28 dezembro 2006

Música certa para geração aeróbica, darks e góticos

As tribos das noites dançantes garantem a música certa para as pistas das casas noturnas. Onde eles vão, levam uma turma junto. São as turmas dos disc-jockeys que garantem no movimento dos espaços no Rio Vermelho, Pituba e outros bairros de salvador. O ambiente acaba ficando parecido com clube prive, onde todo mundo se conhece e raramente aparece alguém diferente. Às vezes, o local não combina com o público, mas importante é a garantia de encontrar a música certa para dançar.

Os eletrônicos não têm ideologia própria, só gostam do mesmo som e do mesmo visual. O som é o eletrônico, o visual e cinto tacheado e botas pretas. Adeptos de danceterias cuja programação não dispensa o estilo musical belga new beat. Eles não se definem como um movimento.

Os rockabillies se comportam como se fossem personagens dos filmes de James Dean. Clones bem comportados do ator de Juventude Transviada, eles adoram o som do Stray Cats, Jerry Lee Lewis e Eddy Cochrane. Vestidos de rockers dos anos 50, os rockabillies não suportam o rock dos anos 90, pesado demais ou dançante estilo house. Usam topetes e gomalinas.

Curtidores da noite em geral, os darks, com seus trajes negros e pesados e seus gostos pelos ambientes apertados, vivem mesmo entre o pôr e o nascer do sol. Durante o dia, costumam ser ótimos estudantes. Seus autores preferidos são Rimbaud, Artaud e Sartre. Também do mesmo movimento, os góticos (pós-darks) vestem-se inteiramente de preto para demonstrar “luto pelo mundo” e usar maquilagem excessiva. O programa preferido dos góticos é procurar danceterias que possam acolhe-los com suas bandas prediletas: The Sistyer of Mercy, House of Love, Echo and the Bunnymen, Cabine C, Smarck entre outros.

Em outro estilo, a geração aeróbica veste basicamente collants coloridos bem justos, e é bem descontraída. O grosso da tribo vem da classe média e um símbolo de status pode ser um tênis reebooks novo em folha. Fazem o culto ao corpo e têm pavor a celulites ou barriguinhas indesejáveis. Mais comportamental do que musical, os adeptos da aeróbica só dançam ao som da mesma batida-acelerada cuja função é animar os passos e a coreografia usada nas academias da cidade.

Movimento rasta

Verde, vermelho e amarelo representam a bandeira da Jamaica, são as cores básicas do visual reggae. Elas simbolizam, dentro da religião rastafari, o retorno às raízes africanas. Os dradlocks, longos cachos de cabelo, símbolo bíblico da força masculina, hoje convivem com um novo look, um corte tipo militar, que desenha trilhas nas têmporas e até mesmo o contorno do mapa da África na parte de trás da cabeça, sempre completado por bonés confeccionados em tecidos e toucas de crochê imensas, usados noite e dia.

Os amantes do reggae comparecem a rigor, de tranças rasta, no Pelourinho. Ninguém consegue ficar parado. O incenso ajuda a manter o astral pós-zen, as mechas rastafaris surgem sob boinas e sacodem no som contagiante da Jamaica. Do Terreiro de Jesus até o Largo do Pelourinho a Terça do Reggae começou inicialmente como uma homenagem ao rei Bob Marley, um guerreiro na luta de resistência dos negros de todo o mundo contra a opressão e a discriminação.

Jimmy Cliff, Peter Tosh, Denis Brown, Black Uhuru, Gregory Isaac, Edson Gomes e Lazzo são alguns nomes do reggae que podem ser ouvidos no Bar do Cravo Rastafari, Pelourinho, ou no Bar do Reggae, no Maciel, os templos onde se cultua a música jamaicana. As tribos rastas invadem a noite baiana com, seu visual marcante, a beleza das roupas e das danças e forte alegria. Os efeitos penetrantes do baixo elétrico e bateria garantem de cara a integração rasta da nova curtição da noite baiana. Um efeito quase hipnótico. A penetração cada vez mais no nosso cenário musical pode ser comprovada pelos programas especiais nas emissoras de rádios e de novos artistas que divulgam esse gênero musical.

Surf, skate e asa-delta nos esportes radicais


Uma grande tribo que reúne surfistas, skatistas, praticantes de vôo livre, bicicross, jet-ski erradicais de todas as tribos. A conexão entre os esportes radicais e algumas correntes da pop music é uma questão de afinidades culturais. Eventos conjuntos de skate e rap, surf e reggae, bike e rock acústico já fazem parte do cotidiano de disputas e demonstrações. Eles não usam roupas sóbrias e sim com cores vibrantes. Engana-se quem pensa que os radicais reinam só nas pistas. Alguns ex-praticantes do esporte de ação resolveram montar griffes ou trabalhar em publicações ou programas especializados nos esportes.

Há uma relação direta entre os esportes radicais e o prazer. Independente do resultado, a expressão de um surfista ou de um piloto de asa delta é, em geral, de satisfação pelo que está fazendo e sentindo. Surfistas, skatistas e outras tribos esportivas buscam obsessivamente o prazer. Mesmo os profissionais. Saem empolgados e felizes depois de uma boa manobra, vivem enturmados e não dispensam muitas companhias do sexo oposto durante as competições. As mulheres e garotões bronzeados que formam o público dos grandes eventos do surf chamam tanto a atenção como os próprios atletas.

Ao contrário do que muitos pensam, o consumo de drogas no meio é inexpressivo. O prazer de um salto no motocross, de uma gostosa manobra nas ondas ou no silêncio aéreo no vôo livre provoca sensações bem mais inebriantes. Os atletas radicais são os maiores consumidores de filmes, vídeos sobre surf, skate, motos e publicações especializadas. Basta conferir revistas como Surfing, Surfer, Fluir, Skatin, Overall, Trash, Transworld Skateboarding e outras.

Em Salvador, existem mais de 800 jovens que praticam o skate. Além da Associação Baiana de Skate, há o Grupo de Skate de Salvador, a União Incentivadora do Skate na Bahia, Associação de Resistência ao Skate e a União dos Skatistas de bairros diversos. Eminentemente jovem, o skate tem lugar cativo nas ruas de uma cidade cuja população adolescente se multiplica a cada dia.

Nas pistas improvisadas em parques e playgrounds, a exibição de pequenos acrobatas em suas bicicletas: saltam obstáculos, empinam bicicleta numa roda só, rodopiam no ar – é uma mistura de esporte com espetáculo circense que atrai pessoas e virou mania na cidade, principalmente na orla, onde existe uma pista de ciclismo. Lugar de surfista é mesmo na água. Nas ondas do mar é que ele mostra que, muito mais que moda surf é estilo de vida. Quem os vê, grupados num canto da praia, corpo bronzeado, roupas coloridas e palavreado estranho, sequer imagina as deliciosas sensações que eles experimentam quando deslizam sobre as ondas do mar.

Os surfistas, tal qual os skatistas, chamam a atenção pelo visual exótico e gírias próprias. O bodyboard, inicialmente, era o esporte das gatinhas dos surfistas que costumavam ficar na praia. Hoje, porém, seus adeptos já disputam o espaço nas areias de igual para igual. Para quem quer tirar os pés da terra, praticar vôo livre pode ser uma grande pedida para entrar na tribo do asa delta. Voar numa asa delta é a chance de marcar u, encontro com a liberdade num ponto qualquer do céu.

Batedores de cabeça

Fãs de heavy metal que agitavam a cabeça no ritmo da música, jogando os cabelos, geralmente compridos, para o ar. São os headbangers. Descendentes mais fiéis dos ensinamentos do movimento original – importado da Inglaterra no começo dos anos 80 – que ainda resiste no País. O visual: cabelo comprido, camisa preta e tênis de língua – marca poderosa nos domínios da tribo até pouco tempo. Eles gostam de ouvir o som do grupo Sepultura. Não só visualmente o metaleiro – ou headbander, como eles se autodenominam (e que significa bater a cabeça – pode ser na quina do palco – e com o som no último volume, claro) – mudou. Os adjetivos drogados e vagabundos não se aplicam mais aos metalóides. Eles são, na maior parte, adolescentes que sobrevivem como office boys, auxiliares de escritório trabalhando com o pai, e morando na periferia.

E eles estão mudando de visual. Os cabelos não precisam ser tão compridos nem o jeans tão rasgado. Importante mesmo é a música e o espírito do heavy metal. Sempre no último volume. O abandono do estereótipo visual aconteceu por imposição da própria sociedade. Muitos não conseguem emprego, por exemplo, por causa dos cabelos compridos, das roupas. “Os metaleiros podem mudar de aparência, mas não de preferência musical”, avalia um deles. O Camisa de Vênus foi um grupo que apresentou a nova tribo jovem em Salvador.


























27 dezembro 2006

Defensores da anarquia: Punks



Eles defendem a anarquia. O movimento punk surgiu por volta de 1976. Jovens inconformados se rebelaram contra a apatia que dominavam o rock desde o surgimento do gênero progressivo e começaram a formar suas próprias bandas. Pode ser apontado como a primeira tribo urbana a se insurgir contra a aldeia global, recorrendo a dois ou três acordes viscerais, um vocal geralmente gritado, cabelos espetados ou moicanos, e muita raiva. “Anarchy in the UK”, o primeiro sucesso do grupo que se sintetiza essa estética, os Sex Pistols, detona a anarquia nas terras da rainha da Inglaterra e espalha a revolta estética dos punks pelo mundo.

O punk é uma música simples, de poucos acordes e um vocal geralmente gritado. Os temas das músicas giram em torno de problemas sociais. Bandas como Ramones, Clash, Sex Pistols e Damned arregimentaram um grande número de fãs. No Brasil, só dois anos depois surgiram os primeiros bandos punks, na periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro, entre jovens desempregados e sem perspectivas, “oprimidos pela selvageria urbana”, como os define o criador de Bob Cuspe, o mais famoso punk brasileiro, o cartunista paulista Angeli. Bandas como Os Inocentes, Ratos do Porão, Coquetel Molotow entre outros representam o movimento.

Na Bahia, os integrantes do movimento punk se reuniam todos os domingos pela tarde na Praça da Sé. E nos dias de semana faziam seu point na Praça da Piedade onde se juntaram para conversar e vender bottons. Jorge Luís Araújo, o Paquito, na época 15 anos, disse que se envolveu na turma através da música. Depois, com os shows dos Garotos Podres e outros punks. A família interfere, “mas não tem agressão física, só discórdia, crítica”. Ao contrário do que muita gente imagina, a maioria estuda de manhã e trabalha à noite e, como muitos deles moram em bairros distantes, escolheu a Piedade como local de reuniões que começam a partir das 19 horas. Idealistas, desejam um mundo igualitário, sem comandantes. Por isso, aproveitam o movimento da praça para espalhar panfletos nos quais fala a doutrina punk. Existe a gangue Verme do Sistema que são os garotos menos rotulados, não utilizam a indumentária (roupas pretas e cabelos a la moicanos) comum aos outros. Nas outras gangues os componentes são conhecidos pelos apelidos de Morcego, Olho Seco, Pobreza e Minério.

Cabeças Raspadas

Os skinheads ou carecas, também originários da Inglaterra, surgiram para fazer frente ao movimento hippie, desaparecido no começo dos anos 70. Dissidentes do movimento punk têm uma ideologia neonazista e pregam a violência. São rivais dos fãs do heavy metal. A reativação dos cabeças raspadas acontecia na esteira do movimento punk. Pregavam o nacionalismo puro, era,m acusados de neonazistas e se contrapunham aos próprios punks, chamados por eles de “vendidos ao sistema” e não-politizados. Os skinheads são do tipo que batem no peito e se orgulham de ser operários. Eles geralmente trabalham em indústrias ou construções. São machistas ao extremo e não gostam de quem usa o visual militar sem pertencer cão movimento. Estima-se que a na década de 90 em São Paulo – seu principal núcleo – existiam por volta de 500 skinheads.Cabeças raspadas – por máquina dois --, tatuagens, coturnos pretos, calças justas, suspensórios e camisas de algodão formavam o visual da tribo. A música tem um ritmo semelhante ao rock metaleiro. Antes, eles tinham uma bandeira na cidade: Bandeira de Combate. São fãs de hardcvore, música executada com muita velocidade e peso. Eles não bebem, não fumam e abominam tóxicos. A terapia de contra-ataque aos grupos opositores ao seu radicalismo é a violência. Quase todos praticam musculação. “Não dá para dizer que a gente é pacifista quando se vive em uma sociedade violenta”, diz um dos carecas mais tradicionais da cidade.

Quem mais sofreu nas mãos dos carecas foram os grupos heavy metal e os darks, considerados por eles contestadores de botique. São poucas as garotas que se integraram à tradição de violência dos carecas. Todos são bastante jovens. A maioria mora no subúrbio e na Cidade Baixa. Eles se reuniam às sextas-feiras no QG improvisado num bar do Politeama de Cima. O bairro da Massaranduba tem um grande número desses adeptos, que muitas vezes ficam no Campo Grande aos domingos, em frente ao Teatro Castro Alves. Usam apelidos como Cafox, Dengue, Infortúnio entre outros para serem identificados em grupos. Eles vivem espalhados pela cidade, pregando as idéias de Hitler como herói e justificando as atrocidades atribuídas a ele como manipulação da imprensa sionista. Seu lema: “Tudo pela nossa Pátria, o Brasil. Abaixo os judeus, comunistas e homossexuais. Hitler era um grande homem”. Adotam uma filosofia nazista que preferem ocultar sob o nome de nacionalista. (Gutemberg Cruz).Tribos urbanas 2 (Reportagem publicada originalmente no jornal A Tarde, 16/06/1991)

26 dezembro 2006

Rock, reggae, funk, skate e surf movimentam as tribos urbanas

Filhos da sociedade industrial, onde sempre germina a contestação juvenil, punks, skinheads (carecas), metaleiros (headbangers), rastas, darks e muitas outras tribos continuam presentes nas grandes metrópoles. Mesmo com toda repressão social e familiar, eles marcaram os últimos anos do final do século XX com novas formas de expressar sua revolta contra um mundo difícil e culturalmente caótico. Usam métodos discutíveis, transformam-se, estão um pouco mais dispersos e hoje começam a ser assimilados por um sistema que transforma tudo em moda e comércio. Aqui, um pouco da trajetória, idéias e comportamento das tribos urbanas.

As tribos de Salvador estão se organizando, deixando os guetos e a clandestinidade, para respirar em novos espaços. Eles andam em bando e vivem à procura de seus iguais pela periferia e centro da cidade. São jovens em busca de uma identidade, alguma diversão que lhes dê um estilo de vida, um ideal. Som e manifesto. Música e comportamento. Uma maneira de se vestir, de pensar, eles querem é experimentar, mesmo que não tenha método, estrutura. As tribos essencialmente musicais invadiram alguns templos noturnos da cidade para a celebração de seus rituais. São dezenas de bandas que se espalham pelos cantos da cidade.

Muitos dos seus integrantes conciliam os estilos mais inusitados. O que antes não acontecia. É o chamado “crossover”. Reggae e rock, dance music e funk, tudo misturado no caldeirão da cultura pop. A comunhão cultural ser estendeu em Salvador e pode ser vista a qualquer hora nas ruas. Dê uma olhada em sua volta e tente identificar qual o estilo que certos garotos e garotas adotam. O cinto pode ser punk, as calças seguem o estilo trash, a camiseta traz a inscrição de um grupo hip hop (ou punk ou hard rock) e, enfeitando as cabeças, um boné, de preferência com a pala voltada para trás. Uma verdadeira salada visual. Através do som, da dança e da performance as tribos se revelam. Essas tribos dificilmente dividem o mesmo perímetro urbano em Salvador e trazem numa estética sempre importada. Ser componente de uma tribo musical é, às vezes, uma forma de suplantar a pobreza a que é confinado.

CALEIDOSCÓPIO – Punks, darks, metaleiros, yuppies, rasta. É a aldeia global padronizada e uniforme dos anos 70 que vai cedendo lugar às novas tribos urbanas, obrigadas a uma convivência nem sempre pacífica, de estilos e tendências de diversas épocas e origem que marcam a atual juventude das grandes metrópoles. Um passeio pelas ruas da cidade revela o caleidoscópio em que se transformaram as velhas turmas. São os cortes de cabelo à la moicanos identificando os punks, as roupas pretas aprontando um depressivo dark, as pulseiras com tachas e os longos cabelos mostrando um metaleiro de longe. Os músculos ressaltam os aeróbicos. Dos amplos salões dos blacks e os espaços apertados dos darks, dos escritórios clean e hitech dos jovens executivos (yuppies) às ruínas ocupadas pelos punks, o cenário pode mudar mas a procura é a mesma: fugir à padronização.

Contestação com muito barulho é a marca do grito adolescente dos metaleiros, os adeptos do rock pesado. Os cabelos compridos, o gosto pelas letras macabras e as pulseiras pontiagudas deram uma fama de violentos e mal humorados aos cultores dos decibéis e da velocidade como padrão musical. “O som do mais al

to volume faz a cabeça de todo mundo”. A cabeça é, por sinal, o principal na dança dos metaleiros, conhecidos na Europa e nos EUA como head-bangers, por causa dos meneios de cabeça com que saúdam seus ídolos. Ainda na cabeça tem os violentos skinheads ou carecas cuja forma de protesto é a violência física. São os rambos da atualidade.

ALTERNATIVOS – Os darks vivem de preto, uma cor bem de acordo com sua curtição noturna. Enquanto os darks – cuja alcunha significa oculto, escuro, em inglês – prefere a noite, os aeróbicos, ao contrário, optam por uma saudável vida diurna. Tão solares quanto os aeróbicos, mas preferindo os movimentos sutis ao esforço dos exercícios, e a participação à força física, os alternativos se dividem entre as terapias orientalistas e hábitos naturalistas dos anos 70, e a vontade de mudar o mundo trazida dos 60. O Partido Verde, os defensores da natureza, o movimento ecológicos são os grupos que ma

is se destacam nesta tribo.

O sociólogo Michel Maffesoli, secretário geral do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário e diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano na Universidade de Sorbone, reafirma suas teses sobre o fenômeno do tribalismo e a implosão da política na sociedade contemporânea em seu livro, “O Âmago das Aparências”. Para Maffesoli, “não vivemos mais na sociedade de consumo, mas numa sociedade de desperdício absoluto. Existe a massa, e dentro da massa as pequenas tribos que consomem conforme a moda, num processo acelerado de obsolescência planejada dos objetos”. Seu trabalho aponta a megalópole moderna como habitat desse novo tribalismo. “O mundo que se desenha pode ser um mundo sinestésico – um termo que pego emprestado da Medicina para falar de uma sociedade como um corpo que atinge seu equilíbrio interno, entre função e disfunção, entre ordem e desordem. Eu proponho esse conceito para o corpo social, essa é minha hipótese: na heterogeneidade total, alcançaremos o equilíbrio”. Autor de “Conhecimento Comum”, “O Tempo das Tribos” e “A Conquista do Presente”, entre outros livros, Michel Maffesoli propõe um saber “plural, interdisciplinar, dionisíaco, carnal, passional e orgiástico”, em oposição aos grandes sistemas explicativos como o marxismo e o freudismo.
(Gutemberg Cruz) Tribos urbanas 1 (Reportagem publicada originalmente no jornal A Tarde, 16/06/1991)




22 dezembro 2006

Música & Poesia

Debaixo D'água (Arnaldo Antunes)


Debaixo D'água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido
só faltava respirar, mas tinha que respirar.
Debaixo D'água se formando como um feto, sereno, confortável,
amável, completo, sem chão, sem teto, sem contato com o ar,
mas tinha que respirar, todo dia

Todo dia, todo dia, todo dia (2x)
Debaixo D'água por enquanto, sem sorriso, sem pranto, sem lamento,
sem saber o quanto esse momento poderia durar, mas tinha que respirar.
Debaixo D'água ficaria para sempre ficaria contente longe de toda
gente para sempre no fundo do mar, mas tinha que respirar, todo dia.

Debaixo D'água protegido, salvo, fora de perigo, aliviado, sem perdão
e sem pecado, sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar,
mas tinha que respirar,
Debaixo D'água tudo era mais bonito, mais azul
mais colorido só faltava respirar, mas tinha que respirar, todo dia.


Abraça o Meu Abraço (Arnaldo Antunes / Aldo Brizzi)

abraça o meu abraço e abre aspas e couraça e casaca e roupa até o polpa o nervo a voz antes da boca aonde a mesma brasa ilesa siamesa dorme acesa embaixo d´ água abraça o breu do meu abraço e sua o seu no meu suor na nossa massa mancha que absorve engole goma o seio soma o seu no meio meu aberto peito perto alcança o céu no vôo cego que amalgama à nossa sombra a escuridão que órbita em volta cruza a curva de um contorno que devolve ao mesmo a sua carne pele em forma líquida abraçada nesse agora que me abraça e que me abraça e que me abraça e que me abraça

21 dezembro 2006

Liberato, um apaixonado pelo cinema de animação

Pintor, escultor, desenhista, cineasta – numa palavra, multidisciplinar – Chico Liberato é pioneiro do desenho animado na Bahia. O artista plástico baiano Chico Liberato sempre foi um apaixonado pelo cinema de animação. Ao se enveredar pelo sertão de Monte Santo, terra mística de beatos e rezadeiras, ele produziu o primeiro longa-metragem animado do Nordeste: Boi Aruá, com trilha sonora do maestro Ernest Widmer e do cantor Elomar. O filme lançado em 1983, sensação da Jornada de Cinema da Bahia, projetou Chico Liberato, conquistou Menção Honrosa no Fest Rio daquele ano e prêmios no Festival da Juventude em Moscou e da Unesco (por estimular a juventude para a cultura sertaneja).

O filme já divertiu platéias, sobretudo crianças e adolescentes do Brasil e da Europa, com a história do vaqueiro cuja obsessão é apanhar o boi misterioso, o touro mandingueiro dos relatos de cordel. Plasticidade, dramaticidade, riso e emoção acompanham o frenético galopar do fazendeiro que parte no encalço da fera, na verdade uma introjeção de seus próprios fantasmas. Boi Aruá é também a história de uma busca que só termina quando o homem domina uma fera, que se revela um manso cordeiro, mas que serve de catarse para que o brutamontes que a perseguia recupere a paz – metáfora telúrica – o campo, antes calcinado pela seca, volta a florir.

Com o longa-metragem, que demonstra o amor do autor pelas coisas do campo (o mandacaru, os bichos e a gente do sertão), Chico Liberato fez o que se poderia chamar de “poética das vidas secas”, para usar a imagem da família de retirantes imortalizada pelo escritor Graciliano Ramos. O cotidiano de luta e a alegria dos catingueiros perpassa todo o filme: o ferrar do gado, a reza das beatas, as brincadeiras dos garotos do sertão, a feira, o trabalho no eito, a casa de farinha, nada disso escapou aos olhos sensíveis do artista. A toada sertaneja de Elomar soa como um contraponto do desafio de caçar e aprisionar o boi encantado do cordel.

Boi Aruá não é o único filme de animação de Liberato. Sua animada filmografia inclui também curtas como Ementário, Antistrof (1972) interpretação gráfica da obra musical do argentino Rufo Herrera; O que os Olhos Vêem (1973), Prêmios Instituto Nacional de Cinema (INC), Caipora (1974) e Pedro Piedra (1975), Prêmio Alexandre Robatto Filho, também do INC. Em seguida realiza os desenhos Eram-se Opostos, sobre a permanente luta entre as dualidades - com raízes nordestinas sobre o percurso dos personagens "Um" e "Outro". (1977) e Muçagambira (1982). Representante da geração 60, nas artes plásticas da Bahia, Chico Liberato agitou o cenário das artes plásticas no estado dos anos 70 para cá e foi responsável pelo surgimento de novos talentos. Como diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), fundou as oficinas de artes plásticas e deu chances a muitas vocações sufocadas e desconhecidas, com a exposição Cadastro.

Liberato acredita que o homem tem de criar seu universo e seu próprio acervo e desfrutar dele. Se as pessoas não buscam na arte uma fonte de alimento para abastecer-se de energia e bons fluidos, elas se perdem em curto circuitos, por incidentes banais no trânsito ou por qualquer motivo, e desenvolvem uma preocupação e raiva que as impedem de sentir prazer em viver. Na música, na pintura ou na poesia, por exemplo, o homem pode encontrar a tranqüilidade que precisa para enfrentar com mais sabedoria os seus problemas.

A ancestralidade e a ecologia são temas presentes na arte de Liberato que procura, na técnica, alcançar o domínio do índio na utilização de elementos primitivos em seus trabalhos, fazendo o caminho inverso do academicismo e aproximando-se mais e mais da natureza, usando madeira, iniciando-se nos traçados de cipós, e abusando das cores fortes.

O crítico Frederico Morais comentando sua última mostra, em 2005, comemorativa dos 40 anos de vida profissional dedicados a arte e a cultura afirmou: “Ouso afirmar que a pintura atual de Francisco Liberato tem o caráter de uma obra-manifesto. Sem abrir mão de uma linguagem internacional e perfeitamente contemporânea, ela reflete questões geopolíticas. Mas não se trata mais de denúncia social e menos ainda do panfleto político – mas de crítica cultural. É um manifesto em defesa de uma cultura brasileira em sua relação dinâmica com a cultura local, afro-baiana e latino-americana. Em seus quadros, Liberato recria continuamente os signos `antropomórficos, arquetípicos e iconográficos´ da cultura brasileira em sua dimensão étnica e universal, mas sem abrir mão de sua imaginação criadora e intelectual e, naturalmente, de sua subjetividade e espiritualidade”.

20 dezembro 2006

Tudo é mais intenso na estação do sol, da descontração e férias

No verão (ele começa no dia 21 de dezembro e termina no dia 01 de março) os dias são mais longos, e contribuem com a energia necessária ao processo da fotossíntese, estimulando o crescimento de plantas e animais. As pessoas vestem roupas mais descontraídas, e parecem adotar a mesma descontração para o seu comportamento. Sinônimo de festa e descanso para muitos, o verão significa oportunidade de trabalho e rendimento para outros. Os turistas chegam com o sol e a população aproveita parta ganhar um dinheiro extra, mesmo que temporário. A estação que aquece a economia e, consequentemente possibilita trabalho para milhares de pessoas, também faz as pessoas consumirem mais.

O verão traz consigo o êxtase, o calor, tudo parece mais intenso, mais livre, somos capazes de enormes sorrisos, vivemos momentos únicos, intensos, sabemos que é o prêmio mais que merecido depois das etapas anteriores. É também o contrastes da juventude com manhãs ensolaradas de brilho ofuscante e de sombras nítidas. Sol ardente no silêncio denso do meio dia. Nuvens amontoadas barrocamente, ameaçadoras. Um raio que estala, chuvarada na terra fofa. Assim é o verão, todo contraste. Sol abrasador e brisas de doçura, dias ofuscantes e noites profundas. Vida, entusiasmo e força. Manhãs claras e tarde de tempestade. Nuvens negras e arco-íris coloridos. Assim é o verão, assim é a juventude.
Assim como a primavera se desenvolve naturalmente para o verão, assim também a energia expansiva e criativa da madeira amadurece para a energia do fogo. Esta é a fase mais cheia de energia de todo o ciclo, quando acontece a fase mais quente da energia. Todas as formas de vida se esquentam nesta fase de crescimento da energia do fogo. O fogo está associado ao coração, que é a morada das emoções humanas e o órgão que pulsa e distribui o sangue e sua energia pelo corpo. Sua cor é o vermelho, a cor do calor e do sangue. Esta energia está associada ao amor e à compaixão, à generosidade e à alegria, à abertura e à abundância. Se bloquearmos esta energia, o resultado é a hipertensão, os problemas do coração e as desordens nervosas.

No final do verão chega um momento de interlúdio, de perfeito equilíbrio quando a energia do fogo diminui, se transformando em energia da terra, e se instala um estado de equilíbrio perfeito. Este momento é o clímax do ciclo, o intervalo entre as energias (yang) da primavera e do verão e as energias (yin) do outono e do inverno. O humor das cinco fases da energia está em harmonia neste momento, trazendo uma sensação de bem estar e completude. A energia do final do verão é a energia da terra, sua cor é o amarelo, a cor do sol e da terra. Na anatomia humana está associada ao estômago, ao baço e as pâncreas que estão situadas no centro do corpo e alimentam todo o sistema do corpo. Se a energia da terra for insuficiente, o organismo fica mal nutrido, afeta a digestão e todo o sistema se desequilibra e fica desvitalizado.

O verão é a estação das férias, das festas, do sol, do calor e da vitalidade. O calor e densidade são combinações perfeitas para que as plantas e flores cresçam nesta estação. Tempo da flor de lis, copo de leite, e gêrbena. Alimentação saudável deve ser praticada em todas as estações, mas o clima quente do verão exige cuidados extras, para evitar mal-estar e intoxicações alimentares. Nesta época do ano, a temperatura do ambiente auxilia na manutenção da temperatura interna, ao contrário do que acontece no inverno, quando o organismo gasta mais energia para fazer essa regulagem. No frio, as pessoas tendem a sentir mais fome, pois há uma maior necessidade de armazenar calor.

Ingerir comidas pesadas e calóricas no verão, como feijoada, leva à produção excessiva de calor no corpo. Isso pode causar um mal-estar generalizado. Segundo as nutricionistas, as pessoas podem sentir mais cansaço, indisposição para as atividades físicas e enjôo. Os alimentos gordurosos, como frituras, sobrecarregam mais o indivíduo e o organismo passa a ter uma digestão mais lenta, privilegiando o cansaço.

As ocorrências de intoxicações alimentares tendem a se acentuar no calor. A temperatura alta pode predispor à deterioração acelerada dos alimentos quando não acondicionados adequadamente, principalmente os que requerem refrigeração. Por isso, na praia, o ideal é que se evite o consumo de alimento der quiosque que não tenham infra-estrutura adequada e os vendidos por ambulantes. Verifique se a manipulação dos alimentos foi feita de forma cuidadosa. É comum a contaminação deles por coliformes fecais, pois nem todas as pessoas que trabalham com alimentação se preocupam em lavar as mãos adequadamente, após ir ao banheiro, por exemplo.

19 dezembro 2006

Baianidade é mito? (2)

Considerada a terra da felicidade, uma espécie de nascedouro da pátria, essa baianidade que o dicionário Aurélio afirma ser “um amor intenso à Bahia, à sua gente e aos seus costumes” se refere à capital e ao recôncavo baiano. Alguns estudiosos, como o historiador Cid Teixeira, cresceram vivenciando o movimento nas ruas da cidade, o jeito de andar, o ritmo e os hábitos dos soteropolitanos. “Há um certo jeito de ser que não acredita no relógio, mas numa noção de tempo muito ligada a esse viver. Sabe que nada tem necessidade de ser levada demasiadamente a sério (não confundir com irresponsabilidade). Trata-se de aprender o quanto a vida é relativa. Há também uma certa familiaridade no tratamento com desconhecidos, que não deve ser confundida com intimidade”, explica.

O antropólogo Milton Moura afirma, em um dos debates sobre identidade cultural exibidos no site Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que na Bahia há uma espécie de “versão identitária” emblemática, uma visão que “privilegia o passado, a origem africana da população negro-mestica, a presença dos orixás, como a continuação da África na Bahia. Um erotismo pululante (...). Nós caminhamos pelas ruas como se dançássemos, o que é verdade. Somos cheios de lascívia, portanto estaríamos muito mais propensos a amar do que trabalhar”. Entre as características associadas à baianidade, a preguiça parece ser a mais rejeitada e considerada improcedente tanto por estudiosos, quanto pelo povo na rua. O professor Gey Espinheira afirma que o mito da preguiça baiana foi criado pela classe média alta paulista.

Para o antropólogo Roberto Albergaria, existem dois tipos de idéias que resumem a Bahia. A Bahia endógena (emergeria de baixo para cima), o ethos baiano, uma alma da cidade que se constituiu depois de 400 anos de sincretismo, de mistura afro-luso-tupi. E isso daria um a cara típica e regional à Bahia, que nos anos 30/40 vai evoluindo e se condensando. Essa é a teoria endógena, espontaneista, da baianidade. A outra teoria afirma que isso é um mito constitutivo de identidade, mas não passa de um mito. No fundo, a Bahia foi constituída de fora para dentro e de cima para baixo. De fora para dentro porque ela é uma imagem opositora daquilo que foi o Rio de Janeiro no século passado. O Rio se tornou a metrópole, capital do Brasil, e a Bahia vai se constituir por oposição, vai representar o passado, a tradição, a negritude, as raízes.

No início do século XX o Rio vai deixar de ser a capital, a metrópole brasileira, e vai se deslocar para São Paulo, que vai crescer, representar a civilização, o futuro, e a Bahia vai representar o passado. São Paulo representa a razão e a Bahia a mística. São Paulo representa o trabalho e a Bahia, a preguiça, o mito da preguiça baiana é inventada lá. São Paulo representa a civilidade, a discrição. A Bahia representa a exuberância, a cordialidade. Essa imagem contrastiva vai se reforçando nos anos 60/70, quando Salvador se tornou um balneário alternativo. Nos anos 60 os alternativos paulistanos consideravam a Bahia como balneário de desbunde (basta lembrar Arembepe). A indústria turística também reforçou essa imagem. E várias camadas de imagens foram se superpondo.

A indústria cultural local e a economia do entretenimento foram fortemente ligada ao Carnaval, ao turismo e à música popular que exercera nas décadas seguintes uma significativa influência quanto ao impacto “identitário” do ser baiano. Foi a indústria cultural que ampliou o discurso da baianidade, transformando-o em um produto lucrativo através do turismo e da economia do lúdico. A idéia passou a ser investida pelas mídias impressa e eletrônica nos últimos decênios. Da arquitetura para a literatura, das artes plásticas para a canção popular, do cinema para as peças teatrais, compôs um quadro vivo da Bahia e daí o mito baiano. O ensaísta Antônio Risério definiu que os pilares do “mito baiano está assentado num tripé: antiguidade histórica, originalidade cultural, beleza natural e urbana. Foi a partir desses elementos, que são reais, que o mito evoluiu, dos tempos coloniais aos dias de hoje”. Para o sociólogo Milton Moura a baianidade é dotada de certos traços característicos, como a familiaridade, a sensualidade, a religiosidade e, em grande medida, a negociação política.

A música produzida na Bahia é muito mais do que uma simples manifestação estética. De ritmos imediatista, pragmático e notadamente comercial (letras pouco elaboradas e refrões fáceis) a axé music, pagode, arrocha e hip hop tem larga penetração na mídia de todo o país, contribuindo sobremaneira para a afirmação da imagem de uma Bahia idealizada com forte apelo de temas como verão, praia, alegria, sensualidade. Por outro lado, o inventário musical que compreende manifestações tradicionais do Recôncavo passando por Caymmi até Caetano Veloso, Moraes Moreira é mais um continuum de tradição musical do Recôncavo re-elaborado. Essa produção cultural reatualiza a Bahia mística do imaginário popular. Tem ainda a gramática local, espécie de “língua-franca” que decodifica os códigos locais ou regionais. Para muitos o baiano tem fala mansa, arrastada, preguiçosa.

Esse jeito de ser baiano sobrevive onde a cultura popular se mantém viva: na barraca da Feira de São Joaquim, no tabuleiro da baiana, na conversa de botequim, nos fuxicos de vizinha, na camaradagem que ainda reina em alguns bairros, no catolicismo popular da sala dos milagres da Igreja do Bonfim, nas senhoras de idade que, tomadas pela energia do orixá, se erguem, e rodopiam pelo terreno a dançar com a mesma desenvoltura das meninas que passeiam exalando um charme que não está em roupas caras, mas talvez disfarçado num certo gesto de se portar e sorrir. Outra característica da Bahia é o prazer em trazer muita gente para comer na sua mesa, de graça, inclusive pessoas que você não conhece. Isso está presente nas trezenas de Santo Antônio, nos terreiros de candomblé, em festas tradicionais como a Lavagem do Bonfim, Lavagem de Itapuã.

18 dezembro 2006

Baianidade é mito? (1)

Antes mesmo do Brasil ser descoberto, os europeus imaginavam que existiam um paraíso, uma terra mística, e o Novo Mundo ocupou esse espaço. Viajantes europeus nos séculos 18 e 19 teceram comentários, em suas cartas e tratados, sobre a vida social na então chamada cidade da Bahia. Os primeiros visitantes perceberam que havia algo no ar, nas cores, nos sons, no paladar. Um certo jeito espontaneamente sensual de caminhar e se portar, um certo ritmo inerente a cada movimento, um certo tempero especial na comida. Tudo isso já era observado por quem se detinha sobre os costumes baianos. Nossos grandes intérpretes do século 17, Antônio Vieira e Gregório de Mattos, já traçavam o panorama da cidade. E esses comentários feitos antes mesmo de Jorge amado escrever, Dorival Caymmi cantar e Pierre Verger fotografar a Bahia, ajudou a espalhar ainda mais essa versão para o resto do mundo. Uma expressão que parece crescer a cada ano e já conquistou diversos países com a exportação do Carnaval, do jeito baiano de fazer festa.

Para além da alegria festeira, a professora da Faculdade Jorge Amado e mestre em comunicação social pela UFBa, Agnes Mariano, autora da dissertação de mestrado A Arte de Ser Baiano – segundo as letras de canções da música popular, considera a forma de convivência um dos méritos desse jeito de ser. “A habilidade para o convívio e para a partilha é uma coisa importante, é o que o mundo mais precisa. Não é à toa que hoje tanta gente nos procura, porque defendemos essa imagem”, reflete.

A imagem da Bahia está fortemente marcada para a economia do lúdico e do turismo. As indústrias do turismo e do lazer compõem um setor importante na economia local. A partir dos anos 70 a construção e afirmação de uma forte marca da Bahia ligada a festividades populares e atividades lúdicas cresceram muito. E não foi muito difícil porque nos dias de reinado de Momo em Salvador surge cerca de 135 mil postos de trabalho temporário e movimenta-se algo em torno de R$300 milhões. Desta forma Salvador foi elevada ao posto de segunda cidade em fluxo de visitantes do Brasil (segundo a Bahiatursa) e com pretensões de tornar-se o maior pólo turístico do país. Assim, a idéia do lúdico, da eterna festa baiana, proporciona, em termos, prazer.

A noção de baianidade se constitui como a representação quase caricatural de uma suposta cultura singular, espontânea, criativa, musical, etc – e vendável como um produto turístico que atende a um segmento específico de consumo. Assim, a idéia de baianidade é uma espécie de mudus vivendi baiano idealizado, que compreende traços culturais peculiares como afirmação do bom viver, fidalguia de sentimentos, convivência entre as raças e religiões e a beleza de seu povo e de sua terra.

Mas a imagem da Bahia começou a ser formada bem antes. Salvador foi planejada pelo governo português com fins transnacionais. E como afirmou o professor Cid Teixeira, “nascemos para ser base, uma sustentação, um apoio, uma guarda, um reabastecimento, um estaleiro de todo o processo mercantilista internacional. Assim nós fomos pensados, projetados, imaginados, realizados para sermos um prolongamento europeu, para sermos um bairro de Lisboa transportado para os trópicos. Paralelamente a esta situação fomos também o principal porto de ingresso da grande diáspora africana para o Novo Mundo. Então, éramos, por fatalidades histórico-geomorfológicas, o maior agrupamento europeu fora da Europa e o maior agrupamento africano fora d`África”.

Com a abertura dos canais do Panamá e de Suez, com o desenvolvimento da tecnologia do uso da beterraba para a produção açucareira na Europa e com o incremento dos engenhos de açúcar no Caribe, deixamos de ser o porto de trânsito obrigatório da navegação européia. Salvador que desde 1549 era a capital do Brasil, deixou de sê-lo em 1763. Desta forma os engenhos do Recôncavo começam a entrar em colapso decretando o isolamento econômico da Bahia no século XIX. Mas a mistura lusa, banto e iorubana ascendeu com suas práticas culturais. Houve, por assim dizer, uma valorização da cultura local, como se o povo baiano, “isolado culturalmente”, reforçasse ainda mais sua identidade cultural..

Duzentos anos depois da perda do posto de centro administrativo português abaixo do Equador, a velha Bahia passou por uma série de mudanças importantes entre os anos 50, 60 e 70 do século XX. Basta lembrar da vinda da Petrobrás para o Recôncavo e a implantação da Universidade Federal da Bahia em Salvador nos anos 50. A Tropicália, o Cinema Novo e a implantação do Centro Industrial de Aratu nos anos 60. O Pólo Petroquímico de Camaçari, o forte crescimento populacional, a implantação das avenidas de vale em Salvador e o começo da visibilidade do Carnaval e do turismo locais como um empreendimento econômico profissional nos anos 70 e 80. Não se deve esquecer da imagem da terra, “etnografado” por Jorge Amado e a sensualidade mestiça de suas personagens nos seus romances, passando pelas figuras de Carybé, pela lente de Pierre Verger, o cancioneiro de Caymmi entre outros ícones.

15 dezembro 2006

Música & Poesia

O Tempo e o Rio (Edu Lobo & Capinam)

O tempo é como o rio
onde banhei o cabelo
da minha amada
água limpa
que não volta
como não volta aquela antiga madrugada

Meu amor, passaram as flores
e o brilho das estrelas passou
no fundo de teus olhos
cheios de sombra, meu amor

Mas o tempo é como um rio
que caminha para o mar
passa, como passa o passarinho
passa o vento e o desespero
passa como passa a agonia
passa a noite, passa o dia
mesmo o dia derradeiro
ah, todo o tempo há de passar
como passa a mão e o rio
que lavaram teu cabelo

Meu amor não tenhas medo
me dê a mão e o coração, me dê
quem vive, luta partindo
para um tempo de alegria
que a dor de nosso tempo
é o caminho
para a manhã que em seus olhos se anuncia
apesar de tanta sombra, apesar de tanto medo
apesar de tanta sombra, apesar de tanto medo




Os Homens Ocos (T.S.Eliot. Tradução de Ivan Junqueira)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

14 dezembro 2006

Bartolomeu de Gusmão

Padre, cientista. Bartolomeu Lourenço de Gusmão era filho do cirurgião-mor do presídio de Santos, o português Francisco Lourenço Rodrigues, e de dona Maria Álvares. O casal teve seis filhos, dos quais cinco tornaram-se padres e freiras (duas). Apenas um não se ordenou. Bartolomeu de Lourenço foi batizado no dia 19 de dezembro de 1685, na Vila do Porto de Santos, São Paulo. Sua família era muito amiga de Alexandre de Gusmão, um sacerdote que veio de Portugal para o Brasil, em 1644, e ingressou logo na Companhia de Jesus, tornando-se mais tarde reitor da Ordem dos Jesuítas, na cidade de Cachoeira, Recôncavo Baiano. O padre Alexandre teria, numa de suas viagens a Santos, convencido a família Lourenço a deixar o pequeno Bartolomeu ir estudar no distrito de Belém - próximo a Cachoeira - onde fundou um seminário em 1687. Mais tarde ele adotou o sobrenome Gusmão.

Depois de fazer os estudos no Colégio dos Jesuítas, em Santos, ainda na infância, Bartolomeu veio morar na Bahia, cuja capital era então a maior e mais importante cidade da América Latina. Ele veio completar o Curso de Humanidades, no Seminário de Belém da Cachoeira, dirigido pelo protetor, padre Alexandre de Gusmão, revelando-se inclinação pelos estudos de Física e Mecânica. O Seminário de Belém foi o local onde o cientista desenvolveu suas principais pesquisas nas áreas de física e matemática. Cursou o seminário jesuíta de Belém onde se fez noviço, mas deixou a Companhia para receber ordens como padre secular. Estudou em Lisboa no período de 1701 a 1705. De volta a Salvador, ainda na adolescência, construiu uma bomba elevatória para abastecer o colégio dos padres com a água do rio Paraguassu. Foi sua primeira invenção. Pouco tempo depois, aos 15 anos, construiu pela primeira vez um pequeno balão esférico, cheio de ar, aquecido por um fogo, que saía de um prato cerâmico a ele pendurado. Ou seja, por volta de 1700, a Bahia seria palco da primeira construção de um aeróstato (nome científico do balão), fato este que consta, inclusive, numa das atas da Câmara Municipal de Salvador e do livro História da Companhia de Jesus no Brasil, do jesuíta Serafim Leite. Ele se dedicava com entusiasmo ao invento que haveria de imortalizá-lo, consagrando-se como o verdadeiro precursor da aeronáutica no mundo, tentando os primeiros ensaios do vôo humano.

As notícias sobre os experimentos com o engenho se espalharam pela região. E o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão começou a sofrer muitas chacotas e perseguição. Tendo chegado a Lisboa, recomendado ao Marquês de Abrantes, aproximou-se de D.João V, a quem contou os estudos e as experiências sobre a possibilidade da locomoção pelos ares. O monarca mostrou-se interessado. Ele chegou a exibir sua experiência, em 1709, ao rei. Na ocasião, segundo alguns historiadores, “o balão atingiu a altura do telhado da Sala das Embaixadas, no Paço Real de Lisboa”. Mas o balão chocou-se de encontro às cortinas da sala, causando um incêndio. Diante do fracasso ele não desanimou e entregou-se aos trabalhos de reconstrução do aparelho. A partir daí o padre ficou famoso, e passou a ser chamado “padre voador”. Ele demonstrava também apreciáveis qualidades de orador sacro, tendo posição de destaque. Manejava com maestria as línguas latina, francesa e italiana, como traduzia com facilidade o grego e o hebraico. De seus sermões apenas três peças são conhecidas: Sermão da Virgem Maria, Sermão de Nossa Senhora do Desterro e Sermão da festa do Corpo de Deus, e foram publicados por Afonso d’Escragnolle Taunay, juntamente com o texto do opúsculo impresso em 1710, contendo a descrição de outro invento do sacerdote brasileiro. Intitula-se o folheto: Vários modos de esgotar sem gente as naus que fazem água. Fez versos e participou da Academia dos Anônimos.

Chegou a ocupar a cadeira de Matemática da Universidade de Coimbra, e, posteriormente, como membro da Real Academia de História. Por ironia, a história mundial não dá ao padre o título de inventor dos balões. Na época, D. João V mandou que lhe dessem a subvenção para que continuasse os estudos. A junta dos três estados negou-se a entregar-lhe o auxílio, sob a alegação de que não havia dinheiro. Sob as maiores dificuldades e sofrendo perseguições de toda espécie, viu-se envolvido em processo no Tribunal da Inquisição. As experiências foram proibidas pela Inquisição, sob a alegação de que “eram diabólicas”. O padre Gusmão foi vítima de insidiosa campanha de difamação. Caiu assim em desgraça, depois de envolvido em complicada intriga, que o obrigou a expatriar-se, fugindo para a Espanha, onde se recolheu ao hospital de Toledo. Foi encarcerado, sob rigoroso jejum, acusado de praticar infernais artes mágicas. Os jesuítas conseguiram, após grande esforço, libertá-lo. Gravemente enfermo, Gusmão foi recolhido ao Hospital de Misericórdia. Não era só os sofrimentos do corpo, mas os do espírito, diante da ingratidão dos homens. Tal estado de alma apressou-lhe a morte. Na noite de 19 de novembro de 1724, na cidade de Toledo, Espanha, ele faleceu, sendo sepultado na Igreja de São Romão. Em 1783, os Irmãos Montgolfier mostraram suas experiências com balões ao rei da França, Luís XVI, ficando, até hoje, com a glória de serem os primeiros inventores.

Tunay considera-o homem de gênio: “o primeiro americano a realizar, no cenário mundial, uma invenção notável”. O padre Bartolomeu de Gusmão ocupou-se de outras máquinas: um moinho mais veloz que os existentes; um sistema de lentes para assar carne ao sol (inspirado, como a própria Passarola, de Arquimedes); maquinaria para a exploração racional das turfeiras. Seu aeróstato é reconhecido internacionalmente como o primeiro do gênero. A montgolfière, dos irmãos Joseph e Etienne Montgolfier, é de 1783. Curiosamente, os dois franceses celebrizaram-se ainda pela invenção de um aparelho para elevar água, de 1792, de novo, exatamente como o padre Bartolomeu.

13 dezembro 2006

Besouro, o homem mais valente do Recôncavo


A história dos grandes capoeiras, vive até nossos dias, na imaginação popular e cantigas que narram suas façanhas. Em Salvador por volta de 1920 a polícia perseguia não só as rodas de capoeira, mas também o samba e o candomblé. Nessa mesma época surge em Santo Amaro, Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro, que foi um dos maiores capoeiristas da Bahia e um dos mais admirados e citados em canções nas rodas de capoeira. Manoel Henrique Pereira, homem negro e pobre, nascido no fim do século XIX, numa época em que ser praticante de atividades ligadas à herança africana era considerado um crime, se tornou a figura mais respeitada no universo da capoeira. Sua fama cruzou os limites do Recôncavo, chegou à capital baiana, ao restante do país e alcançou os quatro cantos do mundo.

Capoeirista corajoso num tempo em que não havia a divisão entre os estilos angola e regional, muito menos escolas de ensino da arte-luta, Besouro Cordão de Ouro – como também era conhecido – conseguiu a façanha de hoje ser um herói tanto para os seguidores do mestre Bimba (criador da regional), quanto para os discípulos do mestre Pastinha (líder máximo da capoeira angola). Mais impressionante ainda: teve menos de 30 anos de vida para construir toda essa fama, antes de ser assassinado em 1924.

Hoje, não há nome mais cantado nas rodas de capoeira. Besouro inspirou a música “Lapinha”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, vencedora do Festival de Música da TV Record, na voz da cantora Elis Regina. Serviu de fonte também para um dos capítulos do livro “Mar Morto”, de Jorge Amado, e para o filme “Besouro Capoeirista”, com o ator baiano Mário Gusmão. A mesma coragem e valentia lembradas nas canções, que o transformaram num herói, fizeram com que, em vida, tivesse fama de arruaceiro e fosse perseguido pela polícia em inúmeras ocasiões.

Justiceiro para uns, arruaceiro para outros, o exímio capoeirista virou lenda com a alcunha de Besouro Mangangá. Ele foi uma espécie de Lampião da capoeira, e sua valentia correu mundo. Saveirista, vaqueiro, amansador de burro brabo, chegou a ser soldado do Exército. Sua personalidade permanece envolta em mistério, fortalecendo ainda mais o mito em torno de seu nome. Sua certidão de nascimento nunca foi encontrada, nem documentos de identidade. Também não há qualquer imagem – seja fotografia ou pintura – dele. Besouro não deixou filhos conhecidos nem mulher. Houve até quem desconfiasse de sua existência.

Ele nasceu no antigo quilombo Urupy, localizado entre Santo Amaro e o distrito Oliveira dos Campinhos, filho de João Matos Pereira e Maria Auta Pereira. Aos 13 anos ganhou o mundo quando saiu de casa para trabalhar e começou a escrever seu nome na história através de suas aventuras. Seu forte era a agilidade, destreza, manha, rapidez de raciocínio, a calma e a surpresa. Muitas crianças, mesmo a contragosto dos pais, se apaixonavam por aquele homem do povo e seus movimentos perfeitos.

Seu jeito crônico de brigar, cheio de malandragem e sorrisos de provocação irritava a polícia. Suas fugas espetaculares ajudaram a criar o apelido: Mangangá também é o nome popular de um peixe venenoso. Já o apelido Cordão de Ouro teria surgido muito tempo depois, quando passou a haver a gradação de capoeiristas através da cor do cordão. O cordão de ouro sereia superior a qualquer outro nível de capoeira.

Besouro se saía tão bem das situações de perigo que as pessoas acreditavam que ele possuía poderes sobrenaturais. Muitos falavam que ele tinha o corpo fechado. O próprio apelido vinha dessa crença: quando ele se encontrava numa situação difícil, diante dos inimigos numerosos demais, Manoel se transformava em besouro e saía voando. Besouro vivia num mundo em que, para sobreviver, era preciso ter malícia dentro e fora da roda da capoeira.

As brigas eram sucessivas e por muitas vezes Besouro tomou partido dos fracos contra os proprietários de fazendas, engenhos e policiais. Certa vez estava sem trabalho e foi a Usina Colônia, hoje Santa Elisa. Deram-lhe trabalho. Trabalhou uma semana. Quando foi no dia do pagamento ele sabia que o patrão tinha o hábito de chamar o trabalhador uma vez, e na segunda dizia: "quebrou para São Caetano", que quer dizer: não recebe mais; e se reclamasse era chicoteado e ficava preso no tronco de madeira e depois mandado embora. No dia do pagamento, deixou que o patrão o chamasse duas vezes sem responder. O patrão disse o seu quebrou para São Caetano. Todos receberam o dinheiro menos Besouro. Besouro invadiu então a casa do homem, pegou-lhe pelo cavanhaque e obrigou que pagassem seu dinheiro. Besouro tomou o dinheiro e foi embora.

No dia 08 de julho de 1924 Besouro se despedia da vida de valentão com apenas 28 anos. Foi em Maracangalha quando foi golpeado com uma faca de ticum, (a árvore dos mistérios), à traição, por um de seus colegas. Somente uma arma de mandioca poderia ferir mortalmente quem tem o corpo fechado. Sua história foi construída em menos de três décadas mas até hoje alimenta a fantasia do povo de Santo Amaro, onde nasceu. Nas palavras inspiradas de Jorge Amado, “Besouro brilha no céu, é uma estrela”.

12 dezembro 2006

Depressão, a doença do século

Até bem pouco tempo pairava uma enorme confusão sobre o que atualmente se conhece pelo nome de depressão. Confundida com as crises de tristeza naturais e passageiras, ora com a manifestação de algum recôndito mal orgânico, a depressão nunca fora abordada de forma correta pela medicina. Não se acreditava tratar-se de um tema da Medicina, mas sim da Psicologia e até da espiritualidade. Muitos pacientes eram tratados como portadores de uma doença mental e, portanto, candidato a choques elétricos num hospício. Outros eram submetidos a sessões de psicanálise que poderiam, durar décadas sem fornecer alívio.

Considerada a doença do final do século passado, a depressão pode ser diagnosticada pela ocorrência combinada de quatro ou mais sintomas típicos que, juntos, durem, no mínimo, duas semanas: insônia, irritabilidade, fixação no suicídio e perda de apetite. Assim, a depressão tem fundo orgânico e acomete de 10 a 15 milhões de brasileiros em alguma fase da vida. Preocupado com a extensão da patologia, um grupo de psiquiatras de São Paulo – depois de cinco anos de estudos – decidiu caracterizar a depressão como uma alteração da velocidade dos processos mentais (raciocínio, memória, atenção e cognição), que se tornam lentos, associados à diminuição do ritmo de vida. O doente abandona o trabalho, fica muitas horas deitado ou sentado e tem poucas atividades.

A psiquiatra Florence Kerr-Corrêa, junto com os psiquiatras Giordano Estevão e Carol Sonenreich lançaram no início dos anos 90 o livro “Debate sobre o Conceito de Doenças Afetivas”, no qual propõem um tratamento mais preciso para o fenômeno. O tratamento sugerido pelo grupo inclui o uso de antidepressivos voltados para a normalização da velocidade dos processos psíquicos e o uso da psicoterapia para a recuperação do ritmo de vida do paciente. Para o psiquiatra baiano César Romero, a depressão “está ligada ao relacional, ou seja, às relações interpessoais. As pessoas reagem depressivamente às situações no casal, no social, no familiar, no profissional e também na compreensão do seu próprio eu. Nessa compreensão do seu próprio eu, seria uma relação intrapessoal, enquanto as outras interpessoal. As pessoas se deprimem muitas vezes por não conseguirem atingir suas expectativas, por errarem e não aceitarem o próprio erro, por não conseguirem concluir metas, não serem suficientemente fortes, não buscam ajuda e apressarem-se até a exaustão”.

Segundo o psiquiatra, a depressão é uma emoção chamada tristeza. Que toda vez que a gente expressa através do choro, melhora. Em casos graves é necessário o uso de medicação, especialmente quando pensa em suicídio. É bom lembrar que a falta de credibilidade dos políticos atualmente, a corrupção infestando o país e a violência geral fazem com que as pessoas percam as esperanças e aumentam muito os casos de depressão. As relações humanas se deterioraram muito através dos tempos.

Num país em que a tristeza é um substrato forte da cultura nesses tempos de crise e alta taxa de desemprego, cresce cada vez mais a depressão na população. Que o digam seus poetas e compositores. Em “Circulado”, Caetano Veloso retrata a desconstrução de um país esquizofrênico, de realidades divididas. “A mais triste nação na época mais podre compõem-se de possíveis grupos de linchadores”, canta. Já o grupo Legião Urbana distribuiu doses melancólicas em seu disco V. Renato Russo compôs letras onde menciona drogas, tristeza e melancolia: “Antes eu sonhava, agora já não durmo”.

A partir dos anos 80 a depressão virou moda e cresceu o consumo de antidepressivos. A AIDS surgiu como nova causa orgânica da doença e aumentaram os fatores psicossociais que podem, levar alguém a ficar deprimido, como a perda do emprego, da posição social e do poder aquisitivo. Com a difusão da doença, expressões como “estar de baixo astral” ou “deprê” incorporaram-se ao cotidiano fomentando o modismo. Mas os médicos alertam a diferença entre a pessoa se sentir desanimada, triste, entediada, deprê pela depressão onde a pessoa não quer viver mais. Enquanto no estado depressivo passageiro a pessoa sozinha pode sair dessa situação, na depressão o doente não consegue, pois a doença o domina. O melhor tratamento é o acompanhamento médico com orientação familiar.

Quando se torna crônica, a depressão fere forte – e nos períodos de crise elimina toda a criatividade. Depressivos ilustres foram, por exemplo, o compositor russo Tchaikósvski, o presidente americano Abraham Lincoln, o filósofo marxista francês Louis Althusser, a escritora inglesa Virginia Woolf, o escritor mineiro Pedro Nava, o escritor Charles Bukowski, a atriz Marilyn Monroe e o romancista brasileiro Graciliano Ramos. O romancista e ensaísta norte americano William Styron (autor de A Escolha de Sofia) conta em seu livro “Perto das Trevas”, como se curou da depressão que quase o levou ao suicídio. No livro ele defende os remédios antidepressivos com cautela, as terapias e até a hospitalização em, casos extremos, como o dele. Aos que sofrem com a depressão, aconselha: “Agüente firme”.

11 dezembro 2006

Ciência da rede avança cada vez mais


Um bom exemplo de que nossa vida está conectada a uma série de redes. No século 13, os inquisidores católicos perseguiam os heréticos medievais, pessoas que rejeitavam, entre outras coisas, a autoridade do papa. A Igreja Católica instruía os cruzados a matar todos os que viviam em vilas e cidades suspeitas de abrigar dissidentes. Esse foi só o começo e a igreja não conseguia destruir a rede de heréticos com destruição indiscriminada. Os massacres aleatórios conseguiram um alívio temporário, mas a heresia sempre ressurge.

Como a heresia se espalhava, os inquisidores decidiram encontrar uma maneira melhor de extirpar a epidemia herética. Escreveram manuais para inquisidores detalhando a melhor maneira de derrubar uma rede sem escala. O esforço deveria se dirigir a identificar os heréticos que visitaram o suspeito em sua casa, bem como os guias que os conduziam até lá. O importante são as conexões, não os nódulos. Assim mudaram seu estilo de punição com a doutrina de isolamento. Aqueles que tivessem contato com heréticos eram forçados a usar uma cruz amarela na frente e nas costas de toda vestimenta visível. Quem era visto com um portador dessas cruzes corria o risco de ser acusado de simpatizante pela heresia. Essa medida funcionou mas não deteve a disseminação da heresia.

Os inquisidores perceberam a importância das conexões da rede. Como a Internet, por exemplo que tem Yahoo e Napster funcionando como atalhos para conectar muitas pessoas por meio de poucos links. Assim, a heresia dependia das atividades de umas poucas pessoas influentes. E os inquisidores enviaram um espião para descobrir onde eles se escondiam. Vários frades dominicanos foram treinados na caça a heréticos para capturá-los. A operação custou muito para o Vaticano. Era a fórmula ideal que a Inquisição adotou para lidar com as redes sem escalas. Os inquisidores envolvidos eram conhecidos como pessoas que pensavam cientificamente. Afinal, os frades dominicanos era uma das ordens mais cultas. Diferente da Idade Média, as aplicações modernas da teoria das redes sem escala estão salvando vidas, tal como o controle de doenças.

Os sistemas complexos da natureza funcionam de forma similar a proliferação de heresias. A todo momento, centenas de moléculas do corpo ficam loucas e deixam de cumprir sua função original. O motivo de continuarem vivos por anos e anos é que a rede dentro da célula é dominada por “centros de distribuição” – as falhas aleatórias têm pouco efeito. Se alguém distribuísse as moléculas que servem de centros de distribuição, o resultado seria mortal. Bem no estilo do adolescente canadense que conseguiu paralisar algum dos maiores sites da Internet (incluindo Yahoo, Amazon e eBay) com seu computador ligado à rede. Graças ao avanço no entendimento das redes que está havendo uma revolução na biologia. Graças a ela temos hoje a lista dos genes humanos. A ciência das redes está mapeando as interações entre as moléculas dentro da célula e vai ajudar a desvendar, por exemplo, o que são as doenças.

A sociedade em rede tem cinco séculos de existência. Basta lembrar da Renascença onde os banqueiros já teciam sua rede financeira florescente. Os artistas, nesse período, armaram outra rede, sólida e influente, por meio do barroco, primeiro estilo internacional. Outra rede de sucesso: a ferroviária da Europa, iniciada no século 19 e teve vasta repercussão social. Dessa forma, a rede existiu em outros tempos e espaço. Agora a tecnologia da informação é a base para uma rede que tudo alcança no mundo todo. Milhões de pessoas estão unidas pelo e-mail, na Web. É a comunidade virtual. Baudelaire escreveu sobre o sentimento de se sentir sozinho no meio da multidão e ao mesmo tempo, e por isso mesmo, com ele virtualmente “linkado” na cidade moderna. Vivemos virtualmente, sempre fomos virtuais – o que nunca nos impediu de sermos reais.

A nova ciência pode ser aplicada a virtualmente todas as áreas do conhecimento. Todas as redes – sejam elas de computadores, pessoas, empresas ou moléculas – são frutos de uma rede intricada de ligações. A vida é fruto da interação de uma complexa rede de moléculas dentro das células. A economia é uma rede complexa de empresas e consumidores. A sociedade é uma rede complexa de pessoas conectada por laços de família, amizade e trabalho. A Internet é uma teia complexa de computadores conectados por fios. Todos fazemos parte, queiramos ou não, de várias redes.

Em seu livro “Seis Graus de Separação”, o dramaturgo John Guare apresentou a idéia de que cada um de nós está a somente seis apertos de mão de qualquer um dos seis bilhões de habitantes da Terra. O sociólogo americano Duncan Watts testou se isso seria verdade também em outras redes. Ele e colegas descobriram que redes tão diversas como a World Wide Web (ou WWW), os neurônios do organismo e os atores de Hollywood têm a mesma propriedade da rede social que nos une. Todos fazem parte do fenômeno conhecido como “mundo pequeno”. Nele, estamos todos a uma pequena distância de nossos pares de rede. Pouco importa se a rede é o bilhão de páginas da WWW ou 500 mil atores de Hollywood. Uma página de WWW está a somente 19 cliques de qualquer outra e um ator está a três apertos de mão de seus colegas. Todos fazem parte de várias redes. Até mesmo você caro leitor.

07 dezembro 2006

Herberto Sales

Escritor. Herberto de Azevedo Sales nasceu em Andaraí, Bahia, a 21 de setembro de 1917. Em 1930 mudou-se para Salvador, frequentando o Colégio Antônio Vieira. Voltou depois para Andaraí (1936), onde fez comércio e negócio de madeira, e foi funcionário de cartório. Em 1939 inicia seu contato não escolar com a literatura pela obra de Eça de Queirós, uma de suas prediletas. Lê também, com constância, os autores nordestinos. O ambiente da região fixaria na sua obra ficcional a vida em torno da garimpagem, que o situaria no ciclo da ficção regionalista, com assunto local. Era um ambiente violento, com vida aventureira e histórias cruas de crimes e lutas sobre diamantes e carbonatos. Aí entregou-se às leituras literárias e começou a escrever contos e reportagens sobre a vida da região. Ele iniciou sua trajetória literária com o romance Cascalho (1944). A obra retrata em todos os aspectos a vida nas lavras diamantíferas de Andaraí. São várias narrativas inter-relacionadas, que envolvem coronéis, capangueiros, garimpeiros e representantes de outras atividades, direta ou indiretamente vinculadas ao exercício do poder, como policiais e jagunços.

O cerne do livro é a denúncia da constante exploração que se encontra na base das relações desumanas de trabalho mantenedoras dos privilégios e das arbitrariedades, realizada pelo confronto entre as ações das personagens e não pelo comentário que a elas pudesse ser sobreposto, o que minimiza o mecanismo ideológico e amplia a veracidade das situações e personagens criadas. Pressionado pela repercussão de Cascalho em Andaraí, por retratar criticamente as personalidades da cidade, Herberto Sales transferiu-se, em 1948 para o Rio. E iniciou sua carreira jornalística nos Diários Associados, O Cruzeiro, onde permaneceu até 1973. Em 1951 publicou a segunda versão de Cascalho, revisada e diminuída, pois a primeira tinha mais de 600 páginas.

Com a publicação de Além dos Marimbus, 1961, ele recebeu o Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Paula Brito da Biblioteca Municipal do Rio. Três anos depois é publicada a tradução tcheca de Cascalho. Vários de seus livros são editados no exterior, recebendo versões romena, japonesa, inglesa, italiana, coreana e espanhola, além de edições portuguesas. Após Cascalho e Além dos Marimbus, ambos referentes a Andaraí e suas principais atividades econômicas, Sales editou Dados Biográficos do Finado (1965) Marcelino reportando-se à cidade de Salvador dos anos 30, onde uma burguesia, a princípio florescente, é vista depois em decadência. Em 1966 ele iniciou sua carreira de contista com o volume Histórias Ordinárias, e em 1969, começou sua trajetória como autor de literatura infantil com o livro O Sobradinho dos Pardais. É também de sua autoria os livros A Feiticeira de Salina, A Vaquinha Sabida, O Homenzinho dos Patos (1974), O Casamento da Raposa com a Galinha (1975) e O Burrinho que Queria Ser Gente (1980). Publicou ainda os livros de contos: Uma Telha de Menos (1970), Transcontos (1974) e Armado Cavaleiro e o Audaz Motoqueiro (1980). Publica os romances O Fruto do Vosso Ventre (1976) e Einstein, O Minigênio (1983).

Outros romances: Pareceres do Tempo, A Porta de Chifre, Na Relva de Tua Lembrança, Rio dos Morcegos, Rebanho do Ódio e seu último trabalho, A Prostituta, onde o autor volta a Salvador, onde decorre quase toda a história. Publicou suas memórias em três volumes: Subsidiário - Confissões, Memórias e Histórias; Subsidiário: Andanças por umas Lembranças; e Subsidiário: Eu de Mim com cada Um de Mim. Em 1971 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e em 1974, assumiu durante onze anos a direção do Instituto Nacional do Livro. Ocupou o cargo de Adido Cultural do Brasil na França. É membro ainda da Academia Maçônica de Letras e da Academia Brasileira de Literatura Infanto Juvenil. Para o Ministério da Agricultura escreveu a monografia Garimpos da Bahia (1955), e editou o ensaio Para Conhecer Melhor Aluísio de Azevedo (1973). Sales detém inúmeros prêmios literários: Luísa Cláudio de Souza (Pen Clube do Brasil, 1966), Jabuti (Câmara Brasileira do Livro, 1977), além da Medalha do Mérito do Estado da Bahia, 1977, e Medalha Euclides da Cunha (Clube do Estado, SP, 1980). Em 1996 recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela UFBA.

Herberto Sales é um escritor que, muito embora se tenha iniciado no encalço da literatura do Nordeste, sem trair suas origens, não se contentou com, achada a fórmula de um garantido sucesso, repeti-la à sociedade. Ao contrário, aventurou-se na busca de temáticas pouco usuais no âmbito da literatura brasileira, sem se despreocupar, em contrapartida, com a manutenção de sua identidade. De Cascalho a O Fruto do Vosso Ventre, um vasto caminho foi percorrido. A diversidade de temas e o tratamento dado a eles coloca em questão justamente o que é central na sua elaboração romanesca: a preocupação constante com o desmascaramento dos motores da sociedade contemporânea. Para isso, não se volta apenas para o passado e para o Brasil desconhecido dos leitores dos grandes centros consumidores (como faz em Cascalho e Além dos Marimbus), mas visa com agudeza à compreensão do presente degradado (Armado Cavaleiro o Audaz Motoqueiro) e se lança para o futuro (O Fruto do Vosso Ventre ou Einstein, o Minigênio) que se vislumbra a partir dos absurdos contemporâneos.

“A característica principal da ficção de Herberto Sales é o mergulho na alma humana. Claro que ele também é mestre em abordar épocas e ambientes, mas, sem dúvida, seu interesse maior é a nossa essência”, escreveu o escritor Ruy Espinheira Filho. Crítico preocupado em remexer as mínimas chagas, Herberto Sales jamais se descuidou da construção rigorosa de suas narrativas, tanto do ponto de vista lingüístico como do estrutural, o que é atestado pelas constantes reelaborações de seus romances, na busca da melhor forma de expressão. Enfim, entrega-se com amorosa dedicação às histórias que conta porque acredita ser esse o seu modo de interferir no andamento do mundo.

06 dezembro 2006

Ziraldo apresenta a infância do futuro

O genial Ziraldo se valeu de um novo tempo verbal para narrar sua nova história. O Menino da Lua, lançado pela Melhoramentos, é um conto poético, fascinante. Ele conta a saga de um menino que vive no futuro, no terceiro milênio. Zélen adora brincar de pega-pega com o dragão verde da Lua. É o menorzinho da vizinhança e, por isso mesmo, deixado de lado. O que ele queria era fazer parte da “planeturma” de amigos e vestir a camisa número 10 dessa “sideralcatéia de lobinhos do Espaço e virar o futuro craque nos jogos de astrobol”, brincar as brincadeiras de roda em volta do Sol; planepatinar no vácuo e pegar uma carona numa cauda de cometa pra voar na via-Láctea, petsaltitar estrelas, perder-se em buracos negros ou galácticas cavernas, zanzoar por mil satélites, zuenir espaço afora.

A turma que ele queria fazer parte era formada por Irmin, de Mercúrio; Venício, o laranja, natural de Vênus; Nan, amarelo, vinha da Terra como Zélen; Marlim, o marciano verdinho; Ju, azul, nascido em Júpiter; o colorido Saturnino era de Saturno; Théo, também azul, veio de Urano; Tuna, o menino de Netuno, era violeta; e Plut, pretinho, veio de Plutão. Ninguém tinha tempo de brincar com Zélen. Um dia, sabe-se lá porque, ele foi convidado a brincar com a turma e, como era o melhor pula-planeta, deu um salto insuperável e sumir no Cosmos e nunca mais voltou.

E esse cantador de histórias começa a sua citando uma crença maia que o poeta guatemalteco Humberto Ak´abal lembrou: “Vista de longe, a montanha parece ser azul. De perto, porém, sabemos que ela é verde. O mar, de longe, é azul. De perto, a gente vê que ele é verde. O céu está perto ou longe? O céu está longe. Logo, o céu é verde”.

Ziraldo passou a infância viajando entre planetas nos quadrinhos do Flash Gordon e Brick Bradford. No livro Menino da Lua ele faz uma referência ao Blue Boy, quadro do pintor inglês Gainsborough (Saturno, o menino de Urano), os chapéus e os laços de fita das meninas que acompanham Venício, de Vênus, são uma homenagem à ilustradora australiana Sarah Kay, que segundo Ziraldo, “desenha as meninas mais graciosas do mundo”. O fundo entre ocre e o bege das páginas do menino de Netuno tem uma explicação. O astrônomo americano Karl Glazebrook descobriu que essa era a cor do Universo. Assim é Ziraldo revisitando as cores, a infância, dando asas à imaginação: “nada pode ir mais longe que a nossa imaginação”

Ziraldo Alves Pinto, desde pequeno, já era apaixonado por desenho e leitura. Foi lendo o primeiro número do lendário Gibi que ele pressentiu, pela primeira vez, o seu próprio futuro. Nos anos 50 começou a publicar uma página de humor no Folha de Minas. Nos anos 60 ganhou enorme popularidade com seus cartuns e charges políticas publicadas na revista O Cruzeiro e pelo Jornal do Brasil. Personagens como Jeremias o Bom, Supermãe e o Mineirinho passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros. E foi nessa década que ele realiza um velho sonho: fazer sua própria revista em quadrinhos. Nasce assim a Turma do Pererê, gibi de grande sucesso que fez a alegria da garotada durante muito tempo.

Em 1969 junto com outros desenhistas surgia O Pasquim, o primeiro e mais importante jornal da combativa imprensa alternativa da história do Brasil. É também em 1969, depois de receber o Oscar Internacional do Humor no 32º Salão Internacional de Caricaturas de Bruxelas e convidado a desenhar o cartaz anual da Unicef, ele publicou seu primeiro livro infantil: Flicts, a história simples e pura de uma cor que não encontra seu lugar no mundo. Dez anos depois Ziraldo resolve dedicar mais tempo para escrever histórias para crianças e publica O Planeta Lilás, O Menino Maluquinho e tantos outros. É Ziraldo espalhando cores para o mundo. Com vento nos pés e asas na imaginação. Um menino feliz!

05 dezembro 2006

Mergulho no mundo repleto de imagens, cores e letras

Criador de um trabalho gráfico reconhecido internacionalmente e grande “inventor” de histórias para o público infantil, Ziraldo está de volta com o belíssimo livro da Melhoramentos: O Menino da Lua. Nele, as crianças vão descobrir que, em cada planeta do sistema solar, um menino diferente está pronto para brincar pelo universo. Mas o que gostaria de revelar é outra obra desse ilustrador, escritor, caricaturista, cartunista genial.

Um dia, o menino leitor de histórias em quadrinhos descobre que a palavra contém toda a cor, todo brilho, toda a significação, toda a luz de uma bela ilustração. É nesse momento que penetra no reino das palavras. Editado pela primeira vez em 1989, O Menino Quadradinho mergulha no mundo repleto de imagens, cores e letras. Nesse trabalho, Ziraldo homenageia poetas como Drummond e Vinícius de Moraes, que têm seus versos citados, e mestres das histórias em quadrinhos como Will Eisner e Moebius. O Menino Quadradinho parte de uma idéia magnífica e bem realizada. A idéia é seguir o personagem no seu crescimento físico e psicológico, partindo das histórias em quadrinhos passo a passo até o texto impresso.

Até a página 19, o desenhista brinca com a linguagem dos quadrinhos, imitando o estilo de vários clássicos do gênero. Nas outras páginas, o menino quadradinho do livro “penetra surdamente no reino das palavras” (como dizia Drummond em “A Procura da Poesia”) e vive uma aventura no país das letras, que Ziraldo já explorara anteriormente em seu “Planeta Lilás”. Nesta obra, os “truques gráficos” se misturam com personagens de outros livros do autor ou clássicos das HQs. De repente, em meio a esse mundo de personagens, imagens e cores, o menino acorda do seu sonho como se tivesse levado um grande susto: Onde estou? Onde estão os quadrinhos? Os balões? E os sons? Todo o encanto transmitido pelas imagens vai aos poucos tomando conta das palavras.

Ziraldo garante a seus muitos leitores que aprender a gostar de ler é isso: trocar um, sonho colorido e cheio de imagens, por outro repleto de letrinhas – idéias que fazem pensar e alargar o futuro. Tudo isso, feito com alegria e amor. Um livro bonito e instrutivo, e visivelmente magnífico. Conhecer a obra é conhecer Ziraldo por dentro. É vasculhar o seu mundo maravilhoso, é perceber toda a sua poesia de grande ser humano.

Há uma forte presença da infância e adolescência em todo o trabalho de Ziraldo. Ele admite “uma personalidade proustiana”, alguém que guarda para sempre as marcas das coisas boas e más sobretudo em tem os de afeto. Desde o início, ele sempre lidou com a imagem, porém jamais desligada da narração:

-- Nunca quis ser pintor. Queria ser desenhista de histórias em quadrinhos. Então, desde pequenininho, invento histórias. Só que inventar histórias todos os meninos inventavam. E desenhar, era só eu que desenhava bem na escola. Então, esta ficou sendo a minha principal qualidade. Eu era um menino que desenhava. Quando vim para o Rio, o que tentei fazer foi ser desenhista de histórias em quadrinhos, atividade em que juntava as duas coisas: capacidade de desenhar e a de inventar histórias.

Em 1960 Ziraldo cria a revista Pererê e dá luz aos seus mais definitivos personagens. Em 1969 faz “Flicts” que foi um grande sucesso, virou a peça de teatro mais representada nas escolas do Brasil. De 69 a 79 fez o semanário O Pasquim e charge política no Jornal do Brasil, atividades que lhe custaram temporadas na prisão. Em 79 volta com histórias infantis com “O Planeta Lilás”. Em seguida “O Menino Maluquinho” e uma série de outros. Em 1988 a Editora Salamandra lançou um álbum luxuosamente encadernado e totalmente em cores que comemora os 40 anos de carreira deste mineiro internacional (Ziraldo 40/55), reunindo reproduções de cartum, quadrinhos, cartazes, painéis, capas de livros e outros trabalhos de produção recente. Longa vida a este mestre do grafismo.

04 dezembro 2006

Abre a roda que o samba vai passar


O samba surgiu na Bahia, mas se popularizou nacionalmente através do Rio de Janeiro, que, com uma indústria fonográfica forte, teve um papel fundamental na divulgação dessa música. Ao primeiro toque do tambor, homens e mulheres se colocavam a postos, em círculos. E iam se alternando no centro da roda, dançando sozinhos ou em pares, enquanto os outros acompanhavam em palmas. “A dança consiste num bambolear sereno do corpo, acompanhado de um pequeno movimento dos pés, da cabeça e dos braços. Estes movimentos aceleram-se, conforme a música se torna mais viva e arrebatada, e, em breve, se admira um prodigioso saracotear de quadris”, informa o antropólogo Edison Carneiro em seu livro “Samba de umbigada”. Quando dançam sozinhos, convidam outro a substituí-lo com uma umbigada, que chamam de “semba”.

Filho legítimo das danças africanas, especialmente dos povos de língua banto, o samba veio dos batuques e lundus. Onde se plantava cana, tabaco, algodão, café e minas de ouro, havia negros e onde havia negros, havia dança e música, lembra Carneiro. Assim, os batuques foram se espalhando pelo país e se misturando com sonoridades e danças dos portugueses e dos índios, dando origem ao coco (no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas), ao jongo (no Rio, São Paulo, Minas e Goiás) e ao samba (no Maranhão, Bahia, Guanabara e São Paulo), afirma o pesquisador.

Considerado obscena, ofensivo, os sambas eram vistos como locais de orgia e bebedeira, dignos da mais severa perseguição. Apesar de tudo, o samba sobreviveu. Os negros eram a maioria da população e o samba, a forma que eles conheciam de celebrar, se divertir, brincar. E apesar da base africana, o samba é natural do Brasil, onde descobriu novos instrumentos, coreografias e sotaques.

Os pesquisadores são unânimes em afirmar que o centro de tudo, o local onde o samba ganhou vida foi no recôncavo baiano, onde a música estava nas plantações, na pesca, na hora de construir, no lazer. O samba, naquela época cadenciava o trabalho. O coração do samba no recôncavo é a região que inclui Santo Amaro, Acupe, Santiago do Iguape e Cachoeira. E foi de Cachoeira que saiu Hilária Batista de Almeida, ou Tia Ciata, a mulata baiana que, no começo do século XX, ensinou o Brasil a sambar. Ela promovia em sua casa festas onde estava presentes os grandes músicos da época e foi lá que surgiu “Pelo Telefone”, o samba que lançaria no mercado fonográfico um novo gênero musical. A gravação de Donga foi em 1917, mas antes dele, em 1902, o santo-amarense Baiano foi o responsável pela primeira gravação feita no Brasil, o lundu “Isto é Bom”, do baiano Xisto Bahia. A partir daí o samba se espalhou por todo o país.

Há várias vertentes do samba como o choro, um samba em forma de canção, ou a bossa nova, ritmia do samba a serviço do requinte melódico da região. O samba de roda foi a grande fonte de inspiração do pagode baiano, assim como o samba duro e o pagode carioca.

Depois que a Unesco reconheceu o samba de roda como Obra-prima do Patrimômnio Oral e Imaterial da Humanidade, todas as atenções se voltaram para essa expressão cultural que, desde os tempos da escravidão, floresce no entorno da Baía de Todos os Santos. O samba de roda do Recôncavo Baiano sobrevive em dezenas pequenas comunidades interioranas, sendo a principal manifestação folclórica nas datas festivas, comemorações do dia a dia ou nos batuques que animam o encontro de amigos nos butecos.

“Desde que o Samba é Samba”, composição do mano Caetano diz: “A tristeza é senhora,/Desde que o samba é samba é assim/A lágrima clara sobre a pele escura,/a noite e a chuva que cai lá fora/Solidão apavora,/tudo demorando em ser tão ruim/Mas alguma coisa acontece,/no quando agora em mim /Cantando eu mando a tristeza embora//O samba ainda vai nascer,/O samba ainda não chegou/O samba não vai morrer,/veja o dia ainda não raiou//O samba é o pai do prazer,/o samba é o filho da dor/O grande poder transformador”.

Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Roberto Mendes e outros artistas baianos já se renderam à beleza do ritmo tendo gravado vários samba de roda. De raiz africana, era a diversão dos escravos e se subdivide em vários formatos como a chula, o samba de corrida, o de parada, de quadra, o samba duro, entre outros. O samba não é apenas um ritmo, é algo mais que uma simples música, ele evidencia o sentimento de um povo, uma espécie de herança que passa de gerações a gerações sendo, portanto, um conjunto de emoções.

O poeta Vinícius de Moraes sintetizou, com extrema felicidade, a origem do samba brasileiro, seu compromisso com a herança africana e as contribuições que lhe foram trazidas pela cultura européia, ao dizer que “o samba nasceu lá na Bahia e se hoje é branco na poesia, ele é negro demais no coração...”.E Zé Keti completa: “Eu sou o samba/A voz do morro sou eu mesmo sim senhor/Quero mostrar ao mundo que tenho valor/Eu sou o rei do terreiro/Eu sou o samba/Sou natural daqui do Rio de Janeiro/Sou eu quem levo a alegria/Para milhões de corações brasileiros/Salve o samba, queremos samba/Quem está pedindo é a voz do povo de um país/Salve o samba, queremos samba/Essa melodia de um Brasil feliz”. (Gutemberg Cruz)

01 dezembro 2006

Música & Poesia

Agora Eu Quero A Verdade (Sérgio Britto)

Eu sei que governar faz mal pros seus princípios
Dizem que a carne é fraca e que o poder corrompe
Eu sei que governar é o que sustenta o vício
Dizem que a carne é fraca e homem é lobo do homem
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade

Conheça o novo presidente, igual ao velho presidente
Conheça o novo dirigente, igual ao velho dirigente

O velho igual
Igual ao novo, igual
Igual ao velho, igual
Igual ao moço, igual, igual
À esquerda a porta do banheiro, a serviço do dinheiro

Meus heróis estão no poder
meus inimigos não são quem eu pensava ser
Meus heróis estão no poder
Basta estar vivo pra poder viver

Eu sei que governar faz mal pros seus princípios
O que não mata engorda e o poder corrompe
Eu sei que governar é o que sustenta o vício
O que não mata engorda e homem é lobo do homem
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade

Conheça o novo burocrata, igual ao velho burocrata
Conheça o novo tecnocrata, igual ao velho tecnocrata

O reto igual
Igual ao torto, igual
Igual ao limpo, igual
Igual ao porco, igual, igual
À esquerda a porta do banheiro, você conhece pelo cheiro

O velho igual,
Igual ao novo, igual
Igual ao velho, igual
Igual ao moço, igual, igual
O reto igual
Igual ao torto, igual
Igual ao limpo, igual
Igual ao porco, igual,igual



Traduzir-se (Ferreira Gullar)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?