29 julho 2016

Humor armado de Henfil (5)



Num congresso de fisioterapia, realizado em 1981 em Salvador, Henfil compareceu para falar de suas
experiências com a hemofilia ao longo de sua vida e para cá também levou as lições de autoconfiança que assimilou, conjugadas com a fisioterapia. “A determinação de um hemofílico pode permitir um tratamento com a fisioterapia dispensando o plasma e os remédios químicos. Se o hemofílico sair da redoma em que normalmente é colocado pela mãe, pode levar uma vida normal. A metade dos hemofílicos permanece nessa redoma, superprotegidos. Esses são os corruptos da classe. A outra metade entre a qual me coloco são os marginais”, brincava ele, citando os exemplos do ator Richard Burton que não aceitava extras em cenas perigosas, e do próprio irmão Herbert de Souza, o Betinho, o exilado político da música “O Bêbado e a Equilibrista”.

Henfil: o Humor Subversivo é o título do livro de Márcio Malta, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutorando em Ciência Política (PGCP/UFF) e cartunista profissional, assinando seus desenhos com o pseudônimo de Nico. A obra aborda a contribuição política do cartunista Henfil, percorre seu trabalho artístico e a luta contra os desmandos do regime militar. Publicado pela editora Expressão Popular, o livro faz parte da coleção Viva o Povo Brasileiro, que visa resgatar a memória de personalidades que lutaram para transformar o Brasil.

“Em seu campo de atuação profissional, Henfil foi ímpar. Dono de um traço leve, ágil e despojado de preocupações estéticas, acadêmicas e tradicionais, seu estilo se caracterizava pela síntese. Seu estilo era tão pessoal, que é impossível imitá-lo. Em certa feita, Jaguar comparou Henfil com Garrincha, ou seja, único” (p.37). “Por meio de seu traço limpo e ágil, conseguia dar vazão a tudo aquilo que não poderia ser verbalizado nos tempos sombrios da ditadura” (p. 39)

“Nas histórias em quadrinhos de Henfil pode-se afirmar que o ciclo não se encerra no momento da reflexão do receptor. O humorista compunha uma espécie de parceria com o leitor. Os personagens chegam a dialogar com o público, estimulando a tomada de consciência. Charges como as que figuram os quadrinhos eram recortadas e mostradas, contadas e recontadas, construídas e reconstruídas no imaginário popular, conscientizando e dando asas as formas de resistência. Exemplo clássico da interação com o público é o quadrinho em que o trio de personagem da caatinga tenta localizar a esperança olhando para os lados. A proposta por si já é fantástica, se constituindo como um convite para a imaginação, posta que o sentimento não é algo visível” (p. 40/41)

A lista de criações de Henfil constam a feminista Zilda-Lib, a onça Glorinha, anarquista, líder do comando de Libertação do Quadrinho Nacional. A missão da Onça Glorinha era caçar o “agente imperialista” Mickey. Certa vez ela comeu a Graúna, achando se tratar do camundongo de Walt Disney. Henfil admite que fez uma provocação ao tipo de intervenção que grupos da luta armada faziam. A importância conferida por Henfil ao elemento feminino das personagens, como a onça Glorinha e a Graúna, que se comportam como as mais valentes e combativas. Era essa a percepção que Henfil detinha do poder feminino. Trabalhando com a reversão de expectativas fazia ainda o riso rolar solto.

Henfil criou outros personagens. Continuava apontando as desgraças do homem médio brasileiro,
mas de maneira mais simples. Havia fome, falta de liberdades civis, desemprego, e injustiças sociais, e era preciso denunciar isso. Graúna, Zeferino, Bode Orelana, Ubaldo, Orelhão, cada tipo sublinhava, com humor amargo, aquilo que se lia nos jornais e se via nas ruas. Era um trabalho mais direto, mas nenhum personagem mostrava as vísceras do povo como o Fradim. O personagem mostrou de maneira completa os horrores da condição humana e, ao que se sabe, o país de Sarney (presidente na época) tem quase nenhuma diferença daquele governado por militares.

No final dos anos 70, ele lançou uma revista com histórias mensais dos monges loucos. Não durou muito, a revista era cara e o País começava a enfrentar mais uma de suas crises econômicas. Henfil colaborou com diversos jornais revistas: Status, Isto É, Pasquim, Jornal dos Sports, Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S.Paulo. Escreveu vários livros: Henfil na China, Cartas da Mãe, Fradim da Libertação, Diário de um Cucaracha. Fez um filme, Tanga, Deu no New York Times.

A obra do cineasta baiano Glauber Rocha foi um dos fatores que influenciou a criação de Henfil.
Desde a realização de cenários que assimilavam a técnica do Cinema Novo e suas tomadas; assim como a influência na escolha de temas ao criar seus personagens. Em paralelo ao cinema novo, outra grande influência de Henfil ao rabiscar a caatinga foi o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. A inspiração veio a partir do momento em que ganhou o livro de Betinho. O cartunista soube traduzir para os quadrinhos duas contribuições essenciais para compreender o Brasil.

Henfil foi um homem de denúncias. Foi ele quem calibrou a expressão Diretas Já e sofreu depois por ser contra o Colégio Eleitoral e, consequentemente, contra o governo de Tancredo Neves e seu vice, eleitos indiretamente. Um guerrilheiro do cartum, assim Henfil foi definido pelo cartunista Miguel Paiva. “A produção de Henfil, em sua quase totalidade (conta Nico em seu Henfil, o humor subversivo), foi pautada em termos críticos. Adotou o lápis como arma para denunciar e questionar tradições e comportamentos sociais. Tocava em pontos-chave, desenvolvendo um inconformismo contagiante. Valores, que até então eram vistos como naturais, eram espezinhados na mão do cartunista”. Segundo o caricaturista Cássio Loredano: “Henfil tirou de debaixo do tapete o que para lá tinham varrido zelosamente a nossa História inteira”.

Autor de vários livros (a maioria deles de charges) – Hiroshima, meu Humor; Henfil na China; Cartas à Mãe; Diário de um Cucaracha e Diretas Já – e de um filme, Tanga, ou Deu no New York Times, ele escreveu ainda uma peça de teatro Tem um Pinto no Meio do Caminho e participou do programa TV Mulher com o quadro TV Homem.

Ele viveu apenas 44 anos (1944/1988), mas, como poucos soube compreender e captar a essência do desencadear dos acontecimentos de sua época. Um guerrilheiro do cartum, assim Henfil foi definido pelo cartunista Miguel Paiva. Sua obra foi muito marcada pela ditadura militar. O regime supriu direitos sociais e individuais e constitucionais, assim como das liberdades democráticas.

As tiras, o texto e os cartuns de Henfil, significaram, em quase todo o período militar, um sopro de esperança. Em 1970, com a ida de grande parte dos militantes para a guerrilha, Henfil criou o Zeferino. Sua intenção era chamar as pessoas a enfrentar a ditadura. “Quem era ele? Um cangaceiro... Você tem de ser o cangaceiro! Tem de se transformar no cangaceiro!”, explicou Henfil em entrevista ao jornalista e amigo Tárik de Souza. A história se passava no sertão, usando a fome e a seca para se contrapor à propaganda do “milagre econômico” e dialogar com a classe média do “Sul Maravilha”.

 Zeferino foi criado como personagem principal. Discutia com o bode Francisco Orelana (uma crítica ao intelectual de esquerda, que ``comia” livros e pouco agia), e formava um casal com a Graúna. Esta ganhou vida própria (como a maioria de seus personagens) e tornou-se a protagonista. Hemofílico, acabou numa das muitas transfusões de sangue contaminado pelo vírus HIV. Henfil estava com Aids quando pouco se sabia dessa doença; Morreu em 1988, debilitado mentalmente. Henfil é sempre atual. E profundo em seu humor cáustico.

28 julho 2016

Humor armado de Henfil (4)



Procurando fugir às esquematizações, Henfil não se conformou em ficar apenas como desenhista. Em
1980, criou a TV Homem, um quadro satírico dentro da TV Mulher, levado ao ar pela Rede Globo todas as manhãs. Colocou seu talento também a serviço do teatro e do cinema. Junto com o jornalista Oswaldo Mendes, escreveu o roteiro de A Revista do Henfil, que fez sucesso no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, a partir de setembro de 1978. Em 1979 concluiu o filme Tanga – Deu no New York Times, feito em parceria com Jofre Rodrigues, filho do dramaturgo Nélson Rodrigues.

A linguagem coloquial, cheia de sua poderosa lucidez, funcionou como uma bomba, idêntica ao estouro dos Fradinhos, Essa experiência, o incentivou a continuar. Em Henfil na China ele revelou o fechado país de Mao Zhe Dong, depois de uma viagem a convite do governo. Cartas da Mão é uma antologia de sua colaboração semanal na revista Isto É, onde trabalhou de 1977 a 1984. Outra obra, Diretas Já, mostrou plenamente seu engajamento político em artigos e cartuns. Em Fradim da Libertação, Henfil retomou sua mais contundente personagem, nascida no seu livro de estreia, Hiroxima Meu Humor, publicado em Belo Horizonte, em 1967, antes de sua mudança para o Rio.

“Não existe nada mais perigoso do que uma mulher quando vê em perigo a preservação da espécie. Por isso elas estão na frente de todos os movimentos revolucionários do mundo” (Suplemento Mulher, Folha de S.Paulo, 1983)

Antes de viajar para Natal, Rio Grande do Norte, para se aproximar ainda mais do sertão, Henfil esteve em Salvador e travou contatos com alguns desenhistas. Mais tarde, quando José Wilson Lopes Pereira tornou-se coordenador da Rádio Educadora da Bahia fizemos experiência com quadrinhos e cartuns no radiojornalismo com experiência dos trabalhos de Lage e Henfil. “Sou contra a sofisticação do sorriso”, definiu-se, faz algum tempo. Simples, direto, apaixonado, lúcido. Henfil deixou Graúna,. Zeferino, Bode Orelana, Ubaldo, Baixim, Cumprido, muita saudade. Seu traço era tão refinadamente estilizado que até hoje vários profissionais brasileiros o têm como referência

“Fui educado na religião do terror. Essa formação, mistura de puritanismo, tradicionalismo, patriarcalismo e matriarcalismo, aliada a uma terrível fobia por qualquer espécie de pecados, originais, veniais, e mortais, me inoculou magníficas neuroses, responsáveis por toda essa graça...” (Revista Domingo, Jornal do Brasil, 1978)


“Os Fradinhos foram aceitos pelo Sindicato, eu assinei um contrato de 15 anos com os americanos, mas...depois de algum tempo veio a constatação: eram sick. A tradução literal de sick é doente, mas pode ser muito mais. É pornográfico, imoral, escatológico, sádico, neurótico, desajustado. Eles davam opinião e faziam humor com os fatos, de maneira desrespeitosa e sick, contra os padres assépticos e puritanos da grande massa norte-americana” (Sobre sua experiência para produzir cartuns nos EUA, Jornal do Brasil, 1975)

O escritor Dênis de Morais conta a trajetória do cartunista da perigosa expedição pelos porões da ditadura ao mergulho no calvário da Aids, passando pela desilusão precoce com o modelo social – democrata do então príncipe Fernando Henrique Cardoso e da amizade com o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. O livro O Rebelde do Traço – A Vida de Henfil, com 580 páginas foi lançado pela José Olympio em 1996. “Henfil, seu herói, era rebelde que trabalhava com a indignação, a revolta e a fúria, matérias-primas do panfleto, mas que nele eram fonte de graça. A convivência com a hemofilia lhe deu defesas imunológicas contra a piedade – a alter-piedade e a autopiedade -, fazendo-o tão impiedoso com os outros quanto era consigo mesmo. Nele conviviam, politicamente, o correto e o incorreto. O seu humor era, como dizia, ´pé na cara`. Ao mesmo tempo radical e amoroso, intolerante e generoso, doce e caustico, Henfil foi o humorista do senso incomum, da grossura, da inconveniência, dos gestos escatológicos e do mergulho nas zonas de sombra: do medo, do sadismo, da perversão e da paranoia”, escreveu Zeunir Ventura na orelha do livro de Dênis de Moraes.

Avesso à luta armada, que considerava uma armadilha dos militares para derrotar mais facilmente uma esquerda em frangalhos. Embora estivesse convicto de sua opção pelo humor armado, Henfil ajudou os militantes da Ação Popular e do PC do B de todas as maneiras. Liderava as cotizações para contratar advogados para os presos políticos, escondia militantes em sua casa e servia como motorista, guiando seu próprio carro nas ações dos grupos. Dênis retrata a vida cultural brasileira dos anos 30 e 40 com a biografia de Graciliano Ramos. Em Oduvaldo Vianna, os anos 50 e 60. E rastreando a vida de Henfil conseguiu com fecundidade os anos 60, 70 e 80.


O escritor observa que a vida do barulhento cartunista, “homem multimídia já naquela época”, pode ser resumida em três palavras: comédia, drama e angústia. Comédia quando se pensa nos Fradinhos, Cabôclo Mamadô e seu Cemitério dos Mortos-Vivos e no trio da caatinga – Zeferino, Graúna e Bode Orelana. O drama seria tanto a hemofilia que nunca lhe deu sossego (não podia sequer dar uma topada com medo de hematomas e derrames), quanto o exílio de Betinho, seu irmão mais velho e modelo de vida. Por fim, uma angústia permanente varou-lhe a vida. Angústia por viver em um Brasil que “não era o que ele queria”. “Foi um diabo de humorista e (tudo nele era assim tão contraditório) um anjo muito puro que passou por aqui feito um vendaval escaldante, mas deixando tudo arejado, ventilado. Foi muito rápido”, comentou o desenhista Cássio Loredano.

27 julho 2016

Humor armado de Henfil (3)



Na sua revista Fradim, lançada em 1978, desenvolveu ao máximo sua arte de quadrinização,
conquistando mais leitores com sua série sobre a caatinga, onde Bode Orelana, Zeferino e Graúna ridicularizavam o desenvolvimento do sul maravilha. Ao inundar o país com milhares de cartuns e quadrinhos, o profissional que saiu da província balizou uma trajetória digna da admiração dos seus pares.

Em depoimento a revista Status (1973), o artista foi categórico ao definir o seu modo de desenhar: “Eu não sei desenhar. Pra mim, é como mastigar pedra. Eu sei fazer tracinhos, juntá-los e formar figuras (...) Meu desenho é caligráfico. Desenho como escrevo”. Ele adotou o lápis como arma para denunciar e questionar tradições e comportamentos sociais. Segundo o caricaturista Cássio Loredano, “Henfil tirou de debaixo do tapete o que para lá tinham varrido zelosamente a nossa História inteira”.

“O Humor de Henfil era cruel. E didático. Como se ele acreditasse que o Humor serve apenas para ensinar o Homem a ser melhor. E que soubesse que o homem só aprende se lhe dói. O Humor do Henfil era doloroso. E hilariante. Era engraçado e cruel, debochado e - ´pausa! – desbordante de ternura. No Fradim baixinho o Henfil fez de tudo para não deixar seu lado doce e terno vir à tona. Quando ele inventou a Graúna – o mais emocionante personagem do imaginário brasileiro – com sua barriguinha redondinha, uma bolinha preta, suas perninhas finas feitas de dois pauzinhos e sua máscara de infinitas expressões conseguidas com três tracinhos, Henfil abriu-se mais para as pessoas que o amavam. Neste personagem ele deixou-se ver mais”, escreveu Ziraldo na apresentação do álbum A Volta da Graúna, pela Geração Editorial (1973).


Em 1973 partiu para os Estados Unidos, depois de uma longa e desgastante fase de censura no Pasquim. Foi cuidar da hemofilia e “fazer a América”. Chegou a registrar os Fradinhos nos Estados Unidos (os Fradins lá eram conhecidos como The Mad Monks) e a publicar algumas tiras que saíram de circulação por pressão de leitores e editores, que o consideravam sick (doentio) demais. Nesse exílio voluntário, ele descobriu outra faceta do seu múltiplo talento: o de escritor. As cartas que escreveu a familiares e amigos transformaram-se no livro Diário de um Cucaracha, onde contava suas desventuras em terras americanas.


Henfil passou dois anos nos Estados Unidos, sendo duramente criticado por isso. Segundo seus críticos, ele ia em busca de reconhecimento mundial quando na verdade ia apenas tratar de um problema no joelho. Lá, além dos seus próprios problemas de adaptação, teve que enfrentar também o problema de adaptação de seus personagens, tendo preferido não mexer neles e criar um outro para um jornal underground de Nova Iorque, além de colaborar como chargista em um jornal do Canadá.

Foi o único brasileiro a ser aceito pelo mais poderoso sindicato norte americano de cartunistas, UPS (Universal Press Syndicate), que controla a publicação de tiras nos jornais dos EUA. A moral americana rejeitou os fradinhos. Eram sádicos, escatológicos, desajustados, diziam. Mas no Brasil eles seduziram milhares de leitores. Era com eles que Henfil exorcizava as neuroses de sua educação rígida e mostrava a cara de seu País. Cruelmente engraçado. No final dos anos 70 montou um apartamento em São Paulo, levando para morar com ele Angeli, Laerte e Glauco. Morou durante sete anos. Seu trabalho voltou-se exclusivamente para a crítica política.

Nesta época, também interrompeu as publicações da revista Fradim. Embora muitos acreditassem ser obra da Censura, a interrupção, na verdade, foi espontânea e deveu-se a uma decisão particular de Henfil. Foi também neste período que surgiu a oportunidade de Henfil vir a trabalhar como chargista da revista Playboy americana, mas foi rejeitado. O motivo? Suas charges foram consideradas inteligentes demais para o público da revista para o qual, segundo a direção da publicação, só servia entretenimento, coisas que não fizessem pensar muito.

Mas as andanças de Henfil não param por aí. Teve também a época que ele passou morando no Nordeste onde, segundo ele, foi por uma questão de sobrevivência humana, egoística e individual, para resolver problemas de saúde mental e refletir, ficar mais próximo do habitat natural de seus personagens

“Em matéria de humor, sou pela gargalhada pé na cara, franca, espontânea, brasileira; Não admito a sofisticação do sorriso” (Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 1978)

Henfil só pôde traduzir os diferentes momentos da época porque os viveu. Ele aproximou-se da
militância com o irmão Betinho, militante da Ação Popular. Com o irmão exilado, Henfil visitava presos, participava de reuniões, da reorganização dos sindicatos, das greves, da luta pela Anistia, do surgimento do PT e das Diretas Já. Para ele, “a chave para você fazer humor engajado é estar engajado. Não há chance de você ficar na sua casa vendo os engajamentos lá fora e conseguir fazer algo. Esse talvez seja o humor panfletário. O que você faz de fora”.

Henfil não conseguia fazer um humor panfletário também por causa de sua extrema sensibilidade. Sem “comprar a briga” de uma categoria ou pessoa, ele não se achava em condições de desenhar. Só se vivesse a luta. “Eu ia lá, assistia as reuniões, se eu começasse a me emocionar com a coisa, saía”.

Os traços de Henfil são curtos, rápidos, transmitem força e expressividade. Talvez o maior exemplo de síntese seja mesmo a Graúna, que chegou a ser comparada com um ponto de exclamação. O leve deslocamento de um de seus traços altera seu humor.

26 julho 2016

Humor armado de Henfil (2)



Seus personagens, habitantes da caatinga seca e árida, passaram a apresentar a contradição do sul
maravilha e o mundo bravo do sertão, principalmente mostrando nos personagens Zeferino e Graúna, sendo que esta última ganhou cada vez mais espaço dentro do contexto das tiras inicialmente dedicadas a Zeferino. Além destes há ainda o bode e a onça que são resultado de histórias que ouviu do cantador que também cria bodes, Elomar, conforme contou Henfil: “Ele me falava da sua afeição por alguns deles, principalmente o Francisco de Orelana e enquanto ele falava, fui me lembrando do meu pai, todo o meu passado foi voltando. Quando tive de criar a história eu não sabia bem o que fazer, sabia apenas que os meus símbolos deveriam ser bem brasileiros. Surgiu assim, tudo de repente, e depois eu pesquisei, li Os Sertões, literatura de cordel...”.

Na galeria de personagens criados pela genialidade de Henfil, os Fradins têm um lugar especial. Eles nasceram por imposição de Roberto Drummond, editor da Alterosa, e foram inspirados em dois freis dominicanos mineiros. O Cumprido é o religioso carola e careta, covarde, mas também lírico, romântico e sonhador. Já Baixim é o Henfil pós-freis dominicanos, com uma nova visão de Igreja, que conhece a hipocrisia do mundo e a combate através da ironia e da agressão. Os Fradins têm ainda o mérito de introduzir em páginas impressas expressões como putsgrilla, tutaméia, cacilda, além do gesto simbólico e sua onomatopeia, o top top, que caíram no gosto dos leitores.

A repercussão da série Zeferino obrigou Henfil a colecionar cachos de cartuns proibidos ou suavizados sob rigorosa pressão. Mas ele não esmoreceu. Zeferino crispava-se de ódio contra os corruptos que desviavam incentivos fiscais do Nordeste. Os faniquitos da Graúna afugentavam o machismo brasileiro. Bode Orelana devorava quilos de papel em protesto contra a censura prévia de livros. Henfil ainda bolou uma série contra a usura dos ricos e a influência do império Disney na cultura brasileira. A onça Glorinha, guerrilheira do Comando de Libertação do Quadrinho Nacional, captura o “agente imperialista” Tio Patinhas. Levado a julgamento no Tribunal da Caatinga, Patinhas é todo o mundo! Numa fuga suspeitíssima, preserva a fortuna.

Numa entrevista a revista Veja (1971) Henfil revelou: “O Baixinho sou eu. Hoje. O Cumprido também sou eu, numa versão antiga. Vamos dizer que eu andei e o Cumprido ficou para trás. É isso. O Cumprido é como eu era: um cara carola, infantil, ingênuo, aquele mineiro com aquela formação religiosa antiga, mórbida. A religião do terror, na qual tudo é pecado (o raio que está caindo é castigo de Deus). Do pecado mortal, venial e original. O Cumprido ficou nessa fase. Agora eu me identifico com o Baixinho, que é totalmente como eu sou hoje: toda uma negação desse meu passado. E de uma maneira muito agressiva, porque esse meu passado me incomoda bastante (…) O Baixinho procura, através da agressão, do ridículo, me checar e ao meio em que vivo. Já vi: não era anarquizar, agredir essa gente, como o Baixinho agride”.


Acompanhado os dois Fradins, o Preto que Ri, um frei negro, que ri de sua própria desgraça, e o Tamanduá que Chupa Cérebros. O Cabôco estreou no Pasquim em 1972 e de todos os personagens de Henfil foi o que causou mais polêmica e inimizades ao autor. Dono de um cemitério atípico, Cabôco só enterrava pessoas que estavam vivas. Para personalidades públicas que, no entendimento de Henfil, haviam colaborado de alguma forma com a ditadura, caia no cemitério dos mortos-vivas. E o Cabôco tinha como cúmplice o Tamanduá, que sugava cérebros de suas vítimas para conhecer os pensamentos mais escondidos.

FRADIM

Quando decidiu lançar o Fradim em revistas, Henfil criou um elenco de personagens mais leves para acompanhar a publicação. Surgiu Zeferino, um nordestino da caatinga, esfomeado e sedento, acompanhado de uma minúscula graúna, seu único personagem feminino, que após morrer e ressuscitar em três dias, pôs um ovo e gerou a Grauninha, um personagem delicado que morreu de inanição pouco depois. E ainda um bode devorador de livros, Francisco Orelana, vestindo seu constante chapéu coco, e que foi inspirado num bode real, da criação do cantador Elomar Figueira de Mello. Como antagonistas, o onça Glorinha, e Lati, um coronel do interior.

Com o negro Orelhão, criado nas páginas de O Dia, Henfil desenha a crítica social, com um humor direto, falando claramente aos pobres da cidade, sobre seus problemas mais imediatos. Também para esse público surgiram no Jornal dos Spots seus personagens de futebol: Urubu (torcida do Flamengo, composta em sua maioria de negros), Bacalhau (torcida do Vasco, portugueses), Pó de Arroz (torcida do Fluminense, de pessoas ricas), Cri-Cri (torcida do Botafogo, por conta de sua chatice), Gato Pingado (torcida do América, muito pequena). E para os mais intelectualizados Ubaldo, o Paranoico, um personagem criado com a anistia de 1070, e que sempre se recusou a admitir que os tempos estariam mudando. Segundo Márcio Malta, a chave de Henfil para o sucesso popular foi abordar o futebol não só por seu cunho esportivo, mas também pelo mundo real – partindo da esfera econômica – em que chamou atenção para as contradições sociais entre as torcidas.