12 dezembro 2019

Sesquicentenário dos quadrinhos brasileiros (12)


ANOS 90



1990/2000 - A última década do século é a da realidade virtual. As novas tecnologias de realidade virtual já permitem que as pessoas, literalmente, entrem no computador para interagir com os atores colocados em cena. Assim, usando um capacete criador de realidade virtual, entra-se no filme. O relativismo de todos os conceitos e noções políticas, culturais, ética e estética é uma das características mais marcantes de nossa época. Não há mais qualquer noção de bem ou mal, de certo ou errado, de belo ou feio que seja aceita sem contestações por uma parcela significativa de uma sociedade. 

O “tudo é relativo” de Albert Einstein transformou-se na síntese, no emblema mais característico de nossos dias. Se em épocas anteriores eram necessários longos e dolorosos processos para que os homens abandonassem suas crenças, seus princípios morais e sua fé, hoje questiona-se o próprio sentido de se adotar ou defender qualquer sistema de valores. “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”, disse o escritor americano Marshall Berman, recorrendo a um discurso de Próspero, personagem central da peça Tempestade, de William Shakespeare. Esta é uma descrição exata de nossos tempos.




Aline – Tira criada  por Adão Iturrusgarai em 1993 e publicada inicialmente em 1996 no jornal Folha de S. Paulo, até o ano de 2004. Em 2014, para comemorar o vigésimo aniversário da tira, Adão retomou a personagem de Aline com quarenta anos, agora com problemas inerentes à idade e uma filha, Luna, mas 'mais poliamor do que nunca'. Em suas histórias, Aline vive um relacionamento amoroso a três, fazendo humor sobre questões como feminilidade e liberação sexual. A garota trabalha fora numa loja de discos, odeia cozinhar e arrumar a casa, e mora com dois homens: Otto e Pedro.




Fala, Menino! - Projeto de literatura e quadrinhos criado por Luis Augusto (1971-2018), cartunista e escritor baiano, publicado em jornais e livros desde 1996 e na tv, desde 2005. Com a honestidade da perspectiva infantil, Luis Augusto fala da criança como o ser inteligente e crítico que é, capaz de discutir o comportamento adulto. E junto com o Lucas, o personagem central da turma, busca discutir o relacionamento do mundo adulto com a infância, talvez o único momento da vida em que somos quem nascemos para ser, sem tantas máscaras sociais, sem tantos preconceitos... A série conta as diferenças físicas ou sociais, de superação de limites, de inclusão, de responsabilidade social com a naturalidade doce e subversiva das lições que apenas a infância sabe dar.



Jab, um Lutador – Criação de Flávio Luiz em 1999 de forma independente. Tiras de um cão dálmata, atrapalhado com seus próprios limites, que ele busca a todo custo vencer, se envolvendo nas mais variadas modalidades esportivas. Jab tem um sonho: tornar-se campeão de boxe (ou de qualquer outro esporte). Ele pode não vencer suas lutas (o que geralmente acontece), mas nunca desiste de lutar. Está sempre experimentando novos esportes, modismos e novidades. Apesar de ser um pouco desastrado, é um cara ´gente boa´, amigo fiel e com um grande coração.




Xaxado - Da simplicidade do traço à criatividade da narrativa, Xaxado retrata a vida rural com todas as suas lendas e mistérios. São aventuras de um garoto, neto de um famoso cangaceiro que vivia com o bando de Lampião, às voltas com problemas do dia a dia, junto com seus pais e amigos. Sensível às frustrações de seu tempo, demonstra especial preocupação com a desigualdade social. O personagem deu origem a uma turma que ocupou diariamente, ao tempo de 12 anos, as páginas do jornal baiano A Tarde, a partir de 1998. Criação do quadrinista Antônio Cedraz (1945-2014), a Turma do Xaxado reúne personagens tipicamente brasileiros e já recebeu diversos prêmios. Todo o trabalho tem um bom acabamento visual das personagens, com precisão no traço e originalidade temática. Através de um enredo fluente, falando de um cotidiano em que se misturam o real e o simbólico, o objetivo e o subjetivo, o autor constrói uma atmosfera da qual é difícil ficar alheio.




Aú, o Capoeirista - No final de 2008 o baiano Flávio Luiz lança o álbum Au, o Capoeirista tendo um negro como protagonista. Humor e aventura de forma bem equilibrada, aborda vários elementos da cidade de Salvador como música e culinária. Exímio lutador, Au vale-se de sua astucia e inteligencia para solucionar os problemas. A história, ambientada em Salvador, é repleta de aventura, humor, consciência ecológica e mostra o cotidiano do capoeirista mirim Aú e seu inseparável amigo, o macaquinho Licuri.



Cabra – Criação do baiano Flávio Luiz. Ficção científica e cultural regional se unem para contar a história de Severino Crispim dos Santos, também conhecido como o Cabra.



Capitão Douglas – Personagem criado por Laerte personifica a atitude autoritária. Personagem da série O condomínio nos anos 1990. O velho Capitão é saudosista de guerras, vive combatendo moinhos de vento, com pompa militar e de lembranças da guerra do Paraguai. Embora aposentado de suas funções (referência aos militares que comandaram o Brasil de 1964 a 1985), continua a sua luta para impedir o “fim da cultura e civilização”. Em 2010 Laerte publica no quatro volume da coleção Striptiras, Capitão Douglas Capricórnio na sua luta contra as hordas de bárbaros famintos sanguinários assassinos destruidores da cultura e da civilização.

  

11 dezembro 2019

Sesquicentenário dos quadrinhos brasileiros (11)


ANOS 80



Oitenta foi a década dos anseios e das interpretações e pode ser definida por uma palavra: pós-moderno. Signo do vale-tudo da década, esse jargão funcionou como um abre-te sésamo para explicar qualquer coisa. E para caracterizar as inovações e o estilo de vida desses anos de paródia e marketing do passado reciclado. Compact discs, videoclip, videocassete, antena parabólica, fax, computador pessoal, TV a cabo, controle remoto.



Livres, agressivas, as mulheres irromperam, nos primórdios da década, determinadas a garantir seu espaço. Sônia Braga, Xuxa, Luma de Oliveira e Luiza Brunet se destacaram aqui e lá fora. Um inimigo microscópio, capaz de matar o homem em menos de um ano, mobilizou médicos de todo o mundo: o HIV, vírus da Aids. E não há qualquer droga capaz de destruí-lo ou impedir sua multiplicação em níveis não letais.




Além da década da democracia, os anos 80 foram também a década do meio ambiente – da expansão planetária da consciência ecológica. Começando a perder o medo de ser negra, a Bahia atravessou a década no passo do Ilê Ayê e do Olodum, que ocuparam as ruas num rito de contagiante liberdade. Nos quadrinhos, os vilões ganharam projeção. Muitos desenhistas fixaram a loucura da década sob o signo das artes plásticas nas HQs. As graphic novels (edições de luxo das novelas gráficas) invadiram as livrarias, aumentando a média etária dos leitores. Ninguém mais diz que quadrinhos é coisa de criança.



Na esteira do êxito de Rita Lee, o rock nacional ganha força e qualidade inéditas e consagra-se como o mais recente movimento a mudar o panorama da música brasileira.




Ao longo da década de 1980, cartunistas como Angeli, Glauco e Laerte imaginaram tipos que fazem sátira ao comportamento da classe média apática, hipócrita e consumista. As tramas dos quadrinhos de humor publicados por esses artistas nas revistas da Circo Editorial se passam no ambiente urbano. A cidade de São Paulo é o lugar em que surgem personagens como o consumista e inseguro Geraldão (do cartunista Glauco), os anárquicos Piratas do Tietê (de Laerte), a além da boêmia Rê Bordosa e do punk Bob Cuspe, concebidos por Angeli. Os personagens masculinos representam as mudanças enfrentadas pelo homem: o machista inveterado e crepuscular, os hippies envelhecidos, o militante de esquerda que não se adapta aos novos tempos marcados pela democracia ou o hedonista que dança diante do espelho para apreciar a própria imagem. As mulheres, se já não são mais donas de casa submissas, enfrentam a solidão da cidade e das relações frias e de curta duração. O espaço típico onde esses personagens vivem seus dramas é o condomínio, microcosmo que oferece uma falsa sensação de segurança. Há, também, aqueles que se revoltam ou vivem à margem dessa sociedade, como os piratas que navegam no principal rio de São Paulo, o poluído Tietê, ou o punk que habita os esgotos da metrópole e percorre as ruas sujas, entulhadas com os detritos que já foram mercadorias. Seu grito de protesto ecoa pelas paredes de concreto que revestem os edifícios-montanhas que abrigam os trogloditas modernos, mas, limitado pelos muros



Analista de Bagé: Personagem mais multimídia do escritor Luis Fernando Verissimo. Começou como crônica, teve longa vida no teatro e várias histórias produzidas em quadrinhos a partir de 1983.



Condomínio – Série criada por Laerte com os habitantes do Condomínio (o Síndico, o Zelador) para o jornal O Estado de S.Paulo na década de 1980, e depois nas revistas Piratas do Tietê e Striptiras. O Condomínio foi o primeiro núcleo de tiras que ele fez. Teve essa idéia quando foi morar num prédio pela primeira vez, mais ou menos em 1973; lá conheceu um síndico e um zelador muito parecidos com o Síndico e o Zelador das tiras.




Dora Mulata – Quadrinho criado pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) na revista Viverbahia a partir de 1981. A sensual Dora era uma nativa da ilha de Itaparica, na Bahia. Ela se relaciona com um gringo, um francês e um nativo. Triângulo amoroso onde ela tinha preferência pelo francês. Foi publicada também na revista Axé Bahia. Sua maneira objetiva de apresentar, com a simplicidade de seu traço, os vários problemas diferentes ao ser humano, descrevendo com capacidade, firmeza os muitos quadros públicos. O olhar “malandro” das suas personagens, desta vez apresenta o empoderamento da mulher que começa a se emancipar do machismo da época.



Dr. Baixada - Criado por Luscar (Luiz Carlos dos Santos)  em 1980, na época do Mão Branca e do Esquadrão da Morte que atuava na Baixada Fluminense. Capa preta, chapéu e arma na mão, esse é o Dr. Baixada, sempre atuando — ou no assaltante ou na vítima. A ordem é apagar, fazer o serviço, sem perguntas e sem que ele próprio saiba a quem serve.




Mara Tara - Personagem humorística criada por Angeli para a revista Chiclete com Banana, n.07, novembro de 1986. Era a primeira história da pacata cientista que se transforma na pervertida Mara Tara quando acuada. Mara Tara é uma cientista super recatada e dedicada a sua profissão, no qual ela estava fazendo sua pesquisa sobre O Sexo das Bactérias, pois ela insistia que "As bactérias têm sexo, como todos nós...". Mas, em consequência de suas pesquisas, a doutora Mara contraiu o vírus Ninfus Maniacus e em momentos de alta tensão, seu corpo recebe grandes mutações, tirando-lhe a consciência e dando a ela formas volumosas. Sim, Mara Tara transforma-se em uma tarada e obcecada por sexo, momento em que ela não têm mais consciência de si e ataca todos os homens, que morrem de medo dela. Suas armas são nada mais que chicotes, meia arrastão, botas de cano longo e um lindo espartilho preto. Pudica, quando fica excitada, transfigura-se em uma mulher fatal, obcecada por sexo e que ataca os homens de uma maneira sádica e devoradora, até matá-los. Ela é uma metáfora exacerbada de mulheres independente da década de 1980, que intimida os membros do sexo masculino. Basicamente, a personagem faz uma crítica ao universo urbano, que mostra o homem contemporâneo super liberal, porém, no fundo, totalmente conservador.



Radical Chic - Personagem de cabelo vermelho e curtinho criada pelo cartunista Miguel Paiva. Irônica e divertida sátira sobre uma típica mulher urbana de trinta anos (que se auto denomina, "sou um pupurri de emoções"). Seus quadrinhos, originalmente publicados no suplemento dominical do Jornal do Brasil, apresentam como temas principais a feminilidade, o sexo, o papel das mulheres na sociedade e as diferenças entre elas e os homens na maneira de reagir às situações cotidianas.




Rê Bordosa – O cartunista Angeli cria nas páginas do Folha de S.Paulo, a partir de 04 de abril de 1984, a junkie Rê Bordosa que logo depois vira musa da porralouquice nacional. Ela era a pin up dos anos 80, a mulher esponja. Em dezembro de 1987 o criador mata a personagem. Eleita em 1984 a “Pin up do Final do Século” pela revista Around, a personagem idealizada por Angeli representa a desilusão sentida pela geração de mulheres que se emancipou da família e dos homens, mas não conseguiu estabilidade emocional. Rê Bordosa casou com Juvenal, o garçom do bar onde costumava embriagar-se, mas acabou morrendo de tédio provocado pelo casamento.



Menino Maluquinho Sem dúvida nenhuma o maior sucesso de Ziraldo, O Menino Maluquinho surgiu em livro no ano de 1980. Além de livros, revista, peça de teatro e filmes para cinema, ganhou também sua versão em tiras diárias em 1989 realizada pelo estúdio Zappin e foi publicado em vários jornais Brasil afora. Em 1991 a revista saiu quinzenalmente pela Abril com o mesmo nome do personagem. Desta forma o personagem nasceu de um livro de sucesso.  A história do menino inquieto, que tinha o olho maior que a barriga e fogo no rabo, publicado pela Editora Melhoramentos, virou peça de teatro, filmes, videogame, HQ, bonecos, ópera infantil, parque temático e até minissérie de TV.








10 dezembro 2019

Sesquicentenário dos quadrinhos brasileiros (10)


ANOS 70



O País começava a década sob o tema “Brasil, ame-o ou deixe-o” e termina com a volta dos exilados.  O Brasil tornou-se tricampeão do futebol em 1970 no embalo de “Pra Frente Brasil”. A liberação de costumes dos 60 se consolida na década. A atriz Leila Diniz vira símbolo de emancipação feminina. 70 foram os anos em que o sistema tratou de domar a explosão dos 60. Foram anos de diluição de formas e transformação de contestação em consumo. Impossibilitado de transitar nas esferas do sistema, houve a estrutura paralela, alternativa. A imprensa do país viu surgir grandes experiências como Opinião, Beijo, Avesso, Bondinho, Ex e o próprio Pasquim (criado no final dos 60) foi um jornal dos 70.



Com três presidentes impostos, o Brasil conhece repressão, gradualismo e abertura A década foi da televisão: multiplicaram as redes nacionais. Depois da Globo e das Associadas, também surgiram a Record e a Bandeirantes. O regionalismo foi aniquilado pelo imperialismo Rio-SP. Novela viveu um fenômeno e firmou-se como gênero artístico independente.




No Brasil, era a época do milagre econômico. Grandes obras – a Ponte Rio-Niterói, enormes hidrelétricas, a Transamazônica – eram contratadas quase com a mesma facilidade com que hoje se constrói uma pracinha. O poder da classe média aumentava, partidos controlados, passeatas proibidas. Começaram a surgir uma série de jornais alternativos, após Pasquim, que tiveram vida efêmera, como Flor do Mal, Presença e o baiano Verbo Encantado. Com a censura, surgem as revistas eróticas que tomaram um maior impulso.




Imprensada pela censura e empobrecida pelo exílio de vários artistas de peso, a MPB resistiu. Nomes como Milton Nascimento, Gonzaguinha, João Bosco, Novos Baianos foram revelados. São os anos da música nordestina (Fagner, Belchior, Alceu Valença, Ednardo, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho), da vanguarda erudita (Walter Franco, Marcus Vinícius). A presença da mulher como força de produção, na música é um dado importante na década: Joyce e Sueli Costa, Leci Brandão, Marina Lima, Ângela Ro Ro, Cátia de França, Marlui Miranda (foto), Simone, Elba Ramalho, Rita Lee e tantas outras. O caminho da improvisação esteve constantemente em pauta com a música instrumental de Wagner Tiso, Egberto Gismonti, Nana Vasconcelos, Hermeto Paschoal, Nivaldo Ornellas.



Paulo Caruso e Rafik Farah criaram, a partir do número nove do fanzine Balão em 1974, Capitão Bandeira. Ágil, esguio, passos leves e porte altaneiro. Terno branco e largo para melhor movimentar-se sob o sol que queima a fronte. Fé inabalável não se sabe exatamente no que. Sem vergonha e irresponsável, por isso, feliz (mas não se sabe). Descendente de nobres africanos, Agenor Pantera é o companheiro de Bandeira em suas andanças aventureiras. Capitão Bandeira tem como guru – em muitas situações – o babalaiô, yogue e autodidata do terceiro mundo, como ele mesmo se intitula, o professor Mitologicus Contemporanius.




Argemiro, título da tira diária criada pelo desenhista Setúbal na Tribuna da Bahia a partir de 1977. Os problemas de um homem de meia idade, classe média, diante da realidade: trabalho exaustivo em relação a baixa remuneração, aumento da gasolina gerando outros aumento, crise de energia, futebol, etc.A historieta é valorizada pelo traço expressivo do personagem. Os desenhos de Setúbal são detalhistas, cheios de sofisticado preciosismo, sempre atentos às mínimas novidades. Nada parece lhe escapar.




Henfil tira férias do Caderno B do Jornal do Brasil em 1977 e Luis Fernando Veríssimo publica a série As Cobras. Na época em que o país gritava como podia contra o Regime Militar, desenhar duas cobrinhas foi uma forma de contornar a censura. “Uma das razões para fazer as cobras era, na época em que elas nasceram, você podia dizer mais com desenhos do que com texto”, disse Veríssimo ao jornal O Globo. “Desenho tinha aquela conotação de coisa lúdica, infantil, e era conveniente para driblar a censura”. Elas continuaram dizendo até 1997, quando deixaram de ser publicadas. A economia no traço de Veríssimo para desenhar As Cobras foi uma estratégia para suprir sua inabilidade confessa para o desenho. Isto, porém, não foi um problema para o reconhecimento de sua obra. O espanto é que tenha um forte discurso político, mas com um lirismo encantador. As Cobras foram publicadas no jornal Zero Hora, de Porto Alegre e no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, atingindo grande prestígio de público.




O gaúcho Renato Canini (1936-2013) criou para a revista Patota (editora Artenova) em 1973, o personagem do Dr. Fraud. Com um óbvio trocadilho em relação ao nome do pai da psicanálise, Sigmund Freud, Dr. Fraud era evidentemente um charlatão e recebia em seu divã toda espécie de objetos inanimados, personagens de ficção e pacientes em geral, que recebiam sua completa atenção, mas provavelmente, nenhuma ajuda. O personagem antecipou em alguns anos o Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo.



O desenhista Miguel Paiva lança no Caderno B do Jornal do Brasil em 1977 a série Dr. Freud, o psicanalista dominado por fortíssimo complexo de Édipo e tarado sexual. Ele é um grande investidor. Investe particularmente nas neuroses do paciente. Dr Freud – diz seu criador – cultiva um ´caso´ eterno com a mãe. É um desajustado sexual e, como todo bom psicanalista, um grande investidor. Investe particularmente nas neuroses dos pacientes. Chegou até a criar o Fundo Freud de Investimentos, onde cada paciente pode ´aplicar´ a sua neurose, transformando-a um dia, com paciência e perseverança, numa magnífica paranóia. Por estranha coincidência, o Dr Freud recomenda tratamento mais longos para as pessoas mais ricas.




Nildão (Josanildo Dias Lacerda) começou a publicar a tira Os Bichim no jornal A Tarde, Caderno 2, em 18 de julho de 1977. O universo do tamanho do fruto da goiabeira. Bichim era um bichinho de goiaba que chegava ao mundo e começava a questionar as coisas que via. Tanto na escolha do tema, como na linguagem, o domínio da poética é visto nesses quadrinhos de traço simples e equilíbrio. O título foi decorrente da linguagem nordestina que sempre abrevia o diminutivo em “im”. Aos poucos foi conhecendo outros personagens como Fernão Capelo Gaivota, um animal massificado que já conhece as malandragens do mundo. Mais tarde eles chegaram a conclusão de que o câncer da humanidade era o homem e resolveram ir ao céu pedir a Deus para tirar o humano da terra. Ao chegarem lá encontra o Deus narcisista, preocupado com a imagem e que não se interessava pelo que aqui estava acontecendo. Nessa fase, o jornal deixou de publicar a tira, alegando ser uma empresa de fundamentos religiosos. Para não deixar de publicar suas criações, Nildão cria novos personagens e novos argumentos. A tira Os Bichim foi distribuída pela ECAB (Editora Carneiro Bastos) para outros jornais e também publicada na revista Eureka da editora Vecchi.




No final da década de 1970 surgiu uma revista de histórias em quadrinhos com o quarteto cômico composto pelos artistas Renato Aragão (Didi), Manfried Santana (Dedé), Antonio Carlos Bernardes Gomes (Mussum) e Mauro Faccio Gonçalves (Zacarias), denominado Os Trapalhões. Juntos estrelaram o mais longo programa humorístico da televisão brasileira. O conteúdo das revistas, publicadas a partir de 1976, pela Editora Bloch, trazia conteúdo semelhante ao desenvolvido no programa, explorando temas picantes, brincando com preconceitos, ridicularizando figuras proeminentes do cenário político nacional, do mundo dos esportes e do entretenimento, satirizando situações do cotidiano brasileiro, desde questões económicas a sociais.



Também nos anos 1970, o artista gaúcho Renato Canini foi contratado pela Editora Abril para criar histórias protagonizadas por Zé Carioca, personagem idealizado por Walt Disney e sua equipe no início dos anos 1940 para representar o Brasil em um momento em que os Estados Unidos precisavam do apoio do país contra as forças do eixo nazi-fascista. Ao lado do roteirista Ivan Saidenberg, Canini não apenas inseriu o papagaio em paisagens brasileiras, em especial os morros cariocas que abrigam os barracos onde mora a parcela mais pobre da sociedade, mas também o cercou de questões sociais, de elementos característicos de “brasilidade” e da diversidade de cultural do país.



Personalidades do mundo televisivo foram aproveitados nos quadrinhos como os apresentadores Gugu, Xuxa, Angélica e Faustão, os cantores Leandro e Leonardo, os atletas Pelé, Ayrton Senna, Oscar Schmidt e Ronaldinho Gaúcho.

09 dezembro 2019

Sesquicentenário dos quadrinhos brasileiros (09)


Acompanhando o sucesso do Capitão Sete, surgiu outra personagem num horário diferente do vídeo, patrocinado pela fábrica de brinquedos Estrela. Era o Capitão Estrela. A fábrica de brinquedos Estrela resolveu investir num super-herói próprio, uma espécie de garoto-propaganda. Surgiu assim, na TV Tupi do Rio de Janeiro, num horário diferente, o Capitão Estrela. Veterano da Segunda Guerra, Capitão era um mutante (em uma época em que essa palavra não estava na moda) com força, inteligência e agilidade acima do normal. E tinha um parceiro juvenil, Menino Brazil (isso mesmo, com "z" ) que, apesar de vir de uma família de humildes sergipanos, era loiro e com olhos azuis. O Capitão era interpretado pelo gaúcho Dary Reis, enquanto que seu nemesis, o terrível Gargalhada Sinistra, ficava a cargo de Turíbio Ruiz. Assim como o Capitão 7, o novo personagem virou, além de televisivo, também um herói multimídia, chegando inclusive a ganhar seu próprio gibi em 1961, a revista Fantasia, editada pela mesma editora Continental do Capitão 7, inclusive com os mesmíssimos desenhistas (liderados por Jayme Cortez). 

O gibi do Capitão Estrela acabou não agradando o público leitor, e sua revista só durou oito números. Talvez o principal problema tenha sido a confusão visual. Por exemplo, na TV, embora em preto e branco, era evidente que o uniforme que Reis usava era branco. Só que nas capas dos gibis a roupa era vermelha. E seu parceiro nos quadrinhos era o garoto Joel. No final das contas, a dupla do gibi ficou mais parecida com Mr. Escarlate e Pinky do que com a versão da TV. Na época, as editoras como a Continental/Outubro tinham tomado uma decisão importante: só trabalhar com desenhistas brasileiros. Juarez Odilon, um dos desenhistas da casa, era quem capitaneava o gibi do Capitão Estrela. O herói tinha na testa e no peito, a famosa estrela de quatro pontas, logotipo da empresa Brinquedos Estrela, que já patrocinava uma série de programas ao vivo, pela televisão.




Em 1960, a pedido do editor de O Cruzeiro, Ziraldo criou Pererê, a primeira revista em quadrinho nacional de um único autor e toda colorida. A publicação foi um marco na trajetória das HQs no Brasil. Pererê circulou entre outubro de 1960 a abril de 1964, com uma tiragem média de 120 mil exemplares, e chegou a vender 150 mil, número muito expressivo para a época. Chegava às bancas nos primeiros dias de cada mês. A revista se identificava com a nossa cultura através das lendas, cenários, crendices e linguagem. As aventuras do personagem Pererê aconteciam na Mata do Fundão, e seus amigos eram pessoas e bichos. Em meados de 1975, Ziraldo relançou os quadrinhos com as histórias do Pererê e sua turma. Publicada pela Editora Abril e teve apenas dez edições. Nos anos de 1985 e 1991, as histórias foram republicadas, pela mesma editora, em forma de almanaque. A partir daí são publicadas álbuns e edições especiais das editoras Primor, Nova Didática, Salamandra e Globo. Revista criada em 1960 e durou até 1964. Lançada através da Empresa O Cruzeiro. Foi o melhor exemplo de brasilidade que temos nos quadrinhos. Em 1975 a série voltou através da Editora Abril. Durante 43 números e 182 histórias, a alegre fauna ziraldiana que representou no microcosmo da Fazenda do Fundão o clima de euforia nacionalista então vigente no país.




O personagem surgiu no embalo da bossa nova, do Cinema Novo e do rock´n´roll, deixando sua marca como um surpreendente libelo ecológico. Nos argumentos, a ambientação rural e simplória determinava a distancia segura para reproduzir a ebulição política da época. Com desenhos estilizados, onomatopéias multicoloridas e coleções de neologismos tropicalistas nos diálogos, as molecagens dos personagens chegaram a atrair 150 mil fiéis compradores por edição. Uma estranha coincidência cronológica cancelou o gibi em abril de 1964, o mês do golpe militar. A abertura promovida pelo governo Geisel inspirou o renascimento do Pererê, em formatinho, em julho de 1975. Os roteiros tornaram-se menos politizados, mas faltava à revista uma definição pelo público infantil (como sugeria sua arte) ou adulto (como queriam as entrelinhas). Problemas: a versão não completou o primeiro ano de vida. Os bons resultados obtidos pelo Menino Maluquinho, herdeiro quadrinizado do best seller literário homônimo, deram o impulso que o novo projeto exigia. O Almanaque do Pererê (   ) fez sua opção pelas crianças.




Entre 1965 e 1969 Ziraldo publicou Jeremias, o Bom nas páginas do Jornal do Brasil, seguindo para a revista O Cruzeiro logo depois. Foi publicado também no Sol, Pasquim, nas revistas Manchete e FairPlay, entre outras. Ele já assinava uma página dominical de cartuns no jornal, abordando temas diversos do Brasil, “faltava um personagem. Como o Amigo da Onça, que era um malandro, fazia sucesso, resolvi criar um anti-Amigo da Onça”, conta Ziraldo, referindo-se à criação de Péricles Maranhão, celebrizada nas páginas daquela mesma revista. Um personagem inteligente, gentil e elegante, que se sacrifica sem titubear. Já perdeu as contas de quantas vezes doou seu coração, que sempre nasce de novo por ele ser só coração. No início o personagem fazia crítica de costumes, depois “aderiu” à política durante as cerca de 20 semanas em que foi publicado, segundo Ziraldo, sem que os editores de O Cruzeiro notassem as críticas ao regime militar. Essa militância de Jeremias acabou com adesão do cartunista da revista.



O personagem de Ziraldo é o símbolo de uma brasilidade esquecida, simboliza o bem, a gentileza e a cortesia esquecidos nas delegacias, nos porões de tortura e nos ambientes profissionais. Um clássico do humor gráfico. Passando da crônica de costumes aos temas políticos, ele vive muitas situações, sempre mostrando porque é conhecido como o Bom. Não "o bom" de espertalhão, aproveitador, mas o bom solidário, prestativo, amigo, enfrentando tudo com uma abnegação silenciosa e rendendo-se mudo à sina de ajudar parentes, colegas de trabalho e desconhecidos. “O Jeremias é tão bom que pode ajudar as novas gerações a ir descobrindo o Brasil", afirmou seu criador.




Capitão Cipó é uma criação do cartunista carioca Daniel Azulay para o Correio da Manhã, na sua melhor fase, e marcaram época, a partir de 1968. Por outro lado, Cipó era uma figura curiosíssima: de comportamento tropicalista, sofria de misoginia (fobia às mulheres) e andava quase sempre envolto num cinto onde havia de tudo, desde esparadrapos até pílulas anticoncepcionais. A crítica aplaudiu. Fruto da psicodelia e da liberação sexual, Capitão Cipó estreou em 11 de janeiro de 1968 no jornal carioca Correio da Manhã e circulou até 15 de março de 1969 em tiras diárias. Influenciado pelos quadrinhos adultos que se expandiam pela Europa, o Capitão é criação do cartunista Daniel Azulay. Era um super anti super-herói, criticando simultaneamente os valores tradicionais das HQs e os valores novo-rio-arrivistas das calçadas de Ipanema.




06 dezembro 2019

Raymundo Aguiar, o K-Lunga, registrou fatos sociais e políticos da época




Ele satirizou políticos, personalidades e costumes, e como defendia sob o pseudônimo de K-Lunga a Revolução de 30, foi parar num xadrez da Secretaria de Segurança, para onde o mandou, depois de saber que era o chargista a serviço da revolução, o então secretário Pedro Gordilho. A irreverência brincalhona de suas caricaturas resultou em sua detenção por 36 horas. Desde o governador Antonio Muniz (1916 a 1920) até Antonio Balbino (1916 a 1959) foram alvos de suas críticas. Uma de suas charges mais ousadas e contundentes, As Transformações, provocou o empastelamento do jornal A Hora, dirigido por Artur Ferreira, de oposição ao governador Antonio Moniz. Há 30 anos que ele faleceu.



O trabalho desse português meio franzino e de talento singular, a despeito do delegado Pedro Gordilho tê-lo chamado defazedor de bonecos, começou a incomodar os donos do poder. De modo geral, emprestou o valor de seu lápis aos maiores jornais e revistas locais. Como caricaturista, trabalhou ainda nos jornais A Tarde, O Imparcial, Jornal de Notícias, A Noite e nas revistas A Luva, A Fita, A Garota, A Farra, Melindrosa, Revista da Bahia, Única e A Renascença.



Estamos falando de Raymundo Chaves Aguiar. Ele nasceu em Lisboa, no dia 06 de dezembro de 1893, 126 anos. Mudou-se para o Brasil em 1913, cem anos. Ele chegava com todo um talento reprimido pela família que queria forçá-lo a acabar seus dias como empregado no comercio lisboeta. Traumatizado com o fato, procurava vingar-se em bebedeiras e na boemia. Diante disso, a família resolveu mandá-lo para o Brasil com um emprego de comerciário em uma firma de Salvador.



Obedecendo aparentemente à vontade da família, mas continuando a esboçar os seus desenhos e caricaturas, ele chegou em 29 de novembro de 1913. Foi trabalhar numa casa comercial mas secretamente continuava desenhando. Até que um de seus desenhos chegou às mãos de Henrique Câncio, então cronista do jornal A Tarde. Começou ai a carreira de caricaturista. Sabendo captar com  maestria o espírito do povo nas suas gozações caricaturais, Raymundo Aguiar despertou a atenção de diretores de revistas e jornais de Salvador.



Quando expôs seus trabalhos nos salões da linha circular em 1927, recebeu diversos elogios, inclusive um artigo do professor Vieira de Campos, da Escola de Belas Artes. Mais tarde ingressa na Escola de Belas Artes até concluir o curso em 1933. No ano seguinte é convidado para ser assistente das cadeiras Geometria Descritiva, Perspectiva, Sombra e Luz e Estereotomia. E em 1939 tornou-se catedrático de Perspectiva em Sombras, matéria que lecionou até 1963, quando foi aposentado compulsoriamente co o título de professor emérito da Universidade Federal da Bahia.



Dedicou-se desde 1964 exclusivamente a pintar interiores onde dominou perfeitamente os jogos de luz e sombra  que foram uma das suas características principais e deu preferência especial aos ambientes de meia luz dos claustros e sacristias. Nessa época ele publicou livros didáticos ensinando perspectiva.



No dia 06 de dezembro de 1989 ele faleceu, aos 96 anos, deixando cinco filhos, 31 netos e oito bisnetos. O artista foi premiado em todas as modalidades a que se dedicoudesenho, charge, caricatura, gravura, xilogravura e pintura. Raymundo Aguiar, ou K-Lunga como assinava seus trabalhos, se dedicou ao desenho, charge, caricatura, gravura, xilogravura e pintura, dedicando-se em técnicas como gravura a água forte, a água tinta, pastel, óleo e xilogravura. Sua obra de desenhista, além do valor intrínseco, é importante por ter registrado, de forma autêntica, acontecimentos sociais e políticos de sua época.



Os desenhos de K-Lunga caracterizam-se pela maneira irônica de mostrar a sociedade burguesasua elegância e esnobismo eram os pontos ressaltados. Suas charges políticas têm caráter chistoso, movimentado e retratam legítimos quadros de costumes dos bastidores da democracia brasileira. Quem desejar conhecer um pouco mais sobre os desenhos do artista, vale ler o livro que lancei em 1993, Humor Gráfico na BahiaO Traço dos Mestres.