18 julho 2016

Tramas do sagrado na poética de Elomar (1)



Presentificando o sagrado existente na linguagem, no homem, na natureza, Elomar peregrina pelas
terras do sertão. Garimpa, vasculha lá no abismo do esquecimento os ritmos quase mortos, os costumes que vão embora junto com os retirantes, as cantigas que remontam à era medieval. E o resultado é uma obra primada pelo vocabulário rebuscado (retirado do cancioneiro ibérico que sobrevive no sertão nordestino), aliado a expressões típicas dos cantadores e repentistas.

O cantador inaugurou a Fundação Casa dos Carneiros, com sede na fazenda do artista, onde compôs boa parte de sua obra. A entidade vai incentivar as manifestações artísticas e desenvolver projetos ecológicos e sociais, sediar o acervo elomariano, aberto para pesquisa, com histórico de suas obras: discografia, canções, poesias, árias de ópera, roteiros para cinema, romances de cavalaria e tudo que diz respeito à produções de Elomar.

A professora e pesquisadora Simone Guerreiro lançou o livro “Tramas do sagrado: a poética do sertão de Elomar”, com ilustrações do artista plástico Juraci Dórea. A obra traz o perfil biográfico do artista erudito-popular e um CD inédito gravado em 2006 por Elomar, além da entrevista com o homenageado, uma análise de seus poemas, canções e árias, conhecidas ou inéditas também estão inseridas no trabalho.
 
Na viagem pelo sertão do trovador de Conquista, Simone aborda as trocas culturais entre “Brasil e Portugal e a aproximação com o mundo medieval, atualizando consoante a realidade histórica do sertão (...). Isto é tecido a partir das tramas do sagrado, ou seja, observando como a consolidação de um estilo arcaico, medieval, é uma estratégica para resguardar determinados valores éticos e estéticos que se contrapõem à dessacralização da arte moderna e desumanização da arte contemporânea. Pousando, em seguida, na caatinga, ressalta-se o processo de ficcionalização de sua aldeia, o Rio Gavião, ao modelar uma geografia encantada que inventa o território sertanejo”. O trabalho de Simone é sensível, criterioso, competente, valioso.

Com 16 discos lançados, a comemoração dos 70 anos do poeta (dia 21 de dezembro de 2007) foi feita com o lançamento de um DVD, seguida de uma turnê por várias capitais, além da publicação de seu romance inédito de cavalaria, Sertanílias. Em dezembro de 2016 ele vai comemorar 79 anos.

ÚLTIMO CATINGUEIRO

Elomar Figueira de Mello mora nas caatingas da Bahia, mas estudou música erudita em Salvador. É arquiteto, criador de bodes e trovador místico, sabe das coisas. Seu terceiro disco, “Fantasia leiga para um rio seco” conta a histórica seca do Noventinha, acontecida no sertão na virada do século, quando dezenas de famílias morreram ao sair em êxodo para o Sul. Os que ficaram na terra, também pereceram. É a saga de um catingueiro, cronista derradeiro da fome e sua retirada heróica em busca de onde nasce o verde, até a morte. Esse trabalho, de todas as formas, reafirma o talento de um dos mais inspirados artistas brasileiros e também é uma das propostas mais originais da música popular brasileira.

O disco tem “Cinco Cantos” onde o seu violão e voz casam-se com os sons da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia, com arranjos e regência de Lindembergue Cardoso. Na abertura, a orquestra soa a desolação, a terra seca. Em seguida vem o primeiro canto, “Incelença pra terra que o sol matou” onde Elomar canta como está o catingueiro, derradeiro flagelo. O segundo canto, “Tirana”  é o lado mais íntimo, fala da mulher, dos filhos, na solidão, seus sonhos. Gira em torno da casa e da estrada. O terceiro canto, “Parcela”, ele remove recordações. Vem a dor: sair da caatinga para o Sul. A seca, a fome e a morte estão no quarto canto, “Contradança”. E encerra o quinto canto, “Amarração”, com o sertanejo sem força, chegando morto.

A música do cantador Elomar tem claramente definidos os traços de musicalidade ibérica – a que se adiciona ainda forte dose de sentimento mourisco – e a prova disso é não apenas a sua temática, cheia de referências medievais e cavalheirescas, como também o próprio suporte formal de suas composições, todas calcadas em esquemas modais, com seu violão sublinhando, frase por frase, o canto anasalado e cheio de vocalizes. Desta maneira, voz e violão unem-se, marcham paralelos.

“Vô cantá no cantori primêro/as coisas lá da mia mudernage/que me fizero errante e violêro/eu falo sero e num é vadiage/e pra você qui agora está me ôvino/puro inté pelo Santo Mininio/Virge Maria que ôve o qui eu digo/se fô mintira me manda o castigo//Apois pra o cantado e violêro/só há treis coisa neste mundo vão/amo, furria, viola, nunca dinhêro/viola, furria, amo, dinhêro não” (O Violeiro)

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