28 abril 2006

Cruel, apaixonado ou desesperado abril?

“Abril é o mais cruel dos meses”. A sentença de difícil constatação empírica, é o verso inicial do poema “The Waste Land” (A Terra Desolada, na tradução de Ivan Junqueira), do norte americano naturalizado inglês Thomas Stearns Eliot (1888/1965). O poema, de T.S.Eliot foi publicado em 1922 e constrói uma cerrada rede de referências à tradição literária européia na descrição de um continente devastado por um processo de desagregação que vinha desde o Renascimento. “Abril é o mais cruel dos meses, germina/Lilases da terra morta, mistura/Manhã e desejo, aviva/Agônicas raízes com a chuva da primavera”.

Outra obra com destaque para o quarto mês: “Abril Despedaçado”, filme do cineasta brasileiro Walter Salles baseado no livro de Ismail Kadaré sobre o Kanum – o código que regulamenta os crimes de sangue na Albânia. A partir do livro, Salles mostra a vingança entre famílias pela posse da terra. Rodrigo Santoro vive Tonho que questiona a lógica da violência, da tradição e da perpetuidade.

Saindo do trágico para o lírico, temos “As Cores de Abril”, de Vinícius de Moraes e Toquinho: “As cores de abril/os ares de anil/o mundo se abriu em flor/e pássaros mil/nas flores de abril/voando e fazendo amor//O canto gentil/de quem bem te viu/num pranto desolador/não chora, me ouviu/que as cores de abril/não querem saber de dor//Olha quanta beleza/tudo é pura visão/e a natureza transforma a vida em canção//Sou eu, o poeta, quem diz/vai e canta, meu irmão/ser feliz é viver morto de paixão”.

Temos ainda a composição de Adriana Calcanhoto: “Abril”: “Sinto o abraço do tempo apertar/E redesenhar minhas escolhas/Logo eu que queria mudar tudo/Me vejo cumprindo ciclos, gostar mais de hoje/E gostar disso/Me vejo com seus olhos, tempo/Espero pelas novas folhas/ Imagino jeitos novos para as mesmas coisas/Logo eu que queria ficar/Pra ver encorparem os caules/Lá vou eu, eu queria ficar/Pra me ver mais tarde,/Sabendo o que sabem os velhos/Pra ver o tempo e seu lento ácido dissolver o que é concreto/E vejo o tempo em seu claroescuro/Vejo o tempo em seu movimento/Me marcar a pele fundo, me impelindo, me fazendo/Logo eu que fazia girar o mundo,/
Logo eu, quem diria, esperar pelos frutos/Conheço o tempo em seus disfarces, em seus círculos de horas/Se arrastando feito meses se o meu amor demora/E vejo bem tudo recomeçar todas as vezes/
E vejo o tempo apodrecer e brotar/E seguir sendo sempre ele/Me o tempo todo começar de novo/E ser e ter tudo pela frente”.

Marina Lima compôs “1º de Abril”. Diz a letra: “Qual de nós foi quem mentiu...?/Ou será que era 1° de Abril.../Não importa/Te gosto mesmo assim//Tempo vai passando mas/Às vezes passa e ainda fica atrás/Daquela malcontada estória de amor//E se eu disser tudo que sei,/Amor eu nos entregarei,/Mas se eu negar/De que valeu/Nossa nobreza,/Você e eu//Qual de nós foi quem mentiu...”

Música & Poesia

Nação (Composição de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio)

Dorival Caymmi falou prá Oxum
Com Silas tô em boa companhia BIS
O céu abraça a terra, deságua o rio na Bahia


Jeje minha sede é dos rios
A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta
Planta flor irmã da bandeira
A minha sina é verde-amarela feito a bananeira
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda manjedoura d'alma
Labarágua, Sete Queda em chama
Cobra de ferro, Oxum-maré, homem e mulher na cama

Jeje tuas asas de pomba
Presas nas costas com mel e dendê agüentam por um fio

Sofrem o bafio da terra
O bombardeio de Caramuru, a sanha de Anhanguera
Jeje tua boca do lixo, escarra o sangue
De outra hemoptise no canal do mangue
O Uirapuru das cinzas chama
Rebenta a louça Oxum-maré
Dança em teu mar de lama.

Poema do lavrador de palavras aos políticos (Pedro Barroso)

Não me perguntem coisas daquelas que eu não creia
não me perguntem coisas daquelas que não sei
remeto para os senhores as decisões do mundo
tais como governar, fazer decretos lei

no meio da tempestade no meio das sapiências
se poeta nasci, poeta morrerei
nem homem de gravata nem homem de ciências
apenas de mim próprio, e pouco, serei rei

das decisões do mundo lerei o que entender
que dentro de mim mesmo às vezes nasce um rio
e é esse desafio que nunca hei-de esquecer
e é essa a diferença que faz o meu feitio

mas digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei

mantenham com cuidado as árvores e estradas
pr'a gente poder ver, p'ra gente circular
que eu basta-me saúde e o sonho tão distante
e a boca perturbante que tu me sabes dar

e a festa de viver e o gozo e a paisagem
desta curva do Tejo, soprando a brisa leve
e na tranquilidade assim desta viagem
parar-se o tempo aqui, eterno, fresco e breve

que eu voo por toda a parte mas noutro horizonte
e vivo as coisas simples e rio-me da ambição
e ao fim de tanto ver, escolherei um monte
de onde assistirei, sorrindo, ao vosso enfarte

da ânsia de possuir, da ânsia de mostrar,
da ânsia da importância, da ânsia de mandar

e digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei

27 abril 2006

Dorival Caymmi


Poeta, compositor, violeiro, cantor e pintor. Ninguém cantou a Bahia como Dorival Caymmi, poeta nascido a 30 de abril de 1914, em Salvador. A sua iniciação musical deu-se já quando criança, ouvindo parentes que tocavam piano. Seu pai, além de funcionário público, era músico amador. Tocava, além do piano, bandolim e violão. A mãe, doméstica, cantava em casa. Ouvindo os parentes, o fonógrafo, e depois a vitrola, tomou gosto pela música e nasceu a vontade de compor. Ainda menino, cantava em coro de igreja com sua voz de baixo-cantante. Concluindo o primeiro ano ginasial, aos 13 anos interrompe os estudos para trabalhar como auxiliar de escritório na redação do jornal O Imparcial. Quando o jornal fecha em 1929, passa a trabalhar como vendedor de bebidas.

Em 1930 escreve a primeira de suas composições, a toada “No sertão”. Aos 20 anos estreou cantando e tocando violão em programas na Rádio Clube da Bahia. Em 1935 ganhou o programa Caymmi e suas Canções Praieiras. No ano seguinte venceu um concurso de músicas de carnaval com o samba “A Bahia também dá”.

Ele deu à música popular brasileira – que se chamava simplesmente samba nos anos 50 – um ingrediente que a tornou mais abrangente: a paisagem baiana nos versos e o jogo diferente no ritmo. Com suas canções sobre o mar, seus sambas dengosos, Caymmi realçou as cores e os sabores de sua terra, exportando a cultura da Bahia para o resto do Brasil e também para o mundo.

Influenciado pela música de rua da Bahia, Caymmi reempregou temas e elementos folclóricos dando-lhes um novo sentido, como um primitivo. E alterou o acompanhamento do violão de uma maneira que ninguém havia feito até então, como um impressionista. Seu estilo violonístico se constituiu num marco histórico do uso do violão, principalmente entre grandes autores-cantores que se acompanham ao instrumento e que revolucionaram o modo de tocá-lo. Gente como João Gilberto, Gilberto Gil e Jorge Benjor. Como afirmou Caetano Veloso, "o grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi".

Seus grandes sucessos com Carmem Miranda, a partir de 1939 – “O que é que a baiana tem?”, “A preta do acarajé”, “Você já foi à Bahia?” -, transformaram Salvador na segunda capital do samba. Caymmi é também autor de canções praieiras, memoráveis, para voz e violão, que ninguém interpretou como ele, e cujos versos se nota influência de poesia modernista.

Com uma batida de violão e sofisticada simplicidade musical, Dorival Caymmi moldou o formato canção na MPB e foi o precursor de Tom Jobim e João Gilberto. Caymmi “pegou o violão e orquestrou o mundo”, escreveu Tom Jobim no prefácio de um songbook. Dono de uma voz de baixo cantante, afinada e aveludada, sabe imprimir-lhe um quê muito caloroso do eterno cantor das imensidades marítimas. Além de compositor, cantor, do comendador Caymmi que recebeu do Ministério da Cultura da França a comenda da “Ordre dês Arts et dês Lettrers”, Doutor Honoris Causa da UFBa, existe também o Caymmi pintor. Em junho de 1953 acabou virando Praça Dorival Caymmi, em Itapoá. Mais tarde outra praça com seu nome no Shopping Center Iguatemi.

O que poderia ser uma grande frustração – não saber música – fez de Caymmi um compositor original: “Como não aprendi música, descobrindo-a sozinha, ou em companhia de um amigo, tive uma vantagem: fui levado,. Por isso mesmo, a inventar músicas e isto me fez compositor”. Ele viajou por diversos países, fez música para TV (Gabriela) e é o chefe de uma autêntica dinastia musical, despontando seus três filhos, Nana, Dori e Danilo.

Quando conheceu o escritor Jorge Amado, a amizade logo se fortaleceu. Num desses encontros, em uma feijoada na casa dos pais de Jorge Amado, que nasceu a canção ''É Doce Morrer no Mar''. Numa brincadeira, Dorival pediu a todos que fizessem versos em cima do verso ''é doce morrer no mar'', marca de Guma, personagem do livro ''Mar Morto''. Outras músicas em parceria dos dois são ''Modinha de Gabriela'', ''Beijos pela noite'', ''Modinha para Teresa Batista'', ''Retirantes'', ''Essa Nega Fulô'', entre outras.

A música de Caymmi sempre esteve a salvo de modismos ou ciclos epidêmicos de influência estrangeira. Basta observar os sambas-canções cariocas (“Fim de Semana em Copacabana”, “Nem Eu”, “Não Tem Solução”) aos pontos de terreiro (“Mãe Menininha”) ou cantigas de retirante (“Peguei um Ita do Norte”, “Fiz uma Viagem”). Ele cantou pequenas áreas como a densa “Lagoa do Abaeté” ou a multiforme “Suíte dos Pescadores”, que incorpora desde marcha-rancho até incelência, forma musical de oratória pelos mortos no Nordeste, além das canções praieiras. Para muitas analistas da cultura brasileira, talvez estejamos diante do mais puro representante da identidade musical de nosso país, pela força de sua simplicidade, pelo jeito de dizer grandes verdades que não tem explicação.


26 abril 2006

Vivemos numa sociedade líquida (Todas as coisas sólidas começaram a se desmanchar)

O intelectual polonês radicado na Inglaterra, o sociólogo Zygmunt Bauman é um dos líderes da chamada “sociologia humanística”. Em suas obras ele tenta compreender a complexidade e diversidade da vida humana. Ele sugeriu a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracterizam por uma incapacidade de manter a forma. “Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crença e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades auto-evidentes”.

Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a terem um projeto de vida, a discutir o que queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora em hora. Ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhou, é hoje, nesse mundo fluído, uma decisão de certo modo suicida. “Na época da modernidade sólida, informa Bauman, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Ford iria com toda probabilidade ter uma longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem idéia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano!. E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana”.

Em Amor Líquido ele explora o impacto dessa situação nas relações humanas, quando o indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um lado, ele precisa dos outros como do ar que respira, mas, ao mesmo tempo, ele tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos, que o imobilizem num mundo em permanente movimento.

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas conseqüências. Para outros sociólogos, a antiga condição de emprego poderia destruir a criatividade humana, as habilidades humanas, mas construía a vida humana, que poderia ser planejada.

Já o filósofo Gilles Lipovetsky informa que há uma situação paradoxal da sociedade contemporânea, dividida de modo quase esquisofrênica entre a cultura de excesso e o elogio da moderação. De um lado, diz Lipovetsky, autor de Os Tempos Hipermodernos, “é preciso ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda”; de outro, valorizam-se “a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou das religiões orientais”. Esse convívio frenético de ordem e desordem (“caos organizados” como define o filósofo) que identifica a sociedade hipermoderna resulta, paradoxalmente, na fragilização do indivíduo, que vê ruir as antigas formas de coesão social – Estado, religião, partidos revolucionários. Se antes o indivíduo tinha confiança no futuro, agora ele tem a dúvida. É a população trazendo suicídio, ansiedade, depressão, medo de envelhecer e do desemprego.

Vivemos hoje a modernidade líquida (a hipermodernidade). Vivemos uma sociedade na qual estabelecer projetos não é uma coisa simples como na época de Sartre. O Sartre dizia para os jovens “façam projetos e desenvolvam seus projetos”. Só que hoje os projetos são frágeis, são para pouco tempo.

Desde que se iniciou a modernidade, no século XVIII, todas as coisas estruturadas e sólidas começaram a se desmanchar, por uma necessidade socioeconômica. Basta lembrar a frase de Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar...”. Nos últimos 25 anos essa modernidade adquiriu uma velocidade fantástica, por isso é chamada de líquida, não tem nada muito sólido. A família não está sólida, a Igreja, a política... As relações amorosas também estão sofrendo, os laços familiares ficaram frágeis. Estamos um pouco desconcertantes nesta nova sociedade, procurando saídas. Cada um busca encontrar caminhos para poder de uma forma criativa enfrentar o novo.

A sociedade líquida pede euforias, total e completa. É uma sociedade de indivíduos. Tudo aquilo que era prometido como uma felicidade depois da morte ou a felicidade depois de determinado sacrifício não existe mais. A sociedade agora constrói como valor ideal a felicidade aqui, agora e já. A felicidade perfeita diz que se deve gozar de tudo. Uma sociedade que tem muito mais direitos do que deveres e isso a gente vê principalmente nos jovens, nas crianças nas escolas.

Perdeu-se a confiança no futuro, fragilizando os laços amorosos. A relação humana é uma construção. É preciso que se reconheça que o outro é a diferença, amar no outro a diferença. O que eu amo no outro é sempre a diferença de mim, pois de outra forma vou acabar amando o espelho. Se os laços se constroem a partir do espelho (amar a si mesmo), esses laços serão narcisitas e se rompe rapidamente e com facilidade. Muitas vezes ter uma razão é um problema nos relacionamentos. Só melhoram quando paramos de querer ter muita razão. E essa vontade de ter razão vem de um padrão: o da felicidade, bom relacionamento. Seria bom sermos iconoclastas, rompendo com os padrões e construindo o próprio rumo. É preciso encarar o problema sem ódio, raiva ou ressentimento. Precisamos aprender a experiência do presente. É preciso prestar atenção para o que ocorre em nossa volta, de olhar com admiração, surpresa o que a gente vai vivendo. Somos deseducados, afastados do nosso presente, despercebendo o que acontece aqui e agora.

É nesta sociedade líquida, onde a liberdade é bem maior onde os vínculos se estabelecem e rapidamente se desfaz, sem a dependência doentia, é uma sociedade de paixão descafeinada (como diz o filósofo Slavo Zizek), do açúcar sem açúcar, da paixão sem entrega. É uma sociedade de paradoxos: tem medo de se entregar à paixão, tem todo auto-sobrevivente; é preciso se manter inteiro.

25 abril 2006

Apresentação

A partir de hoje estarei escrevendo diariamente (de segunda a sexta) este blog abrangendo uma infinidade de assuntos que vão desde cinema, música, quadrinhos, poesia, idéias, fotografias, filosofia, artes plásticas, cidadania, enfim, tudo que acontece em nossa aldeia global. Durante anos escrevi em diversos jornais e revistas assuntos diversos, estou aproveitando muitos desses assuntos, atualizando e colocando no blog. Conto com o apoio e a participação de todos vocês.

Criado como uma ferramenta para publicação de diários pessoais na internet, os weblogs, ou simplesmente blogs, estão sendo cada vez mais usados por jornalistas para publicar, de forma ágil, informações e opiniões. Blog é um termo criado pela abreviação da união das palavras inglesas Web (rede) e Log (diário de bordo). Na versão básica é, portanto, um diário eletrônico publicado via internet. Similar a um site, sua popularidade se deve a dois fatores: facilidade no manuseio e possibilidade de interatividade.

Os textos são geralmente curtos e de leitura rápida. No nosso blog os textos não serão tão curtos assim, pois estarei comentando assuntos (comportamentos) como paixão, amor, ciúme, poder, filósofos, psicólogos, escritores, poetas, pensadores, e refletindo sobre atualidade.

Pensar a desconstrução


Um dos mais influentes de todos os pensadores na passagem do século, o filósofo Jacques Derrida (1930/2004) refletiu sobre questões como a pena de morte, a clonagem, o ciberespaço, o fim da cultura do papel. Notório pela sua teoria da desconstrução e pela ampla defesa da liberdade, o pensamento do filósofo tem papel fundamental em diferentes combates contemporâneo, um deles sobre diferenças de gênero. Trata-se de pensar como as diferenças sexuais podem vir a ser concebidas além da oposição binária entre masculino e feminino. Para ele, a mulher representa a pluralidade que rompe com as certezas únicas, masculinas, e que abriu a possibilidade de várias configurações, específicas para cada instante, plural e ao mesmo tempo única a cada momento em que ela se apresenta. Não é o protagonista feminino contra o masculino, mas o fim da definição do feminino a partir do que não é o masculino. Faz uma profunda crítica às teorias freudianas. Assim Derrida desconstrói a idéia do feminino com tudo que não é masculino.

Ele deu uma contribuição fundamental para a filosofia com pretensões a um pensamento unificador, totalizante. Questionou diversos dogmas da tradição platônica. Ele propunha a desconstrução de certos aspectos tradicionais do pensamento metafísico. Segundo ele, nunca se sai totalmente da metafísica, apenas se busca uma forma de reverter e deslocar suas teses capitais. A isso, a partir de um certo momento, passou-se a chamar de desconstrução.

A problemática da hospitalidade foi uma das questões que ele refletiu, que se resumiria em como acolher o outro, o estrangeiro, enquanto outro, diferente. Como aceitar que o outro que chega de um país não-ocidental possa ter hábitos diferentes dos nossos? É nessa perspectiva que ele defendia a hospitalidade absoluta, que não impõe condições ao outro estrangeiro. Essa noção permite refletir sobre o aumento das restrições impostas aos estrangeiros na França e em outros países ocidentais. O tema dos sem-documentos também foi discutido em seus ensaios.

Resistência como estratégia afirmativa, um modo de defender a vida foi outra de suas questões analisadas. Uma vida que não fosse uma simples sobrevivência negativa, autodestrutiva. O que interessa, para ele, são as forças de resistência que permitem à vida persistir em intensidade. Para isso é preciso a solidariedade dos seres vivos, o bem, do planeta e não apenas do homem, depende dessa solidariedade fundamental, que talvez nos dê a todos uma longa e boa sobre-vida planetária. E nos diversos textos ele tratou da necessidade de se levar em conta o animal, algo de que a filosofia poucas vezes fez, preocupada com uma racionalidade de fundo antropocêntrico. Ele combateu o irracionalismo, defendendo a tradição iluminista. Luzes para ele não poderiam jamais excluir esses próximos do homem que são os animais.

As mulheres foram outras de suas preocupações. Em seu pensamento não se trata de inverter o modo viril, a troca de sinais, sem que o modelo hierárquico, patriarcal, seja de fato descontruído. Ele defendia uma igualdade de direitos a mais aperfeiçoada possível, do ponto de vista jurídico, político, administrativo, etc, uma diferença de comportamento entre os gêneros e, dentro destes, entre os indivíduos. O conceito de diferença aponta para essa singuaridade dos indivíduos e das culturas, tanto quanto para uma necessidade de justiça universal, que garanta a existência e o exercício dessas diferenças, sem oposição simples entre homem e mulher, branco e negro, civilizado e selvagem.

Casado por mais de 40 anos com a mesma mulher, Derrida defendeu o fum do modelo tradicional de casamento. Ele reconheceu que o modelo patriarcal está falindo, encontrando-se em plena desconstrução. Mas o amor é um grande acontecimento que nenhum cálculo racional explica-se e que reforça mais ainda as estruturas vitais, em vez de destruí-las. Um amor-amizade para além de toda tábua fixa de valores, de toda moral imposta. Os indivíduos são livres para decidir o que é melhor para cada um e para todos. Assim é a democracia.

Silviano Santiago, Leyla Perrone-Moisés e Haroldo de Campos foram três de nossos críticos que dialogaram intensivamente, em momentos distintos de suas carreiras, com Derrida. Um diálogo entre literatura e filosofia até as últimas conseqüências foi o que Derrida propôs reconhecendo que certos textos literários podem propor um tipo de pensamento que em algumas medida vai mais longe do que determinados textos filosófico. Foi assim que ele dialogou com escritores como Shakespeare, Blanchot, Mallarmé e Hélène Cixous.

Entre os livros de filosofia publicados Brasil estão: “Papel Máquina”, coletânea de textos publicados em revistas e jornais franceses; “Filosofia em Tempo de Terror” com entrevista concedida por ele e pelo filósofo alemão Jurge Habermas sobre o 11 de setembro - “Expor a fragilidade da superpotência significa expor a fragilidade da ordem mundial”; “Desconstrução e Ética” é dedicado ao estudo do pensamento de Derrida; “Cenas Derridianas” onde o professor Luiz Fernando Medeiros de Carvalho dialoga com o filósofo em 13 textos, a maioria tendo como mote a literatura; e “Derrida-primeiros passos” que discute questões como diferenças, indecidíveis, rastro, segredos revelados e desconstrução.