24 maio 2023

O sentido de tudo: Rodolfo Zalla

 

Ao mudar-se para o Brasil no final de 1963 o argentino Rodolfo Zalla criou personagens marcantes como Zora, a Mulher Lobo e Johnny Pecos. Deu vida a seu próprio Drácula, reinventou figuras clássicas do terror como Múmia e Frankenstein. Produziu heróis e super heróis como Targo e O Escorpião. Foi um produtivo autor de quadrinhos de guerra, além de flertar com o erotismo nos anos 1980 e 1990. Editor, roteirista, desenhista, Zalla era um artista completo. Ao fazer meio século de carreira ele aceitou contar sua história. E o felizardo foi o jornalista e pesquisador Gonçalo Júnior. Rodolfo Zalla: O Sentido de Tudo é o título da obra lançado pela Editora Noir.

 


Seu primeiro trabalho de Zalla no Brasil saiu nas páginas da revista O Vingador. No segundo caderno do jornal Última Hora (SP) publicou tiras de quadrinhos Jacaré Mendonça, Amores Histórico Brasileiros etc. Mais tarde, na Gráfica e Editora Penteado (GEP) publicou quadrinhos na revista Estorias Negras. Para a Editora Taika criou diversas histórias de guerra no gibi Histórias de Combate, grande sucesso na segunda metade da década de 1960. Depois, Juvêncio, o Justiceiro. Targo foi o primeiro personagem de encomenda feito por Zalla no Brasil. Ele produziu para a Editora Outubro (mais tarde Taika), a partir de 1965. Deixou a Taika para se dedicar ao Estudio D-Arte a partir de 1967.

 

Esse argentino implantou no mercado um sistema profissional de produção para atender as editoras. Levou as historietas para os livros didáticos, tarefa que exerceu por mais de quatro décadas em importantes editoras. Essa biografia intimista traz um balanço dos seus 50 anos de carreira e fornece raro testemunho sobre os quadrinhos na Argentina e no Brasil, para onde se mudou às vésperas do golpe militar de 1964. Importantíssimo: o livro é fartamente ilustrado com fotos, desenhos e documentos. Traz também histórias de Zorro inédita (A Última Aventura), Targo (Roubou o sol!), Johnny Pecos (Incêndio na pradaria), Zora, a mulher lobo (O Mistério do Mausoleu, em 16 páginas), Drácula (O Amor de Drácula, em 18 páginas).

 

A importância de Zalla (1931-2016) para os quadrinhos brasileiros rendeu uma comovente homenagem pela editora Criativo em parceria com a AQC-SP, edição da coleção Sketch Book com a participação de mais de 160 artistas e articulistas especializado em HQs de todo o país que deram emocionados depoimentos sobre o artista. Esse trabalho também está registrado no livro de Gonçalo. Rodolfo Zalla: O Sentido de Tudo é uma obra que vale a pena conhecer.

 

26 dezembro 2022

Em busca do quadrinho perdido: bela viagem

 

O mais amado quadrinho franco-belga é tema de uma graphic novel afetiva, emotiva, visceral, mágica: Em Busca do Tintin Perdido, fantasia autobiográfica de Ricardo Leite e publicado pela Editora Noir.  Ler essa obra me fez voltar a infância, essa relação afetiva que tenho com os quadrinhos. Lembro-me da minha grande admiração em ler Luluzinha, Flecha Ligeira, Fantasma, Batman, Tarzan e muitas outras. As trocas das revistas. Antes das sessões dos seriados havia troca de gibis. Era uma felicidade total a troca de gibis. Os olhos brilhavam com aquelas aventuras dos heróis da nossa infância, do nosso imaginário. E como sonhava com aqueles gibis. Muitas vezes esquecia de toda aquela pobreza em volta para sonhar com esses mitos, esses deuses de nossa imaginação.

 


Mas voltando ao trabalho de Ricardo, ele fez um passeio pela historieta, uma espécie de tributo a essa mídia proporciona. Nesse universo encantado ele presta homenagem aos artistas criadores de personagens que abriram portas para o fantástico. E provaram que o sonho é tão real ou mais verdadeiro que a realidade.

 


A aventura tem como pano de fundo uma viagem a Bruxelas para visitar o Museu Hergé. Através dessa fantasia autobiográfica, ele convida o leitor a reviver a seu lado uma jornada mágica e inspiradora que despertou seu desejo adormecido de desenhar quadrinhos. Um resgate emocional! O artista passeia por suas memórias e revive encontros, imaginários ou não, com centenas de grandes mestres da 9ª Arte. Ao longo das páginas, eles discutem técnicas de desenho e falam sobre as diversas escolas de linguagem, passando pelos grandes festivais de Quadrinhos de Itália, França, Bélgica e Brasil. Um grande mergulho no universo mágico dessa mídia fabulosa!

 

Do Brasil ele presta homenagem aos pesquisadores Álvaro Moya, Gonçalo Jr, Moacy Cirne entre outros. Vai do quadrinho de Ângelo Agostini (Nhô Quim) a Ziraldo (Pererê, Menino Maluquinho). Passa pelo quadrinho escatológico de Marcatti, as inquietudes de Laerte, a luminosidade de Mozart Couto, o sombreamento de Julio Shimamoto, o estilizado traço de Flavio Colin, o humor anárquico de Angeli, o caligráfico Henfil, Mauricio de Sousa e muitos outros.

 


Abrir as páginas dessa obra foi um revival de prazeres, lembrar do desenho clássico de Alex Raymond, do experimentalismo de Robert Crumb, da magia de Manara, Moebius, Guido Crepax. O artista conta, com sensibilidade e maestria, a história de nossa infância pelos quadrinhos. Esse amor imenso. Ele nos propõe um permanente diálogo imaginário (sobre a arte, a técnica e a história dos Quadrinhos) com os grandes criadores, por vezes, baseado em encontros reais ou inspirados por numerosas leituras. Um resgate emocional. Vale a pena conferir!.

 

 

23 dezembro 2022

Poesia e lirismo em nossos quadrinhos

 

Lirismo e poesia nos quadrinhos. Atualmente é o que mais gosto. E neste final de dezembro de 2022 fui surpreendido por duas publicações especiais: Big Hug de Melissa Garabeli e Phillip Willies, a outra, E o Mar Me Trouxe Até Aqui de Phellip Willian e Eduardo Ribas.


 

Big Hug é uma excelente brincadeira em forma de gibi. O título foi viabilizado através da plataforma colaborativa Catarse. Hug, o protagonista, vê sair de si mesmo um pequeno ser peludo. Quando tenta pegá-lo para o abraçar, o pequeno animal foge por entre as páginas, quadros e vários outros lugares. Assim nasce uma verdadeira aventura de "gato e rato", em um quadrinho que explora a linguagem de quadrinhos para além do caminho tradicional.


 

Este uso de recursos metalingüísticos é um meio do autor exercer sua criatividade, e muitas vezes obter bons resultados.  O uso da metalinguagem tem resultados positivos em duas situações, independentemente se o resultado criativo é maior ou menor. A primeira situação é quando é usada para fins humorísticos ou satíricos. Neste caso, a quebra das regras e convenções será sempre um desafio ao espectador, e a presença do inusitado, uma fonte de humor. A segunda situação é quando o objetivo é didático, ou seja, analisar e criticar os próprios códigos. 


 

A dupla Garabeli e Willian esbanja criatividade numa hq que vale a pena ler. Brinca com a narrativa dos quadrinhos rompendo quadros, rompendo a historieta além de nos envolver com bom humor e carinho entre os personagens. 

 

Escritor e roteirista, Phellip é formado em Letras pela UEPG e Mestre em Linguagem e doutorando em literatura. Atua como pesquisador de linguagens iconoverbais, principalmente quadrinhos. Lançou com a Melissa Garabeli a graphic novel Saudade (2018), finalista do Jabuti, vencedor do HQmix e do Angelo Agostini. Depois fez Uma nuvem no Seu oliveira (2021, com o Edu), Calmaria (2022) e E o mar me trouxe até aqui (2022).

Há potencialidade autorreflexiva e poética dos quadrinhos dessa dupla. São quadrinhos silenciosos, mudos, sem palavras. Muitas são as denominações dessas publicações onde não há uso de nada mais do que desenhos, um do lado do outro, contando uma história. As publicações de histórias em quadrinhos sem balões ou textos de acompanhamento fornecem aos leitores a liberdade de interpretação da narrativa desenhada. Os processos editoriais de HQs sem palavras são considerados por alguns quadrinistas como as mais desafiadoras, desde a criação até a impressão. Ao tentar traduzir em imagem as sequências que melhor expressam as ideias da mensagem a ser transmitida ou daquilo que deveria ser dito por um personagem, exige do artista um trabalho que envolva os elementos de expressão corporal, facial e gestuais. Além de domínio da cena para que a interpretação global possibilite ao leitor compreender a ambientação da história

Melissa Garabeli é ilustradora e quadrinista. Já trabalhou em diversos projetos e tem oito livros lançados. Em 2019, ganhou o prêmio HQmix de novo talento desenhista; o prêmio Angelo Agostini de melhor publicação independente; e foi finalista do prêmio Jabuti. Recentemente, lançou o infantil O urso e o Eco e sua graphic novel Calmaria (2022). É conhecida pelo seu trabalho como aquarelista, mas tá arriscando um pouco o digital no HUG. Ela adora bichos e, se dependesse dela, só desenharia animais. Vale dizer que ela é tutora da Chewie e da Leia, além de resgatar vários bichos da rua.


 

Já a graphic novel E o Mar Me Trouxe Até Aqui (dos artistas Phellip Willian e Eduardo Ribas) narra a aventura de um menino perdido no oceano. Sem memórias, sem saber para onde ir, o personagem encara desafios e encontra pessoas e animais que somente o mar proporciona. A dupla  brinca com os signos presentes no mar ao passo de entender os desafios das  exigências sociais e expectativas pessoais na formação de um menino homem. A obra tem um formato próximo de mangá (16×23), com miolo em Polen Bold e capa cartonada, e conta com 120 páginas em preto e branco. 

 

Segundo Eduardo Ribas, E o mar me trouxe até aqui tem sido um dos mais desafiadores que ele já desenhou. Um quadrinho mais metafórico e sugestivo, que surgiu depois de Phellip postar uma frase em uma rede social. “A ideia do quadrinho surgiu depois de uma sessão de terapia minha. Descrevendo o quanto


me esforço com trabalhos desde os 15 anos (e que nunca tive pausas desde então), eu me imaginei perdido no mar, tendo que nadar incessantemente, enquanto tinha esperança de um dia poder tirar férias, descansar ou mesmo me sentir satisfeito. Esta imagem ficou presa em minha cabeça, até que virou uma frase solta no Twitter. O Edu gostou da frase e propôs uma parceria, resultando no gibi que agora lançamos juntos”, conta Phellip Willian.

Escritor e roteirista, Phellip é formado em Letras pela UEPG e Mestre em Linguagem e doutorando em literatura. Atua como pesquisador de linguagens iconoverbais, principalmente quadrinhos. Lançou com a Melissa Garabeli a graphic novel Saudade (2018), finalista do Jabuti, vencedor do HQmix e do Angelo Agostini. Atualmente trabalha com worldbuilding para jogos e tem um perfil de poesia chamado @enquantohouver.

 


Paulista de nascimento e morando no RS desde 2005, Eduardo Ribas iniciou seu passeio nos quadrinhos em 2017, lançando O jogo mais difícil do mundo. Desde então, vem lançando histórias curtas como a "não-trilogia" de espada e magia PÛT, MÄQ e TÔM. Sempre de forma independente, segue produzindo e publicando histórias enquanto ganha dinheiro de outras formas.