30 junho 2008

Literatura de cordel, o jornal do sertão

Histórico, moralista, biográfico, humorístico e até mesmo político são alguns temas que a literatura de cordel vem abordando desde o seu aparecimento até os dias atuais. Um dos poetas de cordel mais conceituado do Brasil foi o baiano Cuíca de Santo Amaro, justamente por causa de sua mordacidade – era um poeta satírico na linha de Gregório de Matos. Exibidos ao público em cordas estiradas no alto das barracas das feiras nordestinas – daí a expressão “literatura de cordel” -, os folhetos aparecem com as pequenas tipografias do interior e são consumidos principalmente por vaqueiros, lavradores e vendedores ambulantes.

Os mais variados temas são abordados pelos autores desses folhetos, desde pitorescas histórias, criadas pelo matuto (“A moça que dançou com uma caveira”), à crítica social (“O gozo da mocidade”), passando pela crendice popular (“A moça que sonhou com Padre Cícero e jogou no cavalo”). Também o fato político – real ou resultante da fantasia do povo – mereceu farta bibliografia.

O cordel ainda é o jornal por excelência do povo do interior, e o trovador é o seu repórter. Quando acontece um fato importante, ele tem de escrever o folheto rapidamente, mesmo que não dê lucro. Naqueles tempos, na zona rural, em lugares que nem o rádio alcançava, o povo só acreditava nos acontecimentos depois que lesse sobre eles nos versos do cordel. É famoso (e verídico) o caso do matuto que só acreditou que o homem foi à lua depois que leu os detalhes n um folheto popular. É a literatura de cordel refletindo a problemática social do homem nordestino.


O início da literatura de cordel está ligado à divulgação de histórias tradicionais, narrativas de velhas épocas que a memória popular foi conservando e transmitindo. São os chamados romances ou novelas de cavalaria, de amor, de narrativas de guerras, viagens ou conquistas marítimas. Mas ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, também começaram a aparecer no mesmo tipo de poesia e de apresentação, a descrição de fatos recentes, de acontecimentos sociais que prendiam a atenção popular.

A expressão literatura de cordel surgiu no Brasil entre 1875 e 1880, utilizada pelo folclorista Silvio Romero para definir o conjunto de folhetos de feira. O folheto tem habitualmente de oito a 64 páginas, mede 11 x 16cm e já circulava pelo Nordeste em meados do século XIX. Entre 1893 e 1908 surge a literatura de cordel brasileira, com a publicação de folhetos de pres poetas paraibanos: Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde.

As capas dos cordéis antigos eram ilustradas com vinhetas nas tipografias do interior nordestino. É a partir da década de 30 que surgem nas capas de postais, retratos de Padre Cícero e Lampião. E as xilografias (arte de gravar em madeira) só começam a aparecer regularmente a partir da década de 40. Franklin Cerqueira Machado (Maxado), de Feira de Santana, e Francisco Silva (Minelvino), de Itabuna são os xilógrafos mais conhecidos na Bahia.

No início da publicação da literatura de cordel no País, muitos autores de folhetos eram também cantadores, que improvisavam versos, viajando pelas fazendas, vilarejos e cidades pequenas do sertão. Com a criação de imprensas particulares em casas e barracas de poetas, mudou o sistema de divulgação. O autor do folheto podia ficar num mesmo lugar a maior parte do tempo, porque suas obras eram vendidas por folheteiros ou revendedores empregados por ele.

De custo baixo, geralmente estes pequenos livros são vendidos pelos próprios autores. Fazem grande sucesso em estados como Pernambuco, Ceará, Alagoas, Paraíba e Bahia. Este sucesso ocorre em função do preço baixo, do tom humorístico de muitos deles e também por retratarem fatos da vida cotidiana da cidade ou da região. Os principais assuntos retratados nos livretos são festas, política, secas, disputas, brigas, milagres, vida dos cangaceiros, atos de heroísmo, milagres, morte de personalidades.

Em versos de 10 ou 12 sílabas, em rica variação de versos, a poética de cada folheto conta fatos do cotidiano, estórias de bichos, casos pitorescos, de amor, de Lampião, Padre Cícero, Conselheiro, de figuras públicas, acontecimentos colhidos dos jornais, rádio e tevês, enfim, toda a gama do rico universo do nordestino. Os próprios poetas populares classificam a literatura de cordel em cinco temas mais frequentes: romance, valentia (história de um valentão, que sempre acaba mal), gracejo (uma história engraçada), desafio e encantamento (histórias de reinos encantados, com fadas e bruxas). Geralmente, o próprio poeta popular é o editor e vendedor de suas historinhas, que são penduradas num cordão, enquanto o autor, acompanhado de viola, canta trechos de seus poemas.

27 junho 2008

Música & Poesia

Pra Poder Te Amar (Martinho da Vila)

O amor não tem cor
O amor não tem idade
O amor não vê cara
Nem religião
Não faz diferença
Do rico e do pobre
O amor só precisa
De um coração...

O amor não tem tom
Nem nacionalidade
Dispensa palavras
Basta um olhar
O amor não tem hora
Nem fórmula certa
Não manda recado
Chega prá ficar...

O amor entrou na minha vida
Quando te encontrei
Olhei no teu olhar
E me apaixonei
Foi tanta emoção
Não deu prá segurar
Não deu!...

O amor contigo ao meu lado
É cada vez maior
Quero me batizar
No sal do teu suor
E ter a vida inteira
Prá poder te amar...

O amor não tem cor
O amor não tem idade
O amor não vê cara
Nem religião
Não faz diferença
Do rico e do pobre
O amor só precisa
De um coração...

O amor não tem tom
Nem nacionalidade
Dispensa palavras
Basta um olhar
O amor não tem hora
Nem fórmula certa
Não manda recado
Chega prá ficar...

O amor entrou na minha vida
Quando te encontrei
Olhei no teu olhar
E me apaixonei
Foi tanta emoção
Não deu prá segurar
Não deu!...

O amor contigo ao meu lado
É cada vez maior
Quero me batizar
No sal do teu suor
E ter a vida inteira
Prá poder te amar...

O amor entrou na minha vida
Quando te encontrei
Olhei no teu olhar
E me apaixonei
Foi tanta emoção
Não deu prá segurar
Não deu!...

O amor contigo ao meu lado
É cada vez maior
Quero me batizar
No sal do teu suor
E ter a vida inteira
Prá poder te amar
Prá pode te amar...

Prá pode te amar
Amar, amar, amar
Amar, amar, amar
Prá poder te amar!...



Tudos (Arnaldo Antunes)


Eu apresento a página branca.

Contra:

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

Contra a água.

26 junho 2008

De olhos abertos ao real

No mundo global saturado pelos meios de comunicação, existe uma super produção de imagens da realidade. Assim, a realidade é socialmente fabricada, os imaginários culturais são parte dessa realidade. Nosso acesso ao real e à realidade somente se processa por meio de representações, narrativas e imagens. Com o esmorecimento das vanguardas e a fragmentação de agendas políticas, o realismo crítico emerge em diferentes vertentes, tecendo um contraponto com o realismo sentimentalizado das telenovelas, o realismo mainstream dos filmes de Hollywood, o realismo sensacionalista da imprensa, o realismo espetacularizado dos reality shows, entre muitos outros.

Essa modernidade promoveu um desencantamento do mundo na medida em que negou o mágico, mítico, misterioso e oculto. Esse desencantamento do mundo gerou uma crise de sentidos, na medida em que a ciência e a técnica não seriam mais capazes de oferecerem explicação sobre o significado da existência humana. E é aí que entra o processo de criação de instituições de vigilância, purificação e disciplina, configuradas em âmbitos espaciais específicos, tais como a escola, a fábrica e a prisão. O indivíduo moderno se auto constrói mediante interiorização das normas vigilantes sociais. O pensamento é de Michel Foucault.

Nas últimas décadas os debates em torno da cultura do espetáculo (Guy Debord, 1967), da desaparição do real pela produção do simulacro (Jean Baudrillard, 1983) ou a crítica à perda do sentido da história por meio do pastiche midiático e artístico (Fredric Jamenson, 1991) são parte central das discussões sobre a condição pós-moderno que enfatiza a porosidade entre o vivido e o imaginado; entre a experiência e a produção da realidade pelos meios de comunicação; entre a memória pessoal, histórica e coletiva e as memórias imaginadas dos meios de comunicação.

Ao articular sua crítica à sociedade capitalista ocidental, as imagens imperam, impõem o domínio da aparência e fomentam a alienação social já que dinamitam agenciamentos sociais em prol das fabricações visuais que não convidam ao diálogo, mas à mera passividade da absorção comunista. Para Baudrillard, as perspectivas de agenciamento político foram completamente esmagados pelo domínio não mais da mera imagem, mas do simulacro midiático. No mundo do simulacro não há mais real nem realidade,
somente cópias e imagens autônomas, que não possuem lastro do real.


As noticias televisivas, por exemplo, que comentam eventos, atentados, estariam na plena ordem do simulacro, porque atuam em esfera própria, fabricando enredos próprios como num jogo virtual. Já Jamenson questiona o pós-moderno como um estágio no desenvolvimento do capitalismo tardio, marcado pelo desaparecimento da natureza e o apagamento do sentido da história. Estaríamos rendidos aos jogos híbridos dos parques temáticos e dos shopping malls. Assim, tudo se consuma e se neutraliza na circulação de um presente saturado de mercadorias, imagens\e realidades mediadas.

Se já não há crenças nem tomadas de posição revolucionárias nesse presente de banalidade do cotidiano, da descartabilidade do sujeito para atiçar uma sublimação da experiência com algo revelatório, o que apostar?. Nessa proliferação midiática, da perda de espaços públicos, do esgarçamento de experiências coletivas, nem todos sucumbem inteiramente à cultura do espetáculo. Há sempre uma brecha, um fio onde o real e a realidade são arduamente contestados e fabricados. Resta-nos abrir bem os olhos para essa realidade que nos apresenta.

25 junho 2008

De olhos bem abertos

Olhar em italiano (guardare) e em francês (regarder) significa cuidar, zelar, guardar, ou seja, ações que trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito: olhar por uma criança, olhar por um trabalho. Já no sentido de vigilância: estar de olhar, ficar de olho. A pessoa pode ver com bons olhos (esperança) ou mau olhado que seca as plantas (inveja, do latim invidia que significa mau olhado – in-contra, ved-tema de visão).

Há diversos modos de olhar com que a antropologia popular descreve. Se há sinais de ganância o povo diz olho gordo. Se o desejo é voraz tem olho comprido, se é parado (olho de peixe morto), agudo (olho de lince), infiel (olho de gato), tímido (olho de coelho), cruel (olho de cobra), sensual (olho de macaca).

Detetive, em inglês, se diz private eye, olhar que espia, espreita e espiona. Há uma crença perceptiva de que “o pior cego é aquele que não quer ver”, pois as coisas aí estão, visíveis. O olhar sempre foi considerado perigoso: as filhas e a mulher de Ló, transformadas em estátuas de sal. Orfeu perdeu Eurídice. Narciso perdeu de si mesmo. Édipo cego para ver o que, vidente, não podia enxergar. Perseu defendendo-se da Medusa forçando-a a olhar-se. Os índios, recusavam espelhos, pois sabiam que a imagem refletida é sua própria alma e que a perderão se nela depositarem o olhar.

Olhos nos olhos, quando há sinceridade, o olhar expõe no e ao visível nosso íntimo e o de outrem. Olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. A cegueira, disse Sócrates no Fédon, é a perda do olho da mente. Olhar em direção ao passado, na memória. A educação dos sentidos sempre fascinou os filósofos enciclopedistas. Para eles, os sentidos não educados são incapazes de perceber o mundo. Através da história o homem aprendeu a ver, criou modos de ver. O Barroco é um dos modos de ver a realidade, assim como o Expressionismo, Modernismo etc.

No mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia, dizem alguns autores. Os sentidos, como as paixões, perturbam a alma, e, sem esperança, conduzem ao vício e à loucura. O filósofo Platão nos convida a desconfiar da percepção. Já Epicuro, os sentidos são os mensageiros do conhecimento. E Merleau-Ponty diz que “todo o saber se instala nos horizontes abertos pela percepção”.

É a aptidão visual para o discernimento que leva Horacio, na Arte Poética, a afirmar que “a mente é movida mais lentamente pelo ouvido do que pelo olho, que faz as coisas parecerem mais claras”. Os olhos são espelhos do mundo, janela da alma, escreveu Leonardo da Vinci. Giordano Bruno disse que “a vista é o mais espiritual de todos os sentidos”. Já o padre Antônio Vieira disse que nos olhos estão compreendidos todos os sentidos. E Hegel acreditava no olho do espírito.

“A vida que ninguém vê” da jornalista Eliane Brum é um bom exemplo do que é capaz o poder do olhar e de um bom texto para que se possa tocar o leitor. No livro, Eliane conta a história de pessoas normalmente tidas como parias, ou invisíveis. São personagens do nosso cotidiano, mas fingimos que não os vemos, ou somos levados a achar que sua condição é natural. Com grande sensibilidade, Eliane descobre o tema da grande reportagem mudando apenas o ângulo, o foco, ou, numa palavra, o olhar. No texto que encerra o livro, “O olhar insubordinado”, ela faz sua profissão de fé: “Quem consegue olhar para a própria vida com generosidade torna-se capaz de alcançar a vida do outro”, “Olhar é um exercício cotidiano de resistência”, “Olhar dá medo porque é risco”.

Contrariando o último filme do cineasta Stanley Kubrick, “De Olhos Bem Fechados/Eyes Wide Shut”, abra bem os olhos, ou melhor, faça uma visita a reserva biológica Abrolhos, área destinada exclusivamente à preservação da fauna e flora. O nome Abrolhos provém da advertência Abra os Olhos, contida em antigas cartas náuticas portuguesas, aos navegantes daquela região, devido aos perigos que ela oferece dada a grande quantidade de recifes submersos. Distante aproximadamente de 70 Km da costa brasileira na região sul do estado da Bahia, é composto por um grupo de recifes de corais, ilhas vulcânicas e a plataforma continental dentro de seus limites (um polígono e um quadrilátero de interdição, visualizados nas cartas náuticas). O complexo recifal mais importante do Atlântico Sul, sabe, como poucos, enfeitiçar turistas do mundo inteiro encantando-os com seus infinitos recursos naturais.

Como o poeta Fernando Pessoa, que em seu leito de morte, segundo relata o biógrafo João Gaspar Simões, profere suas últimas palavras: “Dá-me os óculos!”. E Goethe em suas palavras finais disse: “Mais luz!”. E para encerrar essa crônica do olhar, nada melhor do que rever a composição “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque: “Quando você me deixou, meu bem/Me disse pra ser feliz e passar bem/Quis morrer de ciúme/Quase enlouqueci/Mas depois como era de costume, obedeci//Quando você me quiser rever/Já vai me encontrar refeita, pode crer//Olhos nos olhos/Quero ver o que você faz/Ao sentir que sem você eu passo bem demais//E que venho até remoçando/Me pego cantando sem mais nem porque//E tantas águas rolaram/Tantos homens me amaram bem mais e melhor que você//Quando talvez precisar me mim/Você sabe que a casa é sempre sua, venha sim//Olhos nos olhos/Quero ver o que você diz/Quero ver como suporta me ver tão feliz”

20 junho 2008

Música & Poesia

São João é na Bahia (Edigar Mão Branca)

Se for baiano como eu não tenha medo,
Levante o dedo e me diz que faz o melhor São João
Quem for baiano como eu levante o dedo
Não tenha medo e me diz quem faz o melhor São João

Tem gente que diz que é Paraíba,
A quem me diga que é o Bumba – meu – boi do Pará
Aracajú, Caruaru, Fortaleza
Maceió diz que melhor São João não há
Já eu um baiano da folia
Falo com alegria e muita convicção
Nossa Bahia é de todos os santos
Poesia e encanto do melhor São João
Nossa Bahia é de todos os santos
Poesia e encanto do melhor São João

E se os “cantador” de lá, estão aqui em casa todo dia
Na Bahia, porque negar
Se os cantadores de lá, estão aqui em casa todo dia
Ta comprovado, São João “arretado” é o São João da Bahia

E se os “cantador” de lá, estão aqui em casa todo dia
Na Bahia, então porque negar
Se os forrozeiros de lá, estão aqui em casa todo dia
Ta comprovado, São João “arretado” é o São João da Bahia

Quem for baiano como eu não tenha medo,
Levante o dedo e me diz que faz o melhor São João
Quem for baiano como eu levante o dedo
Não tenha medo e me diz quem faz o melhor São João

Tem gente que diz que é Paraíba,
A quem me diga que é o Bumba – meu – boi do Pará
Aracajú, Caruaru, Fortaleza
Maceió diz que melhor São João não há.
Já eu um baiano da folia
Falo com alegria e muita convicção
Nossa Bahia é de todos os santos
Poesia e encanto do melhor São João
Nossa Bahia é de todos os santos
Poesia e encanto do melhor São João
Nossa Bahia é de todos os santos
Poesia e encanto do melhor São João

E se os “cantador” de lá, estão aqui em casa todo dia
Na Bahia, porque negar
Se os cantadores de lá, estão aqui em casa todo dia
Ta comprovado, São João “arretado” é o São João da Bahia

E se os “cantador” de lá, estão aqui em casa todo dia
Na Bahia, então porque negar
Se os forrozeiros de lá, estão aqui em casa todo dia
Ta comprovado, São João “arretado” é o São João da Bahia.


Operário em Construção (Vinicius de Moraes)

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

19 junho 2008

Árvores, os pulmões da Terra

O poeta St. John Perse gostava de dizer que todo livro nasce da morte de uma árvore. E como escreve o jornalista Sérgio Augusto, a dívida da palavra impressa com a celulose de que se alimenta é grande. Basta observar que book, bouquin e Buch derivam de boscus, bosque, e livro vem de líber, o tecido condutor da seiva das árvores. Poetas e prosadores utilizaram, a árvore como fonte de inspiração. Pinhos e magnólias eram celebrados por Francis Ponge, o baobá no imaginário de Antoine de St. Exupéry e Roger Caillois, no tronco do ipê de José de Alencar ou no meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. E os versos que Drummond criou pensando nas mangueiras de sua infância e nas amendoeiras de sua idade adulta.

E não ficou só na literatura. A árvore encontrou campo fértil na gravura e na pintura a partir do Renascimento. Durer, Bruegel, Corot, Poussim, Cézanne e muitos outros desenharam de tudo quanto é jeito. Nos desenhos animados, Walt Disney é imbatível. As árvores falam e contam todo o seu sofrimento e alegrias com os humanos.


Pulmões da Terra e abrigos seguros, sem as árvores as paisagens murcham e o ar empobrece. Elas nos dão além de brisa e vento, flores, frutas, êxtase, lenha e matéria-prima para uma infinidade de coisas: casas, móveis, papel, rolhas, embarcações, talheres, armas, tamancos, instrumentos musicais, pneus, etc... O biólogo australiano Tim Flannery, autor do livro “The Weather Makers” lembrou que, até hoje, nós mal sabemos o que vem a ser, precisamente, uma árvore. Até duas décadas atrás podíamos estar convencido de sabermos, mas o estudo do DNA balançou todo o conhecimento, colocando o cogumelo mais perto do homem que da couve-flor e provando que a teça, árvore indiana de grande porte, é parente muito próxima do orégamo e do manjericão. Flannery se espanta ao registrar que, ultimamente, os botânicos põem os carvalhos mais ou menos ao lado dos pepinos. Desta forma, as árvores têm uma história épica, com grandes aventuras migratórias gravadas em seu genoma.

Colin Tudge, autor de “The Tree” informa que há espécies que podem ser árvores ou arbustos, dependendo d onde resolvam fincar raízes. Além de árvores que, no passado, foram trepadeiras ou mesmo ervas rasteiras. E árvores já é assunto do momento. Enquanto o inglês Thomas Pakenham retrata com sua câmara Linhof plantas de vários continentes, o engenheiro florestal Harri Lorenzi já está na nova edição de “Árvores Brasileiras”.

Uma pesquisa publicada na Califórnia afirma que remover as árvores do planeta pode esfriá-lo. Segundo o novo estudo, como as florestas são muito verdes e fechadas, elas conseguem absorver mais o calor do sol que outra vegetação, tornando o clima mais quente. As árvores, até hoje, eram consideradas fundamentais por seqüestrar o carbono da atmosfera (presente nas moléculas de CO2 que aquecem o clima).

As árvores se transformaram num símbolo ímpar, apresenta em quase todas as religiões arcaicas. Sejam maias, babilônicos, nórdicos e germânicos representavam com eles o cosmo. Os gregos as veneravam. Os lituanos (antes de serem convertidos ao cristianismo) praticavam abertamente a dendrolatria, o culto à árvore. E até o cristianismo tem uma simbólica macieira em sua mitologia. Suas características morfológicas, sua verticalidade, imobilidade, frondosidade e longevidade, pela força de sua presença e seu poder de regeneração, elas são símbolo impar, presente em quase todas as religiões arcaicas.


As árvores exercem um fascínio imenso sobre nós. No livro “O Homem e Seus Símbolos”, sobre a obra de Carl Gustav Jung, Marie Louise von Franz compara o desenvolvimento do ser humano ao das plantas. A semente contém o futuro pinheiro. Mas reage às circunstâncias, como qualidade do solo e vento, inclinando-se em direção ao sol e modelando o crescimento da árvore. Assim também acontece com o homem, de maneira espontânea e inconsciente, ela escreveu. Os celtas acreditavam que há muito em comum entre as árvores e as características das pessoas. Tanto que criaram um oráculo baseado nas plantas. Há 20 anos, Liz e Colin Murray resgataram esse conhecimento e escreveram The Celtic Tree Oracle, com 24 cartas, que incluem bétula, álamo, freixo, árvores típicas da Europa. Esse oráculo tem relação com o alfabeto celta, e criado pelos druidas com base em gestos dos dedos, conta a pesquisadora Wicca Mirela Fahur, autora do livro O Legado da Deusa. Adaptado para o Hemisfério Sul, o oráculo traz árvores tropicais, como coqueiro e goiabeira. Carvalho, ipê, oliveira e jacarandá representam as pessoas que nasceram em datas especiais de mudança de estação no Hemisfério Norte.

E o nome Brasil foi tirado de uma leguminosa, imortalizamos a chegada da corte de D. João VI com o plantio de uma palmeira imperial, cultuamos o mito de que “nossos bosques têm mais vida” e cultiva,mos o hábito de dar as pessoas e lugares patronímicos como Oliveira, Carvalho, Laranjeiras e Mangueira. Agora falta ter um relacionamento mais afetuoso com as árvores.

18 junho 2008

Cardápio da comida desperdiçada

Em época de crise, alimentos que normalmente são jogados fora se revelam fonte de nutrientes e uma forma eficaz de economizar. Vale a pena começar a aproveitar folhas, ossos, cascas de ovo e verduras para fazer receitas gostosas e de alto valor nutritivo. Através de programas de incentivo e descobertas de donas de casa, está surgindo um cardápio brasileiro que põe um fim no desperdício de comida. Ricos em vitaminas, proteínas e fibras, alimentos como folha de bredo, de batata, de chuchu, sementes de abóbora e melancia podem ser consumidas das mais variadas formas. Uma variedade de folhas pode ser refogada com carne, em forma de sopas, ou transformadas em sucos, de preferência com limão, um agente de vitamina C. O suco de couve com limão e adoçado com rapadura é um superalimento.

As crianças podem saborear o fubá de milho, o fubá de arroz, ricos em vitaminas do complexo B e sais minerais. O mais recomendado para mingau, sopa, vitamina, bolo, pão e fruta é o farelo de trigo, que pode ser comprado com mais facilidade. É bom prestar atenção nas cascas. As vitaminas das frutas e verduras ficam encostadas na casca, que em geral vão para o lixo. Aproveitem em receitas como farofas e geléias a casca da banana, da abóbora, ou frita para salgadinho. Ricos em fibras são o bagaço da laranja. Todas estas dicas são frutos de estudos das nutricionistas baianas que repassaram suas pesquisas para o programa de combate à fome.

Aparas e sobras podem ser usadas em quase tudo. Folhas de beterraba viram suflê. Se faltar o tira-gosto, sementes torradas de abóbora cumprem o papel direitinho. A refeição de hoje sugere a de amanhã, investindo-se o mínimo em ingredientes. Mas a economia é apenas uma das vantagens do aproveitamento integral dos alimentos. O ganho em nutrientes pode ser surpreendente. O caldo resultante do cozimento de carnes, legumes e verduras é rico em vitaminas e sais minerais que, normalmente, só o ralo da pia chega a conhecer.

Os nutricionistas avisam, entretanto, que abandonar a polpa e só comer as cascas, ou beber o caldo e jogar fora a carne é cair em um novo engano. Não se pode dizer que cascas e outras aparas são sempre mais nutritivas que as partes utilizadas comumente. Elas podem ser mais ricas em determinado princípio nutritivo, mas pobres em outro. O que se deve pensar é no aproveitamento integral dos alimentos, alertam.

É preciso estar alerta também para os efeitos das altas temperaturas no cozimento. O excesso de calor nas grelhas e chapas, por exemplo, apesar de provocarem a fundição da gordura - útil para quem tenta emagrecer - destrói as proteínas. No forno, também pode haver grandes perdas. A carne assada em temperaturas superiores a 200 graus centígrados chega a encolher mais de 30%. Panelas de alumínio e antiaderentes liberam substâncias tóxicas que ficam impregnadas nos alimentos. Dê preferência às panelas de barro, pedra, ferro, vidro e porcelana refratária.

Como aproveitar o alimento inteiro: Para refogados, feijão e sopas podem ser utilizados os talos de couve, espinafre e taioba, ricos em fibras; Da abóbora nada se perde: casca, folhas, cabo, polpa e caroço, que torrado com sal é excelente aperitivo, bom para rins e bexiga. Idem para a soja; Folhas de rabanete, beterraba e nabo são mais concentradas em carboidratos, vitaminas A e C, fósforo e cálcio que suas raízes. Picadas, são ótimas em saladas e conserva; Pó de folha de mandioca contém muita vitamina A e ferro. Seque as folhas à sombra e bata-as no liquidificador, guardando-as em vidro fechado. Uma pitada na comida garante energia.

Para aproveitar bem o suco do limão, bata a casca com um socador antes de cortá-lo; Paçocas e mingaus feitos à base de caroços torrados e moídos de melancia, girassol e abóbora são deliciosos, nutritivos e têm sabor de amendoim; As verduras mantêm mais valor nutritivo se cozidas o menor tempo possível; O caroço de abacate e casca de ovo moídos ficam excelentes em farofas. A casca do ovo é rica em cálcio, enquanto o caroço do abacate ralado pode ser usado como condimento suave; Para evitar que a metade não utilizada do abacate se deteriore, deixe-a com o caroço.

Não jogue fora tomates moles: 15 minutos em água gelada e voltam a ficar rijos; A folha da abóbora, ideal para refogados, bolinhos e sopas, é 20 vezes mais nutritiva que a própria abóbora; Casca de banana ouro à milanesa tem gosto igual ao da berinjela; O cozimento no vapor é sempre melhor para os vegetais; De modo geral, verduras e frutas não devem ficar guardadas por mais de sete dias na geladeira. Mas, mesmo perdendo as vitaminas, elas ainda possuem as fibras.

O preconceito é o principal empecilho à população do aproveitamento total dos alimentos. Consideradas recursos de última mão, as partes não-convencionais dos alimentos são tabus a serem superados pelos programas de incentivo, que atendem principalmente às famílias de baixa renda. O maior problema era convencer as mães de que a sobra não é ração. O aproveitamento total dos alimentos é um mundo desconhecido que precisa ser explorado. O uso de talos, cascas folhas e sementes também tem caráter ecológico. O uso dessas partes dos alimentos diminuiria em muito o lixo nas cidades, além de resolver em parte o problema nutricional de muitas famílias. “Existe um excesso de desperdício que caracteriza bem a nossa sociedade, que valoriza muito o descartável. Precisamos acabar com a falta de informação e o preconceito, responsável por tanto desperdício”, afirmou uma nutricionista.

17 junho 2008

Desejo atrai tragédia?

Desde tempos remotos que existe uma conexão entre o desejo e a tragédia. Basta lembrar Édipo e Antigonas nas tragédias gregas entrelaçando o desejo e a morte. O mesmo para Paola e Francesco na romântica e cruelmente encarcerados no Inferno de Dante. E o desejo devastado entre Romeu e Julieta? Essa dupla temática básica – desejo e morte – são questões humanas fundamentais e muito antes da formalização do conceito (com Freud) já nasceu com a origem do homem, marcado pelo pecado bíblico e sua punição maior, a perda do paraíso.

Enquanto a tragédia (que permeava a cultura grega) lida com o destino inevitável, o drama surge a partir do Renascimento e caminhou junto à Revolução Industrial e aos ideais iluministas. A tragédia obedece a um destino fatalista, teocentrista, o drama enfoca a vida real onde o sujeito é um ser racional, senhor de si e do mundo. Nasce o herói que busca escapar do sofrimento, desafia o desígnio dos deuses ou enfrenta o peso da tradição e da moral vigente.

A civilização ocidental (o oposto da oriental) tem como um de seus pressupostos o controle de fluxos primais e estimuladores da potência do corpo. Esse mecanismo de controle utiliza-se da moral e da ética como forma de manipular as relações entre os corpos. Tenta-se esse controle também através dos artifícios da racionalidade e do conhecimento, que por vezes, estão a reboque de determinados interesses humanos. Apolo, em sua figura mítica, é o senhor da aparência, da forma e do equilíbrio. Dionísio, por sua vez, lhe opõe o movimento, é a transformação, a ruptura, o caos das sensações e das paixões. Energia, matéria, tensões e formas são os termos dessa equação existencial.

Na tentativa de se proteger e minimizar essa finitude, o homem monta para si, estratégias de permanência e controle desse caos iminente (nascer, amadurecer e morrer). Estende no espaço sua teia existencial: sua cultura, sua tecnologia, seus conhecimentos, os complexos organizativos e administrativos dessa condição finita.

A arte não tem tido dificuldade em ligar o desejo erótico ao desejo de morte e aniquilação. O próprio amor é uma espécie de morte – o amante é penetrado ou atacado. Nesta tradição, os delírios do amor, especialmente o orgasmo (em francês une petite mort, “uma pequena morte”), são símbolos da morte real. Argumenta-se que as mortes em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta indicam o desejo oculto dos amantes de extinção conjunta. Na arte é extraordinariamente perigoso ser uma mulher apaixonada, como nos lembra a interminável procissão de Ofélias, Violetas, Toscas e Mimis.

Até mesmo Eros (desejo) é contaminado por Thanatos (morte). Preste bastante atenção em algumas obras de arte e observe que o desejo erótico tem a morte no seu centro. Cada um de nós pergunta se a vida tem sentido. Depende. A vida é uma corrente de acontecimentos vividos no interior da qual há frequentemente bastante sentido para nós próprios e os que nos rodeiam. O sorriso do filho significa tudo para a mãe, a carícia significa beatitude para o amante, a mudança de frase significa felicidade para o escritor. O sentido vem da entrega e do prazer, da corrente de pormenores que são importantes para nós.

Se a vida humana algumas vezes é dor, outras vezes pode ser delícia. Experienciar o mundo, para qualquer criança, é pura maravilha. Descobrir e vivenciar o amor é descobrir o sentido religioso da vida, é viver momentos de entrega. A amizade pode ser a revelação e o aprendizado do outro, do diferente. O trabalho, a luta pelos ideiais, a realização de alguns de nossos objetivos (mesmo que não exatamente como os sonhamos) é pura transcendência. A velhice pode ser o momento de sabedoria. A vida humnana passa, a todo instante, pela beleza e pela epifania.

Como viver é muito misturado (dor e alegria, tragédia e comédia) é razoável supor que a melhor representação da vida humana na arte é aquela que mostra os dois pólos desta experiência: a dor, mas também a felicidade de existir. Mostrar a afirmação na tragédia e a tragédia na afirmação, eis a receita da grande arte de todos os tempos.

Sem os opostos não há progresso. Atração e repulsão, razão e energia, amor e ódio são necessários para a existência humana. O detalhe é a ênfase. O cinema do diretor Pedro Almodóvar, por exemplo, transita da tragédia à comédia, sem regras nem amarras. Nessa mescla de gêneros cinematográficos, Almodóvar nada mais faz do que uma atualização de um fenômeno verificado no teatro e na literatura e no qual se ilustraram Aristóteles (A Poética), Victor Hugo e Pierre Corneille (El Cid).

16 junho 2008

Memória para lembrar ou esquecer

Todos nós sabemos que o passado é necessário para viver. Essa experiência do passado permite a cada instante que nos adaptemos ao presente e antevejamos o futuro. A memória permite viver. Pouco a pouco a memória torna a criança um adulto apto a desenvolver atividades variadas como a linguagem, a escrita, a abstração. Mas a memória se desfaz com a idade. A memória humana é a capacidade mental de reter, recuperar, armazenar e evocar informações disponíveis seja internamente (cérebro), seja externamente (dispositivos artificiais). A memória focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia mental e deteriora-se com a idade. É um processo que conecta pedaços de memória e conhecimentos a fim de gerar novas idéias, ajudando a tomar decisões diárias.


A psicologia, a psiquiatria e a biologia estão, cada vez mais, descobrindo os mistérios da memória, o cerne de nosso comportamento, de nossa vida mental, de nossa inteligência, de nossa linguagem, mas também de nossos conflitos intrapsíquicos e de nosso equilíbrio afetivo. Muitos especialistas no assunto afirmam que a memória é sensível ao que os olhos lhe transmitem: prefere as imagens aos sons, aos toques, aos odores, aos sabores. Os publicitários sabem disso, pois nos inudam de imagens para exaltar marcas e produtos. E sob esse dilúvio, o cérebro é seletivo. Como uma esponja, absorve grande parte das imagens e esquece outras, slogans e marcas por exemplo.

O poder de sedução da imagem é tão forte que a prova disso está na força das histórias em quadrinhos, tido como leitura só para crianças e muito combatida durante décadas, mas que hoje todos sabem que é uma boa fonte para criar hábito de leitura, principalmente em países do terceiro mundo. Um bom exemplo disso está na cidade de Salvador e observar as bibliotecas. A da Monteiro Lobato é muito frequentada pelos jovens devido ao número de revistas em quadrinhos em salas especiais.

No tempo da “Odisséia” de Homero, a informação oral era a única memória da comunidade. Hoje, as bibliotecas e os bancos de dados aliviam nossa memória individual de muitas coisas. É bom lembrar que a Marcel Proust, bastaram alguns pedacinhos de bolacha molhados no chá para reencontrar o tempo perdido ao lado de Swann, em Combray. Um detalhe que extrai da memória a complexidade, a riqueza da vida em Combray.

As lembranças são sempre compostas. Quando se vive uma experiência em que se resolve um problema, os cinco sentidos participam. Basta uma palavra, um odor, sabor, imagem para que uma das vias, que participam da elaboração da lembrança global, seja reativada.

Cada faixa etária tem causa específica para o esquecimento. Pode começar nos primeiros anos de vida, na adolescência e se agravar na idade avançada. Nas crianças a perda de memória pode ser ocasionada por diversos fatores (problemas no nascimento, hipotireoidismo, hiperatividade, desnutrição). Na adolescência, o esquecimento pode aparecer através de problemas emocionais ocorridos na infância ou pelo uso de drogas. Na idade adulta, o esquecimento tem como indicação mais comum o estresse.

Ao contrário da amnésia em que há perda de uma capacidade, o esquecimento é uma falha na retenção ou na evocação dos dados da memória. Fenômeno comum que, em maior ou menor grau, ocorre com qualquer pessoa. No entanto, é cada vez maior o número de pessoas que se sentem incomodadas com o problema e que buscam solução. A principal questão no que se refere ao esquecimento é saber sua causa. Alguns postulam que ocorre uma debilitação dos traços de memória com o passar dos anos. Outros acreditam que novos conhecimentos podem interferir prejudicando a memória.

O desuso provocaria um esquecimento dos circuitos da memória. Com o passar da idade as pessoas têm mais dificuldade para lembrar de fatos passados, porém essa dificuldade é mais intensa para os fatos recentes enquanto os remotos marcantes, ainda que não utilizados com freqüência, podem ser lembrados facilmente. Para combater, dois usos do esquecimento. Como já sabia Ulisses, sobretudo no trato com Circe e Calipso, o esquecimento pode ser cultivado para se desfazer do afeto infeliz e abrasador.

A ambivalência não lhe é fortuita. Para os arqueólogos e historiadores o culto aos mortos é o primeiro sinal de civilização. Para o filósofo Nietzsche, pensar a moral significa a necessidade “de manter o esquecimento dentro de certos limites”. Essa ambivalência (lembrar/esquecer) costuma ser complexa. Isso porque muitas pessoas precisam lembrar, exercitar a recordação, enquanto essas mesmas pessoas também precisam esquecer outras (um trauma na infância, por exemplo). Cabe a você leitor e refletir sobre o tema e divagar com seus pensamentos, conhecimentos: o que recordar, o que esquecer?

13 junho 2008

Música & Poesia

Tocando em Frente (Renato Teixeira/Almir Satter)

Ando devagar porque já tive pressa
E levo o seu sorriso
Porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte
Mais feliz quem sabe eu só levo a certeza
De que muito pouco eu sei
Nada sei
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maças
É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz para poder seguir
É preciso chuva para poder florir
Sinto que seguir a vida seja simplesmente
Conhecer a marcha, ir tocando em frente.
Por um velho boiadeiro levando a boiada,
Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou,
Estrada eu sou.
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maças
É preciso amor para poder pulsar
É preciso paz para poder seguir
É preciso chuva para florir
Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora, um dia a gente chega.
E no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua própria historia
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz...
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maças.
É preciso amor para poder pulsar
É preciso paz para poder seguir
É preciso chuva para florir
Sinto que seguir a vida seja simplesmente
Conhecer a marcha ir tocando em frente.
Cada um de nós compõe a sua própria historia
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Além Alma (Uma Grama Depois), de Paulo Leminski

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?



Poemas de Paulo Leminski
HAI


Eis que nasce completo
e, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me
ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.

KAI

Mínimo templo
para um deus pequeno,
aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de
vanguarda.

De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.
A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.

12 junho 2008

Beijos espalhados no cinema e na música

Kiss, baccio, beso, baiser, patselui... em qualquer idioma o beijo é uma forma de contato entre pessoas. Na literatura, na música, nas novelas de rádio e tevê, no cinema, nas artes plásticas e nos quadrinhos beijar é fundamental. Beijar é uma arte e Hollywood sempre soube disso. Burt Lancaster e Deborah Kerr rolam na praia em “A Um Passo da Eternidade” (1953), ajudando a desmoralizar o Código Hays, que não comportava esse tipo de exibição da luxúria. Os beijos ardentes de Rhett Butler (Clark Gable) e Scarlett O´Hara (Vivien Leigh) em “E o Vento Levou...” continuam na memória de muitos cinéfilos. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, a impetuosa duplas romântica de “Casablanca” tem quatro seqüências de beijos trocados pelo seu melodramático casal de obstinados.

Da fantasia do cinema para a realidade da vida, Elizabeth Taylor e Richard Burton selam na cena de “Cleópatra” o adultério que abalou o começo dos anos 60. E Henry Fonda e Katharine Hepbum trocam beijo da terceira idade em “Num Lago Dourado” (1981). Inocentes, ilícito, desesperados, ternos, apaixonados: na história do cinema, como na vida, os beijos sempre foram tudo isso. Representam a comunicação e o amor.

Se todas as manifestações artísticas se apropriam do beijo não seriam o cinema que prescindiria dele. Na verdade, os melhores beijos do cinema são aqueles que trocamos no escurinho da sala de projeção. O grande mérito de Hollywood nessa história foi tornar o beijo público e notório, introduzindo isso no inconsciente coletivo. O primeiro beijo do cinema aconteceu há mais de 100 anos, num curta-metragem, “A Viúva Jones”, de 1896. A sensualidade tórrida da cena vivida por May Irvin e John C. Rice chocou a sociedade americana na época. Não demorou e surgiu a censura. Depois de alguns anos, foram fixados limites “razoáveis” para as cenas “bestiais e indecentes”. Para a moral e os bons costumes, um beijo não deveria ocupar mais de 2,15mm de filme (em torno de três segundos), desde o sorriso até a separação final. É vapt vupt! O beijo mais longo no cinema é de 1940. Durou 185 segundos e foi compartilhado por Jane Wyman e Regis Toomey no filme “You´re in the Army Now”.

Quem lembra do belo “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore, sobre um menino fascinado pela magia do cinema. Antes das sessões ao público, o padre fazia a censura, cortando cenas que ele acha serem desprovidas de pudor. Isso sempre afetou as sessões, pois bem na hora daquele esperado beijo ardente, a cena é cortada para a seguinte, causando um furor entre os espectadores. Foi em uma dessas sessões de corte que o garoto Toto, o coroinha do padre, que sempre freqüentava o cinema escondido dele, conheceu o projecionista do cinema, Alfredo. Assim, começou a amizade entre os dois.

Um beijo é só um beijo: uma das coisas fundamentais da vida. É o que dizia, em 1942, a letra de “As time goes by”, a famosa canção que embalava o romance de Rick (Bogart) e Ilsa (Bergman) no filme “Casablanca”.Na música o rei do rock, Elvis Presley queria ser beijado rápido em “Kiss Me Quick”. Os Beatles encantaram o mundo pedindo “Feche os olhos quando eu te beijo” (All My Loving), enquanto o guitarrista Jimni Hendrix incendiava platéias em delírio e pedia licença para beijar o céu (Purple Haze).

“Besame mucho”, diz a canção argentina. “Beija eu”, canta Marisa Monte. “Ele me deu um beijo na boca”, interpreta Caetano Veloso. Os compositores não se cansam de cantar as maravilhas que o encontro dos lábios provocam.Roberto Carlos, na época da Jovem Guarda, cantou o barulho do sarro que tirava com ela no cinema em “Splish Splash”. De Noel Rosa e Vadico tem a composição “Quanto Beijos”. “Molha tua boca na minha boca/tua boca é meu doce meu sal/mas quem sou eu nessa vida tão louca/mais um palhaço no seu Carnaval”. É o canto de Tom Jobim na trilha sonora de “Gabriela, o filme”.

Prince falava das experiências de um beijo em “Kiss”. Rita Lee chama por um “Doce Vampiro” (“mas nada disso importa/vou abrir a porta/pra você entrar/beija minha boca/até me matar de amor”). Bethânia canta, de Waldir Rocha, “meu Amor quando me beija/sinto o mundo revirar/vejo o céu aqui na terra/e a terra no ar” (“Lábios de Mel”). Caetano Veloso canta o beijo de muitas maneiras. “Em grandes beijos de amor”, em “Alegria, Alegria”; como um presente em “Menino do Rio” (“tome essa canção como um beijo”); e absolutamente político em “Ele me deu um Beijo na Boca”: “Era um momento sem medo e sem desejo/ele me deu um beijo na boca/e eu correspondi àquele beijo”.

Marina Lima canta “Naturalmente ele me beija/e me põe literalmente louca/sob o sol, ah! E esse brilho no teu dorso/suor, cristal, gotas no seu rosto/fogo e sal nas curvas do teu corpo/é demais” (“Literalmente Louca”). “Foi sem querer que eu beijei a sua boca, menina tão louca, eu quero te beijar, beijo na boca, seu corpo no meu, suado, tem sabor de pecado, com jeito de bem-me-quer” é a letra de “Beijo na Boca” de João Guimarães e George Dias para o carnaval baiano. Existem outros beijos espalhados pela música como “Beijo Partido” (Milton Nascimento), “Nos Beijamos Demais” (Marina), “Lábios que Beijei” (Orlando Silva), “Aquele Beijo que te dei” (Roberto Carlos), “Eu Também Quero Beijar” (Pepeu Gomes), “Beijo Exagerado” (Mutantes), “Beijo Moreno” (Raimundo Sodré) e muitos outros. Todos resgatam emoção e o sabor de um momento único.

11 junho 2008

Ninguém perde a chance de beijar

O beijo é um dos grandes prazeres da vida e ninguém perde a chance de beijar. Cada pessoa gosta de um tipo de carinho, mas uma coisa é certa: todo mundo gosta de beijo. Tocar com os lábios alguém, às vezes fazendo uma leve sucção, é o que chamam de beijo, essa é sua manifestação mais singela. Existem muitas variações sobre esse tema. Ingênuas, castas, libidinosas, sensuais, atrevidas, pouco importa. O importante é beijar, e nada como um beijo após o outro.

Para uns encurta a vida, outros acham que a prolonga. A verdade, segundo a pesquisadora francesa Martine Mourier, num beijo são acionados 17 músculos. E caso o beijo traga a volúpia da paixão, esse número sobe para 29, transmitindo 250 bactérias, nove miligramas de água, sete decigramas de albumina e mais uma gota de sais minerais, isso sem falar que os batimentos cardíacos podem duplicar de 75 para 150 pulsações por minuto. Para muitas sexólogas, a qualidade do beijo é fundamental para o sucesso de uma relação amorosa. As mulheres escolhem um bom parceiro sexual pela boca, pelo beijo. Pode-se contrair caxumba, tuberculose, herpes, sífilis, além de um duradouro caso de amor. Foi com um beijo que o príncipe fez viver Bela Adormecida. Walt Disney levou o beijo deles para o cinema e os dois estão em cartaz pelo menos há 60 anos, felizes para sempre.

Segundo o antropólogo inglês Desmond Morris, a origem do beijo estaria na amamentação e no hábito – encontrado ainda hoje em algumas tribos selvagens – de passar o alimento sólido, amolecido da boca da mãe para a do filho. Ao longo do tempo, o beijo ganhou muitos sentidos. Beijar é basicamente um ato de reafirmação na vida, na felicidade, é um símbolo de vitória. Mas, nem sempre é assim. Judas traiu Cristo com um beijo. Quando um mafioso beija outro é sinal de condenação. Beijo na lona é sinônimo de nocaute. E um beijo de língua pode iniciar uma relação em cadeia capaz de fazer explodir o mais doce e tímido dos amantes.

O beijo erótico, profundo, e suas carícias de língua, como conhecemos hoje, é fenômeno mais recente. Na Grécia Antiga, era dado aos escravos o direito de beijar o solo. À medida que ocupasse postos superiores na hierarquia social, podiam beijar joelhos, mão e peitos dos respectivos senhores. Hoje, tudo acontece ao contrário. O papa beija o solo de todos os países que visita e os cardeais beijam os pés dos mendigos. Uma das primeiras representações artísticas do beijo está nas esculturas e murais do templo de Khajuraho, na Índia, feitos há 4.500 anos. É também na Índia o mais completo tratado sexual do Oriente, Kama Sutra, do século IV, que dedica todo um capítulo à arte de beijar. No puritano cinema indiano, porém, é tudo diferente: o beijo só foi aparecer, tímido, no filme “A Casa e o Mundo”, de 1984, de Satyajit Ray.

Os esquimós se beijam com a ponta do nariz, numa forma de cumprimento. O olfato, nesses beijos, vale mais que o paladar, e os olhos bem abertos são uma preocupação indispensável para quem mora numa região tão inóspita. Para os povos primitivos, o beijo na face é justamente para conhecer o odor do outro. Pelo cheiro, identifica-se a tribo (inimiga ou não) do indivíduo. Pelas mesmas razões, os mongóis esfregam o nariz na testa ou no queixo do rosto alheio. Os japoneses também não têm o boca-a-boca entre os principais esportes da ilha. Quando a famosa escultura de Rodin, O Beijo foi exposta num museu de Tóquio, foi logo coberta para evitar escândalo.

Para os chineses, o pudor extremo se relaciona com o beijo na boca, considerado como fazendo parte do ato sexual e, portanto, impensável em público. Esta concepção do beijo deu origem a um longo mal-entendido. Ao chegarem à China os ocidentais concluíram falsamente que os chineses nunca se beijavam. Por sua vez os chineses, vendo as ocidentais beijarem homens em público, acharam que todas aquelas mulheres eram prostitutas.

Os russos se beijam na boca. Isso é expressão de poder, fé e cultura. Existem outros povos, no entanto,m que não beijam. Entre eles, andamanenses, vietnamistas, somalinos, cewas, serionos e os habitantes de Okinawa. Na Abissínia, atual Etiópia, os homens beijam o chão que a amada pisa. Os muçulmanos beijam a própria mão antes de tocar a testa da mulher. Na Ásia e em algumas tribos negras, o beijo consiste em cócegas na orelha direita. Antigamente, assim como outras práticas amorosas, o beijo foi muito censurado, e muitos casais mais avançados foram até presos por se beijarem em público. Hoje, as coisas mudaram e já se beija nas ruas, nas praças, nas praias em plena luz do dia.

O beijo geralmente é o termômetro do jogo amoroso, dependendo dele as coisas podem tomar um rumo ou outro. É muito difícil de saber o tipo de beijo ideal. Cada pessoa tem suas preferências particulares. Beijo é como impressão digital, cada um tem o seu.Uns gostam de beijos melados, outros, de beijos lambidos, outros mordiscados. Há os que preferem longos beijos cinematográficos e os que gostam de beijos curtos e breves. Há pessoas que adoram beijos roubados (os escondidos), outras, beijo impetuoso, beijo compromisso (beijou casou), beijo perigoso (com sabor de crime), beijo canibal (aquele que deixa marcas), o profundo (com intervenção da língua), o escandaloso (conforme padrão de cada época), apaixonado (de fechar os olhos e ver estrelas), além do beijo de cada país. No beijo à brasileira, nessa arte somos especialistas e temos uma série de tipos que vocês mesmo podem relembrar à vontade.

10 junho 2008

O amor segundo 19 filósofos (2)

Antonio Rosmini (o amor é a presença de Deus no mundo) informa que é do amor a Deus que brota o amor ao próximo, e é ainda este amor que constitui o fundamento de toda a ética. Segundo o filósofo alemão Ludwig Feuerbach (não amar a Deus para amar o homem), a divindade é uma invenção do ser humano. Uma vez reconhecendo o caráter alienante, ilusório e enganoso da fé religiosa, o amor, para ele, é uma realidade apenas natural.

Segundo o pensador dinamarquês Soeren Kierkegaard (o amor de Deus fundamenta e edifica o amor humano) existe o amor divino e amores humanos. Somente o amor de Deus e por deus eleva as relações interpessoais acima dos sentimentos puramente humanos para projetá-los na esfera da caridade verdadeira. No pensamento do bávaro Max Scheler (Deus é o fundamento do amor) o amor encontra a sua mais evidente justificação e garantia na presença amante de Deus, que escolheu, primeiro, justamente o amor para revelar-se aos seres humanos.

Na filosofia do austríaco Martin Buber (o amor reconhece o outro no diálogo) o amor consiste no diálogo entre Deus e o homem, dialoga entre o ser humano e o seu semelhante. No pensamento do filósofo Jacques Maritain (amor, amizade, caridade) o amor divino e o amor humano se implicam e se integram mutuamente. A filósofa e santa Edith Stein (o amor eleva à perfeição) doou-se a Deus por amor, amarrou-se a Cristo com um vínculo indissolúvel de amor, que a tornou, por sua vez, capaz de amar, dando-lhe a condição de viver uma autêntica e fecunda maternidade infantil baseado no amor e alimentada pelo amor.

Para o pensador parisiense Jean-Paul Sartre (o amor é conflito incurável), o amor é caracterizado por uma falta de autenticidade constitutiva, porque todas as relações humanas carecem, afinal, de autenticidade, e por isso são destinadas ao fracasso e à derrota. Já o pensador francês de origem lituana Emanuel Lévinas (o amor entre necessidade e solidão, alteridade e transcendência) faz referências ao amor fraterno universal e à solidariedade com o próximo como a duas realidades que torna possível a própria interioridade do sujeito. Assim o amor é situado como que no centro de um triângulo, cujas vértices são constituídas pelo rosto do outro, pela responsabilidade que cada indivíduo deve alimentar para com os próprios semelhantes e pela justiça que, em, certo sentido, torna efetiva o amor e a responsabilidade.

09 junho 2008

O amor segundo 19 filósofos (1)

O sentimento que dá forma e alma ao mundo, e que ao longo dos séculos inspirou os pensamentos e as obras dos homens, desde a arte até os domínios da espiritualidade, da ciência e da poesia. Assim é o amor com suas contradições, luzes e sonhos, mas sobretudo potência, esperança e vida. E nem mesmo a filosofia conseguiu escapar ao fascínio arcano deste sentimento. Dezenove filósofos teorizaram sobre o amor no livro “O amor segundo os filósofos”. Uns sustentaram a existência do amor como valor positivo, humano, outros condenou o amor a uma realidade ilusória, e outros numa dimensão divina. O livro, do professor Maurizio Schoepflin, foi editado pela Editora da Universidade do Sagrado Coração (Edusc).

Na concepção do filósofo Ateniense Platão (o amor ao bem e à beleza) o amor liberta o ser humano e o leva à verdade. Assim, o amor platônico lança uma ponte entre o universo sensível e o universo puramente inteligível, entre o corpóreo e o espiritual, entre o relativo e o Absoluto, entre o contingente e o necessário, entre o particular e o universal. Já o filósofo egípcio Plotino (O amor é desejo inesgotável), o amor purifica e eleva o ser humano. Produz efeitos catárticos de importância fundamental, sem os quais o caminho da conversão e do retorno fica fechado para a alma.

No pensamento do africano Santo Agostinho (o amor é tudo) o amor é o nexo que une as Pessoas divinas. Somente o amor é capaz de explicar a vida da alma e a sua possibilidade de se elevar ao conhecimento unitivo de Deus. Segundo Boaventura de Bagnoregio (o amor é a verdadeira sabedoria), a força que dá ao ser humano a capacidade de elevar-se a Deus é o amor. Muitos mais que o esforço intelectual, é o amor que torna possível uma verdadeira aproximação a Deus.

O amor constitui a essência central da própria vida de Deus. Quando amamos, afirma Tomás de Aquino (amar a Deus para amar o próximo), amamos a Deus. Na concepção de Marsílio Ficino (o amor é furor divino) o amor tem uma dimensão cósmica e dá à alma humana a capacidade de uni-se a deus. Na filosofia de Baruch Spinoza (o amor é intelectual e gera alegria) o amor é o pleno conhecimento da verdade que faz o ser humano totalmente feliz.

Na concepção do pensador de Genebra, Jean-Jacques Rousseau (o amor não admite corações) o amor é filho da natureza e da liberdade. Para ele, o ser humano nasce bom e se perverte por causa da vida social e do desenvolvimento cultural. A civilização e a cultura tornaram os seres humanos egoístas e violentos, gananciosos e desordenados. Para o filósofo alemão Friedrich Schleiermacher (o sentido sagrado do amor) o amor une o finito ao infinito. O amor, interpretado segundo uma perspectiva religiosa e sacralizante, torna-se o centro da gravidade que atrai e unifica não só a própria religião e arte, mas também a educação e a moralidade.

O pensamento de Arthur Schopenhauer (o amor desejo e o amor compaixão) é marcado por um profundo pessimismo, baseado na convicção de que o único motor de toda a realidade é uma vontade cega, absurda e irracional de viver que impulsiona todo o universo e cada ser vivo a desejar algo que, tão logo é obtido, torna-se motivo de insatisfação. Assim o amor é poderoso e sabe enganar o ser humano, consegue iludi-lo, prometendo-lhe uma felicidade que jamais poderá se realizar.

06 junho 2008

Música& Poesia

Inclassificáveis (Arnaldo Antunes)

Que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?

que preto branco índio o quê?
branco índio preto o quê?
índio preto branco o quê?

aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos mamelucos sararás
crilouros guaranisseis e judárabes

orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs

somos o que somos
inclassificáveis

não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,

não há sol a sós

aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos tapuias tupinamboclos
americarataís yorubárbaros.

somos o que somos
inclassificáveis

que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?

não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não tem cor, tem cores,

não há sol a sós

egipciganos tupinamboclos
yorubárbaros carataís
caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés
chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol .


Poema do lavrador de palavras aos políticos (Pedro Barroso)


Não me perguntem coisas daquelas que eu não creia
não me perguntem coisas daquelas que não sei
remeto para os senhores as decisões do mundo
tais como governar, fazer decretos lei

no meio da tempestade no meio das sapiências
se poeta nasci, poeta morrerei
nem homem de gravata nem homem de ciências
apenas de mim próprio, e pouco, serei rei

das decisões do mundo lerei o que entender
que dentro de mim mesmo às vezes nasce um rio
e é esse desafio que nunca hei-de esquecer
e é essa a diferença que faz o meu feitio

mas digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei

mantenham com cuidado as árvores e estradas
pr'a gente poder ver, p'ra gente circular
que eu basta-me saúde e o sonho tão distante
e a boca perturbante que tu me sabes dar

e a festa de viver e o gozo e a paisagem
desta curva do Tejo, soprando a brisa leve
e na tranquilidade assim desta viagem
parar-se o tempo aqui, eterno, fresco e breve

que eu voo por toda a parte mas noutro horizonte
e vivo as coisas simples e rio-me da ambição
e ao fim de tanto ver, escolherei um monte
de onde assistirei, sorrindo, ao vosso enfarte

da ânsia de possuir, da ânsia de mostrar,
da ânsia da importância, da ânsia de mandar

e digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei .

05 junho 2008

Química do amor

Estudos científicos identificaram as substâncias responsáveis para iniciar o processo de atração sexual: dopamina, feniletilamina e ocitocina. Esses produtos químicos são todos relativamente comuns no corpo humano e são encontrados apenas durante as fases iniciais do flerte. Segundo a professora Cindy Hazan, da Universidade Cornell de Nova Iorque, “os seres humanos são biologicamente programados para se sentirem apaixonados durante 18 a 30 meses”, tempo suficiente para que o casal se conheça. Copule e produza uma criança.

Com o tempo, o organismo vai se tornando resistente aos efeitos da feniletilamina, e toda a “loucura” da paixão desvanece gradualmente – a fase de atração não dura para sempre. O casal, então, se vê frente a uma dicotomia: ou se separa ou habitua-se a manifestações mais brandas de amor – companheirismo, afeto, e tolerância -, e permanece junto.

A feniletilamina é uma molécula (neurotransmissor) natural semelhante à afetamina e sua produção no cérebro é desencadeada por eventos tão simples como uma troca de olhares ou um aperto de mãos. Esta substância pode responder em grande parte, pelas sensações e modificações fisiológicas que experimentamos quando estamos apaixonados.

Pesquisadores afirmam que exalamos continuamente, pelos bilhões de poros na pele e até mesmo pelo hálito, produtos químicos voláteis chamados feromônios. Assim como os animais, que se deixam guiar pelo olfato durante o acasalamento, os seres humanos usam inconscientemente este sentido no momento de escolher um parceiro. Assim, por meio dos feromonas somos capazes de detectar o cheiro corporal dos demais e responder diante deste estímulo.


O odor corporal é fortemente influenciado pelo tipo de alimentação e influência nossas preferências por certos aromas. Pessoas que gostam de comidas muito temperadas também preferem fragrâncias fortes e penetrantes, como as que contêm patchuli, sândalo ou gengibre. Aquelas que consomem mais laticínios preferem florais, como lavanda e néroli (flor de laranjeira). Os japoneses (alimentação baseada em peixes, verduras e arroz) são atraídos por fragrâncias delicadas. E, enquanto os esquimós são tidos como tendo cheiro de peixe e os africanos cheiro de amoníaco, o resto do mundo concorda que o cheiro azedo dos europeus é o mais nauseante, dizem os pesquisadores.

Os sentidos humanos estimulam a paixão. A visão é, provavelmente, a fonte de estimulação mais importante que existe. No homem, existem numerosos estímulos visuais envolvidos na atração sexual, que vão muito além da visão dos genitais do sexo oposto. A forma de mover-se, um olhar, um gesto, inclusive a forma de vestir-se, são estímulos que podem resultar mais atraentes que a contemplação pura e simples de um corpo nu. O amor entra pelos olhos.

O uso de frases e canções amorosas constitui uma das preliminares mais habituais n as sociedades humanas como meio de solicitação sexual. Através da audição, uma frase erótica, sussurrada ao ouvido, pode resultar tão incitadora quanto um bramido de elefante na imensidão da selva. E não só as primeiras palavras, mas também os tons de voz deverão responder aos padrões de saúde e genética desejados na escolha do (a) parceiro (a).

O tato é outra preciosidade, a pelo com a qual amamos. A superfície do corpo humano, com aproximadamente dois metros quadrados de extensão é, poderíamos dizer, o maior órgão sexual do homem. Mais do que simplesmente um dos sentidos, o tato é a resultante de muitos ingredientes: sensibilidades superficiais, profundas, vontade de explorar e atividade motora, emoções, memória, imaginação. Existe cerca de cinco milhões de receptores do tato na pele – as pontas dos dedos têm uns 3.000 que enviam impulsos nervosos ao cérebro através da medula. O tato é o mais primitivo e elementar dos sentidos.

A boca é a primeira fonte de prazer. Vai da fase em que o bebê se amamenta através do mamilo da sua mãe até a fase adulta, quando o paladar fica cada vez mais apurado. A língua é a base de todo o paladar e a boca é uma das partes mais sensíveis do corpo e mais versáteis. Um beijo combina os três sentidos de tato, paladar e olfato. Favorece o aparelho circulatório, aumento de 70 paras 150 os batimentos do coração e beneficia a oxigenação do sangue. Sem esquecer que o beijo estimula a liberação de hormônios que causam bem-estar.

E quem pensa que o amor começa quando os olhares se encontram está enganado. É um pouco mais embaixo, no nariz. Há circuitos que vão do olfato ao cérebro e leva uma mensagem muito clara: sexo. Os feromônios que falamos no início e exalam pelos bilhões de poros na pele envolve nosso comportamento sexual e a marcação de território. Eles produzem reações químicas que resultam em sensações prazerosas. Quando decidimos que temos química com alguém, o mais provável é que estamos literalmente certos.

04 junho 2008

Amor, o sentimento que influencia a humanidade (2)

O grande poeta Guilherme XI, duque da Aquitânia, era conhecido como o mestre infalível das conquistas femininas, um verdadeiro don-juan que se vangloriava de cada uma de suas conquistas. “Chamam-se ´mestre sem defeito´:/toda mulher com quem me deito/quer amanhã rever meu leito; neste mister sou tão perfeito,/tenho tal arte,/que tenho pão e pouso feito/por toda a parte”. Ele reunia o dado profano e o sagrado com as conotações que eles possuíam antes da culpa judaico-cristã. A partir de Guilherme IX, o porta-voz do sentimento de todos os homens, todos os outros poetas, têm um único desejo: serem correspondidos pela dama e, com ela, poderem gozar dos prazeres do amor, nos jardins ou sob as cortinas.

Entre 1150 e 1180 o amor transformou-se em princípio e fim de todas as virtudes, clímax do aperfeiçoamento moral. Amar passou a ser virtude. A grande descoberta foi jogar fora o véu da hipocrisia, que exigia da mulher comportamentos que eram contrários à natureza, sem se deixar obcecar pela sexualidade desenfreada. O amor cortês foi o amor que embora não se limitasse única e exclusivamente à satisfação sexual não a
dispensava. O amor cortês foi a denúncia dos trovadores ao casamento imposto à mulher por interesses políticos e econômicos, em que o amor não tinha lugar e a mulher passava a ser objeto de compra e venda.

Este novo modo de amor floresceu no sul da França e foi levada ao norte, possivelmente por Eleonor de Aquitânia, neta de Guilherme IX e conhecedora dos inúmeros trovadores que freqüentavam os castelos de Poitiers. Maria de Champagne e Aéles de Blois, filhas de Eleonor, herdaram da mãe o gosto pelas letras e transformaram a corte num centro literário importante. Sõ elas as responsáveis pelo desenvolvimento da cortesia no norte do país. O amor cortês apareceu como uma arte, um embelezamento do desejo erótico. Mais tarde a produção literária foi condenada pela Igreja.

O amor varia de acordo com a cultura e os gostos de cada época, mas a essência dessa emoção é imutável. Nos séculos 15 e 16, a religiosidade dá espaço à razão, à ciência e á lógica. No Renascimento houve a revalorização dos desejos individuais. O século 18 é o da racionalidade – o amor ganha códigos de ética e até de etiquetas. Don Juan é a figura literária que representa o amor do século 18. O amor, durante muitos anos, muitas vezes era associado ao sofrimento e à morte. Na revolução industrial o que era nobre, digno de qualquer sacrifício era o amor. E quanto mais sacrifício, melhor. O amor romântico é uma figura arrebatadora que arrasta a todos. Assim, a cada década, o amor continua e continuará vivo alimentando-se de sua capacidade de mudar-se e se adaptar.

“Os Sofrimentos do Jovem Werther”, romance de Goethe, que conta a história de um fracasso amoroso, reflexo do desencanto que marcava o final do século 18 se tornou best-seller na Europa e os ávidos leitores se identificaram com o aflito personagem. Mas quem não se lembra dos famosos pares Abelardo e Heloisa, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, entre outros que povoam o imaginário ocidental. Cada uma dessas representações literárias de amor se espalharam em muitas outras artes. E não faltou Sansão e Dalila, Perro e Colombina, Joãozinho e Maria, Bonnie e Clyde, Donald e Margarida, Super Homem e Lois Lane, Homem Aranha e Mary Jane. A idéia de amor ocupou o centro ideológico da sociedade e da cultura que a geraram, revelando seu modo de vida.

O amor é uma necessidade. O segredo do amor é como um presente, um dom e que ele pode crescer apenas aumentando a vontade em doar... O amor tem seu próprio tempo, sua própria estação. Como escreveu Guimarães Rosa, “amar é sede depois de se ter bem bebido”. No seu novo CD, “Invisível DJ”, o grupo Ira! traz uma letra de Edgard Scandura e Taciana Barros, “Culto de Amor”: “Procuro me desarmar/ando em busca de paz/respondo à vontade do céu/sentimentos, não preciso de provas/união, para você o sim/não fale nada/a verdade vem no seu beijo/você nas minhas mãos/eu juro que não tenho medo...”.

03 junho 2008

Amor, o sentimento que influencia a humanidade (1)

Diante da constatação do mundo de hoje, impessoal, rápido, urgente sem espaço para uma série de visões românticas do passado, a banda pernambucana Os Astronautas decretou no seu terceiro CD: “O amor acabou!”. Para o cantor, compositor, arranjador, multi-instrumentista e produtor André Frank, o disco serve como “um desabafo urgente, um alerta, mas sobretudo é uma análise fria desse mundo” (...) “Quero que as pessoas parem, nem que seja por um minuto, e façam uma reflexão do momento pelo qual estamos passando, vivendo – com mazelas por todos os lugares e tantas distorções de caráter, crises de ética, de respeito – e que façam sua própria análise de comportamento em meio a tudo isso. Temos que mudar. E que seja sempre para melhor”.

Gênero criado no século 12 para dar conta das paixões até então ignoradas pela cultura medieval, a literatura cortês teve uma função bem mais complexa do que simplesmente distinguir o permitido do proibido em matéria de amor e sexo. Até o século 12, época triunfal da escolástica, as paixões, reprovadas pela tradição eclesiástica, não encontrariam espaço na moral matrimonial. Seu lugar era fora da cultura.

A linguagem romântica será instaurada pela cortesia. O movimento foi criado por algumas linhagens nobres, especialmente no oeste e noroeste da França, não tardou a se difundir por todo o Ocidente cristão. A palavra “cortês”, historicamente, qualifica um conjunto de costumes adotados pelas cortes feudais mais suntuosas. Na prática, por um conjunto de normas éticas e estéticas que governavam a relação entre os sexos. Os poetas limusinos (os primeiros trovadores) deram-lhe voz.

O amor cortês, convenção medieval que se manifestou com maestria nas cantigas de amor provençais, situava a mulher como um objeto venerável e sempre inatingível. O homem, na posição do vassalo, deveria exaltá-la, cantando o seu amor, mas nunca toca-la, ou mesmo desejá-la para além dos limites da mesura, pois a dama era o seu señor. É no contexto da cantiga medieval que se dá, no Ocidente, o nascimento da poesia. Assim, no contexto do amor cortês que essa poesia tem origem.

O amor cortês desenvolveu-se no sul da França, em fins do século XI e início do XII. A canção épica, a canção gesta, criação do feudalismo francês e normando, promovia o herói e sua bravura sem par. Nos primeiros séculos da Idade Média, o amor era predominantemente machista. A mulher amava o cavaleiro, o valoroso, vivia do reflexo de sua glória, e seu único desejo era de se dar a ele e segui-lo. Até o século XI, foi sempre a voz feminina que explorou o amor. Um belo dia tudo muda. Cabe agora ao homem amor e suplicar, empalidecer e desfalecer. A mulher e o amor, que ela desperta, transformaram-se em poesia e deram inicio ao lirismo medieval trovadoresco, que acabou se tornando uma verdadeira religião em torno da mulher e do amor.

O amor cortês foi um amor humano, que embora enobrecido de forma a se tornar um culto, não se preocupou em exaltar a castidade das damas, ao contrário, o que se esfatizava era o desejo físico do cavaleiro e o dom corporal da mulher, que passou a representar o bem e o belo. Esta explosão de sensualidade era nitidamente contrárias às regras vigentes num século e num país profundamente cristianizados. A Igreja que anteriormente se preocupava em manter o poder nas mãos masculinas, se viu obrigada a afrouxar a repressão que proibia qualquer manifestação em louvor à virgem e permitir que o culto a Maria fosse aceito no magistério católico. Daí em diante, Maria, a mãe de Deus, será louvada em posa e verso.

02 junho 2008

Um estado de graça chamado amor

O amor é um sentimento universal e natural, presente em todas as épocas e culturas. O amor e a paixão existem. Poucos sabem descrevê-las, ninguém nunca viu ou tocou, mas todos sentem na hora em que menos se espera. Este vício ou virtude, este impulso que escapa à razão ou este luxo dos sentidos nos invade vez por outra e, numa posição confortável e segura, fica por detrás de nossas ações. É a nossa força motriz, o que nos faz viver.


Todo mundo sabe o que é isso. O fogo que arde sem se ver, a ferida que dói e não se sente (Camões), o sentimento que move o sol, como as estrelas (Dante), a força obscura e potente que dissolve membros (Safo) ou amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no elipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários (Drummond). É o amor, louco, delicioso, tolo, embriagante, o princípio unificador do cosmo, segundo os filósofos gregos, motor de todos os poetas, êxtase celestial e doce tormento de todos os apaixonados, alegria dos comerciantes no Dia dos Namorados.

O amor como uma força independente e incontrolável vem vendendo obras de ficção ao longo de muitos séculos. Muitas tentativas foram feitas para desvendar os mecanismos dessa reação química e que pode até criar dependência. Antropólogos, biólogos e químicos aliam-se na tarefa. Amor não é sexo, surgiu como conseqüência da necessidade de propagar e reforçar a sobrevivência da espécie – o que a pura reprodução sexual não garantiria. O amor evoluiu milhões de anos atrás para levar homens e mulheres a ficar juntos e criar seus filhotes. A fragilidade dos filhotes gerou o amor programado biologicamente, embutido no código genético, baseado em elementos químicos específicos. Para os cientistas, o amor é um mecanismo criado pela natureza para a perpetuação da espécie.

Trata de uma teoria conhecida como “banho químico”, uma cascata de elementos que, descarregados no cérebro, correm ao longo dos nervos, espalham-se pelo sangue e geram reações rigorosamente iguais nos humanos em estado amoroso. “Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso chegar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um”, espantava-se o francês Roland Barthes. “Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução. Por que desejo esse?”. A resposta está no mapa do amor, uma pré-seleção que a pessoa faz desde a infância, gravando no inconsciente as coisas que aprecia e as que não gosta e já na adolescência surge uma proto-imagem do parceiro ideal. Cultura, maneira como cada criança é criada, seu meio ambiente e as influências externas moldam os contornos dessa imagem. E quando alguém se encaixa nesse mapa do amor e passa por perto, a biologia entra em ação e o estágio de encantamento aparece.

Alguns poetas davam a entender que a origem do amor era totalmente orgânica. Outros creditavam à atividade profunda do coração a verdadeira origem. Na poesia satírica de Gregório de Matos “o amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias, uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um rebuliço de ancas, quem diz outra coisa é besta”. Arnaldo Jabor em seu livro “Amor é prosa, sexo é poesia” ele define: “O amor é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse ´absoluto´, que está na calma felicidade dos animais”. “Amor meu grande amor, só dure o tempo que mereça, e quando me quiser, que seja de qualquer maneira, enquanto me tiver, que eu seja a última e a primeira...”. A letra, arrebatadora, é de Ângela RôRô e Ana Terra. A paixão é o lado nervoso do amor, escreveu Milton Nascimento e Fernando Brant. Para os dois, “amar é a melhor maneira de viver”.

“O que será que me dá, que me bole por dentro será que me dá, que brota à flor da pele será que me dá, e que me sobe às faces e me faz corar, e que me salta aos olhos e me atraiçoar, e que me aperta o peito e me faz confessar, o que não tem mais jeito de dissimular, e que nem é direito ninguém recusar...”. “O que será?”. Chico Buarque e Milton Nascimento respondem na mesma canção. Amor é estado de graça, escreveu o poeta Drummond de Andrade. “Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida, o mundo é grande e cabe, nesta janela sobre oi mar, o mar é grande e cabe, na cama e no colchão de amor, o amor é grande e cabe, no breve espaço de beijar”.

“O amor e a agonia, cerraram fogo no espaço, brigando horas a fio, o cio vence o cansaço, e o coração de quem ama, fica faltando um pedaço, que nem a lua minguando, que nem o meu nos seus braços. . .”. Assim é o amor de Djavan, faltando um pedaço ou mesmo a beleza de pétala: “Por ser exato, o amor não cabe em si, por ser encantado, o amor revela-se, por ser amor, invade e fim”.