vez mais pressa: a vida é curta, tempo é dinheiro, o tempo é o senhor da razão, dê tempo ao tempo, o tempo é o melhor remédio, tudo tem seu tempo, só o tempo vai dizer são alguns exemplos. A ideologia pós-modernista impõe a vida no tempo real, no aqui e no agora. Como afirmou o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, o prazer individual e imediato é o único bem possível. A sociedade americana de hoje com a sua libido consumista é um exemplo dos dias atuais. O consumidor tem pressa seja no atendimento, na troca, na garantia de satisfação do desejo manifestado na compra. E os shoppings são os lugares onde todos os desejos podem ser atendidos, inclusive, a fome de fast-food.

Gilles Lipovetsky, teórico do novo individualismo e intérprete da era moderna, em seu livro Os Tempos Hipermodernos, mantém sua linha de provocação e debruça-se novamente sobre o homem contemporâneo para atestar nossa transição da fase pós-moderna para a hipermodernidade. Escrito com a colaboração de Sébastien Charles, explica como a globalização fortaleceu o individualismo, o mercado e o avanço técnico-científico. A obra de Lipovetsky é profundamente marcada pela interpretação da modernidade. Em L´Ere du vide (1983), ele define o que chamou de "paradigma individualista" – um homem preocupado em se diferenciar na multidão, realizar seus desejos imediatamente, viver já, aqui e agora, sem se deixar seduzir por ideologias políticas ou ídolos. De lá par cá, o autor não parou de explorar as múltiplas facetas do homem contemporâneo: a ditadura da moda, a metamorfose da ética, a nova economia dos sexos, mas sobretudo a explosão do consumo de luxo para atender a um indivíduo hedonista que surgiu com as frustrações dos tempos modernos. Lipovetsky foi um dos principais responsáveis pela popularização do conceito de pós-modernidade e, hoje, é um dos defensores da democracia liberal.

Neste livro, Lipovetsky dá continuidade a este seu itinerário intelectual tão bem delineado por suas obras anteriores. No Brasil, foram editados O império do efêmero (Companhia das Letras, 1989), A terceira mulher (Companhia das Letras, 2000) e Metamorfoses da cultura liberal (Editora Sulina, 2004). Ele argumenta que, desde os anos 50, o mundo vive uma intensificação jamais vista do tripé que sempre caracterizou a modernidade: o mercado, o indivíduo e a escalada técnico-científica. A partir dos anos 80, com o avanço brutal da globalização e das novas tecnologias de comunicação, esse fenômeno – que ele batizou de hipermodernidade – adquire uma velocidade espantosa, passando a interferir diretamente sobre comportamentos e modos de vida.

Mais do que um lance de retórica, o termo hipermodernidade define a situação paradoxal da sociedade contemporânea, dividida de modo quase esquizofrênico entre a cultura do excesso e o elogio da moderação. De um lado, diz Lipovetsky, "é preciso ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda"; de outro, valorizam-se "a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou das religiões orientais".

15 outubro 2008

País do covering

Você sabe o que é covering! É discriminação disfarçada. Uma forma de discriminação sutil pós fase de discriminação direta. Trata-se de uma forma introjetada onde o discriminado deixa de manifestar sinais mais marcantes de sua identidade, como por exemplo, os gays que não podem andar de mãos dadas, ou os negros que não usam seus cabelos crespos naturais. O Brasil é o país do covering! Segundo o antropólogo da UERJ, Sérgio Carrari, “na medida em que os negros ascendem socialmente e assumem um certo padrão de comportamento, de vestimenta e de linguagem eles passariam por um processo de branqueamento e deixariam de ser tratados como negros”.


Será que em pleno século 21, especialmente nos grandes centros urbanos onde muita gente que se orgulha de ser livre de qualquer discriminação, tem pessoas que ainda não pode assumir sua identidade cultural? Questões sobre direitos civis, sobre preconceito e sobre assimilação ainda não estão resolvidas. Exemplos? Nas entrevistas para empregos, muitos jovens de Salvador afirmam que não poderiam utilizar cabelo rastafari porque não pegava bem já que os clientes do shopping não gostam do visual afro. Se antes a discriminação era direta, ou seja, contra mulheres, negros, gays, deficientes físicos. No século 20, onde a luta pelos direitos civis tornou isso ilegal, agora, a nova forma de discriminação é sutil. Não contra todos os negros, mas somente contra aqueles que usam cabelo diferente.

O professor de Direito e reitor na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, Kenji Yoashino, criou um novo termo para essa questão: Covering, algo que pode ser traduzido como um acobertamento, um disfarce. “Na minha pesquisa para escrever sobre o covering, ou a discriminação disfarçada, me deparei com um provérbio brasileiro: ´O dinheiro empobrece´. Os negros americanos também conhece isso: usam terno para trabalhar porque dizem que são mais respeitados vestidos dessa maneira. Mas, quando estão com roupas de ginástica, são mal vistos ate pelos vizinhos, porque, aí, são associados a bandidos. Ter o que eu chamo de disfarce faz toda a diferença entre ser um negro bom ou um negro mau”, explica Yoashino.
O que falta no mundo de hoje é respeito. As pessoas têm que entender que existem diferenças e respeitar isso. Alisar o cabelo para tentar se enquadrar no que a sociedade exige para determinados grupos de pessoas não é o correto. Se enquadrar em certos padrões de respeitabilidade seja no modo de se vestir, de ser, de estar para ficar indistinguível é fazer concessão para ser aceito pela sociedade na sua diferença. Um preço nessa aceitação para ser discreto e não trazer sinais muito visíveis dessa diferença. E quem desafia essa situação? As leis garantem igualdade, mas as pessoas não, sempre cobrando dos outros a sua própria imagem.
É preciso ter força para mostrar que todos são iguais nos direitos, e diferentes na maneia de pensar, de ser e de estar e procurar sempre uma forma de resistência, consciente. Um bom exemplo de resistência é o do escritor americano James Baldwin que, em meados do século passado, usou a literatura para se afirmar como negro e homossexual. Como bem escreveu o escritor brasileiro Luis Capucho (Rato), as pessoas normais vivem mais à superfície, mais à flor da pele do que outras, sempre submersas, meio sem o fôlego necessário à vida social, como os peixes que vivem mais no fundo do mar, portanto mais nas trevas, mais solitários, parados, diferentes, mais no fundo da vida. Os da superfície que dão movimento, são quem decide para que direção vai a vida, porque, com o temperamento expansivo, as atitudes e as palavras são dominantes O assunto é complexo e é preciso um novo olhar para denunciar formas nada sutis de discriminação e preconceito. Pense e reflita sobre essa questão.

14 outubro 2008

Nilda Spencer, uma vida dedicada à arte

Uma placa em homenagem a dama baiana do teatro, Nilda Spencer foi inaugurada recentemente (inicio de outubro 2008) no foyer do Teatro Martim Gonçalves, nas dependências do velho casarão do Canela, onde fica a Escola de Teatro da UFBa, que ela chegou a dirigir nos anos 60. E até o dia 19 de outubro fica aberta ao público a Galeria Nilda Spencer, acompanhada de uma exposição que registra os 52 anos de carreira da artista. A trajetória inclui espetáculos como “Lábios que Beijei” e “Ensina-me a Viver”, seus mais recentes trabalhos nos palcos de Salvador. Esta foi a última homenagem a diva do teatro baiano. Ela morreu na última quinta-feira (dia 09), após um quadro de infecção pulmonar e duas paradas cardíacas. Foi cremada na tarde de sexta-feira (dia 10) no Cemitério Jardi da Saudade. Amigos, colegas, fãs e familiares deram o último adeus a Nilda lembrando que a paixão pela vida e o teatro foram as suas grandes marcas.
A veterana atriz sempre foi uma festa, como conta o jornalista Marcos Uzel no Correio (02/10/2008). Personalidade emblemática das artes cênicas nas Bahia, Nilda guarda, também, um baú de histórias interessantes. Foi ela, por exemplo, quem indicou Maria Bethânia para substituir Nara Leão no Rio de Janeiro, no antológico show “Opinião”, que revelou a cantora baiano ao Brasil.

“Nilda Spencer é uma das personalidades mais marcantes da vida artística da Bahia. Sua presença é criativa, apresenta de forma eficiente e profunda nossa trajetória cultural”. A opinião é do escritor Jorge Amado por ocasião do lançamento do CD “Boca do Inferno”, na qual a atriz recitou alguns dos mais célebres poemas de Gregório de Mattos. No mês passado a embaixatriz do teatro baiano comemorou 85 anos. Nilda começou a se envolver com o teatro na década de 50, quando conheceu o dramaturgo Eros Martim Gonçalves, fundador da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Desde então, ligou para sempre sua vida ao teatro. Foram dezenas de peças e interpretações marcantes, que se estenderam também ao cinema - Nilda participou de oito longas-metragens, entre eles “Dona Flor e seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, maior sucesso de público do cinema brasileiro.

Atriz, professora, tradutora, colunista. Nilda César Spencer nasceu em Salvador, no bairro do Canela no dia 18 de junho de 1923, em Salvador Estudou na Escola Jesus Maria José, Colégio Nossa Senhora Auxiliadora e Colégio da Soledade. Era uma aluna aplicada, gostava do ensino de Português, mas o que preferia fazer nos intervalos das aulas era imitar os artistas. Todos os colegas em volta admiravam suas performances. Ela enfrentou a família, nos anos 50, e abandonou a promissora carreira de pianista - com concertos nos Estados Unidos e Venezuela - para virar atriz, uma profissão que, naquela época, não era vista com bons olhos. O conhecimento musical a ajudou no teatro, arte na qual se dedicou, principalmente, à área de dicção e expressão vocal, chegando a ser professora e diretora da Escola de Teatro. Foi a primeira mulher que assumiu a direção de uma Escola de Teatro na Universidade num tempo em que Salvador era uma província e o papel feminino estava reservado nos bastidores da lei, da família. Fazer teatro no Brasil ainda era considerado opção menor para rapazes e moças de boas famílias.

Diplomada na primeira turma da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em 1956, logo após, foi a substituta de Martim Gonçalves, por indicação deste, que só nela confiara o fundador da casa que modificou a cena baiana, com ecos por todo o Brasil. Ao assumir, Nilda quebrava a rotina dos homens em postos de comando e de destaque e impunha um desempenho de mulher – capaz, competente. Determinada, fez pós-graduação em Londres, foi tradutora oficial da escola, ensinou durante 25 anos e nunca deixou os palcos e os sets de gravações e filmagens. Fez centenas de peças, filmes e minisséries para a tevê.
O primeiro trabalho foi em 1956 com a peça Auto da Cananéia, de Gil Vicente, com o grupo dramático da Escola de Teatro, A Barca na Igreja de Santa Teresa. Dois anos depois fez a comédia de Arthur Azevedo, Almanjarra. Em seguida o drama realista de August Strindberg, Senhorita Julia, peça da inauguração do Teatro Santo Antônio; As Três Irmãs, drama de Anton Tchecov; A Sapateira Prodigiosa, de Federico Garcia Lorca; Calígula, de Albert Camus, em que Nilda trabalhou ao lado de Sérgio Cardoso; Companhia das Índias, de Nelson de Araújo; Medo, de Robert Frost; A Falecida, de Nelson Rodrigues; Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello, entre muitas outras. Depois que pisou no palco ela não parou mais, viveu e deu vida a muitos personagens. Aprendeu e ensinou muito. No Festival de Poesia no Teatro Santo Antonio, Nilda fez parte daquele clube muito seleto dos atores realmente grandes.
No cinema atuou em Dona Flor e seus Dois Maridos; de Bruno Barreto, Tenda dos Milagres, de Nélson Pereira dos Santos; Meteorango Kid, de André Luís Oliveira; Caveira My Friend, de Álvaro Guimarães; O Super-Outro, de André Navarro, Eu Tu e Eles, entre outros. Fez ainda as minisséries da Globo Tenda dos Milagres e O Pagador de Promessas, além da novela Rosa Baiana, da TV Bandeirantes. Quem na Bahia não conhece Nilda? Ela inspirou vários personagens nos livros de Jorge Amado. Basta abrir o livro para conhecer esse personagem, essa figura alegre, solidária e com muita vontade de viver. E na vida, na noite baiana, num acontecimento cultural que movimenta a cidade, lá está Nilda com o bom humor de sempre.
Myriam Fraga, num artigo dedicada a grande dama (no sentido mais amplo) dos palcos baianos afirmou que ela “é um exemplo permanente de honestidade profissional e ilimitado amor à sua profissão”. Ela “soube vencer tantas barreiras para construir seu ideal com talento e altivez”. O constante sucesso de Nilda Spencer nos palcos tem uma explicação: “Amo o teatro, nunca deixei de encenar. Mesmo quando não estou nos palcos, faço algo ligado ao teatro”. Além de teatro, produziu show musical como Coração de Tambor, com Wilson Café, Quincas Berro D’Água, com Nilda e Mário Gadelha e, para marcar os 40 anos de carreira, lançou em 1996 o CD Boca do Inferno, homenagem explícita ao poeta baiano do século XVII Gregório de Mattos. O velho sonho de gravar CD interpretando os picantes versos de Gregório de Mattos foi realizado. A versátil Nilda se preparou para mais uma etapa da vida, encenar a peça de Colin Higgins, Ensina-me a Viver, sob a direção de Fernando Guerreiro. A personagem principal procura ensinar as outras a descobrir a felicidade de viver. Uma personagem muita aplaudida foi Zulmira, a suburbana da peça A Falecida de Nélson Rodrigues. Nilda guardou momentos marcantes nesta peça e diz que o sucesso foi devido ao realismo que Nélson passava em seus trabalhos, além de ser muito bem escrita, dando margem a criação do ator. E criar é o que ela mais sabe fazer na vida. Criar momentos mágicos no trabalho que faz, criar felicidade em torno dos amigos.
Nilda ministrava aulas de dicção e expressão vocal para muitos artistas, políticos e empresários. Tudo o que ela aprendeu na vida ela repassa para seus alunos, mas o que ela jamais esquece é a força do bem querer que todos os amigos lhe devota. “Poucas pessoas têm a felicidade de realizar um sonho como tive, de fazer o que mais gosto, teatro. Na época enfrentei muitos preconceitos, mas tive a coragem de seguir em frente e meus amigos torceram muito por mim. Só na estréia foi uma aceitação geral onde fui recebida com flores. Conseguir romper a barreira e o domínio total para dizer que teatro é uma coisa boa para toda a comunidade”. Além de teatro que fez por prazer, Nilda se movimentava na cidade, frequentava os lançamentos de livros, discos, exposições de pintura, prestigiava os amigos e circulava na noite. Ela gostava muito da noite baiana. Foi junto com os amigos Geová de Carvalho, Fred Souza Castro, Afonso Coentro e tantos outros intelectuais da vida baiana que descobriram muitos pontos culturais e roteiros curiosos e interessantes da misteriosa noite da Bahia. Os tempos passaram, alguns amigos se foram, outros estão na ativa e Nilda continuava a mostrar felicidade para todos. Conhecia a dádiva da vida. Que os deuses o abençoe e o proteja.

13 outubro 2008

Vivemos numa sociedade líquida

(Todas as coisas sólidas começaram a se desmanchar)
O intelectual polonês radicado na Inglaterra, o sociólogo Zygmunt Bauman é um dos líderes da chamada “sociologia humanística”. Em suas obras ele tenta compreender a complexidade e diversidade da vida humana. Ele sugeriu a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracterizam por uma incapacidade de manter a forma. “Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crença e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades auto-evidentes”.
Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a terem um projeto de vida, a discutir o que queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora em hora. Ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhou, é hoje, nesse mundo fluído, uma decisão de certo modo suicida. “Na época da modernidade sólida, informa Bauman, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Ford iria com toda probabilidade ter uma longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem idéia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano!. E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana”.
Em Amor Líquido ele explora o impacto dessa situação nas relações humanas, quando o indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um lado, ele precisa dos outros como do ar que respira, mas, ao mesmo tempo, ele tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos, que o imobilizem num mundo em permanente movimento.
Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas conseqüências. Para outros sociólogos, a antiga condição de emprego poderia destruir a criatividade humana, as habilidades humanas, mas construía a vida humana, que poderia ser planejada.
Já o filósofo Gilles Lipovetsky informa que há uma situação paradoxal da sociedade contemporânea, dividida de modo quase esquisofrênica entre a cultura de excesso e o elogio da moderação. De um lado, diz Lipovetsky, autor de Os Tempos Hipermodernos, “é preciso ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda”; de outro, valorizam-se “a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou das religiões orientais”. Esse convívio frenético de ordem e desordem (“caos organizados” como define o filósofo) que identifica a sociedade hipermoderna resulta, paradoxalmente, na fragilização do indivíduo, que vê ruir as antigas formas de coesão social – Estado, religião, partidos revolucionários. Se antes o indivíduo tinha confiança no futuro, agora ele tem a dúvida. É a população trazendo suicídio, ansiedade, depressão, medo de envelhecer e do desemprego.
Vivemos hoje a modernidade líquida (a hipermodernidade). Vivemos uma sociedade na qual estabelecer projetos não é uma coisa simples como na época de Sartre. O Sartre dizia para os jovens “façam projetos e desenvolvam seus projetos”. Só que hoje os projetos são frágeis, são para pouco tempo.
Desde que se iniciou a modernidade, no século XVIII, todas as coisas estruturadas e sólidas começaram a se desmanchar, por uma necessidade socioeconômica. Basta lembrar a frase de Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar...”. Nos últimos 25 anos essa modernidade adquiriu uma velocidade fantástica, por isso é chamada de líquida, não tem nada muito sólido. A família não está sólida, a Igreja, a política... As relações amorosas também estão sofrendo, os laços familiares ficaram frágeis. Estamos um pouco desconcertantes nesta nova sociedade, procurando saídas. Cada um busca encontrar caminhos para poder de uma forma criativa enfrentar o novo.
A sociedade líquida pede euforias, total e completa. É uma sociedade de indivíduos. Tudo aquilo que era prometido como uma felicidade depois da morte ou a felicidade depois de determinado sacrifício não existe mais. A sociedade agora constrói como valor ideal a felicidade aqui, agora e já. A felicidade perfeita diz que se deve gozar de tudo. Uma sociedade que tem muito mais direitos do que deveres e isso a gente vê principalmente nos jovens, nas crianças nas escolas.
Perdeu-se a confiança no futuro, fragilizando os laços amorosos. A relação humana é uma construção. É preciso que se reconheça que o outro é a diferença, amar no outro a diferença. O que eu amo no outro é sempre a diferença de mim, pois de outra forma vou acabar amando o espelho. Se os laços se constroem a partir do espelho (amar a si mesmo), esses laços serão narcisitas e se rompe rapidamente e com facilidade. Muitas vezes ter uma razão é um problema nos relacionamentos. Só melhoram quando paramos de querer ter muita razão. E essa vontade de ter razão vem de um padrão: o da felicidade, bom relacionamento. Seria bom sermos iconoclastas, rompendo com os padrões e construindo o próprio rumo. É preciso encarar o problema sem ódio, raiva ou ressentimento. Precisamos aprender a experiência do presente. É preciso prestar atenção para o que ocorre em nossa volta, de olhar com admiração, surpresa o que a gente vai vivendo. Somos deseducados, afastados do nosso presente, despercebendo o que acontece aqui e agora.
É nesta sociedade líquida, onde a liberdade é bem maior onde os vínculos se estabelecem e rapidamente se desfaz, sem a dependência doentia, é uma sociedade de paixão descafeinada (como diz o filósofo Slavo Zizek), do açúcar sem açúcar, da paixão sem entrega. É uma sociedade de paradoxos: tem medo de se entregar à paixão, tem todo auto-sobrevivente; é preciso se manter inteiro.

10 outubro 2008

Música & Poesia

Sei Lá Mangueira (Paulinho da Viola e Hermínio B. de Carvalho)
Vista assim, do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá...
Em Mangueira a poesia
Feito o mar se alastrou
E a beleza do lugar
Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei
Não sei se toda beleza
De que lhes falo
Sai tão somente do meu coração
Em Mangueira a poesia
Num sobe-desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De pensar e sonhar de sofrer
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei não
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação.

O Meu Olhar (Alberto Caeiro)

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

09 outubro 2008

Identidade


Uma década atrás um cartaz espalhado pelas ruas de Berlim apontava para o colapso da idéia de identidade que não era capaz de conter as realidades do mundo: “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia – grega. Seu café – brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro”, era o que estava escrito no pôster desafiando os alemães. O cartaz traz implícito a globalização que significa – o Estado não tem mais o poder ou o desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação. A intensa chegada de migrantes árabes, asiáticos e sul-americanos na Europa cresceu a xenofobia e o racismo. A convulsão social na França, em que migrantes ou filhos de migrantes desesperançados partem para a violência para exigir seu lugar na república francesa, confirma a tese da falência de uma noção clássica chamada identidade.

Hoje em dia, ter uma identidade ou conserva-la a qualquer preço se tornou a grande obsessão do mundo moderno. Essa obsessão se manifesta não apenas no fundamentalismo xiita do mundo islâmico, mas também no fundamentalismo cristão do presidente norte americano Bush. E nenhuma parte do mundo a ela está imune.
Identidade é objeto de um livro (Jorge Zahar Editor), do sociólogo polonês – naturalizado britânico – Zymund Bauman. No mundo de hoje, qual é o espaço do eu e do outro? Qual é a medida da liberdade individual? E do respeito ao próximo, com todas as suas diferenças/ É possível construir uma identidade sem levar a alteridade (o outro) em conta? A sobrevivência de um Estado-nação moderno pode se afirmar na falência ou na negação de outros estados?
Nessa entrevista que concedeu ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, Bauman mostra como a identidade se tornou um conceito-chave para o entendimento da vida social na era da “modernidade líquida” – termo que ele cunhou para falar do esgarçamento das relações na atualidade. Segundo Bauman, à medida que nos deparamos com as incertezas e as inseguranças da “modernidade líquida”, nossas identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo de transformação contínua. Isso nos leva a buscar relações transitórias e fugazes e faz com que sofram as angústias inerentes a essa situação.
No mundo em que tanto a noção de individualidade como o de coletividade começaram a falhar a idéia de identidade ganhou importância. Mas a busca de identidade se faz sob fogo cruzado e sob a pressão de duas forças contraditórias. Tanto aponta para o desejo de uma emancipação individual, como para o de integração a um grupo. Assim a busca navega entre dois extremos inconciliáveis: o da individualidade absoluta e o da entrega absoluta. Enquanto a individualidade absoluta é inatingível, a entrega absoluta faz desaparecer todo aquele que dela se aproxima.
Tanto suas teses sobre a falência da identidade, como suas idéias a respeito das vidas humanas desperdiçadas, desprovidas de trabalho, de dignidade, de um chão (no livro Vidas Despediçadas) se materializaram recentemente nos violentos protestos de migrantes e filhos de migrantes que se disseminaram por toda a França e países vizinhos. Autor da tese de que o mundo moderno e globalizado de hoje se tornou “líquido”, asa fronteiras se esfacelaram, as seguranças se dissolveram, e vivemos, em conseqüência, à deriva.
“Durante a maior parte da era moderna, cada classe tinha a sua trilha de carreira, uma trajetória estabelecida de maneira clara. Como Jean-Paul Sartre afirmou de modo admirável, para ser burguês não basta ter nascido na burguesia – é preciso viver a vida inteira como burguês! Quando se trata de pertencer a uma classe, é necessário provar pelos próprios atos, pela ´vida inteira´ - não apenas exibindo ostensivamente uma certidão de nascimento -, que de fato se faz parte da classe a que se afirma pertencer. Deixando de fornecer essa prova convincente, pode-se perder a qualificação de classe, tornar-se déclassé”, afirmou o sociólogo em seu livro.
“Hoje em dia – comentou Bauman na entrevista -, um século e meio depois, somos consumidores numa sociedade de consumo. A sociedade de consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos dentro e no mercado, ao mesmo tempo clientes e mercadores. Não admira que o uso/consumo das relações humanas, e assim, por procuração, também de nossas identidades (nós nos identificamos em referência a pessoas com as quais nos relacionamos), se emparelhe, e rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o ciclo que se inicia a aquisição e termina no depósito de supérfluos”.

Desta forma, a busca da identidade gera perigos e é uma rota de batalhas intermináveis e sem conclusão. A busca de uma identidade reafirma a inconstância e a precariedade do mundo globalizado. A expansão do fundamentalismo religioso parece ser um efeito dessa obsessão pela identidade na esfera de massa. Trata-se de uma guerra sem vencedores, embora a “causa da identidade” possa continuar a ser ostentada.

08 outubro 2008

Pensar a desconstrução

Em dos mais influentes de todos os pensadores na passagem do século, o filósofo Jacques Derrida (1930/2004) refletiu sobre questões como a pena de morte, a clonagem, o ciberespaço, o fim da cultura do papel. Notório pela sua teoria da desconstrução e pela ampla defesa da liberdade, o pensamento do filósofo tem papel fundamental em diferentes combates contemporâneo, um deles sobre diferenças de gênero. Trata-se de pensar como as diferenças sexuais podem vir a ser concebidas além da oposição binária entre masculino e feminino. Para ele, a mulher representa a pluralidade que rompe com as certezas únicas, masculinas, e que abriu a possibilidade de várias configurações, específicas para cada instante, plural e ao mesmo tempo única a cada momento em que ela se apresenta. Não é o protagonista feminino contra o masculino, mas o fim da definição do feminino a partir do que não é o masculino. Faz uma profunda crítica às teorias freudianas. Assim Derrida desconstrói a idéia do feminino com tudo que não é masculino.

Ele deu uma contribuição fundamental para a filosofia com pretensões a um pensamento unificador, totalizante. Questionou diversos dogmas da tradição platônica. Ele propunha a desconstrução de certos aspectos tradicionais do pensamento metafísico. Segundo ele, nunca se sai totalmente da metafísica, apenas se busca uma forma de reverter e deslocar suas teses capitais. A isso, a partir de um certo momento, passou-se a chamar de desconstrução.
A problemática da hospitalidade foi uma das questões que ele refletiu, que se resumiria em como acolher o outro, o estrangeiro, enquanto outro, diferente. Como aceitar que o outro que chega de um país não-ocidental possa ter hábitos diferentes dos nossos? É nessa perspectiva que ele defendia a hospitalidade absoluta, que não impõe condições ao outro estrangeiro. Essa noção permite refletir sobre o aumento das restrições impostas aos estrangeiros na França e em outros países ocidentais. O tema dos sem-documentos também foi discutido em seus ensaios.
Resistência como estratégia afirmativa, um modo de defender a vida foi outra de suas questões analisadas. Uma vida que não fosse uma simples sobrevivência negativa, autodestrutiva. O que interessa, para ele, são as forças de resistência que permitem à vida persistir em intensidade. Para isso é preciso a solidariedade dos seres vivos, o bem, do planeta e não apenas do homem, depende dessa solidariedade fundamental, que talvez nos dê a todos uma longa e boa sobre-vida planetária. E nos diversos textos ele tratou da necessidade de se levar em conta o animal, algo de que a filosofia poucas vezes fez, preocupada com uma racionalidade de fundo antropocêntrico. Ele combateu o irracionalismo, defendendo a tradição iluminista. Luzes para ele não poderiam jamais excluir esses próximos do homem que são os animais.
As mulheres foram outras de suas preocupações. Em seu pensamento não se trata de inverter o modo viril, a troca de sinais, sem que o modelo hierárquico, patriarcal, seja de fato descontruído. Ele defendia uma igualdade de direitos a mais aperfeiçoada possível, do ponto de vista jurídico, político, administrativo, etc, uma diferença de comportamento entre os gêneros e, dentro destes, entre os indivíduos. O conceito de diferença aponta para essa singuaridade dos indivíduos e das culturas, tanto quanto para uma necessidade de justiça universal, que garanta a existência e o exercício dessas diferenças, sem oposição simples entre homem e mulher, branco e negro, civilizado e selvagem.
Casado por mais de 40 anos com a mesma mulher, Derrida defendeu o fum do modelo tradicional de casamento. Ele reconheceu que o modelo patriarcal está falindo, encontrando-se em plena desconstrução. Mas o amor é um grande acontecimento que nenhum cálculo racional explica-se e que reforça mais ainda as estruturas vitais, em vez de destruí-las. Um amor-amizade para além de toda tábua fixa de valores, de toda moral imposta. Os indivíduos são livres para decidir o que é melhor para cada um e para todos. Assim é a democracia.
Silviano Santiago, Leyla Perrone-Moisés e Haroldo de Campos foram três de nossos críticos que dialogaram intensivamente, em momentos distintos de suas carreiras, com Derrida. Um diálogo entre literatura e filosofia até as últimas conseqüências foi o que Derrida propôs reconhecendo que certos textos literários podem propor um tipo de pensamento que em algumas medida vai mais longe do que determinados textos filosófico. Foi assim que ele dialogou com escritores como Shakespeare, Blanchot, Mallarmé e Hélène Cixous.
Entre os livros de filosofia publicados Brasil estão: “Papel Máquina”, coletânea de textos publicados em revistas e jornais franceses; “Filosofia em Tempo de Terror” com entrevista concedida por ele e pelo filósofo alemão Jurge Habermas sobre o 11 de setembro - “Expor a fragilidade da superpotência significa expor a fragilidade da ordem mundial”; “Desconstrução e Ética” é dedicado ao estudo do pensamento de Derrida; “Cenas Derridianas” onde o professor Luiz Fernando Medeiros de Carvalho dialoga com o filósofo em 13 textos, a maioria tendo como mote a literatura; e “Derrida-primeiros passos” que discute questões como diferenças, indecidíveis, rastro, segredos revelados e desconstrução.

07 outubro 2008

Gil, um pulsar do infinito (2)

Aos 29 anos Gilberto Gil se auto definia como “um homem de dados”, sempre deixando suas idéias ligadas, acesas e conectadas com o presente. “Já fui mais romântico, mais iludido mesmo. Já fui mais ideológico, hoje sou mais ecológico” (...) Prefiro os corpos que ressuscitam e se levantam apesar de tudo. Prefiro a herança dos heróis, dos mártires e dos santos. Tudo aquilo que eles deixaram como palavra de fé. Prefiro viver o ideal deles” (1979).

“Queremos saber o que vão fazer com as novas invenções. Queremos notícia mais séria sobre a descoberta da antimatéria e suas implicações na emancipação do homem das grandes populações. Homens pobres das cidades, das estepes, dos sertões. Queremos saber quando vamos ter raio laser mais barato. Queremos de fato um retrato mais sério do mistério da luz do disco voador, pra iluminação do homem, tão carente e sofredor, tão perdido na distância da morado do Senhor. Queremos saber, queremos viver confiantes no futuro. Por isso se faz necessário prever qual o itinerário da ilusão, a ilusão do poder. Pois se foi permitido ao homem tantas coisas conhecer, é melhor que todos saibam o que pode acontecer. Queremos saber, queremos saber, todos queremos saber” (1976).

“A cor negra é como um combustível luminoso, vibrátil, que fornece uma espécie de energia pra toda a humanidade, da qual a humanidade está cada vez mais carente, uma energia telúrica, tá entendendo? Ela dá no sentido principalmente da miscigenação que vai se fazendo cada vez\mais no mundo” (1977). “É o que estou fazendo, um gesto que pretende tornar-se visível para as duas áreas, a política e a cultural. Os políticos têm de se preparar para aceitar essa aproximação com a cultura, aceitara idéia de que a cultura lhe lega uma dimensão que está faltando em seu mundo. O mundo cultural, por sua vez, precisa sujar um pouco as mãos, sair dessa coisa aristocrática, dessa preguiça, desse medo de encarar o trabalho social, desse receio da degradação. Alguém tem de entender que, de repente, é preciso que a política e a cultura se misturem” (1987).

“Olha, eu diria que fui uma pessoa crente e temente a Deus na infância, até um certo momento da juventude; depois, eu continuei crente mas não mais temente a Deus, durou um certo período da maturidade; depois, me tornei descrente....agnóstico... e, hoje em dia, eu diria que convivo bem com qualquer uma dessas fragmentações do sentimento. Hoje procuro não ter sentimentos com relação a Deus, basta ter pensamento... Aliás, isso não é relativo só a Deus, isso é uma coisa que, dentro da minha visão de economia existencial, abrange uma perspectiva e tudo que signifique minhas relações entre interioridade e o exterior” (1995).

“Adoro a idéia de envelhecer, acho um privilégio. Se a pessoa adquire bons hábitos, zela por si e consegue manter a saúde, não há período mais belo da vida, quando você se soma à sabedoria” (1997). “As novas tecnologias, elas atacam esse problema de dicotomia entre o local e o global de uma forma muito direta. Por exemplo, a questão da internet, da banda larga, da televisão digital ou da rádio comunitária, as trocas que são possíveis nesses instrumentos se dão na possibilidade jade âmbito internacional, de âmbito global. Você pode estar aqui, produzir um conteúdo daqui, deflagrar uma manifestação cultural num ponto da periferia do Rio de Janeiro e de repente você está conectado com a África, com a Ásia, com a Índia, com os Estados Unidos“ (2004).

“O Carnaval sempre foi uma festa ligada à nobreza, ao mundo católico, uma janela permissiva dentro das interdições da vida católica. Aqui é assim também, foi feita assim, com o povo participando e compartilhando da festa em vários níveis” (2007). No final da obra, a cronologia do autor. Desde seu nascimento, em 1942, até 2007 com sua turnê Banda Larga para o Brasil, continuando a promoção da inclusão digital, software livre e pela flexibilização de direitos autorais.