Quando os portugueses aqui
chegaram, cheios de sarnas, desdentados e podres de não tomar banhos
ficaram
maravilhados com todo aquele cenário da natureza. Eles vinham das terras sem
males e encontraram um povo bonito e disponível, sexualmente disponível. A
epiderme falou mais alto e a mistura de raças aconteceu. Naquela época não
havia essa coisa de pecado, de proibição. Quase tudo era permitido. Mas os
raivosos jesuítas chegaram e resolveram não só escrever uma gramática tupi como
impuseram a ideia da morte e ressurreição de Cristo.
Em seguida Tomé de Souza começa a
construção de Salvador e nos séculos seguintes, a cidade se transforma num
grande púlpito de igreja. É igreja para tudo quanto é lado e um temor violento
do pecado. O nosso quotidiano oferece tantas sugestões eróticas, como nossa
mania de falar tocando nas pessoas, o riso fácil, as roupas sumárias (verão o
ano inteiro), nossa despreocupada habilidade de pontuar as frases com
palavrões.
O estrangeiro vem triste,
buscando algo perdido e, aí no caso, o que está perdido é a sua sexualidade
espontânea. Em luto, tem que rir do efeito cômico do gesto obsceno e esquece
sua dor. Ensinamos ao estrangeiro triste a nossa técnica de apaziguamento da
dor. Terminamos por acreditar que não temos dor e, como bons fingidores,
acreditamos que nós não sofremos e que estamos acima de tudo isso.
Assim, Salvador nasceu de um
sonho. O monarca lusitano D.João III sonhava em edificar uma capital portuguesa
nas Américas. Sem nunca ter colocado os pés por essas bandas, ele conhecia a
cidade através das crônicas de Gabriel Soares de Souza, que traduzia para o
rei, em cartas poéticas, toda a beleza selvagem da cidade erguida sobre a
montanha. Outros viajantes estrangeiros que desembarcaram aqui fizeram
verdadeiras campanhas de marketing mais eficientes da história. A pedido do
rei, através das cartas dos cronistas do século XVI, Tomé de Souza faz a
travessia no Mar das Tormentas, chega ao Porto da Barra e, logo em seguida,
começa a erguer a cidade encomendada, traçada com antecedência pelo mestre de
obras Luiz Dias.
A cidade do Salvador nasceu como
fortaleza. Ao longo do tempo esses fortes orlaram a face oeste da Baía de Todos
os Santos e, até em altos mais para a terra, foram construídos para comprovar a
defesa da Capital do Império Português ao Sul do Equador. Se antes exerciam
funções militares, hoje são relíquias arquitetônicas e históricas compondo o
arsenal da cidade como testemunhando o muito que desempenharam em sua história.
Descoberta pela flotilha
comandada pelo navegador português Gonçalo Coelho, a Baía de Todos os Santos
(um local paradisíaco de 1.052 km2 de águas límpidas e de um conjunto de ilhas
e praias) foi
transformada anos depois no principal porto do hemisfério sul no
período do Brasil colônia. De lugares paradisíacos e de beleza natural intacta,
a baia abriga, pelo menos, 56 ilhas e uma centena de praias e lugarejos,
proporcionando muito lazer aos visitantes e aos nativos moradores. Nas ilhas de
Itaparica, do Medo e dos Frades, os visitantes podem aproveitar um pouco as
belezas naturais da baía.
A cidade já erguida fervilhava
com o vaivém de carregadores, carroceiros, navios a vapor no porto, vendedoras
de mingau, saraus literários em casas ilustres da Vitória e passeios campestres
nos arrabaldes do
Porto da Barra. Privado de ver a cidade, Junqueira Freire a
projeta nas suas rimas. Da cela do mosteiro de São Bento, o poeta escandalizou
a sociedade da época com seus versos lascivos sobre Salvador. Mas ele não advinha
que a antiga Princesa das Montanhas não era mais a preferida do sultão, posto
perdido para o Rio de Janeiro, capital do império. Morreu de tesão por
Salvador. Além de Freire, o alagoano Jorge de Lima, na década de 20 do século
passado, queria se perder nas “curvas gostosas da cidade mais bonita do
Brasil”. E até o mineiro Carlos Drummond de Andrade, que nunca veio à Bahia,
reconhecia a necessidade de escrever sobre ela.
Mas não é só de empolgação que a
cidade viveu, o satírico Gregório de Mattos, em suas rimas criticou os costumes
e personagens baianos. O Boca do Inferno incomodou tanto que foi expulso da
cidade. Séculos depois, Cuíca de Santo Amaro usava o cordel para cantar os
podres das ilustres figuras da cidade. O encanto com a paisagem física de Salvador
vai acompanhar outras gerações de escritores posteriores ao século XIX. E Jorge
Amado, através do olhar apaixonado de seus personagens, deixa transparecer a
sedução que a cidade exerceu sobre ele a vida inteira.
Salvador é um presépio, armado na
encosta da montanha, equilibrado nas ladeiras. Seus dois andares, separados por
uma escarpa de 20 quilômetros de extensão e 80 metros de altura - Cidade Alta e
Cidade Baixa, a primeira cheia de história, com seus sobradões coloniais e
igrejas, a segunda com a magia do mar e do movimento do porto – fazem desta
cidade uma das mais belas do Brasil. O seu povo, plural na sua etnia e singular
nas suas manifestações. Salvador é singular porque é plural. A Bahia é plural
na sua diversidade de religiões e singular na tolerância da coexistência das
mesmas respeitando a opção dos indivíduos que as praticam. É muito comum na
Bahia ser católico e adepto da umbanda ao mesmo tempo, independente de sua cor
ou classe social. As próprias festas católicas têm também sua versão profana.
O que é ser baiano
Encantamento, magia, sedução
onde o tempo não é implacável
e os corpos são talhados para o prazer
e a hospitalidade bem pertinho de você.
Lugar de tranquilidade, baianidade, diversidade
é um modo de ser, de fazer e dizer
E tudo o que tem, já dizia Caymmi, faz a gente querer bem
a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem
Você já foi a Bahia meu bem, hein? Hein?
Território de imaginação, fantasia, devaneio
quero essa terra inteira e não pelo meio
esse povo festeiro, relaxado, receptivo
Tudo passa pela gente, bem tranquilo
E você o que fez nessa vida sem destino:
Ser baiano, antes, era ser gentil
nada dessa violência toda febril
Ser baiano, por natureza, era ser tranquilo
nada apressado com muitos gritos
E agora o que restou:
O sagrado e o profano, o hedonismo e a fé,
o despojamento e o rigor, o dengo e a grosseria,
o atraso e a sabedoria, o antigo e o moderno
Tudo isso na Bahia a gente vê de longe e perto
Uma cidade onde os opostos convivem muito bem
Mas o que é ser baiano:
Acima de tudo, ser herói
esperar um tempão no ponto para descolar salário mínimo
suado
suportar o barulho do carro do vizinho mal educado.
E tudo nessa terra é meio surreal
rico e pobre, lado a lado, é muito desigual
e o visível de um invisível
é que o povo procura alegria onde não tem
e canta sua terra como ninguém. (Guto).............................................................
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