15 dezembro 2008

Jardim dos Sonhos

Ele nasceu em um jardim sentindo o cheiro das flores e o vento que acariciava sua pele, ouvindo os sons das folhas balançarem com o sopro dos ventos e aquela profusão de cores ao seu redor. O jardim era o seu mundo. E assim ele cresceu acreditando existir um jardim em seu corpo e, a cada atividade, procurava recuperar o jardim perdido seja em seu bairro ou mesma na cidade vizinha.

Seu amor por jardim era tanto que ele se tornou jardineiro. E com grande eficácia conseguia prazer no que fazia. Cuidar das plantas. Naquele pequeno pedaço verde de terra ele operava o milagre de fazer com que a vida ressurgisse com beleza. Era um trabalho detalhista, de amor à natureza. Sua vida era um jardim, pois ele respirava o verde das árvores, o perfume das flores e carregava dentro de si um jardim de delícias, um jardim de sonhos.
Todos que passavam pelo local não conseguiam enxergar o jardineiro, e sim o jardim com toda beleza. Durante os últimos 20 anos ele fazia sempre a mesma coisa com um sorriso enorme no rosto. Sua voz era suave quando falava com as flores e sentia que suas palavras estavam sendo ouvidas. O cuidado que tinha com o jardim era visível a todos.
Enquanto para muitos aquele trabalho deveria ser um tédio, para ele era uma excitação. Ele nunca desprezava a repetição e, ao atingir seu acorde final tão logo tenha conseguido cuidar de cada canto do jardim, a beleza se fazia surgir. E a cada vez que ele repetia o cuidado com as plantas, cada vez mais era de uma forma diferente. Cada repetição é uma ressurreição, um eterno retorno de uma experiência passada que parecia nova em folha.
A vida humana, mesmo nos momentos de maior tragédia, é uma luta pela beleza e a beleza exige a repetição. Uma vez só não basta. É como o Bolero de Ravel. Há um único tema ao longo de todo o Bolero, e a idéia em espiral. Cada volta na espiral é a mesma coisa e é outra coisa. Assim é a vida do jardineiro. Afinal o sol nasce e morre a cada dia e essa beleza é diferente a cada renascer.
Assim é o jardineiro, a cada repetição a beleza renasce nova e fresca como a água que borbulha na mina. E, a cada dia, a cada momento ele passa a cuidar com minúncia do seu jardim, desenvolvendo essa repetição e modificando, transpondo esse acontecimento fortuito para fazer disso um instante de beleza, de prazer. O cuidar das coisas belas. E ele saber de cor onde estava cada plantinha e mesmo que tudo aquilo desaparecesse ele seria capaz de recriá-lo, porque todas as árvores, folhas, flores e raízes estavam formado em seu corpo. A essência do jardim estava dentro dele. A beleza que ele via no jardim era a beleza que morava em seu corpo.
Até que um dia, ao passar por um local nunca antes visto, ele deparou-se com o deserto e, procurou desesperadamente um jardim. Ele sabe que o deserto era belo porque, em algum lugar, esconde um jardim. Mas sua procura foi em vão, no deserto não havia jardim. E o jardineiro que inconscientemente compôs sua vida segundo as leis da beleza da natureza, nesse instante do mais profundo desespero ele entristeceu e sentou em uma pedra que havia no local. Ficou até por horas, dias, semanas até que desapareceu feito pó. O vento então soprou o pó pela terra deserta e com a chegada da chuva, com o tempo, o milagre do pó do jardineiro ressurgiu em folhas verdes e, meses depois, aquele deserto transformou-se em um belo jardim, onde a vida fez amor com a beleza. No jardim seu trabalho se realizou. No jardim ele encontrou o prazer e descansa. Pura contemplação.
FÉRIAS
Caros leitores: a partir de amanhã, terça-feira (dia 16) estarei de férias e vou aproveitar para ler uns livros reservados para ocasião, ouvir algumas músicas necessárias para o coração, colocar a mão na terra para saber da estação, mimar meus cachorros e plantar o que a natureza espera de cada um de nós. Dia 05 de janeiro de 2009 estarei de volta. São poucos dias afastados. Voltarei com mais energia. E já tenho alguns textos para o próximo ano sobre grafite, Druuna, Salvador Dali, consciência das palavras, o personagem de HQ Tintin, tatuagem, a questão da arte atravessando décadas, o olho que tudo vê, a invenção do Nordeste, o poder da igreja e outros temas... Obrigado pela atenção. Boas festas e um 2009 com muita saúde e esperança!


































12 dezembro 2008

Música & Poesia

Cidadão (Lucio Barbosa)

Tá vendo aquele edifício moço
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Eram quatro condução
Duas prá ir, duas prá voltar
Hoje depois dele pronto
Olho prá cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz desconfiado
"Tu tá aí admirado?
Ou tá querendo roubar?"
Meu domingo tá perdido
Vou prá casa entristecido
Dá vontade de beber
E prá aumentar meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer...


Tá vendo aquele colégio moço
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem prá mim toda contente
"Pai vou me matricular"
Mas me diz um cidadão:
"Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar"
Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer...

Tá vendo aquela igreja moço
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá foi que valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse:
"Rapaz deixe de tolice
Não se deixe amedrontar
Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asa
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar

Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar"


Segunda Elegia, Terceira Sede (Fabricio Carpinejar)

Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência, há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.

Parto em expedição às provas de que vivi.
E escavo boletins, cartas e álbuns
- o retrocesso da minha letra ao garrancho.

O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.

O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.

Reviso o testamento, alisando a textura
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.

O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.

O que fiz cabe numa caixa de sapatos.

Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.

Um auto-retrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.

Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?

E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.

Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.

O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.

Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
como um murmúrio ou estalar de um abraço.

Tudo pode nascer, ainda que abafado.

11 dezembro 2008

Revolução e puritanismo

Em seu livro “Pessoas Extraordinárias. Resistência, rebelião e jazz” o historiador Eric Hobsbawm dedicou o capítulo 17 a Revolução e Sexo. Diz ele: “Os sistemas de dominação e exploração de classes podem impor severas convenções de comportamento pessoal (por exemplo, sexual) em público ou na vida privada, mas também pode não o fazer. A sociedade hindu não era, em nenhum sentido, mais livre ou igualitária do que a comunidade não-conformista inglesa, pelo simples fato de que a primeira utilizava os templos para demonstrar uma grande variedade de atividades sexuais da maneira mais atraente possível, enquanto a segunda impunha restrições rígidas a seus membros, pelo menos em teoria. Tudo o que se pode deduzir desta diferença cultural específica é que os devotos indus que quisessem variar sua rotina podiam aprender a fazê-lo muito mais facilmente do que os devotos galeses”.
Para ele, “os dominadores consideram conveniente estimular a permissividade ou a lassidão sexuais entre seus súditos, nem que seja apenas para conservar seu pensamento afastado do estado de sujeição em que seja apenas para conservar seu pensamento afastado do estado de sujeição em que se encontram. Ninguém jamais impôs puritanismo sexual a escravos – muito pelo contrário. As sociedades em que os pobres são rigorosamente mantidos em seu lugar estão acostumados a certas explosões populares regulares e institucionalizadas de sexo livre, como os carnavais. De fato, como o sexo é a forma mais barata de divertimento, bem como a mais intensa (como dizem os napolitanos, a cama é a ópera do pobre), torna-se politicamente muito vantajoso, supondo-se que os demais fatores não variem, levar o povo a praticá-lo tanto quanto possível”.
“Em outras palavras – continua o historiador – não há conexão necessária entre a censura sexual ou política e a censura moral, embora frequentemente se suponha que haja. Exigir que algumas formas de comportamento não permitidas sejam publicamente admitidas só é um ato político se implicar uma mudança nas relações políticas (...). Nos últimos anos, as proibições oficiais ou convencionais sobre o que pode ser dito, ouvido, feito e mostrado em público – como também na vida privada – a respeito do sexo têm sido virtualmente abolidas em vários países ocidentais. A crença de que uma moralidade sexual rígida é um baluarte essencial do sistema capitalista já não é mais sustentável, assim como também não o é a crença de que a luta contra tal moralidade é premente. Há ainda alguns poucos que se lançam em Cruzadas anacrônicas imaginando-se vigorosos combatentes contra uma fortaleza puritana – mas a realidade é que suas mulheres já foram praticamente demolidas”.
Segundo o historiador, a batalha pelo caráter público do sexo já foi ganho mas isto não trouxe a revolução social para mais perto. A ordem social permaneceu inalterada. Diz que não há conexão intríseca entre permissividade sexual e organização social. Há, em troca, uma persistente afinidade entre revolução e puritanismo. “Não conheço qualquer movimento ou regime revolucionário sólido e organizado que não tenha desenvolvido acentuadas tendências puritanas”. Para ele o componente libertário dos movimentos revolucionários nunca foi capaz de resistir ao puritano. “Os Robespierres sempre acabam vencendo os Dantons. (...). Nem os stalinistas nem os trotskistas sentiram qualquer entusiasmo pelos surrealistas revolucionários que batiam às suas portas pedindo para serem admitidas. Os que sobreviveram com política não o fizeram como surrealistas”. E concluiu afirmando que as grandes revoluções do nosso século fizeram “avançar a liberdade sexual (e fundamentalmente) não pela abolição das proibições sexuais, mas por um ato maior de emancipação social: a liberação de sua opressão”.
“Entre os jovens rebeldes, aqueles que mais se aproximam do espírito e das aspirações da revolução social ao estilo antigo (maoísmo, trotskistas e comunistas) também tendem a ser os m,ais hostis ao consumo de drogas, ao anúncio indiscriminado de sexo, ou outros estilos e símbolos de dissidência pessoal. As razões invocadas são, frequentemente, que ‘os trabalhadores’ não entendem nem simpatizam com tal comportamento. Seja ou não assim, o que não se pode negar é que um comportamento como aquele consome tempo e energia e dificilmente é compatível com organização e eficiência”.

10 dezembro 2008

Corrupção cria raízes na sociedade

A imprensa revela, diariamente, evidências de comportamento inadequado, antiético ou criminoso de representantes dos três Poderes. Cerca de R$40 bilhões é o cálculo do rombo anual nos cofres públicos. A corrupção hoje funciona em redes, organizada. Os escândalos revelados têm a ver com nepotismo, fraude em, licitações e concorrências, compra de apoio parlamentar. Com a impunidade a corrupção se espalha em todo o segmento da sociedade. As operações da Polícia Federal e ações do Ministério Público têm muito de espetáculo, não redundam em condenações. E o resultado é um forte cheiro de pizza impregnando o país.

A impunidade compõe o ambiente propício para o quadro de desencanto institucional e de depressão cívica que se observa hoje no país. A idéia de impunidade na corrupção destrói a idéia de nação. É preciso estimular mais a vigilância da sociedade. Afinal, a cultura da ineficiência com falta de transparência é um coquetel explosivo.A sociedade não tem o hábito de fiscalizar. É preciso investigar, processar, punir, prevenir, e a sociedade precisa se fortalecer e fiscalizar. A morosidade do Judiciário cria toda essa sensação de impunidade. É preciso que o sistema penal tenha ritos mais simples, fase investigativa mais curta, para desestimular a corrupção, e revisão do foro privilegiado. Mais transparência na gestão de todas as esferas públicas e diminuição de burocracia na máquina do Estado.
Levantamento da Operação Navalha revela que quase a metade dos parlamentares recebeu de empresas do setor de construção civil doações vultosas às suas campanhas eleitorais. Neste vínculo vicioso a corrupção se repete ano após ano. É preciso estancar o sangramento. O que se nota é que a corrupção cria raízes na sociedade e parece se multiplicar por todos os cantos do país. Quem paga a conta é sempre o cidadão comum. Os atos que lesam a administração pública atingem o cidadão comum, pois cada centavo desviado do erário significa menos escolas, menos qualidade no atendimento à saúde da população, menos estrutura social e urbana. E isso gera pobreza, violência e tantos outros déficts sociais.
É preciso que aquele que pratica um ilícito (seja dos Poderes Executivo, Judiciário ou Legislativo) paguem por suas faltas como qualquer cidadão comum. É hora da sociedade organizada reagir. O professor de história do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, SP, Marco Antonio Villa em um artigo para o jornal Folha de S.Paulo escreveu: “A Justiça brasileira é severa com o ´andar de baixo´, mas leniente com o ´andar de cima´. Contra os pobres, age rapidamente e pune severamente. Já políticos acusados de corrupção – e considerados por seus pares como corruptos – continuam circulando livremente. Alguns estão no Congresso e são recebidos pelo presidente da República com todas as honras. Um deles, inclusive, pode entrar tranquilamente no Palácio do Planalto, mas será preso se pisar nos Estados Unidos”.
“O Judiciário deve agir combatendo os crimes, independentemente da origem social do acusado. Parece óbvio, mas não é o que ocorre no Brasil. É um Poder que acabou conivente com a desmoralização da própria Justiça. E exemplos não faltam. Não é mero acaso que nenhum dos políticos importantes acusados de corrupção tenha sido condenado e preso. Eles contratam advogados criminalistas especializados em inocentar corruptos – e eu cobram honorários caríssimos. Sabem que recebem dinheiro sujo. Mesmo assim, muitos deles, sem pestanejar, assinam manifesto em defesa da ética na política...”. E encerra seu artigo afirmando: “O que o país espera é uma Justiça célere, eficiente e não-classista. (...) Espera que o corrupto seja preso, julgado e condenado (devolvendo aos cofres públicos o dinheiro desviado)
O Brasil tem leis suficientes para punir os envolvidos com corrupção, mas é necessário que elas sejam efetivamente aplicadas e que o processo judicial seja mais ágil. A avaliação é de representantes de duas organizações não-governamentais que tratam do combate à corrupção no país: Transparência Brasil e Amigos Associados de Ribeirão Bonito. Para o diretor-executivo da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, a maior parte dos problemas que acontecem com licitações públicas não decorrem por falhas na lei, mas da não aplicação da legislação. “Se a lei fosse aplicada e se a não aplicação da lei fosse punida, já seria um passo monstruoso na direção da moralização maior dos negócios públicos no país”, avalia.
O presidente da organização não governamental Amigos Associados de Ribeirão Bonito (Amarribo), Josmar Verillo critica o que considera uma “indecência” que é o foro privilegiado para políticos. “Foro privilegiado é guarda-chuva de bandido. Para que se criou uma lei de improbidade administrativa para agente político, se ela não se aplica aos políticos? Isso é um absurdo”, argumenta. Segundo o presidente da ONG Amarribo, existem no país máfias organizadas que sabem como buscar recursos públicos, emitir notas frias, criar empresas fantasmas e que já têm esquemas sobre como desviar cada tipo de verba. A única saída para amenizar essa situação, segundo Verillo, é a participação da a sociedade civil na fiscalização da aplicação do dinheiro público. “É preciso uma reação social. Se a sociedade não reagir a isso, vamos ficar anos jogando dinheiro público fora”, afirma.
No Dia Internacional de Combate à Corrupção (09 de dezembro), o Brasil apareceu mal em uma lista de países onde é preciso pagar propina para fechar negócios. O Brasil não ficou nada bem no ranking da organização Transparência Internacional. Na lista dos 22 países onde as empresas exportadoras apelam ou não para corrupção, o Brasil é o quinto mais corrupto, empatado com a Itália. Na outra ponta, as empresas da Bélgica e do Canadá são as mais honestas. Foram ouvidos 2.742 empresários de várias partes do mundo. A conclusão da pesquisa: os empresários de economias emergentes, da Rússia, da China, do México e da Índia são os que mais subornam. Para tentar, pelo menos, reduzir um pouco a impunidade e punir quem suborna ou corrompe, a Controladoria-geral da União (CGU) criou a lista das chamadas empresas sujas , punidas por irregularidades em licitações, fraudes fiscais ou no cumprimento de contratos com a administração pública.

09 dezembro 2008

Paixão pelo saxofone

Há 170 anos surgia o saxofone, mas o novo instrumento de sopro só foi patenteado dois anos depois. Criado no século 19 pelo belga Adolphe Sax, o instrumento não foi valorizado pelas orquestras sinfônicas. Do início nas bandas marciais ele acabou transformando-se no símbolo do jazz, depois caiu na boca do rock, das trilhas de cinema, da publicidade e de uma nova geração que ganha a vida e se diverte explorando a sensualidade de seu som.

Sendo um instrumento híbrido (corpo de metal, mas a palheta é de fibra de madeira), sua sonoridade típica e seus múltiplos recursos cativaram os músicos, que nele encontraram meios para expressar seu talento. Muitos afirmam que o saxofone é o instrumento que mais se aproxima da voz humana. O soprano tem dois formatos: reto (o mais comum) e curvo (pouco usado)
O músico Coleman Hawkins teve a primazia de popularizar o instrumento e ficou conhecido como o pai do saxofone no jazz. Já no jazz moderno, Charlie Parker (um dos criadores do estilo bebop) deu início a uma nova era, influenciando milhares de músicos em todo o mundo. Parker mudou tudo no jaz com uma sonoridade e fraseado sinuoso e a inserção de uma torrente de notas inimagináveis. Em cada solo novos rumos para o instrumento e o jazz. Sua energia e paixão pelo sax fez escola. Em seguida veio Lee Konitz com novas sonoridades, Lester Young e seu cool jazz. Outros nomes importantes no jazz: Dexter Gordon, Wardell Gray, Stan Getz, Sonny Rollins e John Coltrane. Este último trouxe ao instrumento uma velocidade até então jamais imaginada.
No Brasil o destaque vai para Vitor Assis Brasil, Hermeto Paschoal, entre outros.
QUEM É QUEM NA BAHIA
Eis alguns nomes de músicos da Bahia que têm intimidade com o instrumento
Rowney Scott eleito pelo Troféu Caymmi como o melhor instrumentista de 1985, época do auge do saxofone no mundo. A sensualidade e a melodia harmoniosa estavam no ar.
Paulinho Andrade além de saxofone toca também flauta. Já gravou com diversos artistas, foi professor da Academia de Música Atual. Sua formação musical é erudita. Cursou a Escola de Música da UFBa e enveredou pelo jazz nos anos 80 por questão de preferência.
Tuzé de Abreu se apaixonou pelo instrumento por causa do disco do saxofonista americano Paul Desmond. Tuzé tinha 13 anos e já tocava violão, piano e quis aprender sax e resolveu estudar o instrumento.
Luciano Queiroz acostumou desde criança a ouvir o instrumento pelo pai e passou então a toca-lo. Já tocou com diversos grupos como o Tríade, Sexteto do Beco, Oficina de Frevos e Dobrados, Banda Sinfônica da UFBa, entre outros.
Jeová Nascimento começou estudando violão. Depois entrou para a faculdade e começou a estudar instrumento de sopro. Inicialmente desenvolveu um trabalho com o grupo Operanóia. Fora da Bahia estudou com Paulo Moura, Nivaldo Ornellas, entre outros.
Zeca Freitas primeiro se interessou pela flauta, em seguida sax e foi tocar no Sexteto do Beco, do qual foi um dos fundadores. Foi também um dos fundadores da Academia Música Atual.
Vivaldo Conceição teve contato com a música desde os sete anos e tocou em muitas orquestras.
NA LITERATURA E CINEMA
A paixão pelo jazz acompanhou o escritor Fernando Sabino desde a juventude e sua andança pelo mundo lhe possibilitou se aproximar de inúmeros grandes mitos jazzísticos. Em muitas crônicas, Sabino já falou de sua paixão pelo jazz e pelo sax. No desenho animado da família Simpson a garotinha Lisa é apaixonada pelo saxofone. Em “On The Road” o escritor Jack Kerouac apresenta uma passagem em transe de uma saxofonista em altas doses de suspense.
No cinema, o cineasta Clint Eastwood dirigiu em 1988 o filme “Bird”, biografia do saxofonista Charles "Bird" Parker, um dos mais famosos jazzmen americanos. A fita conta sua vida, cheia de drogas, álcool, amores e sua brilhante arte. Três anos antes Joel Schumacher dirige o “Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas” onde um grupo de jovens pretende se manter unido após sua formatura, enfrentando junto as alegrias e problemas da nova fase de suas vidas.
O sax tem ponto alto.
No filme “A Estrada Perdida”, de David Lynch (1997) o ator Bill Pullman faz o papel de um saxofonista de jazz vanguardista que é casado com Renee (Patricia Arquette). Ele suspeita que Renee pode ser infiel a ele, mas percebe que tem coisas maiores para se preocupar quando alguns vídeos aparecem na porta da sua casa, provando que alguém está observado a casa por fora e por dentro. Quando Renee é encontrada morta, Fred é preso e condenado por homicídio em primeiro grau. Entretanto em uma manhã não está mais em sua cela e se transformou aparentemente em Pete Drayton, um jovem mecânico de automóveis que é libertado mas tolamente se envolve com a mulher de Dick Laurent, um gangster, chamada Alice Wakefield, uma loira bem sensual que é exatamente igual a Renee. Complicado? Nada disso, é sensualidade do sax a toda prova.
E o sax continua seduzindo o mundo e sendo um dos principais astros na música, cinema, teatro, televisão, publicidade. Para aprender a toca-lo basta possuir o instrumento e dispor de determinação e tempo.

05 dezembro 2008

Música & Poesia

A Força Que Nunca Seca (Vanessa da Mata)

Já se pode ver ao longe
A senhora com a lata na cabeça
Equilibrando a lata vesga
Mais do que o corpo dita
O que faz e equilíbrio cego
A lata não mostra
O corpo que entorta
Pra lata ficar reta.


Pra cada braço uma força
De força não geme uma nota
A lata só cerca, não leva
A água na estrada morta
E a força nunca seca
Pra água que é tão pouca.


Segunda Elegia, Terceira Sede (Fabricio Carpinejar)


Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência, há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.

Parto em expedição às provas de que vivi.
E escavo boletins, cartas e álbuns
- o retrocesso da minha letra ao garrancho.

O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.

O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.

Reviso o testamento, alisando a textura
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.

O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.

O que fiz cabe numa caixa de sapatos.

Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.

Um auto-retrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.

Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?

E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.

Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.

O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.

Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
como um murmúrio ou estalar de um abraço.

Tudo pode nascer, ainda que abafado.

04 dezembro 2008

Bahiano

Cantor. Nascido em 05 de dezembro de 1887, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, Manuel Pedro dos Santos ganhou fama ao se tornar cançonetista com o apelido de Bahiano. Especializado em modinhas e lundus, ele cantava acompanhado de violão e teve a chance de se tornar conhecido e ganhar lugar definitivo na história da música popular brasileira e do samba em particular, ao gravar para a Casa Edison o considerado primeiro samba levado ao disco, o Pelo Telefone, em 1917. Foi o primeiro samba a alcançar sucesso nacional. Para tanto, influíram vários fatores. A letra jocosa e provocativa sobre a “jogatina” na cidade (“O chefe da polícia/pelo telefone/mandou me avisar/que na Carioca/tem uma roleta/para se jogar...”) era de fácil assimilação e foi sem dúvida o estopim para a difusão maciça do samba. Nas gravações, a letra foi alterada (“O chefe da folia/pelo telefone/manda me avisar/que com alegria/não se questione/para se brincar//Ai,ai,ai/deixa as mágoas para trás/ó rapaz!/ai,ai,ai/fica triste se és capaz/e verás//Tomara que tu apanhes/pra nunca mais fazer isso/tirar amores dos outros/e depois fazer feitiço...”). Não faltaram também os aproveitadores, que na esteira do êxito da gravação de Bahiano correram atrás dos lucros. Nas ruas, e nos jornais da época, o samba vingara com inúmeras versões e acirrada polêmica, contribuindo definitivamente para a fixação do gênero como música de carnaval.

O batuque é a célula-mãe da manifestação musical popular mais importante do país e dele surgiram ramos, afluentes, tendências, que se espalharam por todo o território. Sob nomes mais diversos, ganharam estilos e andamentos próprios, sotaques regionais, assumiram caráter romântico, jocoso, boêmio, patriótico. Na união dos africanos, com baianos e imigrantes italianos surgiria música naturalmente. Do batuque passou para calundus e calhandos, seguiram-se fofa, lundu e fado (ambiente urbano) e jongo, samba e coco (rural), passando pela modinha, lundu-canção, maxixe e choro até chegar na vertente atual do samba, seja samba-canção, samba-enredo, samba de roda, samba de breque, samba funk ou samba reggae.
Com a gravação de Pelo Telefone, o samba dava o primeiro passo para abrir a porta de saída do gueto negro e ganhar as ruas. Parodiando jocosamente, usado como veículo publicitário, assobiado nas ruas e cantado nas festas ricas e pobres, o primeiro samba cumpria seu papel de pioneiro desde a primeira vez em 1916, quando foi notado por um público maior que aquele frequentador do casarão comandado por Tia Ciata, a mãe do samba. No ano seguinte foi gravado e abriu um capítulo novo na história da música popular brasileira, provocando uma série de imitações - quando não plágios - de tímidos seguidores. Gradativamente fez escola, tomou forma, criou estilo, empolgou poetas populares e mesmo eruditos, trouxe músicos da melhor qualidade para seu redor, deixou de ser considerado marginal ganhando respeito como arte popular e status de gênero musical por meio do qual o mundo reconhece o Brasil.
A carreira de um dos mais celebrados intérpretes da música popular brasileira não ficou perdida graças a introdução do fonógrafo no Brasil. O fonógrafo foi responsável por ser possível avaliar a obra do cantor Bahiano, logo após a implantação do aparelho no Brasil. Quando em 1903 Fred Figner, o proprietário da Casa Edison, fez editar o primeiro catálogo comercial de discos de sua fábrica, quem encabeçava a lista das primeiras 73 gravações era exatamente Bahiano, por ele contratado - junto com Cadete, outro intérprete popular - para ser o primeiro a gravar comercialmente no Brasil. Em 1904 o jornal Echo Phonographico, de São Paulo, estampava uma foto e prestava uma homenagem ao cantor Bahiano, “primeiro cançonetista brasileiro”.
Primeiro cantor a se profissionalizar no Brasil, gravou também o primeiro disco, que substituiu os cilindros gravados, como de hábito na época, em apenas uma das faces. Esse registro foi feito com o lundu de Xisto Bahia, Isto É Bom, no selo Zon-O-Phone nº10.001. Entre 1902 e 1904, Bahiano gravou três discos: a canção Ave Maria (letra de Fagundes Varela), a cançoneta Art Nouveau e a modinha Querida Flora. Sendo o artista mais popular de seu tempo, Bahiano fez sucesso até meados dos anos 20, gravando composições consideradas clássicas entre as centenas de sua discografia. A modinha Perdão Emília, de Eduardo das Neves, o tango de Arthur Azevedo, As Laranjas da Sabina, e a toada Cabôca de Caxangá, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, são exemplos.
O samba Quem Vem Atrás Fecha a Porta, de Caninha, foi gravado com sucesso por Bahiano em parceria com a cantora Izaltina. Ao lado de Maria Marzulo ele gravou O Casaco da Mulata. Bahiano cantou sobre muitos motivos de sua terra, e uma de suas características era falar de si próprio em algumas canções que gravava. Um bom exemplo disso é o lundu Baiano Dengoso em que a figura do baiano é citado na música nada mais é do que o próprio cantor. Sua autoria é anônima: “Sou baiano/sou cabra dengoso,/sou baiano de todos querido,/sou baiano, sou forte e manhoso,/sou baiano, sou bem decidido.//Sou baiano que tenho capricho,/é notório por todos sabido,/sou baiano e não quero rabicho,/pois rabicho é tempo perdido”...
Outro lundu gravado por Bahiano tem como título A Farofa. Música de melodia alegre traz em seus versos um pouco de malícia. Ele também gravou Ai Seu Mé, Goiabada, Luar de Paquetá, Tatu Subiu no Peru e Chora, Chora, Choradô. No final da carreira grava Quem Eu Sou, lamentoso e autobiográfico: “Quem eu sou?/Um baiano atirado/Nessas vagas soberbas do mar/Já sem leme, bem perto da rocha/Desse abismo que vai me tragar”- e fecha com uma fala inesperada: “Canto há tantos anos e nunca arranjei nada. Finalmente, consegui um empregozinho nesta casa, com o que vou vivendo, graças a Deus”. Bahiano morreu no dia 15 de julho de 1944, no Rio de Janeiro. Sua carreira chegou ao fim como começou, humilde. E hoje poucos se lembram dele. (Biografia publicada no livro Gente da Bahia, de Gutemberg Cruz)

03 dezembro 2008

Tudo flui com Heráclito

Hoje vamos mergulhar um pouco nas reflexões de Heráclito, considerado o mais importante dos pré-socráticos. É dele a frase de que tudo flui. Não entramos no mesmo rio duas vezes e o sol é novo a cada dia. É o filósofo do devir, a lei do universo, tudo nasce se transforma e se dissolve, e todo o juízo seria falso, ultrapassado. Desprezava a plebe, não participou da política e desprezou a religião, os antigos poetas e os filósofos de seu tempo. É o primeiro pré-socrático com um número razoável de pensamentos, que são um tanto confusos, e por isso tem o nome de Heráclito, o obscuro. São aforismos. Foi muito crítico.
Devido ao seu estilo baseado em charadas de difícil compreensão, era conhecido como o obscuro. Ele gostava de enigmas, paradoxos e jogos de palavras enigmáticas que ocultavam seus próprios significados. Ele levou o discurso filosófico de Tales, Anaximandro e Anaxímenes a posições decididamente mais avançadas e em grande parte novas.
Heráclito chamou a atenção para a perene mobilidade de todas as coisas. Segundo ele, nada permanece imóvel e nada permanece em estado de fixidez e estabilidade, mas tudo se move, tudo muda, tudo se transforma, sem cessar e sem exceção ("tudo flui"), recordando a futura e famosa afirmação de Lavoisier. Para ele, só o devir das coisas é permanente, no sentido de que as coisas não têm realidade senão justamente no perene devir. Para Heráclito, o devir é um contínuo conflito dos contrários que se alternam, é uma perene luta de um contra o outro, uma guerra perpétua. E como as coisas só têm realidade no perene devir, essa guerra se revela como o fundamento da realidade das coisas.
Para o filósofo, o mundo estava em constante mudança, “em fluxo”, e a estabilidade aparente era uma ilusão. Foi ele quem insistiu, num dito celebre, que não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio. Ele estendeu essa idéia desde a Natureza até o comportamento humano, sempre enfatizando a importância da tensão e complementariedade entre opostos como a força motriz por trás do dinamismo do mundo à nossa volta. “Princípio e fim, na circunferência de um círculo, são idênticos”. Para ele, o equilíbrio é atingido através da necessária complementariedade entre os opostos, a qual ele chamou de Logos, como o arco, que deve ser envergado para trás, de modo a poder arremessar a flecha para a frente.
Ele foi i primeiro filósofo, o pioneiro em tratar espiritual e internamente de fenômenos da natureza exterior. Assim nasceu a psicologia. Há 2,5 mil anos, ele antecipou as descobertas da fisiologia cerebral e das redes de computadores. Ele vê a alma como um espelho da natureza e chama essa complexa estrutura de logos, e a caracteriza como o fogo vital e eterno: “Todas as coisas são transformadas em fogo, e o fogo se transforma em todas as coisas, assim como o ouro é trocado por todas as mercadorias e todas as mercadorias são trocadas por ouro”. Ou seja, todas as coisas podem ser reduzidas ao fogo primordial, que concentra tudo num só. “O todo está em cada um; cada um faz parte do todo”. Assim, a força básica era o fogo, devido ao seu poder de transformas as coisas, de pô-las em movimento.
Para Heráclito, reina a unidade na diversidade e diversidade na unidade. O movimento, o vir-a-ser e o deixar-de-ser, constitui uma unidade. Ao mesmo tempo que algo torna-se outra coisa, esse algo se mantêm o mesmo. “Tudo se desfaz e se reagrupa, se aproxima e continua. Nada é sólido”. Na ordem natural das coisas, tudo flui, tudo cresce e morre. Sobre o processo de transformação, deixe-se levar pelas ondas dos seus pensamentos e ouça a composição de Lulu Santos e Nélson Motta, “Como uma onda”: “Nada do que foi será/De novo do jeito que já foi/um dia/Tudo passa, tudo sempre/passará/A vida vem em ondas,/como um mar/Num indo e vindo/infinito//Tudo que se vê não é/Igual ao que a gente viu a/um segundo/tudo muda o tempo todo no/mundo//Não adianta fugir/Nem mentir pra si mesmo/agora/Há tanta vida lá fora/Aqui dentro/ sempre/Como uma onda no mar/Como uma onda no mar/Como uma onda no mar”.
Chama a atenção, além da pluralidade, para os opostos. Tanto o bem como o mal são necessários ao todo. Deus se manifesta na natureza, abrange o todo e é crivado de opostos. O logos é o princípio cósmico, elemento primordial, e a razão do real, a inteligência. A verdade se encontra no devir, não no ser. Com sentidos poderosos, poderíamos vê-lo. O pensamento humano participa e é parte do pensamento universal. O fogo é eterno, um dia tudo se tornará fogo. A felicidade não está nos prazeres do corpo. A morte é tudo que vemos despertos, e tudo o que vemos dormindo é sono. Existe a harmonia visível e a invisível. A alma não tem limites, pois seu logos é profundo e aumenta gradativamente. O pensar é comum a todos. A terra cria tudo, e tudo volta para ela.
O ser não é mais que o não ser. O fogo condensa-se, e apagado vira água. Ele encontrou fogo na alma humana, comparou-a com uma chama que se apaga na morte. Identificou o infinito na natureza, não apenas o matemático, mas o que constitui a essência das coisas. Pois todas as coisas têm uma essência, e o fluxo da alma é tão fundo que não tem fim. O universo de Heráclito era eterno, e em constante estado de fluxo.

02 dezembro 2008

Harmonia e imperfeição

Na vida tudo gira em torno da harmonia. Um bom exemplo disso é a coreografia dos ciclos naturais, primavera, verão, inverno e outono mostrando como a vida coexiste e improvisa com o meio ambiente e como padrões simétricos tendem a se repetir. Basta ver a bifurcação dos troncos das árvores e dos leitos dos rios, as espirais das galáxias, e das conchas, a simetria das asas de uma borboleta e dos flocos de neve.

No universo não há só harmonia e simetria. Se só houvesse equilíbrio jamais haveria transformação. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilíbrio. O próprio Universo se originou do desequilíbrio. Quando o sistema está equilibrado, não se transforma. Sem transformação não há criação, nada acontece. Portanto, tudo o que ocorre e que se transforma no mundo o faz devido a imperfeições, ao desequilíbrio. É a tensão entre harmonia e imperfeição que gera a criatividade do mundo natural, das formas mais simples àquelas mais complexas. Como pode existir harmonia em um Universo que tende à desorganização. Esse é um dos grandes desafios da Ciência.
As imagens vindas dos mais distantes recônditos cósmicos mostram as profusões de cores e formas de uma beleza espetacular que alguns defendem como harmonia universal. Puro mito. O que existe se olharmos mais atentamente no espaço cósmico são fenômenos catastróficos como galáxias em colisões gerando devastadoras explosões e até buracos negros engolindo tudo ao seu alcance. Um verdadeiro caos absoluto. A imperfeição e falta de harmonia também se encontra em nosso planeta. Um bom exemplo são os dinossauros que, de tão imperfeitos, já nem existe há mais de milhões de anos porque não alcançaram a harmonia e perfeição exigidas naquele momento. Se houvesse de fato harmonia universal não teríamos o velho confronto entre o bem e mal (e tantos outros opostos).
Toda a história contemporânea gira em torno do problema da desigualdade ou da igualdade dos direitos humanos. E neste século a história registra um movimento igualitário cada vez mais acelerado. Velhos querem parecer jovens. Professores se dizem iguais aos alunos. Governantes procuram igualar-se aos governados, padres querem nivelar-se aos fiéis.
Assim, a desigualdade permite a ordem e harmonia do Universo. A beleza do arco íris só é possível pela desigualdade harmoniosa das cores. É a desigualdade das notas musicais que permite a música. No reino vegetal, a desigualdade cresce de valor diante da variedade: cedros majestosos no Líbano, orquídeas delicadas nas selvas brasileiras e repolhos em qualquer horta. E nos animais? O rei das selvas é o leão mas ele tem defeito na vista, só vê coisas grandes; o morcego somente pousa de cabeça para baixo, tendo uma visão invertida. Nos seres humanos todos são iguais em tudo, nos acidentes é que são diferentes (altos, baixos, gordos, magros, loiros, morenos, negros etc).
Sem encontrar paz na Terra, o astronomo Johannes Kepler (1571-1630) buscou a harmonia do mundo nos céus. Durante toda a vida, os homens se destroçaram em conflitos religiosos. Com imaginação e observação, a base da investigação científica, Kepler tornou-se o primeiro a compreender o movimento planetário. Ao constatar que uma força física movia os planetas, ele ajudou a fundar a Ciência moderna. Mas Kepler só conseguiu mudar a maneira de pensar de sua época porque não temia o que descobria. Sua curiosidade sobre seu Deus, dizia Carl Sagan, era maior que seu temor.
Assim, ao final, Kepler encontrou harmonia do mundo. Já o cientista Marcelo Gleiser, a imperfeição. Harmonia e imperfeição são pensamentos científicos de duas épocas distintas. Imperfect Creation será o próximo livro de Marcelo Gleiser. "Vou escrever sobre a importância da imperfeição no universo. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilíbrio, o próprio universo se originou de um desequilíbrio. Quando o sistema está equilibrado, ele não se transforma. Sem transformação não há criação, nada acontece", diz. "Mas o que vemos é a organização, a simetria. Um dos grandes desafios da Ciência é explicar como pode existir harmonia em um universo que tende à desorganização. A idéia que eu quero trazer é explicar como imperfeição e harmonia caminham juntas.". Pela primeira vez, Gleiser vai mesclar - deliberadamente - a Ciência com a própria biografia. Ele quer mostrar qual foi o papel da imperfeição, do desequilíbrio e da morte na criação da sua vida. Como ele alcançou à sua pró-cura.

01 dezembro 2008

Decifrando a transa (1972) de Caetano Veloso

Gravado integralmente em Londres, Transa (1972) é o terceiro disco solo de Caetano Veloso e um dos melhores do artista. Ele reuniu os amigos Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza para o trabalho de gravação, uma mistura de línguas, ritmos e sonoridades inspiradas nas sete faixas. Transa, transe e trânsito estão relacionados com o experimentalismo e as tranças litero-musicais do poeta Gregório de Matos (Triste Bahia), do compositor popular Monsueto (Mora na Filosofia), na homenagem aos Beatles (You Don´t Know Me – Você Não Me Conhece), João Gilberto (em um trecho de Saudosismo), Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Zé do Norte (“os óio da cobra verde”), Edu Lobo (“laia, ladaia, sabatana Ave-Maria”), entre outras preciosidades em seu processo de criação.
Se o LP anterior tinha tons sombrios da cinzenta paisagem londrina (Caetano Veloso, 1971), onde a capa traz um close do rosto do artista com fisionomia fechada e um espesso agasalho de pele e a vasta cabeleira em um exílio forçado, o disco de 1972 é o retorno, onde o Caetano múltiplo pede para ser decifrado. Você não me conhece, ele assume na primeira faixa.

A sensual "You don´t know me" abre o disco com um excelente arranjo acústico e um Caetano sutil e interpretativo. A música incidental cantada por Gal Costa (Saudosismo) foi gravada originalmente por Caetano no compacto duplo com os Mutantes. “Por que não me mostra (o que está) atrás do muro?”, ele pede cantando.
You don’t know me/Bet you’ll never get to know me/You don’t know me at all/Feel so lonely/The world is spinning round slowly/There’s nothing you can show me/From behind the wall//"Nasci lá na Bahia/De mucama com feitor/O meu pai dormia em cama/Minha mãe no pisador"//"Laia ladaia sabadana Ave Maria/Laia ladaia sabadana Ave Maria"//"Eu agradeço ao povo brasileiro/Norte, Centro, Sul inteiro/Onde reinou o baião.
Em seguida, o bilingüismo de "Nine out of ten" (Nove em Cada Dez) é acompanhado por uma levada meio samba, meio nordestina com uma sonoridade repleta de ecos, lembrando um show ao vivo. “A minha melhor música em inglês. É histórica. É a primeira vez que uma música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no começo e no fim. Muito antes de John Lennon, de Mick Jagger e até de Paul MacCartney. Eu e o Péricles Cavalcanti descobrimos o reggae em Portobelo Road e me encantou logo. Bob Marley e The Wailers foram a melhor coisa dos anos 70”, revelava Caetano na época. A música reflete a expansão do eu, o encontro do poeta com o prazer de viver, livre (“I´m alive”)
Walk down Portobello road to the sound of reggae/I’m alive/The age of gold, yes the age of/The age of old/The age of gold/The age of music is past/I hear them talk as I walk yes I hear them talk/I hear they say/Expect the final blast/Walk down Portobello road to the sound of reggae/I’m alive//I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo/Feel the sound of music banging in my belly/Know that one day I must die/I’m alive//I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo/In the Eletric Cinema or on the telly, telly, telly/Nine out of ten movie stars make me cry/I’m alive/And nine out of ten film stars make me cry/I’m alive
E o baiano explora composições antigas como a bela "Mora na filosofia" (de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos) carregado de tristeza e terminando como uma catarse, ou mesmo a impactante "Triste Bahia" onde mistura Gregório de Mattos com o samba de roda e jingadas de capoeira.. Há uma sonoridade crescente dos instrumentos afro-brasileiros, a começar pelo som do berimbau.
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante…/Estás e estou do nosso antigo estado/Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado/Rico te vejo eu, já tu a mim abundante/Triste Bahia, oh, quão dessemelhante/A ti tocou-te a máquina mercante/Quem tua larga barra tem entrado/A mim vem me trocando e tem trocado/Tanto negócio e tanto negociante//Triste, oh, quão dessemelhante, triste/Pastinha já foi à África/Pastinha já foi à África/Pra mostrar capoeira do Brasil/Eu já vivo tão cansado/De viver aqui na Terra//Minha mãe, eu vou pra lua/Eu mais a minha mulher/Vamos fazer um ranchinho/Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua/E seja o que Deus quiser//Triste, oh, quão dessemelhante/ê, ô, galo canta/O galo cantou, camará/ê, cocorocô, ê cocorocô, camará/ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará/ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará/ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará/Bandeira branca enfiada em pau forte…//Afoxé leî, leî, leô…/Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte…/O vapor da cachoeira não navega mais no mar…/Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante/Maria pegue o mato é hora…/Arriba a saia e vamo-nos embora…/Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora…//Oh, virgem mãe puríssima…/Bandeira branca enfiada em pau forte…/Trago no peito a estrela do norte/Bandeira branca enfiada em pau forte…/Bandeira…
Segue a canção “It's a Long Way” que faz referências explícitas aos Beatles. Começa lenta, termina como começou, mas da metade até quase o fim vai crescendo e agregando aos versos da canção alguns outros versos de músicas antigas. Lembrando os Beatles naquela canção “The Long And Winding Road” (no LP Let it Be) ele canta “It´s a Long Way” (É Um Longo Caminho) com um registro de voz que passa por vários estágios, de alegria e tristeza, onipotência e fragilidade. (Acordei esta manhã cantando uma uma velha canção dos Beatles). Há sutilezas na pronuncia da palavra “long” onde se pode entender “lone” (só) e “London”, lugar do exílio. E a composição agrupa baião, rock, bossa nova numa versatilidade apaixonante. A música é toda baiana, no ritmo cadenciado, bom de se ouvir na rede. Haja balanço.
Woke up this morning/Singing an old, old Beatles song/We’re not that strong, my lord/You know we ain’t that strong/I hear my voice among others/In the break of day/Hey, brothers/Say, brothers/It’s a long, long, long, long… way//Os óio da cobra verde/Hoje foi que arreparei/Se arreparasse há mais tempo/Não amava quem amei//It’s a long, long, long, long… way//Arrenego de quem diz/Que o nosso amor se acabou/Ele agora está mais firme/Do que quando começou//It’s a long road, it’s a long, long, long, long…/It’s a long road, it’s a long and widing road…/Long and widing… road/It’s a long road, it’s a long, long, long, long…//A água com areia brinca na beira do mar/A água passa e a areia fica no lugar//It’s a hard… hard, long way//E se não tivesse o amor/E se não tivesse essa dor/E se não tivesse sofrer/E se não tivesse chorar/E se não tivesse o amor//No Abaeté tem uma lagoa escura/Arrodeada de areia branca…/Woke up this morning…
Há levadas experimentais como "Neolithic Man" que não perde o ar brasileiro e a poética atemporal em torno do olhar (“você não me verá/você não verá”), do conflito entre o ver e o não-ver.
I’m the silence that’s suddenly heard/After the passing of a car/I’m the silence that’s suddenly heard/After the passing of a car/I’m the silence that’s suddenly heard/After the passing of a car/Spaces grow wide about me/Spaces grow wide about me/If you look from your window at the morning star/You won’t see me…/You’ll only see…/That you can’t see very far/God spoke to me/You’re my son/And my eyes swept the horizon/Away/Que tem vovó pelanca só/Que tem vovó pelanca/You won’t see me…/Spaces grow wide about me
O disco se encerra com “Nostalgia (That's What Rock'n'Roll is All About)”, homenagem ao rock-blues curto, de duas estrofes rápidas, com o detalhe de Gal Costa imitar gaita na primeira e, na segunda, a gaita "real" ser tocada por Angela Ro Ro. E na composição ele revela valores contrário à ideologia burguesa como o acordar tarde, roupas extravagantes, movimento hippie e o comportamento marginal.
You sing about waking up in the morning/But you’re never up before noon/You look completely different from those straights/Who walked around on the moon/The clothes you wear/Would suit and old times baloons/You’re allways nowhere/But you’ll realize pretty soon/That’s all that you care/Isn’t worth a twelve bar tune//You won’t believe you’re just one more flower/Among so many flowers that sprout/You just feel faintly pround when you hear they shout/Very loud: "you’re not allowed in here, get out"/That’s what rock’n’roll is all about/That’s what rock’n’roll is all about/I mean, that’s what rock’n’roll was all about.
O que se observa nesse trabalho é a mistura de nosso ritmo com a sonoridade estrangeira, numa fusão de qualidade e profundidade pouco realizada antes dele. Em seu processo criativo ele utilizou da estética da inclusão, o uso da repetição (para o fluir do som) e transformar essa expressão artística (a música) como uma linguagem que permite transportar o ser ao infinito. Há nesse disco um trabalho afinado e identificado com experiências renovadoras do som. Para ouvir e re-ouvir sempre.

28 novembro 2008

Música & Poesia

Pele Negra (Sérgio Cassiano e Aurelino Bandido)
Eu sei muito pouco, mas também já sei viver
Das armadilhas do dia a dia nada a temer
Eu vi suas mentiras, nada pode me ferir
Eu tô mais perto, só vou no certo, é pode vir
Porque sou forte deixo marcas pelo chão
Eu sou forte pele negra do Adão.
Herança (Luis Carlos Guimarães)
Nos hectares da poesia
que me coube por herança,
colho safra de palavra,
armazeno provisão,
bebo de sede no poço,
como a fome no feijão.
Invento tudo que penso,
sou mago, palhaço e rei.
Tenho tudo que não tenho,
lua no fundo do copo
e o arco-íris na sopa.
De mãos dadas com Carlitos
alimento de pão e mel
os bichos todos do circo.
Pelo sem-fio da tarde
recebo urgente avegrama:
“De longe país ao Sul
vão no caminho do vento
dois passarinhos azuis.
Solicito alpiste e água
na concha de cada mão.”
A noite cobre meu sono
e da serragem do sonho
faço colchão, travesseiro.
Acordo. É ganho ou perda
ter mais um dia a viver?
Com flanela limpo os óculos
(janela dos olhos míopes)
mas não vejo mais poesia,
que sou cada vez mais turvo
diante da vida dura
e do mundo tão escuro.

27 novembro 2008

A fama eterna de Andy Warhol (2)

Personagem obrigatório nos acontecimentos sociais de Nova York, ele usava seus cabelos, tintos, platinados e quando rarearam foram substituídos por perucas no mesmo tom e corte. Óculos de aros coloridos ele já usava na década de 50. Na moda, lançou o clássico e trivial look despojado: calça jeans, tênis e paletó escuro. No universo povoado por pessoas e situações do então “submundo das artes”, Warhol foi o responsável pelo lançamento do grupo Velvelt Underground na cena pop novaiorquina dos anos 60. O grupo não só apresentou Lou Reed ao mundo como mostrou aos hippies que havia muito mais sujeira embaixo do tapete do que o movimento flower power imaginava. Além de Lou Reed e John Cale, cabeças do Velvet, no Greenwich Village, Wahol introduziu a cantora alemã Nico ao grupo e passou a incluí-la na maioria de suas performances, projetos multimídia e filmes.

Em 1969, Warhol fundou a revista Interview, uma espécie de órgão oficial do grupo eclético que ele frequentava: artistas, modelos, fotógrafos, roqueiros, estilistas de moda, atores e gente famosa simplesmente por ser famosa. Ele editou livros, produziu filmes e apresentações no estúdio que mantinha em Manhattan, chamado Factory (Fábrica) e viveu cercado por uma fauna de gente pouco convencional. Depois era visto com frequência na discoteca Studio 54.
SURPRESA
Warhol foi um dos fundadores da pop art nos Estados Unidos. A pop art nasceu na Inglaterra, mas iria se desenvolver plenamente nos EUA, onde, em pouco tempo, tornou-se o primeiro movimento realmente norte-americano em arte, o que foi confirmado em 1964, quando Robert Rauschemberg tirou o grande prêmio da Bienal de Veneza, para surpresa dos europeus, que se consideravam os donos da arte mundial e inventores de todos os movimentos de arte do século XX. A pop floresceu nos EUA porque é essencialmente uma expressão estética da sociedade de consumo e da cultura de massa.
Responsável pela frase de que todo mundo, no futuro, seria famoso por 15 minutos, Warhol foi um marco na arte norte americana. Retratou personalidades e produtos com a frieza de uma máquina tendo conquistado fama e prestígio só comparáveis aos grandes artistas do século. Na época, o diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, Richard Oldenburg resumiu o perfil do artista que ajudou a criar as bases da pop art: “Warhol fez seu estilo de vida uma obra de arte... Foi uma das primeiras pessoas a se transformar, por ser artista plástico, em estrela”.
AMIZADE
Em 1982 aproxima-se da tv a cabo e cria Andy Warhol's TV e Andy Warhol's Fifteen Minutes para MTV, em 1986. Data dessa época a sua intensa colaboração e amizade com Jean-Michel Basquiat, jovem e promissor artista que ele promoveu e ajudou a se firmar no universo das artes plásticas novaiorquinas, tanto quanto outros, como Francesco Clemente e Keith Haring. Seus últimos trabalhos datam de 1986 com a série de pinturas intitulada The Last Supper, baseados em Da Vinci e um revival do grande tema da pop art intitulado Ads que remetem aos trabalhos iniciais baseados nos apelos da publicidade e do consumo e nos objetos do cotidiano.
Warhol morreu no dia 22 de fevereiro de 1987, aos 58 anos, de complicações cardiovasculares, depois de uma operação da vesícula. A tempo de ver quase concretizada uma de suas profecias: “no futuro, todo mundo será mundialmente famoso por 15 minutos”. Ele ganhou a eternidade. Em 1994 foi inaugurado o The Andy Warhol Museum em Pittsburgh, Pensilvânia. Quando morreu ficou-se sabendo que esse homossexual assumido e torturado, que não consumava suas paixões (a primeira delas foi Truman Capote), era um católico ortodoxo, que mantinha em seu quarto uma imagem do Sagrado Coração. Era este talvez o lado mais fascinante da personalidade de Warhol: sua capacidade de surpreender-se, e de surpreender.

26 novembro 2008

A fama eterna de Andy Warhol (1)

Há 80 anos nascia o filho caçula de uma família de humildes imigrantes tchecos (o casal Warhole), e criado em Pitsburg (Pensilvânia), Andy Warhol. Ele nasceu em 1928. Antes de dormir, sua mãe lia para ele histórias em quadrinhos de Dick Tracy. Com 12 anos perdeu o pai e precisou trabalhar vendendo frutas de um caminhão. Com isso, terminou os estudos e, em 1945, foi estudar pintura no Carneggie Institute of Tecnology. Chegou a Nova Iorque por duas ambições: ser tão famoso quanto uma estrela de cinema e rico o suficiente para sustentar sua mãe com quem viveu sempre, até perdê-la em 1972. Começou como artista comercial, em 1949. Foi vitrinista, fez todo tipo de desenho para todo tipo de publicidade, gravura, capa de livro, cartão de Natal, etc.

Os anos de publicidade inculcaram nele a propensão de fazer uma arte absolutamente privada de estilos ou emoção. A transição da publicidade para a arte pura se deu através das histórias em quadrinhos. Os primeiros trabalhos de Andy foram versões ampliadas das tiras de Dick Tracy usadas como elemento decorativo nas vitrines da loja novaiorquina Lord and Taylor. Uma das características de sua arte é justamente esta qualidade ou nitidez de imagem da publicidade ou da imagem produzida mecanicamente. Ele foi um dos primeiros a empregar a serigrafia para multiplicar os seus trabalhos. Para ele, como para a produção industrial, o que conta é a quantidade, e esta que acaba por gerar a qualidade.
Warhol não estava interessado em idéias mas em objetos. Ou melhor, imagens de objetos industrializados – a lata de sopa Campbell, a garrafa de Coca Cola, a tampinha Pepsi Cola, o vidro de ketchup ou as caixas de sabão em pó Brillo. Para ele estas imagens tinham o mesmo valor que as outras que ele também repetiu exaustivamente de personalidades famosas como Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor, Elvis Presley, Marlon Brando, Mao Tsé-tung e até Pelé, além do símbolo da foice e do martelo. Tudo neutro, asséptico e brilhante como os esquemas gráficos de livros de bolso. Nenhuma emoção ou subjetividade – o seu rosto deixava transparecer o mesmo tédio dessas imagens colhidas aleatório da sociedade de massa.
Quando em 1960 Warhol realizou as primeiras pinturas baseadas em Dick Tracy, Popeye e Super Homem, além de duas garrafas de Cola Cola, inaugurando assim, em meio a um dos mais sofisticados cenários das artes plásticas contemporâneas, um novo filão: a elevação da banalidade e da vulgaridade cotidiana a estatuto de arte (ou vice-versa).
NOVA ARTE

A consagração viria mais tarde, em 1962, quando, além de realizar a série de pinturas de notas de um dólar (da qual uma das telas do vendida em 1986, num leilão, em NY, por 385 mil dólares, um dos maiores preços já alcançados por um de seus trabalhos), Warhol expôs suas já clássicas latas de sopa Campbell´s (reproduções quase que fotográficas, como na ilustração publicitária do produto) na Ferus Gallery, em Los Angeles. Estava confirmada uma nova arte, uma das últimas correntes artísticas do século 20 a manter uma profunda tensão estética em seus propósitos, um questionamento entre o lugar da arte e a banalidade do mundo.
Quando lhe perguntaram porque resolveu pintar latas de sopa, na época, respondeu: “Porque eu comia aquela sopa. Comi-a durante vinte anos, quase todos os dias, sempre a mesma coisa. Alguém me disse que a minha vida me dominou, esta idéia me agrada”. Depois de séries de ícones de personalidades conhecidas, veio a série Disasters – terríveis acidentes de estrada, tumultos raciais e execuções em cadeiras elétricas. No auge de sua fama e também de riqueza, passou a pintar menos e se dedicar ao cinema. Seus filmes undergrounds fizeram época.
Trabalhando com super-8 e vídeo-taipe num primeiro momento, Warhol realizaria filmes fundamentais dentro da história do cinema como Sleep (o registro, durante seis horas ininterrupta, de um homem dormindo), em 1963, Empire (um único plano de oito horas do Empire State Building, em NY), em 1964, e Chelsea Girls (o registro de “pessoas fazendo várias coisas”, durante sete horas, no mitológico Chelsea Hotel, em NY) em 1966. Andy Warhol rodou cerca de 80 filmes entre 1963 e 1967.

25 novembro 2008

Cazuza, o poeta da sua geração

O musical Cazuza - Jogado a teus pés, de Francis Mayer (em cartaz no Rio de Janeiro), lembra os 50 anos que Cazuza completaria este ano e traz canções que embalaram a década de 80. Tendo como base as letras do compositor, o musical conta com roteiro de 38 canções e fala da trajetória de amores e paixões desenfreadas ou não correspondidas. Cinco atores-cantores e uma banda ao vivo fazem uma viagem musical pela obra do poeta do rock dos anos 80.

No início dos anos 80, um garoto dourado do sol de Ipanema surpreendeu o cenário musical brasileiro. À frente de uma banda de rock cheia de garra, começou a dar voz aos impulsos de uma juventude ávida de novidades. Ele, Cazuza, era a grande novidade. O Brasil saía de um longo ciclo ditatorial e vivia um clima de democracia ainda incipiente, mas suficiente para liberar as energias contidas. Cazuza desempenhou um papel importante nesse processo. E quando as misérias e mazelas nacionais foram se desnudando, ele respondeu sem meias palavras. A expressão de sua repulsa diante desse quadro só pode ser comparada à coragem com que lutou por sua vida, no enfrentamento público da Aids. Lições de indignação e de dignidade; de como levar a vida na arte e "ser artista no nosso convívio".
No pouco que viveu, Cazuza deixou uma obra para ficar. Bebeu na fonte da tradição viva da MPB para recriar, num português atual e espontâneo, cheio de gírias, e num estilo marcadamente pessoal, a poesia típica do rock. Com justiça, foi chamado de o poeta da sua geração.
NOVO INTEGRANTE - Roberto Frejat, guitarrista; Dé, baixista; Maurício Barros, teclados; Guto Goffi, baterista. Era 1981 e esses garotos precisavam de um vocalista para completar sua banda. Os ensaios aconteciam na casa de um deles no bairro de Rio Comprido, onde um dia apareceu Cazuza, enviado pelo cantor Léo Jaime. Sua voz, era adequadamente berrada para os rocks de garagem que os quatro faziam, agradou muito. Animado, o novo integrante resolveu então mostrar as letras que, na surdina, vinha fazendo havia tempos. Rapidamente o grupo, que se chamava Barão Vermelho e só tocava covers, começou a compor e aprontou um repertório próprio.
Dos primeiros shows, em pequenos teatros da cidade, ao disco de estréia foi um pulo. No início de 1982 uma fita demo chegou aos ouvidos do produtor Ezequiel Neves, que, entusiasmado, a mostrou a Guto Graça Mello, diretor artístico da Som Livre. Juntos, eles convenceram João Araújo - de início, relutante, na condição de pai do cantor - a lançar a banda. Com uma produção baratíssima, "Barão Vermelho", gravado em dois dias, obteve boa recepção da parte de artistas. Entre estes, um dos maiores ídolos de Cazuza, Caetano Veloso, que incluiu "Todo amor que houver nessa vida" no repertório de seu show e criticou as rádios por não tocarem as músicas do grupo.
"Todo amor que houver nessa vida" (registrada também, mais tarde, por Gal Costa, Caetano Veloso e outros intérpretes) foi um dos destaques de um disco que revelou ainda "Down em mim", "Billy Negão" e "Bilhetinho azul". No repertório predominavam rocks básicos, dançantes e juvenis, mas havia também blues, um gênero com o qual Cazuza se identificava desde que descobrira Janis Joplin. Sobre essas músicas o rouco cantor desfilava letras falando despudorada, escancaradamente de amor, prazer e dor. Ao sair o segundo disco, a reiteração dessas qualidades de estilo repercutiu na imprensa. Alguns críticos não tardaram a identificar ali a influência de mestres da dor-de-cotovelo, como Lupicínio Rodrigues, e da fossa, como Dolores Duran e Maysa - o outro lado da formação musical de Cazuza.
Bem melhor gravado, "Barão Vermelho 2" foi lançado em julho de 1983. O álbum ainda não seria um sucesso comercial (vendeu cerca de 15 mil cópias, quase o dobro do primeiro), mas manteve o alto nível do repertório anterior, e arregimentou um público maior para a banda com músicas como "Vem comigo", "Carne de pescoço", "Carente profissional" e "Pro dia nascer feliz". Esta última consolidaria a dupla Frejat-Cazuza, tornando-se um grande sucesso no registro feito por Ney Matogrosso, a primeira estrela da MPB a gravá-los. A escalada do grupo nas paradas, contudo, estava prestes a acontecer.
NAS TELAS - Se com "Bete Balanço", filme de Lael Rodrigues, o rock brasileiro dos anos 80 chegou às telas de cinema, com a música-título, feita de encomenda para a trilha, o Barão Vermelho chegou ao grande público. Registrada num compacto do início de 1984, a canção estourou, virando um marco no trajeto da banda, que também contracenava no filme. A música acabou incluída no terceiro LP, lançado em setembro daquele ano, para ajudar a sua comercialização. O que talvez nem tivesse sido necessário, pois "Maior abandonado", impulsionado pela faixa homônima, atingiu em dois meses a marca das 60 mil cópias vendidas, e em seis, das 100 mil.
"Raspas e restos me interessam (...) Mentiras sinceras me interessam", em "Maior Abandonado"; "Você tem exatamente três mil horas/ Pra parar de me beijar (...) Você tem exatamente um segundo/ Pra aprender a me amar", em "Por que a gente é assim?"; "A fome está em toda parte/ Mas a gente come/ Levando a vida na arte", em "Milagres". Com achados como esses, presentes no novo álbum, Cazuza foi ganhando fama de poeta do rock brasileiro. Com muita energia, ele foi superando suas limitações como cantor. Suas atitudes irreverentes e declarações espalhafatosas, fizeram com que aparecesse cada vez mais como artista e personalidade. A princípio, tudo isso só contribuía para chamar a atenção para o grupo todo. Mas...
Com o sucesso, e , conseqüentemente, com a maior exigência de profissionalismo, as diferenças se ressaltaram. O temperamento irriquieto de Cazuza pouco se adequava a uma agenda cada vez mais sobrecarregada de ensaios e entrevistas. Os desentendimentos foram crescendo. Em janeiro de 1985, o Barão fez uma bem-sucedida participação no festival Rock 'n Rio, abrindo shows para grandes atrações do rock internacional. A continuidade do sucesso, porém, não conseguiu evitar a separação do grupo. Em julho, quando o material para o próximo disco já estava selecionado, a notícia chegou aos jornais: enquanto os outros seguiriam com a banda, sua estrela partiria para uma brilhante carreira solo. Poucos dias depois, Cazuza voltava a ser notícia. Tinha sido internado num hospital do Rio com 42 graus de febre. Diagnóstico: infecção bacteriana. O resultado do teste HIV, que ele exigiu fazer, dera negativo. Mas naquela época os exames ainda não eram muito precisos.
INDIVIDUAL - Gravado com outros músicos, o álbum "Cazuza" apresentou uma sonoridade mais limpa que a do Barão. Lançado em novembro de 1985, o disco inaugurou a fase individual do cantor e uma série de parcerias. Entre os co-autores das músicas figuraram dois antigos colaboradores: Frejat, que continuou parceiro e amigo de Cazuza, e Ezequiel Neves, outro velho e grande amigo, co-produtor, desde os tempos do Barão, de todos os seus discos. Cazuza assinou os maiores hits do novo álbum: em parceria com Ezequiel e Leoni, o rock "Exagerado", emblemático da sua persona romantico-poética, e a balada "Codinome Beija-flor", com Ezequiel e Reinaldo Arias. Mais dois rocks ficaram notórios. "Medieval II" fixou nas rádios seu auto-irônico refrão ("Será que eu sou medieval?/ Baby, eu me acho um cara tão atual/ Na moda da nova Idade Média/ Na mídia da novidade média"). E "Só as mães são felizes", que teve sua execução pública proibida pela censura. Escandalosa ("Você nunca sonhou ser currada por animais? (...) Nem quis comer sua mãe?"), a letra homenageou artistas malditos, como o escritor beat Jack Kerouac, citado no verso-título.
Importante referência literária de Cazuza, ao lado de Clarice Lispector (cujo "A descoberta do mundo" tornou seu livro de cabeceira), Kerouac também teve um poema transcrito na contracapa do disco seguinte. Lançado em março de 1987, "Só se for a dois" foi o primeiro álbum de Cazuza fora da Som Livre, que resolvera dissolver o seu cast. Disputado por várias gravadoras, ele se transferiu para a Polygram, a conselho do pai. A essa altura, apesar da imagem de artista "louco", sua postura profissional já era outra. O rompimento com o Barão, junto com a liberdade artística que almejara, trouxera também a exigência de mais seriedade.
"Só se for a dois" acrescentou novos sucessos à sua carreira, a começar pela canção-título, mas a música que estourou mesmo foi o pop-rock "O nosso amor a gente inventa (estória romântica)". A essa época, contudo, ele já sabia que estava com Aids. Antes de estrear o show "Só se for a dois", tinha adoecido e feito um novo exame. A confirmação da presença do vírus iria transformar sua vida e sua carreira. Em outubro de 1987, após uma internação numa clínica do Rio, Cazuza foi levado pelos pais para Boston, nos Estados Unidos. Lá, passou quase dois meses críticos, submetendo-se a um tratamento com AZT. Ao voltar, gravou "Ideologia" no início de 1988, um ano marcado pela estabilização de seu estado de saúde e pela sua definitiva consagração artística. O disco vendeu meio milhão de cópias. Na contracapa, mostrou um Cazuza mais magro por causa da doença, com um lenço disfarçando a perda de cabelo em função dos remédios. No seu conteúdo, um conjunto denso de canções expressou o processo de maturação do artista.
IDEOLOGIA - "O meu prazer agora é risco de vida/ Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll", confessava ele, em "Ideologia". E: "Eu vi a cara da morte/ E ela estava viva", em "Boas novas". Rico e diverso, o repertório trouxe ainda um blues, o "Blues da piedade", uma canção "meio bossa nova e rock 'n' roll", "Faz parte do meu show", grande sucesso, e o rock-sambão "Brasil", que faria um sucesso ainda maior com Gal Costa. Tema de abertura da novela "Vale tudo", da Rede Globo, "Brasil" fez um comentário social forte sobre o país, com versos como "meu cartão de crédito é uma navalha". No disco, a temática social apareceu também em "Um trem para as estrelas", feita com Gilberto Gil para o filme homônimo de Carlos Diegues.
Ainda em 1988 Cazuza recebeu o Prêmio Sharp de Música como "melhor cantor pop-rock" e "melhor música pop-rock", com "Preciso dizer que te amo", composta com Dé e Bebel Gilberto, e lançada por Marina. E apresentou no segundo semestre seu espetáculo mais profissional e bem-sucedido, "Ideologia". Dirigido por Ney Matogrosso, Cazuza buscou valorizar o texto no show, pontuado pela palavra "vida". Substituiu a catarse das performances anteriores por uma postura mais contida no palco. Tal contenção, porém, não o impediu de exprimir sua verve agressiva e escandalosa num episódio que causou polêmica. Cantando no Canecão, no Rio, cuspiu na bandeira nacional que lhe fora atirada por uma fã.
O show viajou o Brasil de norte a sul, virou programa especial da Globo e disco. Lançado no início de 1989, "Cazuza ao vivo - o tempo não pára" chegou ao índice de 560 mil cópias vendidas. Reunindo os maiores sucessos do artista, trouxe também duas músicas novas que estouraram: "Vida louca vida", de Lobão e Bernardo Vilhena, e "O tempo não pára", de Cazuza e Arnaldo Brandão. Esta - título do trabalho - condensou, numa das letras mais expressivas de Cazuza, a sua condição individual, de quem lutava para se manter vivo, com a do povo brasileiro. Foi pouco depois do lançamento do álbum que ele reconheceu publicamente que estava com Aids, sendo a primeira personalidade brasileira a fazê-lo. Era então notória -e notável - a sua afirmação de vida. À medida que seu estado piorava, ao contrário de se deixar esmorecer ante a perspectiva do inevitável, Cazuza, ciente do pouco tempo que lhe restava, passou a trabalhar o mais que podia. Entrou num processo compulsivo de composição e gravou, de fevereiro a junho de 1989, numa cadeira de rodas, o álbum duplo "Burguesia", que seria seu derradeiro registro discográfico em vida.
O trabalho seguiu um conceito dual - num dos discos, de embalagem azul, prevalecia o gênero rock; no outro, de capa amarela, MPB. Entre as suas últimas novidades, com a voz nitidamente enfraquecida, Cazuza apresentou clássicos de outros autores (como Antonio Maria, Caetano Veloso e Rita Lee) e duas músicas feitas com novas parceiras, Rita Lee e Ângela Rô Rô. A canção-título, com uma letra extensa atacando os valores da classe burguesa, chegou a ser tocada nas rádios, mas o álbum não obteve sucesso comercial e foi recebido discretamente pela crítica. Em outubro de 1989, depois de quatro meses seguindo um tratamento alternativo em São Paulo, Cazuza viajou novamente para Boston, onde ficou internado até março do ano seguinte. Seu estado já era muito delicado e, àquela altura, não havia muito mais o que fazer. Foi assim que ele morreu, pouco depois - a 7 de julho de 1990. O enterro aconteceu no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Sua sepultura está localizada próxima às de astros da música brasileira como Carmen Miranda, Ary Barroso, Francisco Alves e Clara Nunes. (Fonte: www.cazuza.com.br)

24 novembro 2008

Nachtergaele estréia na direção com o premiado A Festa da Menina Morta

Há 20 anos uma pequena população ribeirinha do alto Amazonas comemora a festa da menina morta. O evento celebra o milagre realizado por Santinho, que após o suicídio da mãe recebeu em suas mãos, da boca de um cachorro, os trapos do vestido de uma menina desaparecida. A menina jamais foi encontrada, mas o tecido rasgado e manchado de sangue passa a ser adorado e considerado sagrado. A festa cresceu indiferente à dor do irmão da menina morta, Tadeu. A cada ano as pessoas visitam o local para rezar, pedir e aguardar as "revelações" da menina, que através de Santinho se manifestam no ápice da cerimônia.

Em síntese esse é o tema de A Festa da Menina Morta, estréia do ator Matheus Nachtergaele (Amarelo Manga) na direção. Desde sua primeira exibição em Cannes, em maio deste ano, o longa de Nachtergaele acumula nove prêmios (festivais de Gramado, Rio e Chicago). O filme, protagonizado por Daniel Oliveira (Cazuza - O Tempo Não Pára), será exibido em dezembro no tradicional Festival de Havana e pode ser exibido no Festival de Roterdã, segundo a Variety. A 38ª edição do evento acontece entre 21 de janeiro a 1º de fevereiro do próximo ano.
O filme A Festa da Menina Morta, que marca a estréia de Matheus Nachtergaele na direção, ganhou o prêmio de Melhor Filme na seção Novos Diretores do Festival de Cinema Internacional de Chicago. Este é o nono troféu que o drama ganha, entre eles os prêmios de Melhor Diretor e Melhor Ator para Daniel de Oliveira no Festival do Rio 2008. No Festival de Gramado, A Festa da Menina Morta ganhou também seis Kikitos, incluindo melhor filme do júri popular e da crítica especializada.
LÍDER ESPIRITUAL - A Festa da Menina Morta conta a história de Santinho (Daniel de Oliveira), alçado à condição de líder espiritual numa comunidade ribeirinha do alto Amazonas, a partir de um “milagre” realizado por ele após o suicídio de sua própria mãe. O filme procura ser o retrato íntimo dos envolvidos na seita, e da capacidade infinita do homem em “criar” fé e buscar um sentido diante de seu horror à morte. Investiga a fé e o sincretismo religioso do Brasil em uma comunidade ribeirinha do Amazonas.
Segundo o crítico Luciano Trigo, Nachtergaele não está preocupado em defender uma tese, nem em julgar seus personagens, nem em sublinhar o exotismo, nem em chocar o espectador. Numa combinação difícil e rara, o seu olhar é quase de um documentarista, ao mesmo tempo em que envereda por uma linguagem extremamente inventiva e poética, realçada pela fotografia de Lula Carvalho. Todo o elenco tem desempenhos corajosos e impecáveis, com destaque para Jackson Antunes, Dira Paes e Cássia Kiss, além do próprio Daniel de Oliveira.
"A festa da menina morta", segundo Trigo, mostra um Brasil que não aparece na televisão, mas no qual, por alguma via inconsciente, qualquer brasileiro se reconhece. As formas de sociabilidade, as relações afetivas, a maneira de lidar com a dor, a alegria na precariedade e a presença do irracional no cotidiano da comunidade que o filme retrata compõem uma síntese dura e bela de um modo essencialmente brasileiro de ser e viver. Uma estréia de alto impacto, que recupera o sentido da experimentação e do radicalismo, há muito tempo perdido no cinema brasileiro.
GRANDE MAESTRO - “O Matheus é um grande maestro, deixando todo mundo bem e regendo tudo como se fosse um artista pintando um quadro”, descreveu Daniel de Oliveira em entrevista ao G1 logo após a sessão. Juliano Cazarré, que faz o personagem Tadeu, irmão da Menina Morta que começa a levantar dúvidas sobre o Santo, concorda. “O Matheus entendia tanto de direção de arte quanto a diretora de arte, tanto de fotografia quanto o diretor de fotografia e mais de atuação do que a gente. É um artista muito preparado que funcionava como um ponto de referência para a gente”, disse. A imersão de dois meses no vilarejo de Barcelos, às margens do Rio Negro fez com que os atores se envolvesse intensamente na história.
A história é forte, contundente e trágica. “A palavra deste ano é a dor”, diz Santinho (Daniel de Oliveira) num momento importante do filme. A mesma dor que o filme passa ao espectador, que ganha um nó na garganta ao tomar contato com a angústia do longa-metragem. E, de fato, a entrega do ator no papel do protagonista deste filme é impressionante. Existe uma força, uma intensidade na composição do complicado Santinho que é impossível não se comover e se angustiar com o personagem.
Vamos aguardar a estréia em Salvador.