05 fevereiro 2021

Ideologia reacionária nos quadrinhos de Aninha, a pequena órfã

 

Considerada o primeiro “novelão” dos quadrinhos, Aninha, a Pequena Órfã (Little Orphan Annie) durou 86 anos. Soap Opera polêmica devido às posições direitista do autor. Aninha, acompanhada de seu cão Sandy tinha a proteção do poderoso Daddy. Era a primeira HQ a defender uma ideologia reacionária: defesa da propriedade privada exaltando o paternalismo dos ricos. O tom das aventuras era eminentemente dramático. Essa fórmula agradou ao público leitor. As histórias da personagem de cabelos encaracolados eram parábolas, contos moralistas, cheios de alegorias e caracterizações.

 


Aparecendo em 1924, Little Orphan Annie (Aninha, a Pequena Órfã), a lacrimosa criação de Harold Gray (1894-1968), talvez por personificar a mentalidade tacanha e retrógrada que dominava (e domina ainda) boa parte da população de seu país, foi um dos grandes sucessos dos quadrinhos, sendo desenhada por seu autor até a morte deste, em 1968, e depois tendo sua continuação por outras mãos. Virou até musical na Broadway e produção cinematográfica.

 

Com cabelos ruivos e encaracolados, Aninha personificava a inocência da América. Seus olhos, assim como os dos demais personagens da hq, desenhados com bolas brancas, davam-lhe um ar estranhamente vazio; essa característica do desenho de Gray foi interpretada por muitos críticos da época como uma liberdade dada pelo autor aos leitores, para que estes pudessem fazer livres interpretações e associações das expressões faciais dos personagens.

 

Os enredos eram manipulados pelos editores, basta acompanharmos a trajetória de Daddy Warbucks nas histórias. Logo que apareceu na trama era um ricaço, dono de uma indústria de armamento, depois virou um aventureiro e, por fim, um homem de negócios internacional. Inicialmente ranzinza e casado, teve a esposa suprimida do enredo e passou a se dedicar, com bondade, à pequena órfã. Seu coração foi atingido pela inocência da menina. Toda essa aparente miscelânea foi tomando forma e os sentidos impressos nessa hq ficaram tão claros que, além de provocar críticas severas em sua época, teóricos da área são unânimes em suas afirmações:

 


“As histórias eram parábolas, contos moralistas, cheios de alegorias e caracterizações. (Moya, Álvaro, História da história em quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 55)

 

“Gray, que sempre desenhou Aninha com olhos brancos, foi acentuando na sua série suas convicções políticas de direita extremada, colocando muitas vezes como ‘vilões’ sindicalistas, grevistas ou operários simpatizantes do comunismo”. (Goidanich, Hiron Cardoso. Enciclopédia dos quadrinhos Goida. Porto Alegre: L&PM, 1990, p. 152)

 

“As tiras de Little Orphan Annie são um exemplo da introdução da ideologia de direita nos comics, paternalismo, glorificação do mundo patronal etc”. (Biblioteca Salvat, Literatura da imagem. Rio de Janeiro, 1980, p. 90).

 

“A órfã das pupilas sem luz, sempre perseguida e sempre triunfante, é o pretexto para celebrar as pretensões, os privilégios, os abusos de certa porção da sociedade americana: a necessidade de ganhar muito, o gosto pelas obras de caridade, ou seja, o dinheiro, como fim e como meio” (Buono, Oreste Del. Valentina Crepax 66-68.  São Paulo, 2007, p.7).

 

No pós-guerra Annie falou da bomba atômica, comunismo, rebeldia adolescente e inúmeros outros assuntos sociais e políticos, provocando as reações de clérigos, sindicalistas e outros. Gray acreditava que as crianças deveriam trabalhar, por exemplo. "Um pouco de trabalho nunca machucou nenhuma criança" dizia ele. "Uma das razões da delinquência juvenil é que os meninos são forçados pela lei a vadiarem pelas esquinas e arrumarem encrencas". Sua crença provocou a ira do movimento trabalhista que era a favor das leis contra o trabalho infantil.

 


Apesar disso, Aninha, pela forma sentimental e positiva com que enfrentava perigos e situações difíceis, conquistou leitores no mundo inteiro. Quanto a Aninha, seu modelo de inocência teve sucesso. Não demorou para Annie ser adaptada a outras mídias.

 

Após a morte de Gray, em 1968, muitos artistas desenharam a tira. Annie inspirou programa de rádio (1930), filmes (adaptações em 1932, pela RKO e 1938 pela Paramount) e um musical da Broadway em 1977 (igualmente adaptado para o cinema em 1982, 1999 e 2014). A popularidade da tira declinou e era publicada em apenas 20 jornais quando foi cancelada em 13 de junho de 2010.

 

A última tira era o final de uma história em que Annie tinha sido raptada no hotel por um criminoso de guerra do leste europeu. Mesmo com Warbucks pedindo ajuda ao FBI e Interpol para a encontrar, no final da tira ele já estava conformado para o fato de que Annie não sobrevivera. Infelizmente, ele desconhecia que Annie estava viva e tinha ido para a Guatemala com o captor, conhecido como o Açougueiro dos Balcãs que diz não matar crianças mas que não deixara a menina ir por medo de ser preso. E que ela terá uma nova vida com ele. O quadrinho final da faixa diz: "E aqui é onde nós deixaremos nossa Annie. Por agora."

 

O estereótipo pode não ser verdadeiro, mas é verossímil. E parte da naturalização das características encontradas no entorno social de seu tempo. Aninha, a órfã recicla o mito da Cinderela: a menina órfã que cai nas garras do benfeitor milionário. Surgiu num momento de emergência dos valores burgueses, em meio à recessão americana dos anos 30.

 

“As histórias em quadrinhos – escreveram Waldomiro Vergueiro e Nobuyoshi Chinem no livro Histórias em Quadrinhos e Práticas Educativas – retratam a sociedade em que são produzidas, apresentando e disseminando a visão ali dominante, ou seja, aquele que tem maior possibilidade de ser bem recebida pelos leitores. Nesse processo, gêneros, etnias e outros elementos sociais são simplificados, muitas vezes pela utilização de estereótipos que auxiliam no processo de atingir maior entendimento ou empatia. Ao mesmo tempo, a forma como a representação dos diversos segmentos da sociedade é realizada nas histórias em quadrinhos não é absolutamente estática. Ela recebe, no decorrer do tempo, influências da própria sociedade, num mecanismo de retroalimentação saudável e necessário à sobrevivência do meio”.

 

A aparente quietude das HQs esconde a dinamicidade e a riqueza expressiva que saltam de suas páginas coloridas e transforma esse meio de comunicação impresso em um dos produtos culturais mais ágeis dessa indústria do espírito. E essa indústria organiza a cultura de massa para orientar o indivíduo durante o lazer, convertendo este mesmo lazer no tecido da vida pessoal do indivíduo.

 

O divertimento, inoculado no cerne do lazer, transforma-se ao maior atrativo dos meios de comunicação de massa. As mesmas imagens e palavras, aparentemente inócuas, que encantam crianças e divertem adultos, escondem por trás de suas cores e traços mensagens tremendamente eficazes que nos fazem falar, escrever, amar, vestir e nos portar como os nossos protagonistas preferidos das histórias em quadrinhos.

 

Protegido pela tinta e pelo papel, os personagens das HQs materializam representações que são constantemente retomadas, reatualizadas e normatizadas sob a forma de um simples exercício de leitura. E desse jogo lúdico entre palavra e imagem, retoma, recria e fundamenta modelos e saberes.

 

02 fevereiro 2021

Nildão: o poeta do traço

 

A obra de Nildão nos revela um artista gráfico de respeito profundo pelo trabalho a que se sente chamado. Longe de toda estridência, ele encara seu trabalho plástico renunciando desde o começo tanto afagos do convencional como aos fáceis impulsos do modismo. Seu trabalho golpeia, escava no lado trágico do mundo de hoje para expô-lo sem concessões ou sua verdade.

 


No traço distorcido, contundente, irônico, muitas vezes cruel outras líricas, que deforma e informa, Nildão deixou impresso um retrato desse país numa época marcante de sua história recente.

 

O traço desmascara, escancara, revisa do avesso e expõe os personagens do nosso dia a dia.

Ele condensa sua ação no desenho e desdenha do verbo. E assim Nildão dá, a todos, seu toque implacável do ser humano.

 


Nildão já ganhou inúmeros prêmios em Salões de Humor além de ser premiado no meio publicitário com a vitoriosa campanha de cartuns feita para a Bahiatursa, que o levou a participar como concorrente do Festival de Cannes. Teve poemas selecionados para o projeto Mídia Poesia 1 e 2, veiculado pela Rede Bahia, e uma das frases do livro “Poesia-Remédio contra Azia” serviu de tema para o programa “Saia Justa”, na época apresentado por Rita Lee, Marisa Orth, Mônica Waldvogel e Fernanda Young.

 


Seu site autoral, nildao.com.br  mostra um pouco da obra do cartunista e disponibiliza para o público parte do seu acervo. O site possui uma loja virtual que oferece os produtos criados pelo cartunista tais como: livros, posters, postais e camisetas.

 

Quem desejar conhecer um pouco mais da trajetória de Nildão pode ler o livro Feras do Humor Baiano que lancei em 1997 abordando os trabalhos de Lage, Nildão e Setúbal.

 


Quem quiser conhecer a cidade do Salvador, dos anos 70 aos dias de hoje, você pode abrir os livros de Nildão, que você vai ver cada desenho, cada figura, cada personagem, que mostra a realidade daquela localidade através dos seus desenhos.

 

 

NILDÃO


 

Seu traço é distorcido,

contundente e irônico.

Ás vezes cruel e impiedoso

outras vezes lírico e delicado,

surrealista e atormentado.

 

Assim é NILDÃO

no horizonte de seu desenho

que deforma e informa,

mas sempre palpitando

expressão e vida.

 

Esse é o artista,

narrador requintado,

dono do seu meio de expressão,

capaz de desnudar o sublime e o infame,

a hipocrisia ou a injustiça

que desmascara e escancara.

 

Sendo um poeta do traço

já essa procura inconsciente

e reveladora do ser humano

no começo do seu poema gráfico

 

Nildão é um cartunista, um artista gráfico

 

01 fevereiro 2021

O russo Tishchenko não pode ser esquecido

 

Há 40 anos morria o desenhista russo Nicolay Tishchenko (1926-1981). Ele começou a publicar suas charges no jornal A Tarde. Foram 16 anos de charges (julho de 1958 a março de 1975). Ele ajudou, com suas charges, a perceber as ambiguidades da condição humana, as contradições disfarçadas, os anseios e insatisfações. Seu traço vivo, forte, fixou nossos tipos, usos e costumes sociais e políticos, dando às suas figuras um décor próprio. Preferiu a charge à caricatura, pois inspirava mais o riso do que o terror. Afinal, a caricatura individualiza o ataque, abrindo o flanco a retaliações diretas. A charge política é uma arma de combate que, além de fazer rir, leva o leitor à reflexão, ainda que sob a ótica de desconstrução e do entretenimento.

 


No início – 1958 – ele não entendia o coloquialismo do nosso idioma, mas seu traço forte se destacava logo nas charges que foram publicadas no jornal A Tarde. O russo Tischenko aos poucos foi conhecendo nossa cultura, nossa política e idioma. Preferiu a charge à caricatura, pois inspirava mais o riso do que o temor. Afinal, a política é uma forma de combate que além de fazer rir, deve levar o leitor à reflexão, ainda que sob a ótica da desconstrução e do entretenimento. 

 

Pintor, chargista e publicitário, seu traço era marcado pela sensibilidade européia e, naquela época, foi uma grande sensação no mercado. A repercussão das charges publicadas em A Tarde incentivou o desenhista a reuni-las no livro Charges. Ele publicou dois livros de charges e um dedicado “às crianças grandes”, além de uma série de ilustrações para a Câmara de Vereadores da Cidade. Introspectivo, Tischenko tem trabalhos em guache, aquarelas e esculturas espalhadas por todas as partes do mundo.

 


Os primeiros trabalhos do russo Nicolay Tishchenko foram publicados na Europa, mas foi na Bahia que ele dedicou quase toda a sua vida às charges e ilustrações. Quem desejar conhecer a trajetória desse artista, leia o livro O Traço dos Mestres, premiado com o HQ Mix em 1996.