Presentificando o sagrado
existente na linguagem, no homem, na natureza, Elomar peregrina pelas
terras do
sertão. Garimpa, vasculha lá no abismo do esquecimento os ritmos quase mortos,
os costumes que vão embora junto com os retirantes, as cantigas que remontam à
era medieval. E o resultado é uma obra primada pelo vocabulário rebuscado
(retirado do cancioneiro ibérico que sobrevive no sertão nordestino), aliado a
expressões típicas dos cantadores e repentistas.
O cantador inaugurou a Fundação
Casa dos Carneiros, com sede na fazenda do artista, onde compôs boa parte de
sua obra. A entidade vai incentivar as manifestações artísticas e desenvolver
projetos ecológicos e sociais, sediar o acervo elomariano, aberto para
pesquisa, com histórico de suas obras: discografia, canções, poesias, árias de
ópera, roteiros para cinema, romances de cavalaria e tudo que diz respeito à
produções de Elomar.
A professora e pesquisadora
Simone Guerreiro lançou o livro “Tramas do sagrado: a poética do sertão de
Elomar”, com ilustrações do artista plástico Juraci Dórea. A obra traz o perfil
biográfico do artista erudito-popular e um CD inédito gravado em 2006 por
Elomar, além da entrevista com o homenageado, uma análise de seus poemas, canções
e árias, conhecidas ou inéditas também estão inseridas no trabalho.
Na viagem pelo sertão do trovador
de Conquista, Simone aborda as trocas culturais entre “Brasil e Portugal e a
aproximação com o mundo medieval, atualizando consoante a realidade histórica
do sertão (...). Isto é tecido a partir das tramas do sagrado, ou seja,
observando como a consolidação de um estilo arcaico, medieval, é uma
estratégica para resguardar determinados valores éticos e estéticos que se
contrapõem à dessacralização da arte moderna e desumanização da arte
contemporânea. Pousando, em seguida, na caatinga, ressalta-se o processo de
ficcionalização de sua aldeia, o Rio Gavião, ao modelar uma geografia encantada
que inventa o território sertanejo”. O trabalho de Simone é sensível,
criterioso, competente, valioso.
Com 16 discos lançados, a
comemoração dos 70 anos do poeta (dia 21 de dezembro de 2007) foi feita com o
lançamento de um DVD, seguida de uma turnê por várias capitais, além da
publicação de seu romance inédito de cavalaria, Sertanílias. Em dezembro de
2016 ele vai comemorar 79 anos.
ÚLTIMO CATINGUEIRO
Elomar Figueira de Mello mora nas
caatingas da Bahia, mas estudou música erudita em Salvador. É arquiteto,
criador de bodes e trovador místico, sabe das coisas. Seu terceiro disco,
“Fantasia leiga para um rio seco” conta a histórica seca do Noventinha,
acontecida no sertão na virada do século, quando dezenas de famílias morreram
ao sair em êxodo para o Sul. Os que ficaram na terra, também pereceram. É a
saga de um catingueiro, cronista derradeiro da fome e sua retirada heróica em
busca de onde nasce o verde, até a morte. Esse trabalho, de todas as formas,
reafirma o talento de um dos mais inspirados artistas brasileiros e também é
uma das propostas mais originais da música popular brasileira.
O disco tem “Cinco Cantos” onde o
seu violão e voz casam-se com os sons da Orquestra Sinfônica da Universidade
Federal da Bahia, com arranjos e regência de Lindembergue Cardoso. Na abertura,
a orquestra soa a desolação, a terra seca. Em seguida vem o primeiro canto,
“Incelença pra terra que o sol matou” onde Elomar canta como está o
catingueiro, derradeiro flagelo. O segundo canto, “Tirana” é o lado mais íntimo, fala da mulher, dos
filhos, na solidão, seus sonhos. Gira em torno da casa e da estrada. O terceiro
canto, “Parcela”, ele remove recordações. Vem a dor: sair da caatinga para o
Sul. A seca, a fome e a morte estão no quarto canto, “Contradança”. E encerra o
quinto canto, “Amarração”, com o sertanejo sem força, chegando morto.
A música do cantador Elomar tem
claramente definidos os traços de musicalidade ibérica – a que se adiciona
ainda forte dose de sentimento mourisco – e a prova disso é não apenas a sua
temática, cheia de referências medievais e cavalheirescas, como também o
próprio suporte formal de suas composições, todas calcadas em esquemas modais,
com seu violão sublinhando, frase por frase, o canto anasalado e cheio de
vocalizes. Desta maneira, voz e violão unem-se, marcham paralelos.
“Vô cantá no cantori primêro/as coisas lá da mia mudernage/que me
fizero errante e violêro/eu falo sero e num é vadiage/e pra você qui agora está
me ôvino/puro inté pelo Santo Mininio/Virge Maria que ôve o qui eu digo/se fô
mintira me manda o castigo//Apois pra o cantado e violêro/só há treis coisa
neste mundo vão/amo, furria, viola, nunca dinhêro/viola, furria, amo, dinhêro
não” (O Violeiro)
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