30 abril 2008

Depressão, a doença do século

Até bem pouco tempo pairava uma enorme confusão sobre o que atualmente se conhece pelo nome de depressão. Confundida com as crises de tristeza naturais e passageiras, ora com a manifestação de algum recôndito mal orgânico, a depressão nunca fora abordada de forma correta pela medicina. Não se acreditava tratar-se de um tema da Medicina, mas sim da Psicologia e até da espiritualidade. Muitos pacientes eram tratados como portadores de uma doença mental e, portanto, candidato a choques elétricos num hospício. Outros eram submetidos a sessões de psicanálise que poderiam, durar décadas sem fornecer alívio.

Considerada a doença do final do século passado, a depressão pode ser diagnosticada pela ocorrência combinada de quatro ou mais sintomas típicos que, juntos, durem, no mínimo, duas semanas: insônia, irritabilidade, fixação no suicídio e perda de apetite. Assim, a depressão tem fundo orgânico e acomete de 10 a 15 milhões de brasileiros em alguma fase da vida. Preocupado com a extensão da patologia, um grupo de psiquiatras de São Paulo – depois de cinco anos de estudos – decidiu caracterizar a depressão como uma alteração da velocidade dos processos mentais (raciocínio, memória, atenção e cognição), que se tornam lentos, associados à diminuição do ritmo de vida. O doente abandona o trabalho, fica muitas horas deitado ou sentado e tem poucas atividades.

A psiquiatra Florence Kerr-Corrêa, junto com os psiquiatras Giordano Estevão e Carol Sonenreich lançaram no início dos anos 90 o livro “Debate sobre o Conceito de Doenças Afetivas”, no qual propõem um tratamento mais preciso para o fenômeno. O tratamento sugerido pelo grupo inclui o uso de antidepressivos voltados para a normalização da velocidade dos processos psíquicos e o uso da psicoterapia para a recuperação do ritmo de vida do paciente. Para o psiquiatra baiano César Romero, a depressão “está ligada ao relacional, ou seja, às relações interpessoais. As pessoas reagem depressivamente às situações no casal, no social, no familiar, no profissional e também na compreensão do seu próprio eu. Nessa compreensão do seu próprio eu, seria uma relação intrapessoal, enquanto as outras interpessoal. As pessoas se deprimem muitas vezes por não conseguirem atingir suas expectativas, por errarem e não aceitarem o próprio erro, por não conseguirem concluir metas, não serem suficientemente fortes, não buscam ajuda e apressarem-se até a exaustão”.

Segundo o psiquiatra, a depressão é uma emoção chamada tristeza. Que toda vez que a gente expressa através do choro, melhora. Em casos graves é necessário o uso de medicação, especialmente quando pensa em suicídio. É bom lembrar que a falta de credibilidade dos políticos atualmente, a corrupção infestando o país e a violência geral fazem com que as pessoas percam as esperanças e aumentam muito os casos de depressão. As relações humanas se deterioraram muito através dos tempos.


Num país em que a tristeza é um substrato forte da cultura nesses tempos de crise e alta taxa de desemprego, cresce cada vez mais a depressão na população. Que o digam seus poetas e compositores. Em “Circulado”, Caetano Veloso retrata a desconstrução de um país esquizofrênico, de realidades divididas. “A mais triste nação na época mais podre compõem-se de possíveis grupos de linchadores”, canta. Já o grupo Legião Urbana distribuiu doses melancólicas em seu disco V. Renato Russo compôs letras onde menciona drogas, tristeza e melancolia: “Antes eu sonhava, agora já não durmo”.

A partir dos anos 80 a depressão virou moda e cresceu o consumo de antidepressivos. A AIDS surgiu como nova causa orgânica da doença e aumentaram os fatores psicossociais que podem, levar alguém a ficar deprimido, como a perda do emprego, da posição social e do poder aquisitivo. Com a difusão da doença, expressões como “estar de baixo astral” ou “deprê” incorporaram-se ao cotidiano fomentando o modismo. Mas os médicos alertam a diferença entre a pessoa se sentir desanimada, triste, entediada, deprê pela depressão onde a pessoa não quer viver mais. Enquanto no estado depressivo passageiro a pessoa sozinha pode sair dessa situação, na depressão o doente não consegue, pois a doença o domina. O melhor tratamento é o acompanhamento médico com orientação familiar.

Quando se torna crônica, a depressão fere forte – e nos períodos de crise elimina toda a criatividade. Depressivos ilustres foram, por exemplo, o compositor russo Tchaikósvski, o presidente americano Abraham Lincoln, o filósofo marxista francês Louis Althusser, a escritora inglesa Virginia Woolf, o escritor mineiro Pedro Nava, o escritor Charles Bukowski, a atriz Marilyn Monroe e o romancista brasileiro Graciliano Ramos. O romancista e ensaísta norte americano William Styron (autor de A Escolha de Sofia) conta em seu livro “Perto das Trevas”, como se curou da depressão que quase o levou ao suicídio. No livro ele defende os remédios antidepressivos com cautela, as terapias e até a hospitalização em, casos extremos, como o dele. Aos que sofrem com a depressão, aconselha: “Agüente firme”.


Até segunda-feira, dia 05 quando estarei retornando para falar de linguagem proibida, mordaça, loucura e outras temáticas. Bom feriado!

29 abril 2008

O mar da vida (2)

“O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”. Há um registro de poesia popular no pior momento da seca de 1887, na Paraíba que diz: “É-me preciso mudar/ Da terra que amo e moro/Terra que muito adoro,/ A minha pátria natal/Magino na beira-mar,/ Me entristece o coração,/Lagadiço, lameirão,/Pois a fome não é peca,/Nesta tão terrível seca,/ Foge, povo do sertão!” Os compositores Sá e Guarabira profetizaram: Vão mexer no rio São Francisco. “O homem chega já desfaz a natureza/Tira gente põe represa, diz que tudo vai mudar /O São Francisco lá pra cima da Bahia/ Diz que dia menos dia, vai subir bem devagar/E passo a passo, vai cumprindo a profecia/ Do beato que dizia que o sertão ia alagar/O sertão vai virar mar/ Dói no coração/ o medo que algum dia/O mar também vire sertão”.

A água potável é um recurso finito, que se reparte desigualmente pela superfície terrestre. Em seu ciclo natural a água é um recurso renovável, mas suas reservas não são ilimitadas. Diversos especialistas têm alertado que, se o consumo continuar crescendo como nas últimas décadas, todas as águas superficiais do planeta estarão comprometidas daqui a alguns anos. A carência de água é resultado da combinação de efeitos naturais, demográficos, sócio-econômicos e até culturais. Chuvas escassas, alto crescimento demográfico, desperdício e poluição de mananciais se combinam para gerar uma situação denominada de “estresse hídrico”.

A escassez de água em áreas do mundo, especialmente no Oriente Médio, tem feito surgir tensões geopolíticas geradas por conta da disputa pelo domínio e utilização de fontes de água, especialmente rios, quando estes atravessam regiões de vários Estados. Um dos pontos da explosiva Questão Palestina diz respeito à utilização das fontes hídricas existentes na Cisjordânia, região localizada junto ao baixo vale do rio Jordão. Síria, Iraque e Turquia há muito tempo vêm tendo desavenças sérias no que diz respeito à utilização das águas dos rios Tigre e Eufrates, que têm suas nascentes em território turco mas, que cruzam áreas dos outros dois países. Muitos especialistas já chegam a afirmar que os eventuais conflitos que ocorrerem no Oriente Médio ao longo do século XXI serão causados cada vez mais pela água e cada vez menos pelo petróleo.

Apesar de 75% da superfície do planeta ser recoberta por massas líquidas, a água doce não representa mais que 3% desse total. O problema é que apenas um terço da água (presente nos rios, lagos, lençóis freáticos superficiais e atmosfera) é acessível. O restante está imobilizado nas geleiras, calotas polares e lençóis freáticos profundos. Atualmente cerca de 50% das terras emersas já enfrentam um estado de penúria em água. De cada cinco seres humanos, um está privado de água de boa qualidade para consumo e cerca de metade dos habitantes do planeta não dispõe de uma rede de abastecimento satisfatória. Ao longo do século XX, a população mundial foi multiplicada por três, as superfícies irrigadas por seis e o consumo global de água por sete. Ao mesmo tempo, nas últimas cinco décadas, a poluição dos mananciais reduziu as reservas hídricas em um terço.

Os recursos disponíveis atualmente poderiam ser utilizados de forma mais eficaz se fossem reduzidas a poluição, desenvolvidos processos de reciclagem das águas, houvesse uma melhor conservação das redes de distribuição, fosse evitado o desperdício e aceleradas as pesquisas sobre culturas agrícolas menos exigentes à água e mais tolerantes ao sal. A dessalinização da água do mar só é realizada em poucos países e, mesmo assim, as quantidades obtidas não cobrem as grandes necessidades.

Quatro grandes bacias hidrográficas – Amazônica, Tocantins-Araguaia, São Francisco e Paraná - são responsáveis por 85% de nossa produção hídrica. Apesar do Brasil possuir abundância de águas superficiais, esses recursos hídricos não estão distribuídos eqüitativamente pelo território. A aparente abundância de água no Brasil tem sustentado uma cultura de desperdícios, enquanto legitima a carência de investimentos em programas de uso e proteção de mananciais.

O Brasil celebrou em janeiro deste ano uma década de sanção da Lei das Águas, que criou a Política Nacional de Recursos Hídricos. Um dos poucos centros dessa lei – inspirada no modelo francês, que permite a administração participativa e descentralizada dos recursos hídricos – estabelece que a gestão deve ser realizada por bacia hidrográfica e que a água passa a ter valor econômico. Na opinião de especialistas no tema, mesmo com a vigência por dez nos da Lei das Águas, atualmente a gestão dos recursos hídricos no Brasil ainda é incipiente. Uma das principais falhas apontadas se refere à pequena participação pública nos comitês de bacias.

“E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/vê-la desfiar seu fio,/ que também se chama vida,/ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/mesmo quando é assim pequena/ a explosão , como a ocorrida;/mesmo quando é uma explosão/ como a de pouco, franzina;/mesmo quando é uma explosão/ de uma vida severina” (Morte e Vida Severina:auto de Natal pernambucano,de João Cabral de Melo Neto)

28 abril 2008

O mar da vida

A vida começou no mar, o local das nossas origens. O mar, o oceano, as águas salgadas, os rios doces que nos separam e nos unem para fora e para dentro de nossas identidades múltiplas e únicas. Não dá para esquecer o mar de Fernando Pessoa (“Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!”), dos jangadeiros do nordeste, de Caymmi (“O mar quando quebra na praia/É bonito, é bonito”), o mar dos navegadores portugueses, o mar de Castro Alves e de Gonçalves Dias, o mar de João Bosco (“Sou caçador de tesouros/Nas minas do mar”), o mar de Chico Buarque (“Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar”), e de Tom Jobim (“O resto é mar, é tudo que não sei contar/São coisas lindas que eu tenho pra te dar”), o mar morte de Jorge Amado e o vivo de Gabriela, cravo e canela e o mar mito da origem e da consumação, o mar de Camões.

A superfície do planeta Terra é recoberta por uma imensa massa líquida (cerca de 71%) que alguns chamam de oceano mundial, tradicionalmente dividido em entidades geográficas menores - o Pacífico, o Atlântico, o Índico, o Ártico. Cada um deles engloba diversas porções menores, os mares, delimitados normalmente por ilhas ou por recortes do litoral. Os oceanos desempenham papel crucial no equilíbrio natural da Terra, especialmente por atuarem como reguladores térmicos. As influências oceânicas diretas sobre as áreas continentais, de maneira geral, não chegam além dos 100 quilômetros da costa. Contudo, é justamente nas áreas distantes até cerca 60 quilômetros do litoral que se concentra perto de 75% da população mundial. Tudo o que ocorre nos oceanos, inclusive as diversas formas de poluição, interessa direta ou indiretamente à maioria da humanidade.

Os oceanos são locais de passagem, de contatos comerciais e culturais e também fontes de recursos bastante diversificados. A tradicional atividade pesqueira e a extração do petróleo têm se verificado de forma cada vez mais intensa. Em função da importância econômica dessas riquezas, a exploração dos espaços marítimos constitui, cada vez mais, objeto de competição internacional. Em várias regiões do mundo ocorrem disputas de soberania sobre áreas oceânicas. Gregos e turcos, há décadas, discutem a soberania sobre espaços marítimos do Mar Egeu, que abriga sob a plataforma continental importantes jazidas petrolíferas. Ilhas oceânicas também são focos de disputa: a China e outros quatro países do Sudeste Asiático disputam a posse de alguns arquipélagos do Mar da China Meridional. As Ilhas Curilas são, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foco de controvérsias entre Rússia e Japão. O arquipélago das Malvinas (ou Falkland) foi o epicentro da guerra que envolveu a Grã Bretanha e a Argentina, em 1982.

Durante muito tempo o homem acreditou que os oceanos pudessem ser uma espécie de "lixeira" do planeta. As imensas massas líquidas dos oceanos seriam capazes de "digerir" a sujeira e o lixo lançados por cidades e indústrias. No último século, contudo, o desenvolvimento urbano-industrial e o acelerado crescimento demográfico geraram quantidades extraordinárias de dejetos orgânicos e inorgânicos. A continuidade do lançamento de dejetos nos oceanos poderá comprometê-los seriamente, como fonte de alimentos e área de lazer para as gerações futuras.

A ação do homem sobre a natureza muitas vezes tem sido nefasta, causando problemas graves não só para o meio ambiente mas também para as próprias sociedades humanas. Um dos maiores desastres ambientais e humanos que se tem notícia vem se verificando nas últimas décadas na Ásia Central, mais especificamente nas regiões próximas do mar de Aral. Esse mar, que na verdade é um lago, abrange terras do Casaquistão e do Usbequistão, duas repúblicas que, até 1991, faziam parte da extinta União Soviética. Em língua turca, o Aral é comparado à uma ilha: “uma ilha de água num mar de desertos”. O recuo da superfície do mar foi deixando em seu leito seco milhares de hectares de áreas desérticas, recobertas por sais que os ventos dispersam por uma vasta região. A água residual do mar, assim como aquela do curso inferior dos rios tiveram seu teor de sal aumentado assim como a carga de resíduos químicos e bacteriológicos fruto da utilização abusiva de adubos, pesticidas e desfolhantes químicos.

À catástrofe ambiental, aliou-se a decadência econômica e social da região que já figurava como uma das mais pobres de toda a ex-URSS. Mais de um milhão de pessoas já estão ou estarão expostas à ameaças de poluição tóxica, resultantes de uma múltipla contaminação química em seus corpos. Dentre os habitantes da região, as mulheres e as crianças são as mais afetadas. Nos últimos 20 anos houve um aumento brutal de doenças que atacam os rins, o fígado, especialmente câncer, como também um incremento desmesurado de doenças artríticas e bronquite crônica. A independência das repúblicas da antiga Ásia Central soviética em 1991, acendeu esperanças de melhora da situação. Os programas de assistência colocados em prática, especialmente por organizações internacionais, todavia, surtiram pouco efeito. Contudo sua presença tem possibilitado alertar a opinião pública internacional para a situação dramática vivida pelas populações atingidas pela catástrofe, vítimas de políticas econômicas absurdas postas em prática por governos autoritários.

25 abril 2008

Mallarmé

Há 110 anos morria o muso dos poetas brasileiros: Stéphane Mallarmé (1842/1898). O poeta francês nunca visitou o Brasil, mas exerceu uma grande influência entre os brasileiros. A geração do começo do século XX – a dos simbolistas como Maranhão Sobrinho, Alphonsus de Guimarães, Emiliano Perneta ignorou a parte revolucionária da poesia de Mallarmé, preferindo poemas parnaso-simbolistas das primeiras fases, como “Aparição”, tomando emprestado do mestre apenas as imagens metafísicas e a forma do soneto. Os poetas modernistas também leram o francês. Mário de Andrade citou em “Paulicéia Desvairada”, Guilherme de Almeida traduziu em “Brisa Marinha”, Manuel Bandeira homenageou num ensaio por ter feito da própria poesia o tema privilegiado de seus poemas. Mallarmé ainda influenciou Drummond de “Claro Enigma” e João Cabral de “Pedro do Sono” e “Psicologia da Composição”.


Brinde

Nada, esta espuma, virgem verso

A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;


Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde


Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
um branco afã de nossa vela.



Cansado do repouso amargo

Uma linha de azul fina e pálida traça
Um lago, sob o céu atrás da nuvem clara
Molha no vidro da água um dos cronos aduncos,
Junto a três grandes cílios de esmeralda, juncos.



Os concretistas beberam do Mallarmé inventor da poesia visual, que privilegia as interrupções, triturando a sintaxe, abolindo a pontuação. Que radicalizou o poema concebendo-o como objeto visual e não apenas para ser ouvido. Ele quebrou o verso, explodindo palavras e imagens no branco da página. Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos foram influenciados e lançaram até um livro com traduções de poemas como “A Tumba de Edgar Allan Poe”, “O Brinde” e “Um Lance de Dados”. A geração dos anos 70 também recebeu influências do poeta francês. Ana Cristina César, Paulo Leminski, Armando de Freitas Filhos e muitos outros.

O Acaso

Cai
a pluma
rítmico suspense do sinistro
nas espumas primordiais
de onde há pouco sobressaltara seu delírio a um cimo fenescido
pela neutralidade idêntica do abismo



Fosse

Seria
pior
não
mais nem menos
indiferentemente mas tanto quanto


A Vendedora de Roupas

O olho vivo com que vês
Até o seu conteúdo
Me aparta de minhas vestes
E como um deus vou desnudo

Ao reinventar a poesia como enigma, Mallarmé rompeu com o didatismo, passou a sonhar com leitores refinados e tornou-se poeta para poetas. “Eu procuro o poema como um mistério em que o leitor deve procurar a chave”. Sua marca está na obra de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro

POESIA

Toda alma que a gente traça
lenta, no ar, em resumidos
vários anéis de fumaça
noutros anéis abolidos

atesta qualquer cigarro
por pouco que separado
fique da cinza e do ssaro
seu claro beijo inflamado.

Assim o coro dos poemas
dos lábios voa sutil.
A realidade, não temas,
excluí-la, porque é vil.

A exatidão torna impura
tua vaga literatura.

24 abril 2008

Caymmi, “ilimitado como o oceano que ele canta”

Sua poesia é de essências, precisa e substantiva. Clara e doce. Bonita e sensual como as mulheres que canta, com um misto de malícia e delicadeza. E em linguagem e dicção tão populares quanto os personagens que recriou. Seu estilo inimitável de compor e cantar influenciou várias gerações de músicos brasileiros. Importantes homenagens dentro e fora do Brasil marcaram os anos 80 para Caymmi. Em 1984, no seu septuagésimo aniversário, ele foi condecorado em Paris pelo ministro da cultura francês, Jack Lang, com a Comenda das Artes e Letras da França, atribuída a importantes personalidades culturais. No ano seguinte, inaugurou-se em Salvador a Avenida Dorival Caymmi.

“Mangueira vê no céu dos orixás/o horizonte rosa/no verde do mar/a alvorada veste a fantasia/pra exaltar Caymmi e a velha Bahia/ô ô ô/quanto esplendor/nas igrejas soam hinos de louvor/e pelos terreiros de magia/o ecoar anuncia o novo dia/nessa terra fascinante/a capoeira foi morar/o mundo se encanta(bis)/com as cantigas que fazem sonhar (bis)/lua cheia/leva a jangada pro mar/oh! sereia
como é belo o seu cantar/das estrelas/a mais linda tá no Gantois/Mangueira berço do samba/ Caymmi a inspiração/que mora no meu coração/Bahia terra sagrada/de Iemanja e Iansan/Mangueira super campeã/tem xinxim e acarajé/tamborim e samba no pé (bis)” (Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira tem, letra de Lvo, Paulinho e Lula). Em 1986, no Rio, o artista virou enredo da Estação Primeira de Mangueira, com o qual a escola de samba venceu o desfile do carnaval daquele ano. Caymmi foi o primeiro baiano a ganhar o Prêmio Jorge Amado. O compositor foi escolhido por unanimidade para receber o Prêmio Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte, edição 2006, dedicado à música popular brasileira.

Tem muitos compositores que lhe homenagearam. Na canção “Nação”, João Bosco, Aldir Blasnc e Paulo Emílio cantam “Dorival Caymmi falou para Oxum/com Silas tou em boa companhia/o céu abraça a terra/deságua o Rio na Bahia”. Em “Buda nagô”, Gilberto Gil revela: “Dorival é um buda nagô/filho da casa real da inspiração/como príncipe principiou/a nova idade da canção”. Toquinho e Vinícius de Moraes em “Tarde de Itapoã” entoavam: “Depois, na praça Caymmi,/sentir preguiça no corpo/e,numa esteira de vime,/beber uma água de coco”.

“Acho o Caymmi ilimitado, como o oceano que ele canta”, definiu Tom Jobim. Já o escritor e amigo Jorge Amado o pintou como “o cantor das graças da Bahia”. Ele foi um dos primeiros compositores a gravar suas próprias canções, numa época em que o habitual era o autor entregar a música para um cantor. Antonio Carlos Jobim lhe admira as modulações de meio-tom. Baden Powell foi buscar nele a base dos sambas-afros. Edu Lobo se ouve nas músicas do baiano. O segredo da linguagem musical de Caymmi, segundo o crítico Luís Antônio Giron (Suplemento Mais, abril 1994) está na simplicidade e na funcionalidade. “Foi autodidata. Começou a tocar violão alterando os acordes perfeitos (dos quais se compõe o sistema tonal), introduzindo dissonâncias, arpejando as cordas com descontinuidade. Possuía na juventude a intuição do artesão, aquele eu redescobre e encena nos dedos a história do som.

“Afastou-se desde o início com a quadratura do samba e da canção porque adotou o único método que tinha à disposição: o modalismo (sistema baseado em escalas diversas) típico da música baiana. Soube dar leveza às cantigas do candomblé e absorveu o espírito da música da cidade”. Em 1992 Chico Buarque compôs e gravou “Paratodos” onde em um trecho canta: “Nessas tortuosas trilhas/a viola me redime/creia, ilustre cavalheiro/contra fel, moléstia, crime/use Dorival Caymmi/vá de Jackson do Pandeiro”.

Já a homenagem de Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro está em “Oba de Xangô”. Diz a letra: “Caymmi é um criador abençoado/navegador das águas da canção/é o compositor do mar predestinado/seu violão tem cordas de sargaço/e foi cortado de um pedaço de uma velha embarcação//Caymmi é um deus do mar reencarnado/por isso que seu canto é uma oração/e para quem descobre o som ele é sagrado/o vento é que lhe sopra melodia/estrela dalva, poesia/e a voz é de arrebentação//Caymmi tem espuma no cabelo/e o seu olhar é o sete estrelo/que a três filhos já criou/guardião das tuas lendas, pescador/pintor do que compõe um cantador//Caymmi é o rei do mar, é o soberano/cavaleiro do oceano, Iemanjá que coroou//De todas as marés sabe o segredo/é o canoeiro de São Pedro/o Oba mais velho de Xangô”.

“É tarde/A manhã já vem/Todos dormem/A noite também/Só eu velo/Por você, meu bem/Dorme anjo/O boi pega Neném/Lá no céu/Deixam de cantar/Os anjinhos/Foram se deitar/Mamãezinha Precisa descansar/Dorme, anjo/Papai vae lhe ninar/"Boi, boi, boi,/Boi da cara preta/Pega essa menina/Que tem medo de careta" Acalanto (Dorival Caymmi)

23 abril 2008

É preciso ser paciente

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/até quando o corpo pede um pouco mais de alma/a vida não pára//Enquanto o tempo acelera e pede pressa/eu me recuso faço hora vou na valsa/a vida é tão rara//Enquanto todo mundo espera a cura do mal/e a loucura finge que isso tudo é normal/eu finjo ter paciência//O mundo vai girando cada vez mais veloz/a gente espera do mundo e o mundo espera de nós/um pouco mais de paciência//Será que é o tempo que lhe falta pra perceber/será que temos esse tempo pra perder/e quem quer saber/a vida é tão rara (tão rara)”. A composição de Lenine e Dudu Falcão é precisa. Fala de uma virtude de manter controle emocional, sem perder a calma.

O famoso ditado “a pressa é inimiga da perfeição” nunca fez tanto significado como agora. Para viver e conviver em sociedade é preciso mesmo ter paciência: afinal, cada pessoa está preocupada em satisfazer as suas próprias vontades, os seus desejos e nem sempre o que uma pessoa deseja é o que a outra deseja e vice-versa. Além disso, é preciso ter a paciência de esperar que as coisas aconteçam da forma como devem acontecer, que nem sempre o tempo que desejamos e esperamos é o tempo de algo acontecer. Para entendermos as vantagens de sermos pacientes, basta observar a natureza. Tudo nela tem o seu tempo certo: o de arar, o de semear, o de impedir que as ervas daninhas sufoquem as sementes e o de colher.

Pessoas impacientes, em geral, não sabem lidar com limites, costumam vir de famílias que, por excesso ou falta de amor, sempre satisfizeram as suas vontades enquanto crianças. São pessoas que não aceitam um não como resposta, justamente porque não aprenderam dentro de casa a lidar com este limite. Atualmente estamos sempre correndo, agitados, sempre sendo cobrados a fazermos algo imediatamente, sem muito tempo para pensar. Há determinadas situações que, ou decidimos de imediato ou perdemos a chance de algo bom para nós mesmos, embora, em geral, na maioria das vezes em que agimos por impulso ou por impaciência, costumamos ter mais derrotas, erros e sofrimento do que vitórias ou acertos.

Apesar da paciência e da serenidade se mostrarem importantes no desenrolar da vida dos seres humanos, algumas pitadas de inquietação, insatisfação e até da própria impaciência podem ser ingredientes vitais na confecção da receita de uma carreira profissional e de uma vida pessoal mais apimentada, fora da rotina e da acomodação. Alguns psicólogos alertam que a paciência “pode mascarar a submissão ou o conformismo. Há pessoas que passam a vida em busca da solução perfeita, anos e anos arquitetando um plano perfeito que nunca se concretiza, enquanto outras, por impulso, acabam por agir de forma impaciente e resolvem o problema”. Portanto, vale a pena dosar a paciência para trazer benefícios à sua vida.

A paciência, virtude de pessoas muito especiais, atributo dos santos, é, muitas vezes, confundida com preguiça. Uma caracteriza-se por saber esperar, tanto para agir, quanto para colher os frutos dessa ação. Outra é a inação, a espera que os outros façam por nós o que deveria ser da nossa competência. É o não fazer. O filósofo Jean-Jacques Rousseau já dizia que “a paciência é amarga, mas seus frutos são doces”. Às vezes, é necessário muito tempo para os resultados começarem a aparecer. Prepare-se para lidar com a demora nos resultados e habitue-se a encarar as suas conquistas em médio e longo prazos.

Já Edmundo Burke refletia: “A paciência traz mais frutos do que a força"."Esperança é a paciência com a lâmpada acesa”. A frase é de Tertuliano. "Os mais fortes de todos os guerreiros são estes dois — Tempo e Paciência." (Leo Tolstoi). E John Dryden recomendava: "Tenha cuidado com a fúria de um homem paciente”. E Leonardo da Vinci chegou a uma conclusão: "A paciência serve de proteção contra injustiças como as roupas contra o frio. Se você veste mais roupas com o aumento do frio, este não terá nenhum poder para feri-lo. De forma idêntica você deve crescer em paciência quando se encontra em grandes dificuldades e elas serão impotentes para atormentar a sua mente". A paciência está em falta no mercado.

22 abril 2008

Mais importante do que a felicidade, é a alegria de estar vivo

À Procura da Felicidade é o novo filme com Will Smith (de “Eu, Robô”, “Bad Boys 1 e 2”), dirigido pelo italiano Gabriele Muccino. O filme se baseia na história verídica de um desempregado e sem-teto aos trinta de idade, ele vivia com o filho em um banheiro de São Francisco quando decidiu se empenhar no objetivo de virar um banqueiro. Primeiro por meio de estágios e empregos menores. Aos poucos, criou a sua própria empresa de especulação financeira e investimentos. Aos poucos, enriqueceu. A Felicidade Não Se Compra, foi outro sucesso na tela. Filme de Frank Capra (1946). Em 1998 o cineasta Todd Solondz lançava Felicidade. O título resume muito bem a intenção do filme de explorar a hipocrisia, a falsidade, os contrastes. Tudo para provar que não há fórmula infalível na busca desse tão almejado “estado de contentamento”. Quanto maior a ilusão de felicidade, maior a decepção. Avassalador.

Vivemos mais e melhor mas não somos mais felizes do que nossos antepassados. Isso porque a felicidade era algo, para nossos antepassados, que acontecia e não um produto de nossas vontades. Quem busca uma alegria contínua e soberana, ou a ausência total de sofrimento, certamente nunca será feliz. É preciso amar a vida, mesmo quando ela é difícil. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844/1900) falava em alegrar-se com o que é, e não esperar o que não é. Conhecer, mais que crer. Amar e agir, mais que esperar e temer. Para o pensador francês André Comte-Sponvillle (autor do livro “Felicidade, Desesperadamente”), “ser feliz é desejar o que temos, ou o que é. Esperar é ter medo. Ser feliz é ser sereno. O conteúdo da felicidade é a alegria. Não há alegria maior que amar. Amar é contentar-se com o que existe. A única felicidade está dentro da verdade” . Eis um trecho de seu pensamento:

“Portanto a felicidade é a meta da filosofia. Para que serve filosofar? Serve para ser feliz, para ser mais feliz. Mas, se a felicidade é a meta da filosofia, não é sua norma. O que entendo por isso? A meta de uma atividade é aquilo a que ela tende; sua norma é aquilo a que ela se submete. Quando digo que a felicidade é a meta da filosofia mas não sua norma, quero dizer que não é porque uma idéia me faz feliz que devo pensá-la – porque muitas ilusões confortáveis me tornariam mais facilmente feliz do que várias verdades desagradáveis que conheço. Se devo pensar uma idéia, não é porque ela me faz feliz (senão a filosofia não passaria de uma versão sofisticada, e sofística, do método Coué: trata-se de pensar ‘positivo’, como se diz, em outras palavras ludibriar-se). Não, se devo pensar uma idéia é porque ela me parece verdadeira”.

“A felicidade é a meta da filosofia mas não é a sua norma, porque a norma da filosofia é a verdade, pelo menos a verdade possível (porque nunca a conhecemos por inteiro, nem absolutamente, nem com total certeza), o que chamaria de bom grado, corrigindo Spinoza por Montaigne, a norma da idéia verdadeira dada ou possível. Trata-se de pensar não o que me torna feliz, mas o que me parece verdadeiro – e fica a meu encargo tentar encontrar, diante dessa verdade, seja ela triste ou angustiante, o máximo de felicidade possível. a felicidade é a meta; a verdade é o caminho ou a norma. Isso significa que, se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade – felizmente, o problema nem sempre se coloca nesses termos, só às vezes –, se o filósofo puder entre uma verdade e uma felicidade, ele só será filósofo, ou só será digno de sê-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria”.

Blaise Pascal, físico, matemático e filósofo francês, escreveu no século XVII: "A felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar". Querer ser feliz é uma lei natural da alma humana. Ou, como diz outro filósofo francês, atual, Pascal Bruckner, é uma réplica moral da lei da gravidade. Dinheiro, prestígio, sexo e tudo mais que julgamos ser a nossa felicidade é transitório. As circunstâncias mudam e com elas, na maioria das vezes, os nossos humores. Além de misteriosa, portanto, a felicidade é talvez a coisa mais fugidia deste mundo.

"A melhor maneira de definir felicidade é vê-la não como um estado (prazer ou bem-estar, por exemplo), mas como um modo de vida, o que implica o exercício de determinadas capacidades, a realização de nossas potencialidades", diz o doutor em filosofia Cláudio Reis, da Universidade de Brasília. "O problema é saber o que exatamente compõe esse modo de vida, algo impossível de ser reduzido a uma fórmula”.

“No século XVIII, felicidade já deixara de ser um direito para se tornar um dever. Mas essa inversão de valores só se consolidou no século XX, depois de 1968, quando se fez uma revolução em nome do prazer, da alegria, da voluptuosidade. A partir do momento em que o prazer se torna o principal valor de uma sociedade, quem não o atinge vira um indivíduo fora-da-lei” revela o autor do livro “A Euforia Perpétua”, o romancista e ensaísta francês Pascal Bruckner. Ele questiona o dever de felicidade na sociedade ocidental, e exorta as pessoas a não se sentirem culpadas por não serem felizes. “Mais importante do que a felicidade, é a alegria de simplesmente estar vivo, de estar aqui na terra para esta aventura efêmera", diz Bruckner.

18 abril 2008

Música & Poesia

Um Índio (Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante
de uma estrela que virá numa velocidade estonteante
e pousará no coração do hemisfério sul
na américa num claro instante
depois de exterminada a última nação indígena
e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
mais avançado que a mais avançada
das mais avançadas das tecnologias
virá impávido que nem Muhamed Ali
virá que eu vi
apaixonadamente como Peri
virá que eu vi
tranqüilo e infalível como Bruce Lee
virá que eu vi
o axé do afoxé, Filhos de Gandhi
virá
um índio preservado em pleno corpo físico
em todo sólido , todo gás e todo líquido
em átomos, palavras, alma, cor,
em gesto, em cheiro, em sombra,
em luz, em som magnífico
num ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico
do objeto sim resplandecente descerá o índio
e as coisa que ele dirá , fará não dizer
assim de um modo explícito
virá impávido que nem Muhamed Ali
virá que eu vi
apaixonadamente como Peri
virá que eu vi
tranqüilo e infalível como Bruce Lee
virá que eu vi
o axé do afoxé, Filhos de Gandhi
virá

e aquilo que nesse momento se revelará aos povos
surpreenderá a todos não por ser exótico
mas pelo fato de poder estar sempre
estado oculto quando terá sido o óbvio.



A árvore da serra (Augusto dos Anjos)


— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

17 abril 2008

Limites da tolerância

Tolerância provém do latim tolerantia, que por sua vez procede de tolero, e significa suportar um peso ou a constância em suportar algo. O filósofo Tomás de Aquino disse que a tolerância é o mesmo que a paciência. Quem é forte é paciente, mas não vice-versa, pois a paciência é parte da fortaleza. A palavra tolerância surgiu nos conflitos religiosos do século 16, época das guerras religiosas entre católicos e protestantes. Nesse período muito se falou de tolerância religiosa, eclesiástica ou teológica. Hoje em dia também se tolera (pacientemente) em pontos que não são essenciais de uma determinada doutrina mesma que seja em detrimento da mesma, mas para uma melhor convivência social.

Já em meados do século 19, “maison de tolérance” era a casa ou zona de prostituição. Muitos toleravam esses locais procurando evitar, assim, a disseminação desses costumes em toda toda a sociedade. A partir daí a tolerância estendeu-se ao livre pensamento e, no século 20 passou a ser acordo internacional com intenção de ser exercida, através da Carta aos Direitos Humanos em 1948, também através de algumas ongs e de governos não totalitários.

Na medicina, a palavra tolerância é utilizada para significar a aptidão do organismo para suportar a ação de um medicamento, um agente químico ou físico. Assim, as diferentes espécies toleram de diferentes modos os microorganismos – alguns adoecem e morrem, outros nada ocorre. O nível de tolerância à radiação tem tal limite. A tolerância é o limite do desvio admitido dentro das características exatas de um objeto fabricado ou de um produto e as características previstas. Não são todos que suportam os medicamentos. Cada caso é um caso.

Num processo de tentativa e erro, as pessoas buscam soluções para viver consigo e com as demais. Tolerar é assim aceitar os limites, ser paciente. A paciência é justamente aceitar o desagradável, com bom humor. Muitas vezes tendemos a ser complacentes com os desvios de nossa conduta e implacáveis com os outros – não lhes damos o tempo necessário para mudar. A verdade é que somos limitados, e isto se manifesta no modo tosco que nos relacionamos com as pessoas. A distância que existe entre as pessoas, em parte é criada por cada um. Percebemos muitas vezes que com alguns, já num primeiro momento se consegue chegar perto, falar sem gritar ou mandar mensageiros, mas nem sempre é assim. É preciso usar a inteligência para encontrar o caminho da comunicação entre as pessoas.

Nossas limitações são patentes. Não somos o que queremos, não fazemos tudo que sonhamos, não temos o dom de estar onde desejamos. É dentro desses limites que nos movemos. Conhecer os limites pessoais e os outros é uma tarefa que dura toda a vida. A tolerância é uma das tantas virtudes necessárias para elevar o ser humano à condição de civilidade. S.P. Rouanet a vê “como passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das diferenças”. A tolerância deve ser um ato constante de prevenção e educação. Dessa forma é uma espécie de prevenção contra o dogmatismo, para que este não vire fanatismo (na dimensão pessoal), fundamentalismo (na dimensão religiosa) e totalitarismo (na dimensão de Estado ou de Governo).

Para muitos pensadores, a tolerância é uma virtude necessária para o exercício das coisas pequenas do cotidiano, um exercício necessário para se conquistar a sabedoria. A pessoa que se pretende possuir “a verdade”, ou melhor, “a certeza”, termina sendo intolerante em aceitar outros posicionamentos, se fechando a escuta de tudo que apresente diferente ou incompreensível ao seu esquema conceitual de fala e ação. Um exemplo é o moralista, in-tolerante com os que possuem valores diferentes do seu. Sabemos se tratar de um moralista quanto sofremos a imposição de seus valores, baseado em sua “certeza moral”. Ele, o moralista, carrega a ambição de impor a todos, universalizando seus valores como certos.

A tolerância deve ter limites? Para o escritor José Saramago, “a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se”. Nesse sentido, não se pode ser tolerante com a tortura, o estupro, a pedofilia, a escravidão, o narcotráfico, o terrorismo, a guerra. Já o filósofo Vladimir Jankélévich diz que “a tolerância não vale, pois, em certos limites, que são os de sua própria salvaguarda e da preservação de suas condições de possibilidade”. O filósofo Karl Popper questiona: “Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância”. Fica aí a pergunta para você leitor pensar: “Uma democracia deve ou não impor limites de tolerância tendo em vista a ânsia dos intolerantes pelo poder?.

16 abril 2008

Quem faz a ponte entre Estado e sociedade?

O Estado e a sociedade estão divorciados? Essa questão vem sendo discutida há muitos anos e para muitos estudiosos e pesquisadores, a origem do problema vem de Portugal, onde o condado nasce antes da sociedade portuguesa. Assim o Estado vampírico com seus agentes de monopólio explora a terra e seu povo, e do outro lado, a massa esgotada de explorados. Nessa situação a Igreja se envolve para que o povo se torne cada vez mais obediente. Assim o Estado mantêm seu domínio sobre as pessoas.

Foi dessa organização privilegiada entre a coisa pública e coisa privada responsáveis pelas crises, conflitos e perturbações por que passa o país constantemente. Com tudo controlado só restava ao povo um cipoal de leis a encobrir a incompetência de administradores de ambos os lados do Atlântico. A ordem pública portuguesa estruturou-se na colônia americana sobrepondo o indivíduo como coisa distante de cada um e de todos, das jornadas da realidade imediata.

As poucas e precárias relações com o Estado passam por uma rede de clientelismo e/ou nepotismo que permitiu a uns adaptar-se e, a outros, tentar sobreviver. Na historiografia do mundo ibérico o clientelismo era ponto alto, constituindo numa teologia de graça e da caridade. Ou seja, o fundamento moral da organização de relações sociais obedecia ao paradigma da administração doméstica. Rei e senhores cumpriam obrigações paternas em relação aos seus súditos. Era dando que se recebia. Na tradição ibérica o rei forte foi o pai da burocracia fidalga, que controlou a Igreja e teve a seu dispor a Ordem da obediência – a Companhia de Jesus. A idéia do Estado forte projetou-se na consolidação do Estado imperial brasileiro.

No Brasil foram os senhores de engenhos que deram continuidade ao nepotismo como base de suas ações. Nos primórdios da colonização da América portuguesa o plantio da cana veio substituir a simples extração de recursos naturais. Os senhores de engenho ocupavam os postos de comando nas Câmaras e suas ações arbitrárias caiam geralmente sob as costas de arredatários, meeiros e lavradores. A manipulação das alianças familiares para resolver os problemas domésticos era constante, uma vez que os juízes eram caudatários de ordens dadas por potentados locais, ou enviadas diretamente da Corte. A vinda do Monarca ao Brasil acentuou o desprestígio dos senhores de canas. Quem antes fora Deus, era agora pobre Diabo. Assim, os descendentes dos poderosos e decadentes senhores de cana compraram máquinas a vapor e aderiram à mão de obra livre para sobreviver. Outros foram buscar nos filhos ou nos genros deputados, ministros e funcionários públicos o apoio que lhes dera outrora a rede clientelar com o estado. A relação entre Estado e sociedade, desta forma, tem sido marcada por um trânsito de mão única.

As raízes portuguesas (patrimonialismo) resultaram na formação política do Brasil. Na Monarquia todas as terras são do rei que controla os cargos distribuindo-os segundo seus interesses. Para a administração do Estado, cria-se um “estamento burocrático” (estamento significa grupos de status determinado pelas honras), composto por um corpo de funcionários que, a exemplo do rei, tende a confundir a administração da coisa pública com o favorecimento de interesses particulares. Um seleto grupo de membros partilha a mesma visão de mundo onde os prejuízos são igualitariamente distribuídos e os lucros zelosamente concentrados. As terras pertencem ao rei, assim como a máquina estatal. Assim, logo após a independência e a Proclamação da República, a elite de funcionários do Segundo Reinado continuara atuante. A permanência de determinados grupos no comando da política e da economia brasileira representa uma rara lição de longevidade. Muda o regime, o tempo passa, ditaduras vão e vêm, mas certos grupos demonstram habilidade de preservar o poder.

Entre o rei e os súditos não há intermediários. Um comanda e todos obedecem. O rei possuía celeiros e adegas espalhados por seus domínios e utilizava funcionários para a cobrança de foros e rendas. O rei português era o senhor de tudo. Nessa monarquia patrimonial, a aristocracia não passava de um corpo de funcionários públicos a serviço do rei. Assim, o interesse dos colonizadores, ao virem para a América, era melhorar sua posição no estamento português, galgar os postos da administração e cumular-se e à sua família de honrarias. Quando a Corte portuguesa veio para o Brasil, D. João VI começou a conceder títulos honoríficos pára aliciar apoios, tal qual fazia a monarquia portuguesa em outros tempos.

A nossa sociedade tem um cotidiano marcado por contradições entre o público e o privado, entre as ambições individuais e os deveres coletivos. E no campo de ação dos intermediários (senhores de engenho, comerciantes, industriais, políticos, economistas) entre Estado e sociedade, foram eles que fizeram essa ponte de laços pessoais e capazes de prosperar infinitamente num laço de alianças internas e métodos de cooptação impressionante. Até hoje funciona dessa forma. Fica difícil uma mudança.

Quem desejar conhecer mais profundamente esses assuntos vale conferir os livros Revisão do Paraíso: 500 anos e continuamos os mesmos, organização de Mary del Priore (Editora Campus), O Futuro Chegou, de Maílson da Nobrega (Editora Globo) e As Identidades do Brasil, de José Carlos Reis (FGV Editora).

15 abril 2008

Solidão, mal do século XXI?

“Eu sozinho sou mais forte/minh'alma mais atrevida/não fujo nunca da vida/nem tenho medo da morte//Eu sozinho de verdade/encontro em mim minha essência/não faço caso de ausência/e nem me incomoda a saudade//Eu sozinho em estado bruto/sou força que principia/sou gerador de energia/de mim mesmo absoluto//Eu sozinho sou imenso/não meço nunca o meu passo/não penso nunca o que faço/e faço tudo o que penso//Eu sozinho sou a Esfinge/pousado no meio do deserto/que finge que sabe o que é certo/e sabe que é certo que finge//Eu sozinho sou sereno/e diante da imensidão/de toda essa solidão/o mundo fica pequeno//Eu sozinho em meu caminho/sou eu, sou todos, sou tudo/e isso sem ter contudo/jamais ficado sozinho”. A composição é de Paulo César Pinheiro. Conviver o dia a dia com tanta gente e ao mesmo tempo se sentir solitário parece um paradoxo social contemporâneo. Mas são muitas as situações geradoras de solidão. Há solidão gerada pelo próprio poder, solidão decorrente da riqueza, solidão dos bem e mal casados, solidão imposta pelo trabalho atomizado, solidão da criança cujos pais são egoístas ou inafetos, solidão dos velhinhos rejeitados com suas memórias e, muitas vezes, abandonados nos asilos esquecidos dos familiares, solidão da loucura, dos internos, dos hospitais psiquiátricos, solidão dos enfermos hospitalizados ou dos desempregados.

Muitas pessoas solitárias justificam seu “desejo de privacidade” escolhendo “viver sozinhas porque gostam de liberdade”, “prefere viver sozinha do que mal acompanhadas”. A tendência individualista de nossa época reforça o temor de conviver com as diferenças humanas, afinal, morar junto implica, sobretudo, sermos tolerante, compreender o outro, termos que dividir espaços e coisas e aceitar conferir a todo momento que o outro não nos preenche.

Há quem use a solidão como tempo de inspiração, análise e programação. É o recolhimento ao próprio íntimo. De vez em quando é preciso estar só. Ao sair da África até a Bahia o navegador Amyr Klink passou dias sozinho em sua pequena embarcação. Perguntaram-lhe se a solidão não teria sido seu maior obstáculo. Ele respondeu que nunca estivera só porque muitos torciam por ele e o que fazia lhe dava prazer. Quem age dessa forma não dá espaço para a solidão.

Há diferença entre viver sozinho “por opção” e o isolamento social obrigatório. No primeiro, a escolha é consciente e deliberada viver solitariamente, já que no segundo existe a imposição do destino ou das circunstâncias. O escritor, por exemplo, precisa estar sozinho para se concentrar e produzir seu texto. Também para ler, refletir, escrever, é preciso estar sozinho. Há diversas funções profissionais cujo isolamento social é condição sine que non para bem exercer a função. Ocupação é o antídoto para a solidão.

O filósofo Gaton Bachelard questiona: “Como se comporta sua solidão? Esta pergunta tem mil respostas. Em que recanto da alma, em que recanto do coração, em que lugar do espírito, um grande solitário está só, bem só? Só? Fechado ou consolado? Em que refúgio, em que cubículo, o poeta é realmente um solitário? E quando tudo muda também segundo o humor do céu e a cor dos devaneios, cada impressão de solidão de um grande solitário deve achar sua imagem (...) Um homem solitário, na glória de ser só, acredita às vezes pode dizer o que é a solidão. Mas a cada um cabe uma solidão (...) As causas da sua solidão não serão nunca as causas da minha”. E conclui: “A solidão não tem história”.

Viver no século 21, superestimulados por informações, contatos, internet, celular, ampliando a possibilidade de encontrar-mos e sermos encontrados, que fica cada vez mais difícil de estarmos sós, com nós mesmos. A solidão é malvista, as pessoas que ficam mais sozinhas são consideradas excluídas, ou diferentes, excêntricas. Para o psicoterapeuta Flávio Gikovate, o mundo atravessa um momento histórico em que a pressão por uma vida acompanhada está deixando de existir. "Cada vez mais as pessoas estão se encaminhando para existências solitárias. Desaprendeu-se bastante a conviver a dois, por exemplo, e assume-se a opção de ficar solteiro. É um fenômeno social, a humanidade está se adaptando à solidão", analisa. "Basta olhar ao redor para comprovar isso. As pessoas andam sozinhas, dançam sozinhas. A mulher solitária de hoje não é mais uma solteirona trancada num quarto de pensão. Tudo está mudando.". Para ele, a capacidade de conviver bem com a solidão tem a ver, principalmente, com maturidade. "E só amadurecemos nos expondo a situações de dor. Isso aumenta nossa tolerância à frustração", explica.

O sucesso social é medido pela quantidade de vezes que alguém é visto e com quem. Mas dentro de nós há duas forças essenciais para nossa sobrevivência e bem-estar, que são poderosas e interdependentes: estar só e relacionar-se. O sono é uma forma natural de nos garantir isolamento, para repormos nossas forças e descansarmos já que a vida urbana nos proporciona poucas chances de ficarmos sós. Quando se está só há chances de avaliar como está a vida e como estão os relacionamentos. Isolamento nem sempre significa solidão. Há pessoas que precisam subir montanhas, outras a se embrenhar nos matos, ou simplesmente colocar seu walkman nos ouvidos. Para saber de quanto e de qual espaço você precisa, é bom passar um tempo sozinho, observando como se sente. A reclusão é importante para o processo criativo. É preciso abolir a idéia de que a solidão é negativa e de que pessoas sozinhas não podem viver bem. Agora é preciso distribuir seu tempo de forma adequada e positiva. Para os que vivem acompanhados, vale aprender a valorizar os momentos de quietude, de contemplação.

O que é solidão? Ausência de companhia, de pessoas à nossa volta? Estar longe das civilizações? Mais grave do que estar só é sentir-se só. Solidão, mais do que estar só, é a insatisfação da pessoa com a vida e consigo mesma. O filósofo alemão Martin Heidegger afirmou que estar só é a condição original de todo ser humano. Que cada um de nós é só no mundo. É como se o nascimento fosse uma espécie de lançamento da pessoa à sua própria sorte.


14 abril 2008

A praça ainda é do povo?

Praça é um lugar de encontro, de namoro, de criança brincar, de festas com coretos e bandas de música, de chafariz, pipoqueiro, de gente. Espaço aberto, livre, acessível a todos, da interação social. As praças já foram locais mais importantes das localidades. Historicamente a praça sempre foi o templo da política. Os políticos se reuniam para fazer discursos. Ultimamente a praça se despolitizou. Existem praça da luz, da sé, do santo, do encanto e da apoteose. Praça da liberdade, da paz, da guerra e da humanidade. Tem programa de humor A Praça é Nossa, o boa praça (o soldado que trata bem às pessoas), além de locais com a história de várias gerações como a Praça Tiradentes, no Rio, base da implantação do Reinado de D.João VI

No mundo inteiro há praças memoráveis. Composta por órgãos federais representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a Praça dos Três Poderes em Brasília foi projetada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Lá estão localizados o Palácio do Itamaraty, o Palácio do Planalto, o Palácio da Justiça, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, o Panteão da Liberdade e Democracia e o Espaço Lúcio Costa. A Praça Vermelha é famosa em Moscou, conhecida pelos desfiles militares soviéticos durante a era da União Soviética. Exaltada pelo poeta Vladimir Maiacóvski (1893-1930) como o centro do mundo, a praça Vermelha tem um ligeiro declive que parece acompanhar a curvatura da Terra. Cenário de coroações, execuções e desfiles militares, é o palco principal da vida pública russa.

Mães foram para as praças chorar pelos seus filhos. A Praça de Maio sempre foi o centro da vida política de Buenos Aires. Desde a década de 70 as Mães da Praça de Maio se reúnem com fotos de seus filhos desaparecidos pelos militares durante a ditadura argentina. O povo argentino foi a Praça para exigir o fim da ditadura, e , mais tarde, para celebrar outros momentos. Em frente à Basílica de São Pedro, no Vaticano, situa-se a Praça de São Pedro Foi desenhada por Bernini no século XVII em estilo clássico mas com adições do barroco. Ergue-se um obelisco do Antigo Egipto no centro. Quase todos os visitantes que chegam ao Estado do Vaticano visitam primeiro a Praça, uma das melhores criações de Bernini, que o romancista francês Stendhal chamou “a arte da perfeição”.

Praça Castro Alves: a praça batizada em nome do poeta Antônio de Castro Alves é palco e coração do Carnaval de Salvador, maior manifestação popular do Brasil. O monumento do escultor italiano Pasquale Di Chirico, feita em bronze e granito, imortaliza o poeta em atitude de declamação. No início de 1866, na Bahia, Castro Alves fundou a associação abolicionista. Em novembro, o governo imperial, demagogicamente, decretou a liberdade dos cativos estatais que fossem lutar no Paraguai. Em dezembro (há 140 anos), Castro Alves publicou vibrante poema contra a repressão policial de comício republicano - "O povo ao poder". Diz o poema: “A praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade/Cria águias seu calor...” . Tem ainda os Poetas da Praça, em salvador, reunidos na Praça da Piedade.

A música popular brasileira é cheia de praças. O samba chorou quando a urbanização acelerou na Praça Onze, composição de Herivelto Martins e Grande Otelo: “Vão acabar com a Praça Onze/Não vai haver mais Escola de Samba, não vai/Chora o tamborim/Chora o morro inteiro/Favela, Salgueiro/Mangueira, Estação Primeira/Guardai os vossos pandeiros, guardai/Porque a Escola de Samba não sai”. Zé Keti compôs Praça 11, Berço do Samba: “Favela/Do camisa preta/Dos sete coroas/Pra ver o teu samba/Favela/Era criança na praça onze/Eu corria pra te ver desfilar”

“Peço licença, peço em nome de quem passa/Onde a rua fez-se em praça/Tempo passa e vai-se embora/Eu vou cantar um samba/Pra quem chegar agora”, a letra A Praça já foi cantada por Nara Leão, mas A Praça que todos lembram é da canção de Carlos Imperial que teve como intérprete Ronnie Von, aquele da Jovem Guarda: “Hoje eu acordei com saudades de você,/Beijei aquela foto que você me ofertou,/Sentei naquele banco da pracinha só porque/Foi lá que começou o nosso amor.//Senti que os passarinhos todos me reconheceram/Pois eles entenderam toda a minha solidão/Ficaram tão tristonhos e até emudeceram/Aí, então, eu fiz esta canção//A mesma praça, o mesmo banco, / As mesmas flores, o mesmo jardim./Tudo é igual mas estou triste, / Porque não tenho você perto de mim./Beijei aquela árvore tão linda, onde eu/Com meu canivete, um coração eu desenhei/Escrevi no coração o meu nome junto ao seu/E meu grande amor então jurei...”.

“A praça Castro Alves é do povo/Como o céu é do avião/Um frevo novo,/um frevo novo,/um frevo novo/Todo mundo na praça,/manda a gente sem graça pro salão” cantou Caetano Veloso em Um Frevo Novo. E Moraes Moreira, em pleno carnaval, atacou de Chão da Praça: “Olhos negros cruéis, tentadores das multidões sem cantor/Olhos negros cruéis, tentadores das multidões sem cantor/Eu era menino, menino um beduíno com ouvido de mercador/Lá no oriente tem gente com olhar de lança na dança do meu amor//Tem que dançar a dança que a nossa dor balança o chão da praça ôuôuô”

11 abril 2008

Música& Poesia

Agora Eu Quero A Verdade (Sérgio Britto)

Eu sei que governar faz mal pros seus princípios
Dizem que a carne é fraca e que o poder corrompe
Eu sei que governar é o que sustenta o vício
Dizem que a carne é fraca e homem é lobo do homem
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade

Conheça o novo presidente, igual ao velho presidente
Conheça o novo dirigente, igual ao velho dirigente

O velho igual
Igual ao novo, igual
Igual ao velho, igual
Igual ao moço, igual, igual
À esquerda a porta do banheiro, a serviço do dinheiro

Meus heróis estão no poder
meus inimigos não são quem eu pensava ser
Meus heróis estão no poder
Basta estar vivo pra poder viver

Eu sei que governar faz mal pros seus princípios
O que não mata engorda e o poder corrompe
Eu sei que governar é o que sustenta o vício
O que não mata engorda e homem é lobo do homem
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade
Eu sei, eu sei, eu sei que você já sabe
Agora eu quero a verdade

Conheça o novo burocrata, igual ao velho burocrata
Conheça o novo tecnocrata, igual ao velho tecnocrata

O reto igual
Igual ao torto, igual
Igual ao limpo, igual
Igual ao porco, igual, igual
À esquerda a porta do banheiro, você conhece pelo cheiro

O velho igual,
Igual ao novo, igual
Igual ao velho, igual
Igual ao moço, igual, igual
O reto igual
Igual ao torto, igual
Igual ao limpo, igual
Igual ao porco, igual,igual.



Poema do lavrador de palavras aos políticos (Pedro Barroso)

Não me perguntem coisas daquelas que eu não creia
não me perguntem coisas daquelas que não sei
remeto para os senhores as decisões do mundo
tais como governar, fazer decretos lei

no meio da tempestade no meio das sapiências
se poeta nasci, poeta morrerei
nem homem de gravata nem homem de ciências
apenas de mim próprio, e pouco, serei rei

das decisões do mundo lerei o que entender
que dentro de mim mesmo às vezes nasce um rio
e é esse desafio que nunca hei-de esquecer
e é essa a diferença que faz o meu feitio

mas digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei

mantenham com cuidado as árvores e estradas
pr'a gente poder ver, p'ra gente circular
que eu basta-me saúde e o sonho tão distante
e a boca perturbante que tu me sabes dar

e a festa de viver e o gozo e a paisagem
desta curva do Tejo, soprando a brisa leve
e na tranquilidade assim desta viagem
parar-se o tempo aqui, eterno, fresco e breve

que eu voo por toda a parte mas noutro horizonte
e vivo as coisas simples e rio-me da ambição
e ao fim de tanto ver, escolherei um monte
de onde assistirei, sorrindo, ao vosso enfarte

da ânsia de possuir, da ânsia de mostrar,
da ânsia da importância, da ânsia de mandar

e digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei.

10 abril 2008

Religiões atravessaram os séculos num rastro de destruição (2)

César Borgia (1476/’507), filho de um dos papas mais corrupto da história, Alexandre VI (1431/1503), foi um modelo de sadismo e manipulação política na Itália. Foi um assassino, torturador e maníaco pelo poder. O imperador Carlos V (1500-55) da Áustria e Espanha, além da crueldade, condenou toda a população da Holanda à morte por insurreição. Na Rússia, Ivã o Terrível (1530-84) seguiu com sua próprio versão da moda européia, atirando súditos para os ursos, de modo que pudesse observar suas reações.

Um dos piores crimes legais da história aconteceu na Europa nos séculos 16 e 17, na chamada caça às bruxas onde as perseguições foram conduzidas tanto por protestantes quanto por católicos. Foi também o período do culto à permissividade com trabalhos de Boccaccio, Aretino e outros. Se a perseguição religiosa e a amoralidade política foram os primeiros dois grandes crimes do século 16, o terceiro configurou-se no progressivo aumento da escravidão que seguiu à descoberta do Novo Mundo.

Já o século 17 foi um período de desorientação ética. Houve muito mais guerras civis que internacionais, mais divisões dentro das religiões que entre elas, mais flutuações erráticas entre o permissivo e o puritano, muito pouca criatividade moral. A espécie parecia estar perdida. Crescia a extensão da caça às bruxas, tanto puritanos quanto católicos se empenhavam para manter o domínio masculino.

O século 18 (1700-1800) foi um período de impressionantes desigualdades, em que as classes mais altas tenderam à permissividade e a insensibilidade, e a classe média, bastante impressionada, queria seu quinhão, assumir o comando e instaurar o sistema de valores daqueles que estavam no estrato superior. Esse anseio competitivo gerou uma significativa insensibilidade ética. O século 18 começou como um século de devassos. No século 19 (1800-1900) houve uma enorme distância tecnológica e educacional entre nações colonizadoras e colônias, razão por que foi fácil par as nações do Velho Mundo construir seus impérios, e para suas classes dominantes fazerem dos valores imperialistas a norma. Na França, o excêntrico e amoral Marques de Sade se destacou e Friedrich Nietzsche levou o conceito de super herói amoral às últimas conseqüências. O austríaco Sacher Masoch, pregava os prazeres da degradação e da humilhação.

No século XX a Primeira Guerra Mundial custou aproximadamente 12 milhões de vidas militares e cerca de 20 milhões de baixas civis; Veio a Segunda Guerra e milhares de mortes. Os homens não se contentaram com a bomba atômica que pulverizou, em minutos, Hiroshima e Nagasaki. Eles desenvolveram artefatos muito mais terríveis – dos campos de concentração, dos “gulags”, dos massacres, dos êxodos em massa de refugiados, da Aids, do Ebola e de tantas outras doenças virulentas praticadas por supostos líderes redentores. Hoje temos bombas de hidrogênio (termonucleares) e muitas outras poderosíssimas. Foi o século do Holocausto que gerou Adolf Hitler, Joseph Stalin, Joseph Mengele, Adolf Eichmann, Mão Tse-Tung, Pol Pot e tantos outros notórios assassinos. Mas tivemos também Albert Schweitzer, Alexander Fleming, Christian Barnard, Irmã Dulce, Madre Teresa de Calcutá...

E com toda essa matança, os Estados Unidos se fortaleciam com a indústria do entretenimento. E tome-lhe cultura digestiva e não reflexiva para os povos dominados. O que acontecerá neste século XXI? Você é responsável por alguma mudança, afinal você também faz parte desse universo. Se informe, reflita sua vida ao redor e reclame de todos os seus direitos. Conheça a letra de Nando Reis, Igreja cantada pelo grupo Titãs: “Eu não gosto de padre/Eu não gosto de madre/Eu não gosto de frei./Eu não gosto de bispo/Eu não gosto de Cristo/Eu não digo amém./Eu não monto presépio/Eu não gosto do vigário/Nem da missa das seis./Eu não gosto do terço/Eu não gosto do berço/De Jesus de Belém./Eu não gosto do papa/Eu não creio na graça/Do milagre de Deus./Eu não gosto da igreja/Eu não entro na igreja/Não tenho religião”.

09 abril 2008

Religiões atravessaram os séculos num rastro de destruição (1)

Toda a civilização ocidental se origina num tripé de culturas, a grega, a romana e a judaica. A gente de Abraão e de Moisés, escrava tantas vezes, passou de um domínio a outro. O que a fez sobreviver foi a religião. Sua religião se sobrepôs à de Roma e Grécia, através do Cristianismo e se manteve viva no Judaísmo Rabínico enquanto tantas outras se extinguiram. Séculos adiante surgiu um terceiro filho, o Islã.

A injustiça, a fome e a miséria acumularam durante séculos e havia uma busca desesperada pelo messias naquele momento da história. O ideal messiânico e a idéia nova de amai-vos uns os outros, transformaram-se num vírus cultural que se espalhou pelo Oriente Médio e Europa. A religião em geral busca dirigir-se a todos os homens sem distinção, para lhes oferecer os “meios de salvação”, e não explicações (metafísicas) sobre a verdade pura e a natureza profunda das coisas – apesar de essas explicações serem oferecidas indiretamente e simbolicamente.

As formas de dominação foram alteradas nas sociedades medievais européias, combinando a cultura cristã com elementos da cultura bárbara. O controle sobre a educação foi peça fundamental no processo de consolidação do poder religioso. Durante muito tempo, o clero constituiu a maioria da minoria intelectual, monopolizando o saber ler e escrever e acabou por dominar as atividades culturais, formulando os princípios jurídicos e políticos do mundo medieval. Assim a igreja manteve-se como a única instituição centralizada, que, durante todo o período medieval, se empenhou em preservar a unidade religiosa, como forma de manter seu monopólio sobre a formação educacional e cultural e, para isso, combateu as heresias, organizou expedições militares cruzadas e a Inquisição. Vamos conhecer um poucos dos fatos das ações religiosas através dos séculos

Os anos 500-1000 d.C. abrange a Idade das Trevas na Europa, quando o catolicismo romano sobreviveu à morte do Império Romano e passa assumir o comando das hordas da morte. Abrange o florescimento Bizâncio, o nascimento e expansão do islã e a contínua disseminação do budismo pelo Extremo Oriente. Houve o genocídio dos armênios, provavelmente o povo mais perseguido do mundo depois dos judeus, e os samaritanos, outra minoria incomodada, vendida como escravos.. No Ocidente, Boécio tornou-se o servidor cristão arquétipico e instrutor de um governante gótico. Utilizou-se a força militar dos bárbaros para a causa da expansão do cristianismo. Desta forma a segunda metade do primeiro milênio depois de Cristo foi um período de muita energia, de longas migrações e conquistas. Ao mesmo tempo, houve impiedade e crueldade em grandes proporções.

No período 1000-1400 d.C. os judeus e muçulmanos sofreram com a violência das cruzadas. Surge o novo conceito de amor cortez. Um casamento de conveniência entre a Igreja e o Estado começava a assegurar o direito de praticar a violência contra todos que respeitassem sua ortodoxia. A própria Inquisição foi fundada em 1208 pelo papa Inocêncio III e seguida pelo massacre sistemático dos hereges albigenses no sul da França. Uma bula papal de Inocêncio IV permite o uso de tortura e da fogueira. Embora Santo Tomás de Aquino fosse o grande moralista teórico da época, o revolucionário moral mais importante foi Francisco de Assis. Ele reviveu as idéias da pobreza monástica e o cuidado com todas as criaturas vivas.

Nos dois séculos seguintes (1400-1600 d.C.) houve uma tendência na direção da crueldade e da intolerância, com o reaparecimento de perseguição religiosa, da escravidão e de operações de guerra. As imagens feitas pelos artistas do Renascimento marcaram uma mudança dos santos recatados para as orgulhosas e vaidosas figuras de Vênus de Donatelli e Michelangelo. A nova pintura era a expressão de uma nova confiança no corpo e na mente, um novo humanismo.

08 abril 2008

Religiões monoteístas vendem ilusões (2)

No prefácio de seu livro Tratado de Ateologia, Michel Onfray comenta que “em nenhum lugar desprezar aquele que acreditava nos espíritos, na alma imortal, no sopro dos deuses, na presença dos anjos, nos efeitos da prece, na eficácia do ritual, na legitimidade das encantações, no contato com as loas, nos milagres com hemoglobina, nas lagrimas da Virgem, na ressurreição de um homem crucificado, nas virtudes dos cauris (...) Em nenhum lugar. Mas em toda parte constatei quanto os homens fabulam para evitar olhar o real de frente. A criação de além-mundos não seria muito grave se seu preço não fosse tão alto: o esquecimento do real, portanto a condenável negligência do único mundo que existe. Enquanto a crença indispõe com a imanência, portanto com o eu, o ateísmo reconcilia com a terra, outro nome da vida”.

Ele lembra que “por causa do poder dominante da antifilosofia na historiografia oficial do pensamento, peças inteiras de uma reflexão vigorosa, viva, forte, mas anticristãs ou irreverenciosa, ou simplesmente independente da religião dominante, permanecem ignoradas, inclusive com freqüência pelos profissionais de filosofia fora um punhado de especialistas”.

Em seguida fala do antigo jesuíta português Cristóvão Ferreira que em 1936 escrevia o livro “A fraude revelada” onde afirma que a religião é invenção dos homens para garantir o poder sobre seus semelhantes. E que o abade Jean Meslier escreveu um volumoso testamento no qual achincalha a Igreja, a Religião, Jesus, Deus, mas também a aristocracia, a Monarquia... Meslier negou qualquer divindade, Holbach desmontou o cristianismo, Feuerbach desconstruiu Deus. Esses foram os esquecidos da história da filosofia dominante. Veio a seguir Nietzsche que revelou a transvaliação: o ateísmo não deve permanecer somente como um fim. Suprimir Deus, certamente, mas para fazer o quê? Uma outra moral, uma nova ética, valores inéditos, imprensados, pois impensáveis.

Para o filósofo os devotos têm o interesse em fazer passar o pior em relação ao ateísmo. “Persiste a velha idéia do ateu imoral, amoral, sem fé nem lei ética. O lugar comum pra o último ano do colegial segundo o qual ´se Deus não existe, então tudo é permitido´- refrão extraído de Os Irmãos Karamazov de Dostoievski – continua produzindo efeitos, e de fato a morte, o ódio e a miséria são associado a indivíduos que invocaria a ausência de Deus para cometer seus crimes”.

Onfray demonstra essa tese equivocada e explica que três milênios “testemunharam, dos primeiros textos do Velho Testamento até hoje: a afirmação de Deus único, violento, ciumento, briguento, intolerante, belicioso gerou mais ódio, sangue, mortes, brutalidade do que prazer. (...) A existência de deus, parece-me, gerou em seu nome muito mais batalhas, massacres, conflitos e guerras na história do que paz, serenidade, amor ao próximo, perdão dos pecados ou intolerância. Que eu saiba os papas, os príncipes, os reis, os califas, os emires em sua maioria não brilharam na virtude, e já Moisés, Paulo e Maomé esmeravam-se respectivamente, por sua vez, em assassínios, espancamentos ou saques – as biografias o testemunham. São todas variações sobre o tema do amor ao próximo...”.

A medicina ocidental adere de muito perto às exortações da Igreja (condena a transgênese, a experimentação em embriões, as mães de aluguel, os homossexuais, a clonagem reprodutora etc). E a máquina judiciária funciona como um mecanismo encontrado às portas do jardim do Éden sem se perguntar o que ele é, por que está ali, de que maneira funciona.

O judaísmo, cristianismo e islã partilham do ódio da razão e da inteligência; ódio da liberdade, da vida, da sexualidade, das mulheres e do prazer, do corpo, dos desejos e das pulsões. E defende a fé e a crença, a obediência e a submissão, o gosto pela morte e a paixão pelo além, o anjo assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a esposa e a mãe, a alma e o espírito. Equivale a dizer a vida crucificada e o nada celebrado. “Os padres das três religiões recusam que se pense e reflita por si mesmo, preferem dar a autorização aos prestidigitadores que o ofuscam o ouvinte com sua destreza em manejar a linguagem, exibir o vocabulário e esculpir as formulações” (...). “Este mundo não tem direito de cidadania, pois a terra inteira carrega o peso do pecado original até o fim dos tempos”.

07 abril 2008

Religiões monoteístas vendem ilusões (1)

Por trás do discurso pacifista e amoroso, o cristianismo, o islamismo e o judaísmo pregam na verdade a destruição de tudo o que represente liberdade e prazer. Essas religiões exaltam a submissão, a castidade, a fé cega e conformista em nome de um paraíso fictício depois da morte. A opinião é do filósofo francês Michel Onfray (que estará em Salvador no dia 28 de maio), autor de Tratado de Ateologia. Para ele as três grandes religiões monoteístas vendem ilusões e devem ser desmascaradas e é urgente se passar da era da religião para a era da filosofia de massa.

Sobre as contradições entre a pregação da paz e da violência ele informa: “O famoso sexto mandamento da Torá ensina: ´Não matarás´. Linhas abaixo, uma lei autoriza a matar quem fere ou amaldiçoa os pais (Exodo 21:15 e adiante). Nos Evangelhos, lê-se em Mateus (10:34) a seguinte frase de Jesus: ´Não vim trazer a paz, e sim a espada´. O mesmo evangelista afirma a todo instante que Jesus traz a doçura, o perdão e a paz. O Corão afirma que ´quem matar uma pessoa sem que ela tenha cometido homicídio será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade´ (quinta sura, versículo 32). Mas ao mesmo tempo o texto transborda de incitações ao crime contra os infiéis (´Matai-os onde quer que os encontreis´, segunda sura, versículo 191), os judeus (´Que Deus os combata´, nona sura, versículo 30), os ateus (´Deus amaldiçoou os descrentes´, 33ª sura, versículo 64) e os politeístas (´Matai os idólatras, onde quer que os acheis´, nona sura, versículo 5)”.

E diz mais: “A fraqueza, o medo, a angústia diante da morte, que são as fontes de todas as crenças religiosas, nunca abandonarão os homens. Por outro lado, é preciso que alguns espíritos fortes, para usar uma expressão do século XVII, defendam as idéias justas. A questão é converter novos espíritos fortes. Só isso já seria muita coisa”.

A reivindicação ateísta de Onfray caminha junto com a reabilitação do corpo, dos sentidos e dos prazeres. Seus livros questionam sobre si mesmos e sobre a vida. O primeiro deles, em 1989, O Ventre dos Filósofos é um verdadeiro convite para conhecer a cozinha e sentar-se à mesa com os grandes filósofos. A Arte de Ter Prazer, A Escultura de Si e A Potência da Existência se propõem a reabilitar os outros sentidos criticados e desprezados.

O filósofo Michel Onfray fundou, em 2002, uma universidade popular em Caen (norte da França), com o objetivo de democratizar a cultura, proporcionando gratuitamente o saber para o maior número possível de pessoas, lançando as bases para uma autêntica “comunidade filosófica” contra o mercantilismo dos saberes.

As aulas são gratuitas e os participantes totalmente livres. Participa quem quer, sem precisar se inscrever previamente, sem condições de idade ou de diploma, e sem, precisar submeter-se a um controle dos conhecimentos. Os cursos articulam-se entre uma exposição e uma discussão entre o professor e a platéia. Dessa forma Onfray defende o poder emancipador da pedagogia libertária. Dentro da lógica de Michel Onfray, a universidade popular se inspira na universidade tradicional (qualidade das informações, progressão pessoal, transmissão de um conteúdo antes de todo debate). Gravadas pelo rádio público France Culture, as aulas de Onfray são sucessos de audiência.

Numa entrevista ao Le Monde de L´Education Michel Onfray defende o poder emancipador da pedagogia libertária. A miséria social e moral das nossas sociedades impõem a necessidade de ensinar a todos um saber alternativo e crítico, até porque muitos intelectuais deixaram de se preocupar em tornar popular o saber filosófico. “A instituição escolar é esquizofrênica: ela tem um discurso, mas leva a cabo uma prática nos antípodas daquele discurso. O discurso é este: a escola forma a inteligência, constrói indivíduos cultivados cujo saber lhes permitiria desenvolver juízos esclarecidos, ensina a ler, a escrever, a fazer contas, a pensar, ela formaria o cidadão ao educá-lo para a liberdade. Mas, a verdade, é que na prática ela negligencia a inteligência para privilegiar o exercício da memória e da repetição calibrado em função de um programa feito para isso. A educação nacional ensina, sobretudo a submissão, a docilidade, a hipocrisia, o artificial. Só assim se pode explicar que num curso de 7 anos de inglês se consiga fazer tão poucos jovens bilíngües. O que é que se aprende durante aquelas intermináveis horas de aprendizagem de línguas senão a arte de bem funcionar dentro da máquina que permita a passagem para o ensino superior, e a produção de diplomas úteis para o mundo da integração social”.

Fala da genealogia dessa pedagogia libertária que defende: “Se o termo libertário significar ´o que educa a liberdade´, ou ´o que faz da liberdade o bem supremo´, sem dúvida, que poderíamos começar com Sócrates e a sua maiêutica, a sua arte de desenvolver as potencialidades de cada qual e torná-las em realidades tangíveis, podemos depois continuar com Diógenes e os filósofos cínicos que usam um bastão para mandar embora os que procuram um mestre e a submissão. Prosseguimos com Erasmo, o grande e imenso Erasmo, e, certamente, Montaigne, que tanto lhe deve, para falar de várias matérias, como a Educação e tantas outras. Passamos depois para Nietzsche que ensina que um bom mestre é aquele que aprende aquilo que se desprende de si. Seria preciso ainda falar, com certeza, dos autores libertários, que a história conheceu, como Max Stirner e o seu ´Falso Princípio da Nossa Educação´, Sébastien Faure, que aplicou o seu método em La Ruche, mas ainda A.S. Neill e os seus ´Jovens livres de Summerhill´ que me fizeram desejar tornar-me professor antes de me desiludir na Escola Superior de Educação. Seria ainda preciso acrescentar o excelente livro ´Advertência aos estudantes e liceais´ de Raoul Vaneigem.

04 abril 2008

Música & Poesia

O Sol (Arnaldo Antunes / Edgard Scandurra)

Nessa época o sol é mais frio
Porque ele se divide em mil
Mas para lá de janeiro
Ele volta a ficar inteiro

Agora o sol parece uma laranja madura
Porque ele está sem pintura
Mas quando entra março
Parece a cara de um palhaço

Tem dias que o sol vai embora
Tem noites que não tem aurora
Às vezes ele fica no Japão
E só volta quando chega o verão

Agora que o sol está bravo
Parece uma moeda de um centavo
Mas quando se alegra, o sol
Fica maior que uma bola de futebol

O sol está brilhando muito claro
Porque hoje é seu aniversário
Nesses dias ele quase cega
E quem é cego quase enxerga

O sol está sempre ali no céu
A terra é que faz o carrossel
De noite o sol apaga sua chama
E dorme debaixo da minha cama



As Palavras Ressuscitarão (Jorge de Lima)

As palavras envelheceram dentro dos homens
separadas em ilhas,
as palavras se mumificaram na boca dos legisladores;
as palavras apodreceram nas promessas dos tiranos;
as palavras nada significam nos discursos dos homens públicos.
E o Verbo de Deus é uno mesmo com a profanação dos homens de Babel,
mesmo com a profanação dos homens de hoje.
E, por acaso, a palavra imortal há de adoecer?
E, por caso, as grandes palavras semitas podem desaparecer?
E, por acaso, o poeta não foi designado para vivificar a palavra de novo?
Para colhê-la de cima das águas e oferecê-la outra vez aos homens do continente?
E, não foi ele apontado para restituir-lhe a sua essência,
e reconstituir seu conteúdo mágico?
Acaso o poeta não prevê a comunhão das línguas,
quando o homem reconquistar os atributos perdidos com a Queda,
e quando se desfizerem as nações instaladas ao depois de Babel?
Quando toda a confusão for desfeita,
o poeta não falará, do ponto em que se encontrar,
a todos os homens da terra, numa só língua — a linguagem do Espírito?
Se por acaso viveis mergulhados no momento e no limite,
não me compreendereis, irmão!

03 abril 2008

A chave na MPB


Muita gente procura a chave do sucesso, mas ela não existe. Para alcançar o sucesso é preciso primeiro acreditar no que faz e batalhar, ir fundo, persistir. No baralho cigano a chave abre portas, é um baralho positivo. Receber a chave de casa significa segurança. Na música popular brasileira diversos cantores e compositores apresentaram a chave em diversas formas e situações. Adriana Calcanhoto na música “Metade”, canta um momento de perda dos sentidos (diz a letra: “Eu ando tão triste, eu ando pela sala/Eu perco a hora, eu chego no fim/Eu deixo a porta aberta/Eu não moro mais em mim/Eu perco a chave de casa/Eu perco o freio/Estou em milhares de cacos, eu estou ao meio/Onde será que você está agora?”)

Frejat e Leoni em “A Chave da Porta da Frente” cantam a força do relacionamento sincero de uma forma mais franca (“Becos escuros/Ruas desertas/Sombras, sussurros/Noites e frestas/Frio na espinha/Beijos roubados/Sexo e vertigem/Amor e pecado//Tudo que um dia já foi o motivo/Pra tanto mistério e prazer/Apodreceu nosso fruto proibido/E eu vim aqui hoje só pra dizer//Eu quero te olhar de um lugar diferente/Eu quero a chave/A chave da porta da frente/Eu quero agora e eu quero pra sempre”

Dicro compôs e Bezerra da Silva canta a descoberta da “Chave do Milagre”: “Dentro de mim havia uma igreja/fechada desde o dia em que nasci/com a porta enferrujada de pecado/mas a chave do milagre eu abri...”. Dudu Nobre compôs e cantou “A Chave do seu Coração”: “A lua/Eterna companhia/Parceira na poesia/Que eu fiz outro dia pensando em você/Testemunha até raiar o dia/A tristeza e a alegria/Da paixão que irradia esse imenso prazer/Procuro na filosofia a razão/Viajo é tanta fantasia, ilusão/No céu, no mar, na imensidão/É singular essa nossa paixão/Quero a chave do seu coração/Quero poder te amar/Não é brincadeira/Quero poder te amar/Uma noite inteira/Me aqueça com esse calor/Que embala a nossa paixão/Menina esse nosso amor/Toca fundo meu coração”.

A Banda Vexame descobre a traição em “A Cópia da Chave” (“Planejei uma longa viagem/somente pra ver se ela não me traia/quis saber se a desconfiança era apenas ciúme demais que eu sentia/levei minhas roupas na mala/e a cópia da chave sem ela saber/voltei mais tarde/vi a porta fechada/a luz apagada/entrei sem bater/no quarto com a luz da rua/de repente eu vi/ o que eu não queria ver...”).

Já o grupo Apocalipse 16 em “A Chave da Vida” canta: “A chave da vida está em sua mão, em sua mão está o poder da decisão”. Marina Lima em “Chave do Mundo” faz descoberta (“Eu também posso brilhar/brilhar/mas a chave do mundo/é ser exatamente assim como ele cruel como o mundo/ e tão simples eu queria ser assim como ele, cruel como o mundo...”). Moreira da Silva surpreende com “Chave de Cadeia”: “Você mulher é uma chave de cadeia,/me paga ceia pra depois poder falar,/você sabia que eu era da orgia/quem entra na chuva é pra se molhar./ Dá um guarda aí chuva que o temporal não agüento mais...”.

Everaldo Cruz e Paulinho Rezende aprendem a perdoar na composição que Beth Carvalho canta “A Chave do Perdão”: “Assim foi meu coração/que eu tive que adubar/com uma paixão breve e passageira/só não repare a desordem/na casa e no coração/ambas as portas abri/com a chave do meu perdão/bendito seja quem parte/e aprende a voltar/das profundezas de tão longo/e triste adeus/seja bem-vindo meu amor/aos braços meus”.

“Joga a Chave” grita os Demônios da Garoa cantando: “Não perturbo mais teu sono/Chego a meia noite sim/Ou então a qualquer hora//Joga a chave meu bem/Aqui fora tá ruim demais/Cheguei tarde perturbei teu sono/Amanhã eu não perturbo mais (...) Faço um furo na porta/Amarro um cordão no trinco/Pra abrir pro lado de fora/Não perturbo mais teu sono/Chego à meia-noite sim/Ou então à qualquer hora”

A “Chave de Vidro” é a composição de Sérgio Godinho que diz: “Luar de agosto,/quem queimará/ chave de vidro/em que porta partirá/luz de setembro/quem cegará/comboio azul/em que estação parará”. Já Bidu Reis em “A Chave” canta: “Chave pequenina, entre chaves esquecida,/só eu sei que tu vivestes tua vida vem minha vida,/ chave pequenina, hoje entregue ao desalento,/foste a muda testemunha dos meus dias de tormento,/chave pequenina, do meu lar abandonado,/viste um sonho fracassado, entre beijos de ilusão,/tu que abriste tantas vezes nossa porta,/da mulher, tu não abriste a porta má do coração...”.

“Quando, seu moço, nasceu meu rebento/não era o momento dele rebentar/já foi nascendo com cara de fome/e eu não tinha nem nome pra lhe dar/como fui levando, não lhe sei explicar/fui assim levando ele a me levar/e na sua meninice ele um dia me disse/que chegava lá/olha aí/olha aí/olha aí, ai o meu guri, olha aí/olha aí, é o meu guri/e ele chega//Chega suado e veloz do batente/e traz sempre um presente pra me encabular/tanta corrente de ouro, seu moço/que haja pescoço pra enfiar/ me trouxe uma bolsa já com tudo dentro/chave, caderneta, terço e patuá/um lenço e uma penca de documentos/pra finalmente eu me identificar, olha aí/olha aí, ai o meu guri, olha aí...”. Canta Chico “O Meu Guri”.