
Foi durante seu trabalho na Ásia que o canadense Guy Delisle deu uma grande guinada em sua carreira ao escrever, e posteriormente desenhar, seus primeiros cadernos de viagem em quadrinhos. Os álbuns Shenzen (2000), Pyongyang (2003) e Crônicas Birmanesas (2007) relatam suas experiências e aventuras de quando morou, respectivamente, na China, na Coreia do Norte e sudeste asiático. Shenzhen é um cativante relato de viagem em história em quadrinhos que traz as observações de Guy Delisle sobre a vida nessa fria cidade do sul da China, situada ao lado de Hong Kong, e isolada do resto do país por cercas elétricas e vigiada por guardas armados. Trabalhando para uma empresa europeia de animação que terceiriza o trabalho para estúdios asiáticos, o autor nos narra sua experiência de vida no trabalho, na relação com as pessoas e também nos mostra os costumes do país.
Shenzhen foi a primeira região da China a ser declarada Zona Econômica Especial, e é um dos locais

Inicialmente, Guy encontrou dificuldades de publicar estes trabalhos, pois a maioria das editoras não queriam apostar nesta mistura de jornalismo com diário de viajante. Até que uma editora de quadrinhos independentes francesa, chamada L’Association, decidiu publicá-lo. Shenzhen passou despercebido pela crítica e pelos leitores, mas a ousadia e qualidade de Pyongyang foram um verdadeiro sucesso e alavancou a carreira do autor.
Casado com Nadège que trabalha como médica e administradora para os Médicos Sem Fronteiras – uma ONG que oferece tratamento médico para pessoas necessitadas nos lugares mais inóspitos do mundo. Ela é a esposa perfeita para um homem que sabe como poucos registrar a vida cotidiana em países onde a liberdade pessoal nem sempre é uma opção viável. Em 2005, o casal e seu filho Louis mudaram-se para Myanmar (antiga Birmânia) onde viveram por 14 meses. Desta nova experiência de vida nasceu o álbum Crônicas Birmanescas. Seus trabalhos já foram traduzidos para muitas línguas, incluindo inglês, espanhol, alemão, italiano, polonês e português. No Brasil, foram lançadas pela Zarabatana Books.
O governo, do ex-presidente americano George W. Bush, considerava a Coreia do Norte como parte do “Eixo do Mal”, ao lado de países, como o Irã e a Síria. Em contrapartida, também é um dos lugares mais pobres do mundo, por causa de uma série de desastre naturais e de sua política ditatorial extremista. Com a abertura do país para investimentos estrangeiros, Guy Delisle viajou para sua capital, Pyongyang, onde trabalhou por dois meses como supervisor de um estúdio de animação francês. A empresa terceirizou a parte braçal e repetitiva dos desenhos animados para a SEK, a produtora estatal de filmes. Guy levou para Pyongyang, além dos itens necessários para entrar no país foram: um exemplar do livro 1984 de George Orwell (que ele considera uma leitura apropriada para enquanto estiver naquele estado totalitário) e alguns CDs do Aphex Twin e de reggae.
O desenho simples e a narrativa direta dão fluência à história, que nos leva aos absurdos do cotidiano na capital norte coreana. Ali, os estrangeiros ficam sob vigilância constante. No caso de Deslile, um guia o acompanha a partir do desembarque. Assim, nunca pode circular sozinho. A atmosfera é sufocante, pois em todos os lugares há o culto à figura de Kim Il-Sung, presidente por mais de 40 anos. Hoje em dia, o chefe de Estado é seu filho, Kim Jong II.

Os quadrinhos dão aos relatos reforço particular. A expressividade dos desenhos entoa coerência à obra. Delisle narra a partir do momento em que é recebido no aeroporto por seu guia e um motorista. Recebe de antemão um "livreto com recomendações", onde encontra certas normas de conduta exigidas em território norte-coreano. As restrições vão desde o trânsito urbano - que deve ser invariavelmente acompanhado por um guia - a revistas pornográficas, por sua vez, interditadas.

Hábitos incomuns ao autor geram nele cada vez maior afastamento com o lugar em que está. Hospedado em um dos três hotéis para turistas da cidade, aos poucos ele descobre facetas novas do regime e da sociedade. O que no começo parece ser curiosidade vai se configurando em certo estranhamento. Não há cafés, não há internet; a eletricidade é escassa, as pessoas, reclusas. "Pyongyang: uma cidade fantasma em um país eremita", define Delisle. A graphic-novel, como é chamado o gênero pelo mercado editorial do ramo, no fim das contas, promove uma aproximação maior entre autor e leitor que de ambos com os norte-coreanos. Oferece, inegavelmente, um material significativo sobre um país que tangencia, mas não se insere nas relações internacionais globalizadas. Com a dinâmica própria de uma animação, Delisle faz uma nem sempre sociologicamente comprometida incursão a Pyongyang.
O livro é uma espécie de diário da estadia de Guy em território norte-coreano, onde o canadense foi trabalhar por dois meses como supervisor de um estúdio de animação local. O relato é sincero e usa o bom humor para conseguir entender diferenças culturais gigantescas e a dura realidade de uma ditadura de mão de ferro que há décadas controla o país. As linhas, que misturam a simplicidade e a fidelidade fotográfica, funcionam como cartas de um infiltrado, que a cada dia tenta entender mais sobre o local onde reside temporariamente. Realidade e ficção se misturam, num texto solitário, acompanhado apenas de seu fiel companheiro guia/tradutor, uma figura engraçada e triste de quem
A perspectiva de Delisle é a nossa perspectiva ocidental. Ele não consegue compreender como as pessoas parecem realmente acreditar nos slogans do governo e na “santidade” de Kim Jong-Il. Na descrição de Delisle, há o medo e a opressão constantes, além de toda uma espécie de fanatismo que cerca a figura do líder. Nos diversos lugares visitados, Delisle não encontra mendigos nem deficientes nas ruas. Segundo ele, “todos parecem estar ocupados o tempo todo”. A maneira como uma mulher coreana, técnica de animação, canta as músicas em homenagem a Kim Jong-Il (que não são poucas) lembra o fervor com que certos evangélicos cantam seus hinos.
Apesar de todos estes fatores, a obra apresenta uma visão bastante positiva sobre a população do país, que apesar de sofrer bastante, sobrevive com bastante simplicidade e solidariedade. A narrativa é sempre carregada de um tom irônico e bastante crítico, mesmo quando o assunto são os costumes da população. Depois de publicar este álbum, o autor nunca mais poderá entrar na Coreia do Norte. Sua narrativa em primeira pessoa, tornando o diálogo com o leitor muito próximo de uma conversa. Dá impressão de que fomos com ele nesta viagem, como que escondidos na bagagem… mas sem o risco de sermos descobertos. Destaque para a incrível visita que Guy faz a um templo budista e aos comentários de seu vizinho Maung Aye, sempre tentando alertá-lo sobre os falsos monges oportunistas. Também fascinou Guy a prisão domiciliar de Aung San Suu Kyi, a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1991. Os nativos não podem passar nem perto da rua em que mora a ex-líder popular e nem mesmo pronunciam seu nome chamando-a apenas de “A Dama”.
Pela ótica de Deslile, a Coreia do Norte é um grande delírio, a materialização da distopia idealizada por George Orwell. No entanto, Deslile em nenhum momento se despe de seu ponto de vista de rapaz ocidental. Tudo é medido pelos valores importantes à ele. Assim, o fato das pessoas não conhecerem Bob Marley na Coreia do Norte torna-se mais um absurdo desconfortável. Ele não se permite tentar entender o que realmente passa pela cabeça dos poucos coreanos com que entra em contato. O idioma e a própria atitude desses coreanos não ajuda muito. (Curiosamente, é justamente o fato do estúdio estatal coreano apresentar mão de obra barata para a produção das sequências de animação que torna a Coreia uma opção atraente para os estúdios ocidentais. Isto é, Delisle critica o regime, mas não vê nenhum problema em se aproveitar da mão de obra fornecida por esse regime...) Guy Delisle, criado numa cultura onde liberdade e democracia são palavras ligadas a valores fundamentais, julga outra cultura de acordo com seu próprio referencial. O que o leitor precisa questionar os quadrinhos que abordam essa temática do “olhar sobre o outro”.
A obra é apenas a visão de uma pessoa de fora daquela cultura, e não a expressão fiel da realidade. Sabemos que nesses países questões de opressão e brutalidade são corriqueiros, mas não podemos ter uma visão única de que nós, ocidentais, somos os certos e justos e os outros são coitados vítimas de homens maus. As coisas são bem mais complicadas do que isso. Guy Delisle era estrangeiro que passou um tempo em um país e contou sua experiência. Por outro lado, Marjane Satrapi (Persépolis), nasceu e cresceu dentro do universo de relações que descreveu, e portanto apresentou uma outra perspectiva.
Mas Delisle não tem a pretensão de fazer um relato com o rigor de um historiador ou a criticidade de um jornalista. Ele simplesmente coloca no papel tudo o que acontece no seu dia-dia. Nisto consiste muito do interesse que a sua obra desperta no público e, ao mesmo tempo, uma certa fragilidade e superficialidade que seu estilo de narrativa apresenta. O fato de empresas francesas e canadenses realizarem a produção de animações na China ou Coreia devido aos baixíssimos salários dos artistas, por exemplo, não recebe nenhuma menção de Guy. Mas, não é esse o principal problema do autor. O mais complicado é que Delisle produz um trabalho extremamente auto-referenciado que às vezes se torna repetitivo e enfadonho. Diferente do trabalho de Marjane Satrapi, por exemplo, que apesar de auto-biográfico, consegue manter a densidade de uma grande obra literária. Falta a Guy este olhar mais crítico e atento. Menos preso às aparências e à superfície das coisas.
-------------------------------------------------------------
Quem desejar adquirir o livro Bahia um Estado D´Alma, sobre a cultura do nosso estado, a obra encontra-se à venda nas livrarias LDM (Brotas), Galeria do Livro (Boulevard 161 no Itaigara e no Espaço Cultural Itau Cinema Glauber Rocha na Praça Castro Alves), na Pérola Negra (ao lado da Escola de Teatro da UFBA, Canela) e na Midialouca (Rua das Laranjeiras,28, Pelourinho. Tel: 3321-1596). E quem desejar ler o livro Feras do Humor Baiano, a obra encontra-se à venda no RV Cultura e Arte (Rua Barro Vermelho 32, Rio Vermelho. Tel: 3347-4929)