31 março 2008

Corta essa

Cortar pode ser uma arte, seja na alimentação, na moda, no cinema, no esporte, música, teatro, na vida. O segredo de um bom churrasco por exemplo é a carne de primeira, de boa procedência e a forma do corte correto. Existem profissionais especializados em belas cortadas no vôlei. Para muitos o corte de cabelo na lua cheia crescente é uma prática simples e eficaz. Na moda o terno bem cortado, sob medida, é mais eficiente. Entre o corte e a costura existe toda uma técnica e habilidade que realça as qualidades da pessoa. No homem pode corrigir defeitos e na mulher, acentuar as formas.

Através de um estudo sobre o corte pode-se saber a prova do crime, a arma que provocou a morte. Um corte nas relações afetivas pode-se causar perdas e danos. O rompimento, às vezes, é a única solução. Todo tratamento psicanalítico pode sofrer um corte. No trânsito o corte significa ultrapassagem incorreta. Um bom planejamento estratégico faz previsão e orçamento, e para fazer um corte no orçamento e evitar surpresas desagradáveis, é necessário saber onde pode cortar.

No cinema muitas vezes a história é cortada ou contida graças ao corte. O diretor grego Costa Gavras comparece com seu mais recente título, O Corte. Fala de desemprego nos países ricos e desenvolvidos em tempos de globalização. Engenheiro sofre o “corte de pessoal” e dois anos depois, ainda desempregado, resolve eliminar seus concorrentes nas disputas por vagas no mercado: “por que não matar os potenciais concorrentes à mesma função?”. Filme contundente deste sistema neo-liberal.

Na música, “San Vicente”, Milton Nascimento e Fernando Brant, acordam de um sonho estranho: “Coração americano/acordei de um sonho estranho/um gosto vidro e corte/um sabor de chocolate/no corpo e na cidade/um sabor de vida e morte/coração americano/um sabor de vidro e corte//A espera da fila imensa/e o corpo negro se esqueceu/estava em San Vicente/a cidade e suas luzes/estava em San Vicente/as mulheres e os homens/coração americano/um sabor de vidro e corte//As horas não se contavam/e o que era negro anoiteceu/enquanto se esperava/eu estava em San Vicente/enquanto acontecia/eu estava em San Vicente/coração americano/um sabor de vidro e corte”.

“Você corta um verso, eu escrevo outro/você me prende vivo, eu escapo morto/de repente, olha eu de novo/perturbando a paz, exigindo o troco/vamos por aí, eu e meu cachorro/olha o verso, olha o outro/olha o velho, olha o moço chegando/que medo você tem de nós/olha aí”, é o “Pesadelo”, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós.

“Em caso de dor ponha gelo/mude o corte de cabelo/mude o modelo/vá ao cinema, dê um sorriso/ainda que amarelo/esqueça seu cotovelo//Se amargo foi já ter sido/troque já esse vestido/troque o padrão do tecido/saia do sério, deixe os critérios/siga todos os sentidos/faça fazer sentido//A cada mil lágrimas sai um milagre//Em caso de tristeza vire a mesa/coma só a sobremesa/coma somente a cereja/jogue para cima, faça cena/cante as rimas de um poema/sofra apenas, viva apenas/sendo só fissura ou loucura/quem sabe casando cura//Ninguém sabe o que procura//Faça uma novena, reze um terço/caia fora do contexto/invente seu endereço//A cada mil lágrimas sai um milagre//Mas se apesar de banal/chorar for inevitável/sinta o gosto do sal do sal do sal/sinta o gosto do sal/gota a gota, uma a uma/duas três dez cem mil lágrimas - sinta o milagre//A cada mil lágrimas sai um milagre” é a letra “Milágrimas” de Itamar Assunção e Alice Ruiz.

Já Cazuza cantou que “O Nosso Amor a Gente Inventa”: “O teu amor é uma mentira/que a minha vaidade quer/e o meu, poesia de cego/você não pode ver//Não pode ver que no meu mundo/um troço qualquer morreu/num corte lento e profundo/entre você e eu//O nosso amor a gente inventa/pra se distrair/e quando acaba, a gente pensa/que ele nunca existiu//O nosso amor a gente inventa, inventa/o nosso amor a gente inventa, inventa//Te ver não é mais tão bacana/quanto a semana passada/você nem arrumou a cama/parece que fugiu de casa//Mas ficou tudo fora do lugar//
café sem açúcar, dança sem par/você podia ao menos me contar/uma história romântica//O nosso amor a gente inventa/pra se distrair/e quando acaba, a gente pensa/que ele nunca existiu”

No teatro, o dramaturgo Plínio Marcos fez um retrato naturalista do submundo brasileiro na peça “Navalha na Carne”. A violência das relações humanas, a situação opressora e a luta de cada personagem constroem um quadro cuja dramaticidade sobrevive ao tempo. Saindo do teatro e partindo para dança vamos observar uma dança lasciva que escandalizou a alta sociedade do início do século XX foi o corta jaca. Trata-se de uma dança rural que tem como característica os movimentos dos pés sempre muito juntos e a não flexão dos joelhos. Os movimentos de pés dão a impressão de uma faca cortando uma jaca.

Para encerrar, o corte nas artes plásticas. As obras de Amílcar de Castro (1920/2002) eram formadas por uma chapa de metal cortada ao meio e torcida em dois planos, para cima e para baixo, dialeticamente. Era um novo dinamismo de espaço. Nos anos 60 ele ampliou o alcance obtido pela orientação dos cortes e dobras.

28 março 2008

Música & Poesia

Comunidade Carente (Zeca Pagodinho)

Eu moro numa comunidade carente
Lá ninguém liga prá gente
Nós vivemos muito mal
Mas esse ano nós estamos reunidos
Se algum candidato atrevido
For fazer promessas vai levar um pau

Vai levar um pau prá deixar de caô
E ser mais solidário
Nós somos carentes, não somos otários
Prá ouvir blá, blá, blá em cada eleição

Nós já preparamos vara de marmelo e arame farpado
cipó-camarão para dar no safado que for pedir voto na jurisdição
É que a galera já não tem mais saco prá aturar pilantra
Estamos com eles até a garganta
aguarde prá ver a nossa reação


As Palavras Ressuscitarão (Jorge de Lima)

As palavras envelheceram dentro dos homens
separadas em ilhas,
as palavras se mumificaram na boca dos legisladores;
as palavras apodreceram nas promessas dos tiranos;
as palavras nada significam nos discursos dos homens públicos.
E o Verbo de Deus é uno mesmo com a profanação dos homens de Babel,
mesmo com a profanação dos homens de hoje.
E, por acaso, a palavra imortal há de adoecer?
E, por caso, as grandes palavras semitas podem desaparecer?
E, por acaso, o poeta não foi designado para vivificar a palavra de novo?
Para colhê-la de cima das águas e oferecê-la outra vez aos homens do continente?
E, não foi ele apontado para restituir-lhe a sua essência,
e reconstituir seu conteúdo mágico?
Acaso o poeta não prevê a comunhão das línguas,
quando o homem reconquistar os atributos perdidos com a Queda,
e quando se desfizerem as nações instaladas ao depois de Babel?
Quando toda a confusão for desfeita,
o poeta não falará, do ponto em que se encontrar,
a todos os homens da terra, numa só língua — a linguagem do Espírito?
Se por acaso viveis mergulhados no momento e no limite,
não me compreendereis, irmão!

27 março 2008

Diversão de soltar arraia


Quando a temperatura começa a ficar amena e os ventos sopram com generosidade, é tempo das arraias. E o céu da cidade fica todo colorido. Alegria de crianças e adultos, a arte de empinar arraia não se resume ao simples ato de fazê-lo voar. O objetivo principal é cortar a arraia adversária que se prontifica a fazer a pegada.

Apesar do tamanho reduzido, a arraia voa de forma espantosa. O segredo da estabilidade é a aerodinâmica sustentada pelo formato retangular – completado pelo uso de uma rabada (espécie de contrapeso amarrado na parte inferior da arraia). A folha de papel, tipo seda por ser mais leve, geralmente em formato retangular, é presa em uma cruz de flechas (geralmente a casca da cana ou taliça da folha de coqueiro) com uma rabada na ponta. E não existe dificuldade de fazê-la içar vôo, bastando que o vento esteja a favor e se tenha um pouco de prática em “soltar a linha”.

O grande segredo para se fazer uma arraia ir para onde se deseja, esquerda, direita, mergulhar em aú, redeslocar em diagonal ou subir em direção ao céu, está na forma como é feita a sua chave: o nó da linha dado nas extremidades das flechas em forma de X. Em seguida, um orifício no encontro das duas flechas, no centro da arraia e estica-se uma outra linha perpendicular para encontrar o vértice do triângulo. No ar, as duas linhas do triângulo superior mais a linha perpendicular que sai do centro devem ficar retesadas, enquanto as duas linhas do triângulo inferior ficam folgadas. Aí sim a arraia é dominada pelo seu empinador. É a conhecida chave de cinco. Na hora exata de uma rajada de vento é só dar o impulso e o grito é geral, “lá vai ela!”. É a arraia dançando no céu.

Para quem não está por dentro do vocabulário dos arraieiros, a linguagem é específica. “Boca de chave” é como chamam o corte na linha do adversário próprio à chave da arraia. “Chave” é o conjunto de linhas presas às quatro extremidades das flechas. “Dar um aú” é quando a arraia mergulha contra a do adversário, geralmente, uma contra a outra. “Cortar” significa tirar o outro da disputa partindo sua linha. A linha é bobinada no carretel, onde, totalmente enrolada, forma o novelo.

O tempo de arraia na cidade exerce um fascínio especial sobre uma grande e variada parcela da população. As pipas são empinadas a favor do vento, em uma hora do dia em que o sol não caia direto na vista, e o seu vôo corre por conta do piloto que fica em terra dando mais ou menos linha, embicando, provocando piruetas.

A história das pipas data de muitos séculos e se confundem com a própria história da civilização, sendo utilizada como brinquedo, instrumento de defesa, arma, objeto artístico e de ornamentação. Conhecida como arraia, pipa, papagaio, pandorga, quadrado, barrilete ou outro nome dependendo da região ou país, ela é um velho conhecido de brincadeiras infantis. Todos nós, com maior ou menor sucesso, já tentamos empinar uma. As pipas adornam, disputam espaço, fazem acrobacias, mapeiam os céus. São a extensão natural da mão, querendo tocar nas ilusões.

Além do aspecto puramente lúdico, de lazer, as pipas, ao longo da história, tiveram importância fundamental nas pesquisas e descobertas científicas. O inglês Roger Bacon, em 1250 escreveu um longo estudo sobre as asas acionadas por pedais, tendo como base experiências realizadas com pipas. O italiano Leonardo Da Vinci, em 1496 fez projetos teóricos com máquinas voadoras baseados na potencialidade das pipas. No século 18 o brasileiro Bartolomeu de Gusmão mostrou os projetos de sua aeronave ao rei de Portugal graças ao estudo conseguido através das pipas.

Alexandre Wilson em 1749, na Grã Bretanha, conseguiu determinar as variações de temperatura. Em 1752 Benjamim Franklin descobriu o para-raio através de experiência com pipa. Através das pipas, George Cayley realizou em 1809 o primeiro pouso através de pipas. Santos Dumont conseguiu voar no famoso 14 Bis, uma sofisticada pipa com motor. Em 1921, Marconi utilizou pipas para fazer experiências com a transmissão de radio, teste que mais tarde seria utilizado por Graham Bell em seu invento, o telefone. Durante a II Guerra Mundial uma pipa em forma de águia foi empregada pelos alemães para observar a movimentação das tropas aliadas. São muitos os exemplos que se multiplicam através do tempo.

Soltar pipa é sempre uma grande diversão tanto para criança como para adultos, mas infelizmente muitos acidentes acontecem por falta de orientação. Alguns cuidados podem garantir sua segurança e a de seus filhos. Escolha sempre lugares seguros para soltar seu papagaio. Lugares espaçosos e abertos como campo e parques são as melhores opções. Jamais opte por lugares próximos a fios elétricos. Se a pipa enroscar nos fios, não tente tirá-la, pois é melhor perder a pipa do que a vida. Não use linha metálica como fio de cobre de bombinas. Jamais passe cerol (vidro moído com cola) na linha. Além de ser proibido por lei, o cerol pode causar acidentes perigosos. Em caso de chuva, recolha sua pipa, ela pode atrair raios. E boa diversão! E se o tempo não for de soltar pipa, relaxe e assista em casa (DVD) “O Caçador de Pipas”.

26 março 2008

O que diz essa voz

“Minha voz, minha vida/meu segredo e minha revelação/minha luz escondida/minha bússola e minha desorientação/minha voz é precisa/vida que não é menos minha que da canção/por ser feliz, por sofrer, por esperar eu canto” (Minha voz, minha vida, de Caetano Veloso). Voz é o som básico produzido pela laringe, por meio da vibração das cordas vocais. A voz expressa as condições individuais (físicas ou emocionais) e, se o indivíduo não estiver em condições saudáveis, a voz deixará transparecer algum problema, ocasionando qualidade vocal disfônica, que pode vir a comprometer a fala e a comunicação. O filósofo francês Roland Barthes disse que raramente ouvimos uma voz, estamos preocupados apenas com o que ela diz. Achar a própria voz significa descobrir seu estilo, sua singularidade.

“Até quem sabe a voz do dono/gostava do dono da voz/casal igual a nós,/de entrega e de abandono/de guerra e paz, contras e prós/fizeram bolas de acetato - de fato/assim como nossos avós/
o dono prensa a voz/a voz resulta um prato/que gira para todos nós” (A voz do dono e o dono da voz, de Chico Buarque). A voz transmite muito mais que palavras. Ela exprime nossos sentimentos mais ocultos e nos caracteriza perfeitamente. A articulação, a entonação e a velocidade da fala também contribuem para que isso aconteça. Apenas ouvindo a voz de alguém podemos formar conceitos sobre a personalidade: se é agressivo, calmo, ansioso, distraído, afetuoso...

“Saiam luas, desçam rios/virem páginas dos pensamentos/lanço estrelas do meu canto/sobre as camas dos apartamentos/.../que palavras sejam gestos/gestos sejam pensamentos/da voz que move nossos corações” (A Voz, de Vander Lee). A voz é o principal som do ser humano, é a nossa respiração audível. É uma massagem de dentro para fora, é expressão sutil das individualidades. São muitas as formas de expressões rítmicas da voz. Esses ritmos apesar de raramente receberem a atenção consciente, têm um papel importantíssimo no processo da comunicação. O ritmo mais evidente na voz é a respiração. Falamos ou cantamos quando expiramos, e silenciamos quando inspiramos.

“A voz vem da cabeça/feita pela vida/é a voz, a vida/veia cheia pelo pique dos sentidos/ave louca na garganta/solta, livre canta/vai, encontra os delírios, os desejos/instiga, liga/corta com timbre de aço/alivia o cansaço/acarinha e ilumina/deslumbra, apaixona e alucina/dá um beijo no menino/lambe a pele da menina/clareia, contamina, incendeia/coração na boca, na vida, na voz/clareia, contamina, incendeia/coração na boca, na vida, na voz” (A Voz, de Gonzaguinha). Na Idade Média, o ato de ler estava sempre ligado ao de falar: a leitura em voz alta era muito difundida. A tradição foi mantida também na Idade Moderna. Ainda no século 19, lia-se muito em voz alta: poesias, livros e cartas. Com o passar do tempo, diante do avanço da alfabetização, a leitura de um texto foi perdendo sua ligação intrínseca com a voz. Nas famílias, manteve-se quando muito o costume de ler para as crianças, quase sempre antes de adormecerem. De uns anos para cá, livros feitos para ser ouvidos, em vez de lidos, fazem grande sucesso na Alemanha. Em tempos em que a atenção se torna cada vez mais dispersa, eles contribuem para a redescoberta da literatura.

“Pudesse o homem só saber o que é o amor/e lhe entregar o coração e a razão/ainda haveria um poeta em cada ser/se o mundo ouvisse o que o amante quer/então seria a vez e a voz da paz/seu porto é um corpo de mulher/e haja o que houver/seja o que o amor quiser/a paz” (A vez e a voz da Paz, de Paulo Sérgio Valle e Paulo Machado). A literatura de cordel é a voz que ainda canta o Nordeste.

“Cantarei até que a voz me doa/pra cantar, cantar sempre meu fado/como a ave que tão alto voa/e é livre de cantar em qualquer lado//Cantarei até que a voz me doa/ao meu país, à minha terra, à minha gente/à saudade e à tristeza que magoa/o amor de quem ama e morre ausente//Cantarei até que a voz me doa/ao amor, à paz cheia de esperança/ao sorriso e à alegria da criança/cantarei até que a voz me doa” (Até que a voz me doa, de José Luis Gordo e José Fontes Rocha). Nos anos 20, época do cinema mudo, os letreiros eram usados para explicar algumas imagens. Esta combinação de texto e imagens deixava transparecer a idéia de que as imagens eram capazes de focar um espaço e um momento particular, com ações e interações humanas as mais variadas, mas que a capacidade de generalização e de interpretação das imagens ficava por conta do texto.

Posteriormente, com o surgimento do cinema sonoro, a partir de 1928, esse discurso foi transferido dos letreiros para a voz, não por acaso chamada em inglês de voice over, já que a preposição over, em inglês, indica que a voz (voice) está acima da imagem e vai cumprir esse papel explicativo. Esse formato, no qual a autoridade foi transferida a alguém que o cineasta colocava como o sujeito falante, predominou no período mais clássico, nas décadas de 40 e 50.

25 março 2008

Felicidade ao alcance de todos

A busca da felicidade é a única (ou mais importante) razão de viver para os seres humanos? Na sociedade contemporânea o “dever de ser feliz” se tornou um dogma – que pode não se constituir na salvação essencial de uma pessoa. Pode ser apenas evento indireto, fugaz, resultado de valores como amor, amizade, trabalho, arte, ou seja, os eixos da atividade humana.

Para alcançar felicidade, é preciso renunciar ao ego e à ânsia pelas coisas deste mundo. Para os budistas, estamos presos à lei de causa e efeito. Já os cristãos afirmam que sem a fé, a razão não leva ao caminho da bem-aventurança. Os hedonistas acham que o fundamento da vida moral é o prazer enquanto os liberais afirmam que cada um deve buscar a satisfação de todos os seus apetites e, dessa forma, estará automaticamente em busca da felicidade dos demais. E os freudianos acreditam que o princípio do prazer nos impele a ser feliz, mas a sociedade bloqueia. Então, vamos adequar nossos impulsos sexuais à vida civilizada e fingir que felicidade é possível. E você, o que pensa da felicidade?

Nos dias de hoje, a publicidade é um dos alto-falante dos desejos em voga, e a busca do bem-estar prende as pessoas a um círculo da corrida do consumo. A vontade de possuir coisas não vem mais do prazer e do conforto que proporcionam, mas da necessidade de ser amado, respeitado e reconhecido pelos outros como alguém que tem valor. Isso é o que o filósofo alemão Hegel chamou de “desejo de reconhecimento”. Já o filósofo francês Philippe van den Bosch tenta responder à pergunta “como viver para ser feliz?” no livro “A Filosofia e a Felicidade”. A resposta: desejar menos e gastar menos. Nessa alternativa à roda do trabalhar-consumir são eliminados os excessos de posses e atividades que produzam cansaço extremo, incompatíveis com valores ecológicos e éticos.

Muita gente está reavaliando suas vidas e percebem que importante não é a fortuna, o poder e o status, mas os relacionamentos, os laços comunitários, o significado e o propósito da vida. Não é muito fácil quebrar esse ciclo e, na prática, chegar à simplicidade. Trocar tudo pela teoria e a prática da vida simples. A pressão social é forte. A cultura narcisista impõe a ostentação – é preciso ser não apenas rico mas também jovem e feliz o tempo inteiro. Daí o grande mercado de auto-ajuda, das drogas, cirurgias plásticas e academias.

O escritor francês Pascal Bruckner (A Euforia Perpétua) disserta sobre a “obrigação de ser feliz” na atual sociedade hedonista. Para ele “felicidade é uma palavra velha, prostituída, adulterada, tão envenenada que gostaríamos de bani-la de todas as línguas”. E se justifica: “Não se trata de ser contra a felicidade, mas, sim, contra a transformação desse sentimento em verdadeiro entorpecente coletivo ao qual todos devem se entregar, em suas modalidades químicas, espirituais, psicológicas, informáticas, religiosas”.

Para outras a forma mais prática de alimentar a alma de felicidade está na arte, pois toda arte é criação divina. Todo verdadeiro artista ouve um sussurro em seu ouvido, vindo do mundo das idéias antes de começar a sua obra. A nossa aproximação com a arte, seja na música, no cinema, nas pinturas ou esculturas, e até em um local isolado através da literatura, onde estão escritas as idéias sussurradas no ouvido do escritor, faz com que nossa alma se aproxime do criador. Como o nosso pensamento vem do mundo das idéias, nossa alma se sente cheia de amor e próxima de seu mundo livre e eterno. A forma mais prática de ser feliz, é apenas pensar, pensar apenas em coisas boas. Passe o dia pensando, mesmo que esteja em uma camisa de força, nada pode lhe proibir.

Outros acham que a felicidade é capacidade de contemplação. Quanto mais se desenvolve a nossa faculdade de contemplar, mais se desenvolvem as nossas possibilidades de felicidade, e não por acidente, mas justamente em virtude da natureza da contemplação. Esta é preciosa por ela mesma, de modo que a felicidade, poderíamos dizer, é uma espécie de contemplação.

Para o filósofo Aristóteles, felicidade é um estado permanente que não parece ter sido feito, aqui na terra, para o homem. Na terra, tudo vive num fluxo contínuo que não permite que coisa alguma assuma uma forma constante. Tudo muda à nossa volta. Nós próprios também mudamos e ninguém pode estar certo de amar amanhã aquilo que hoje ama. É por isso que todos os nossos projetos de felicidade nesta vida são quimeras.

Já o filósofo Jean-Jacques Rousseau viu poucos homens felizes, talvez nenhum, mas viu muitas vezes corações contentes e de todos os objetos que lhe impressionaram foi esse o que mais lhe satisfez. A felicidade, para ele, não tem sinais exteriores. Para conhecer seria necessário ler no coração do homem feliz, mas a alegria lê-se nos olhos, no porte, no sotaque, no modo de andar, e parece comunicar-se a quem dela se apercebe. “Existirá algum prazer mais doce do que ver um povo entregar-se à alegria num dia festivo, e todos os corações desabrocharem aos raios expansivos do prazer que passa, rápida mas intensamente, através das nuvens da vida?”.perguntou. Todo mundo está atrás da mesma coisa: apenas um pouco de felicidade a cada dia. Mas é preciso que a cabeça esteja vazia de pensamentos para que os olhos possam ver. Pense nisso!

24 março 2008

Uma paixão da alma chamada saudade

Hoje vamos falar de uma aventura de sensibilidade, um sentimento, uma paixão da alma: a saudade. Um conceito que trata de uma experiência universal comum a todos os homens em todas as sociedades – a experiência da passagem, da duração, da demarcação e da consciência reflexiva do tempo. Mas a saudade é diferente de outras experiências porque associa a elementos que não estariam presentes em outras modalidades culturais de medir, de falar, classificar e controlar o tempo.

Nos estudos sobre a saudade, realizados em Portugal, ele é explicado como o resultado de experiências empíricas, das viagens que promovem a dor, da ausência e dos desejos insatisfeitos. Ou como disse o poeta português Teixeira de Pascoaes: “Desejo e dor fundidos num sentimento dão saudade”. Assim, a saudade é o resultado de uma dada experiência, se ela é causada pela contingência sentimental, pelo amor e pela emoção dilacerada da ausência. É a noção de saudade que nos faz refletir e, sobretudo, sentir com mais vigor, presença e intensidade, o nosso amor e a ausência dos entes e das coisas que queremos bem. Ou seja: eu sei que amo porque tenho saudade, e sei que sinto a falta de um lugar porque dele sinto saudade.

A saudade fala do tempo por dentro. Da temporalidade como experiência vivida. É pela saudade que podemos invocar e dialogar com pedaços de tempo e, assim fazendo, trazer os tempos especiais e desejados de volta. Por exemplo, lembro-me bem do tempo em que estudei no Colégio Duque de Caxias, no bairro da Liberdade em Salvador, no antigo “ginásio”, em seguida no Colégio Central fazendo o “científico”. Bons tempos ouvindo Beatles, Roberto Carlos, Rolling Stones e Led Zeppelin. Ou mesmo, tempos depois fazendo o programa semanal da rádio Piatã, “Sessão Maldita de Rock”, toda sexta, meia noite. Pauleira pura!.

Da dor ao riso, do amor ao ódio e do esquecimento à saudade, os sentimentos são marcados e impostos pelo sistema que nos informa porque os temos, como devemos manifestá-los e o modo correto como devemos ser englobados por cada um deles e os seus alvos mais legítimos. Esse tesouro chamado saudade é exclusivo da língua portuguesa. E chegou ao ponto de ser considerada palavra-chave para a definição da alma, do estado de espírito e do caráter de toda uma nação. A importância da palavra saudade não é pequena, pois tornou a melancolia portuguesa passível de inclusão entre as três grandes tristezas européias.

A palavra remete ao exílio dos poetas e dos judeus e já foi chamada de “monopólio sentimental da língua portuguesa”. E é Mario de Sá-Carneiro, que tinha uma “alma nostálgica de além”, que concluiu: “Perdi-me dentro de mim/porque eu era labirinto,/e hoje, quando me sinto,/é com saudades de mim”. “A palavra é bem pequena/mas diz tanto de uma vez!.../por ela valeu a pena/inventar-se o português”, escreveu Bastos Tigre em 1935. Assim, a saudade é tão nossa que nenhuma outra língua a possui em seus léxicos. Em alguma delas, com outro nome, da origem grega – nostalgia, ou mesmo a melancolia, sentimento típico do exilado.

E nossos poetas que perpetraram sobre “a bendita dor que faz bem ao coração” numa vontade de lembrar querendo esquecer, ou de uma “saudade,/torrente de paixão,/emoção diferente,/que aniquila/a vida da gente,/uma dor que nem sei/de onde vem”, diz os versos de “Canção de Amor”, de Chocolate e Elano de Paula. Vamos agora abrir uma janela para associar saudade e música popular brasileira. A música, muitas vezes, neutraliza a passagem do tempo assim como a saudade que nos segue por toda a vida. E na poesia de Julia de Sá, “saudade é voz do passado, e tristeza do presente. Segue o tempo, lado a lado, a falar dentro da gente”. E a saudade permite transformar a perda em felicidade. “Choras sem compreenderes que a saudade, é um bem maior que a felicidade. Porque é a felicidade que ficou!”, dizia o poeta Manuel Bandeira. Através da saudade podemos lembrar da passagem do tempo.
A escritora Clarice Lispector em seu livro “A Descoberta do Mundo” escreveu: “Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida”. “Quando eu olho para mim/dentro de mim tem você/quando eu olho pra você/por dentro sinto saudade/quando eu olho pra saudade/meus olhos vão desaguando...” canta Alceu Valença em “Quando eu Olho pra o Mar”.

“Hoje me olhei no espelho/e senti ´sardade´ d´eu/daquele moço canteiro/repentista e violeiro./Hoje só resta o porão/pois a casa e a cumieira/destino fez bagaceira/e o vento jogou no chão...”. A música é “Baque do Coração” de Vevé Calazans e Bubuska na bela voz de Fafá de Belém. E quem não se lembra da canção “A Saudade Mata a Gente”, de João de Barro e Antônio de Almeida na voz de Nélson Gonçalves? Ou mesmo a “Saudade da Bahia” de Dorival Caymmi, a “Saudade de Amar” de Francis Hime e Vinícius de Moraes, ou a dramática “Nunca” de Lupicínio Rodrigues. O jeito agora é cantar a letra de Tom Jobim e Vinícius de Moraes: “Chega de Saudade”!.

19 março 2008

A imagem de Cristo no cinema

O fascínio pela paixão de Jesus Cristo é um tema comum à arte de todas as épocas, atingindo proporções industriais com sua utilização pelo teatro, cinema, televisão e artes plásticas. O cinema sempre contou com muitas vidas de Cristo ou filmes inspirados em narrativas evangélicas. Utilizaram todos os textos sagrados, comentários de teólogos e pesquisas históricas ou arqueológicas sobre a época de Cristo. Assim, há várias maneiras de filmar a vida de Jesus. O cinema praticamente se apropriou da história de Cristo desde seus primeiros anos. Jesus Cristo foi representado no cinema pela primeira vez em 1912 em “Da Mangedoura à Cruz”, um filme norte-americano. Em 1916 D.W.Griffith dirigiu “Intolerância” sobre casos de intolerância em quatro períodos históricos diferentes. Em um deles é mostrada a condenação de Cristo pelos fariseus.

Em 1927 Cecil B.DeMille apresenta “O Rei dos Reis”. Em 1930 Luis Buñuel causou escândalo com cenas de orgia sexual em “L´Âge d´Or”. Em 1935 o cinema sonoro francês dedicou-se “Golgotha”, de Julien Duvivier em tom dramático e sentimental. Os filmes que utilizaram especificamente a narrativa da Paixão – entre esses os mais famosos e caros seriam “O Rei dos Reis” (o primeiro de Cecil B. DeMille onde Cristo é representado pelo ator H.B. Warner; o segundo, de Nicholas Ray com Jeff Hunter) e o apelo ao grande espetáculo cinematográfico “A Maior História de Todos os Tempos” (1965) de George Stevens. Dezenas de outros usaram a história como fundo para suas narrativas, como por exemplo “O Manto Sagrado”, “Demetrius o Gladiador”, “Barrabás”, “Bem Hur” e “O Grande Pescador”.

Nessa série de filmes religiosos, onde a mediocridade é absoluta rotina, duas exceções de alta qualidade: o despojado “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964), de Pasolini, e “Aquele que Deve Morrer”, incendiária parábola da paixão filmada por Jules Dassin. Em 1968 Woody Strode vive “Black Jesus”, o primeiro filme a retratar um Jesus negro. Nos anos 70 Norman Jewison filmou nos desertos de Israel sua superprodução “Jesus Cristo Superstar”, versão da ópera rock de Webber e Rice, narrada do ponto de vista de Pilatos. Judas é interpretado pelo ator negro Carl Anderson e Cristo pelo cantor Ted Neeley. Ainda em 1973, David Greene filma “Godspell, a Esperança”, versão da ópera rock que mostra o messias (Victor Garder) vivendo nos dias atuais, enfrentando trânsito, poluição, cantando e dançando mil rocks e sua mensagem der amor na canção “All´s for You”. Em 1976 foi a vez da objetividade quase científica de “O Messias”, de Roberto Rosselini, fiel aos textos dos evangelhos. Um filme sóbrio, nada de grandes reconstruções, os cenários são naturais. As personagens, familiares aos leitores dos Evangelhos, mostradas como camponeses, pescadores, gente de vida difícil.

Ainda em 1976 foi lançado nos EUA o filme “The Passover Plot”, baseado na obra de Hugh Schonf. A teoria desse autor é que Jesus e alguns discípulos conspiraram para que ele fosse removido da cruz (drogado e aparentemente morto) e mais tarde revivido para ser reconhecido primeiro como líder religioso, e depois como reformista político. Houve protesto. A discutida questão da imagem de Jesus no cinema veio a explodir quando o cineasta Franco Zeffireli apresentou em 1977 seu filme “Jesus de Nazaré”, drama histórico em duas partes para a rede da TV NBC. A imagem de Jesus como homem mostrado no filme foi combatida por vários grupos religiosos.

Em 1985 Jean Luc Godard atualiza a vida de Maria contando a história de uma jovem que engravida do filho de Deus mesmo virgem em “Je Vous Salue, Marie”. Em 1988 Martin Scorsese cria polêmica com “A Última Tentação de Cristo” por mostrar um Jesus que teria dúvidas quanto a sua fé e insinua um sentimento de atração sexual entre ele e Judas e também entre ele e Maria Madalena. O lado humano do religioso é mostrado em “Jesus de Montreal” (1989), de Denys Arcand, e em 2003, Moacyr Góes exibe “Mareia, Mãe do Filho de Deus”. Em 2004 a versão de Mel Gibson para as últimas horas de Cristo é exibido em meio à polêmica sobre seu suposto anti-semitismo, excesso de violência e mercantilização do ícone religioso. O filme em questão é “A Paixão de Cristo”.

E agora em 2006 a história da vida e morte de Jesus da Palestina do século 1 é transferido para um Estado africano dos tempos atuais mergulhado em guerra e na pobreza. Trata de “Sono of Man” retratando num Jesus negro, um revolucionário africano dos tempos modernos. O diretor Mark Dornford May disse na estréia de seu filme no Festival Sundace, nos EUA, que “a verdade é que Cristo nasceu em um Estado ocupado e defendeu a igualdade em um momento no qual isso não era muito aceitável”. A ressurreição de Cristo pretende ser um sinal de esperança para a África, o continente mais pobre do mundo.

18 março 2008

Educação é começo, meio e fim

A escola tem conseguido muito pouco funcionar como reprodutora de informações e conhecimento para o futuro cidadão da era global. A missão da educação para a era planetária é fortalecer as condições de possibilidades das emergentes numa sociedade-mundo constituída por cidadãos protagonistas, conscientes e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização.

Desenvolver a cidadania estimulando a reflexão crítica, provocar o debate, democratizar o acesso e o uso dos espaços (bibliotecas, internet) o jovem poderá compreender melhor o papel que possui na sociedade. Sabemos do esforço dos governantes em colocar todas as crianças nas escolas, mas a qualidade do ensino e as condições de permanência das crianças na escola foram esquecidas. Se o aluno não permaneceu na sala de aula o tempo mínimo suficiente para entender o que lê, escrever o que pensa e realizar operações aritméticas básicas, de pouco adianta.

Numa pesquisa do IBGE enquanto 11,4% dos brasileiros com 15 anos ou mais se declaravam, em 2005, incapazes de ler ou escrever um bilhete simples, mais do dobro desse contingente, com menos de quatro anos de escola, não sabia localizar ou relacionar mais de uma informação, ou seja, era analfabetos funcionais. A faixa de repetência, calculada pela Unesco é dramática: 21% contra 2% no Chile, 6% na Argentina e 16% no Haiti.


O número de matrículas cresceu na América Latina, mas apesar de a freqüência dos mais pobres à escola ter crescido na década de 90 a qualidade do ensino que essas crianças recebem ainda é muito inferior à verificada entre os alunos mais ricos. Essa constatação está no boletim “Quantidade sem Qualidade”, divulgado pelo Programa de Promoção da Reforma Educativa na América Latina e Caribe (Preal). O boletim do Preal traz também dados a respeito do investimento público feito pelos países da região em educação. Os dados mostram que paga-se mal aos professores e gasta-se aquém do necessário no setor. Mesmo sendo pouco, entretanto, esse gasto ainda traz poucos resultados, já que países com padrão de gastos similares (como a Polônia) ou até menores (como a Indonésia) que os da América Latina obtêm melhores resultados nos exames do que muitos países da região.

Em um artigo escrito para o jornal Folha de S.Paulo, o empresário, presidente do Instituto DNA Brasil e ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Horacio Lafer Piva escreveu: “Educação é começo, meio e fim. É a questão mais transversal em uma sociedade que se pretenda civilizada, democrática e próspera. Procura-se desenvolvimento, que é crescimento com justiça social? Sem ela, nada feito. Controle de natalidade é uma questão referencial? Só educando a população. O Brasil aceitou o desafio da inserção internacional? Competição pressupõe educação. O crime assusta, a saúde anda patinando, a Previdência está matando as contas públicas, o desemprego grassa? Só a educação os enfrenta”.

Um teste do Ministério da Educação (MEC) com estudantes de 4ª e 8ª séries da rede pública urbana no Brasil aponta que 54% dos alunos de escolas públicas têm dificuldade de compreender o que lêem, à exceção de frases simples ou textos curtos com informações explícitas. O balanço revela algumas curiosidades que remetem para as deficiências do ensino público no País: apenas 4% dos alunos da 4ª série tiveram desempenho adequado em português. Em matemática, o mesmo rendimento foi alcançado por menos de 1% dos estudantes da 8ª série. O Prova Brasil foi realizado em novembro do ano passado, com a participação de 1,9 milhão de alunos da 4ª série e 1,3 milhão da 8ª.

Segundo o presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), Mozart Neves, que é secretário em Pernambuco, “houve avanços, mas estamos longe de onde precisamos chegar. Depois de matricular todas as crianças, é preciso garantir a permanência dos alunos e melhorar a gestão das escolas”. O Nordeste foi a região apontada com o pior desempenho do País no Prova Brasil.

17 março 2008

Um sentimento antigo chamado ciúme

O ciúme já foi tema de uma série de obras-primas da cultura brasileira. Para o compositor Lupicínio Rodrigues, nem “pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração” estão isentas. O exemplo maior quando se fala em ciúme é Otelo. Levado para a ópera por Verdi e transportado para o cinema por Zeffirelli, o protagonista da tragédia de Shakespeare estrangula a inocente Desdêmona, instigado pelas insinuações maldosas de Iago, para depois enterrar um punhal no próprio peito e morrer beijando os lábios frios da esposa morta. Em sua obra “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust tratou com tamanha dimensão esse sentimento que assalta o interior de quem ama, ou se esforça para amar. O livro é um grande tratado de etiqueta amorosa a partir da distorção do comportamento do ciúme. No imaginário de Proust, para se ter uma relação plena é preciso preencher todos os estágios do tempo que a outra pessoa ocupou. O ciúme seria inevitável, porque sempre haveria áreas inalcançáveis. O ciúme foi sempre um grande tema para as artes e letras. Na literatura brasileira, temos um verdadeiro tratado do ciúme no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Sentimento tão antigo quanto a humanidade, o ciúme tem a curiosa propriedade de fazer as pessoas verem coisas que não existem. E, algumas vezes, de esconder o que está claro para todos. Embora não livre a cara de ninguém, o ciúme costuma contaminar principalmente quem ainda não passou dos 18 anos. É uma fase em que todas as emoções são muito intensas. O medo de perder o ser amado ou de ser rejeitado toma proporções fantasmagóricas. E entre os adolescentes, o maior número de ciumento está entre os que estão apenas paquerando, de rolo ou começando a namorar, ficar na linguagem deles. Para os psicólogos, o ciúme é mais provável nas relações instáveis mas, todos sentem ciúme. Na verdade o estranho é alguém não ter ciúme nenhum. O ciúme na medida certa ajuda a temperar o amor, mas o exagero torna difícil a convivência. Em psicanálise, há diversas formas de ciúme. Nos neuróticos o ciúme é motivado pela incerteza e, nos psicóticos, pela certeza.

Na primeira estrofe do D.Juan, de Molière, está escrito: “O amor começa pelo ciúme”. Quem pretende não ser ciumento, está mentindo ou não ama. O ciúme é um sentimento doloroso que afeta não somente o casal, mas também os angustiados e até as crianças. O ser humano sendo racional, está sujeito a reações emocionais que escapam ao seu controle consciente. O ciúme é um fator importante em toda relação afetiva, pois está diretamente ligado ao sentimento do amor e serve de equilíbrio no relacionamento entre duas pessoas.

A relação amorosa cria laços únicos, talvez os mais intensos que somos capazes de formar. Os sentimentos gerados pelo ciúme são tão primitivos que muitas vezes nos arrastam a atitudes completamente fora do nosso padrão de comportamento. Muitas vezes, ter ciúme é querer e, geralmente, é disposição para lutar pelo próprio amor. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?. Ter loucura por uma mulher. E depois encontrar esse amor, meu senhor. Nos braços de um outro qualquer”. Lupicínio Rodrigues não sabia o que trazia no peito: se era ciúme, despeito, amizade ou horror. “Eu só sei – diz ele – é que quando a vejo, me dá um desejo de morte ou de dor”.

Em outro momento da música popular brasileira, o compositor Chico Buarque revela em seu “Olhos nos Olhos”: “Quando você me deixou meu bem. Me disse pra eu ser feliz, e passar bem. Quis morrer de ciúmes. Quase enlouqueci. Mas depois como era de costume, obedeci. Quando você me quiser rever. Já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos....”. Já Alceu Valença diz que o ciúme é a véspera do fracasso, e o fracasso provoca o desamor no “Romance da Bela Inês”. Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta descrevem “A Maça” assim: “Quando eu te escolhi para morar junto de mim. Quis ser tua alma, ter seu corpo, tudo enfim. Mas compreendi que além de dois existem mais. Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade. Sofro mas eu vou te libertar...”. “Quando o ciúme passa, tempestade já levou tudo. E o amor já virou uma caça, que se esconde pra não morrer”. É assim que Carlinhos Vergueiro e Novelli descrevem o “Ciúme”, uma tempestade. Em ritmo de bolero, Ednardo canta “Lupiscínica”, de Petrúcio Maia e Augusto Fontes. Na letra, “hoje sinto ciúmes até da tua falta. Mas não vou mais matar ninguém por tua causa. Mata-me que eu já te matei”.

“Ciúme expressão dolorida, das mil incertezas da vida. Julgar que outro alguém se interpõe e que tudo acabou entre os dois”. O vozeirão empostado, sem disfarce, que tão bem marcou o curso de toda a sua longa carreira: Francisco Alves interpreta “Ciúme”, tango de Jacob Gade, versão de Osvaldo Santiago. “Eu quero levar uma vida moderninha. Deixar minha menininha sair sozinha. Não ser machista e não bancar o possessivo. Ser mais seguro e não ser tão impulsivo. Mas eu me mordo de ciúme”, dispara Roger Moreira, o líder do grupo Ultraje a Rigor, sucesso nos anos 80. Caetano Veloso, Rita Lee, Roberto Carlos, Zizi Possi e tantos outros já cantaram o ciúme na MPB. O ciúme consegue desarticular o ego adulto e fortalecer os aspectos infantis que contém. Exatamente por isso é tão terrível: por sua capacidade de nos transformar em crianças assustadas, chorando pelos cantos, flagelando-nos destrutivamente, ameaçadas e sem controle. E o pior é que, ao sofrimento causado pelo ciúme, acrescentamos a vergonha e a culpa por sermos ciumentos. Melhor seria, em vez de castigarmos nossa vulnerabilidade, tratar de nós mesmos com a paciência e carinho que dispensamos aos amigos. Em vez de ficaremos horrorizados com nossos sentimentos, tentar entendê-los e aceitá-los.

14 março 2008

Música & Poesia

Espaço Liso (Paulinho Moska)

Eu amo a causa, e não a conseqüência
Eu amo o Pensamento, e não a inteligência
Eu amo a Loucura, e não a consciência
Eu amo a paciência, eu amo a paciência

Eu amo o deserto, e não a muralha
Eu amo o mergulho, e não a medalha
Eu amo suor, e não a toalha
Eu amo a batalha, eu amo a batalha

Eu amo a alma, e não a pessoa
Eu amo a cara, e não a coroa
Eu amo a corrida, e não a linha de chegada
Eu amo a estrada, eu amo a estrada

Eu amo o agora, e não a memória
Eu amo a luta, e não a vitória
Eu amo o fato, e não a história
Eu amo a trajetória, eu amo a trajetória

Eu amo o bem forte, e não o assim
Eu amo o papel, e não o cetim
Eu amo pra onde vou, e não de onde eu vim
Eu amo o meu meio, e não o meu fim.



O Verme e a Estrela (Pedro Kilkerry)

Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!

E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?

13 março 2008

Energia está em todo lugar

Ela é definida como “a força do trabalho”, uma “medida de transformação que pode ser aplicada ao movimento, à luz, ao som, ao magnetismo, às reações químicas” ou seja, qualquer processo natural que envolva mudança. Estamos falando da energia que está em quase todos os trabalhos que exercemos. Ela ilumina as nossas cidades, abastece os nossos carros, comboios, aviões. Aquece as nossas casas, cozinha a nossa comida, permite-nos ouvir música e ver televisão. É ela que põe as máquinas e fábricas a funcionar.

Quando comemos os nossos corpos transformam os alimentos em energia. Esta é usada para trabalhar, brincar, correr, estudar, ler e em todas as outras atividades que exercemos. Existem várias fontes de energia: a energia do mar (os oceanos podem ser uma fonte de energia para iluminar as nossas casas e empresas. Existem três maneiras de produzir energia usando o mar: as ondas, as marés ou deslocamento das águas e as diferenças de temperatura dos oceanos. Há um convênio entre a Eletrobrás e o governo do Ceará para construção da primeira Usina de Energia das Ondas das Américas), energia solar (o sol sempre foi uma fonte de energia. As plantas usam a luz do sol para produzir comida e os animais alimentam-se delas. A decomposição de animais e plantas durante milhões de anos dá origem ao carvão, petróleo e gás natural. É a única indústria que cresce com um índice de 30 a 40% ao ano), a energia eólica (energia cinética do vento também é uma fonte de energia e pode ser transformada em energia mecânica e elétrica. A eletricidade gerada a partir dos ventos ajuda a disseminar tecnologia de ponta pelo Brasil. Vem aí o carro movido a ar).

Para muitos, se aproxima o fim da era dos combustíveis fósseis. Os organismos geneticamente modificados (OGM) tanto podem estar aí para o bem, como para o mal. Combustível limpo para o transporte sustentável: esta é a atual busca de companhias de petróleo que ao se reestruturarem para atender um novo perfil de empresas de energia, visualizam a perspectiva da finitude dos combustíveis fósseis e cada vez mais a urgência em zelar por questões ambientais.

Biomassa é ainda um termo pouco conhecido fora dos campos da energia e da ecologia, mas já faz parte do cotidiano brasileiro. Fonte de energia não poluente, a biomassa nada mais é do que a matéria orgânica, de origem animal ou vegetal, que pode ser utilizada na produção de energia. O biodiesel etílico nacional proporciona uma combustão muito mais limpa. Biodiesel é um combustível diesel de queima limpa derivado de fontes naturais e renováveis como os vegetais. Outras alternativas à dependência do petróleo no Brasil: biocombustíveis - álcool, óleos e gorduras-biodiesel.

A ciência nas diversas fases do tempo - antiguidade, medieval, renascentista e iluminista foi assim: o “homo erectus” ao domar o fogo abriu caminho para incontáveis processos de transformação. A agricultura e a irrigação desenvolveram-se. O cobre, bronze e ferro começaram a ser usados. Os egípcios inventaram o relógio de sol e o calendário moderno. Sumérios e babilônicos criaram a matemática e a astronomia. O filósofo Demócrito propôs o átomo como a menor partícula da matéria. O matemático grego Euclides criou os elementos da geometria. Arquimedes articulou o princípio da alavanca. Johannes Gutemberg inventou a imprensa moderna. André Vesálio desenvolveu a nova anatomia. Copérnico propôs um modelo heliocêntrico do universo, e Galileu pensou sobre a gravidade.

O químico britânico John Dalton fez progredir a teoria atômica. George Cayley criou a base da aerodinâmica. O físico alemão Georg Simon Ohm formulou a Lei de Ohm, pedra fundamental da eletricidade e da engenharia. Faraday inventou o gerador elétrico e Joseph Henry o motor elétrico. Daguerre inventou a fotografia. Hellmholtz formulou a Primeira Lei da Termodinâmica (conservação da energia). Darwin publicou a origem das espécies. Mendel criou a ciência da genética. Edson inventou a lâmpada elétrica incandescente. Rontgen descobriu os raios X. Thomson descobriu o elétron e Marconi demonstrou o rádio.

Com as leis de Isaac Newton (1642-1727), o mundo científico viveu até a segunda metade do século XIX, a sensação de que a física havia concluído sua tarefa e que a ciência estava, enfim, às portas de obter as respostas definitivas sobre os segredos da natureza e os mistérios do mundo. Em 1900, Max Planck anuncia que a energia não é emitida e tampouco absorvida continuamente, mas sim na forma de pequeninas porções discretas chamadas quanta, ou fótons, cuja grandeza é proporcional à freqüência da radiação. Nascia a física quântica. Cinco anos depois Albert Einstein lança a teoria da relatividade. E surgiu, década após décadas, novas descobertas. O mundo é assim, é feito de mudanças.

O bacteriologista Oswald Avery descobriu o significado genético do DNA. O astrônomo alemão Carl Friedrich propôs uma nova hipótese nebular da origem do sistema solar. John Mauchly e John Eckert Jr projetaram o primeiro computador totalmente eletrônico. George Gamown formulou a teoria do “big bang” para a origem do universo. Surgiram novas técnicas de clonagem, descobriram os pulsares (estrelas de nêutron com muita energia), desenvolveram-se a engenharia genética, fibra óptica, o genoma humano foi mapeado e foi pesquisado a cultura de células-tronco. São os fatos científicos que transformaram o mundo.

Mas é necessário lembrar que para garantir a existência de energia suficiente no futuro é necessário utilizá-la prudentemente no presente. Todos nós devemos conservar a energia e usá-la eficientemente. Depende de todos nós a iniciativa de criar novas tecnologias que transformem a energia.

12 março 2008

Sedução do mito

O drama do mito tem no herói, desde tempos imemoráveis, o personagem principal. É impossível pensar a mitologia sem o heroísmo, porque se entrelaçam e se confundem naquilo que podemos definir como transcendência do Eu. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior do que ele mesmo. Mas é bom lembrar essa frase: “Basta um instante para fazer um herói, mas precisa-se de uma vida inteira para fazer um homem do bem”. Os deuses gregos nasceram enraizados em reações humanas diante da vida. Seres carnais, seu comportamento ainda sobrevive na cultura moderna e permanecem vivos exatamente porque são mitos criados à semelhança de seu criador: o homem.

No princípio, era o Caos. O Caos engendrou o Érebro, as trevas infernais, a noite, o dia e o éter, o céu superior. Depois veio Géia, a Terra, e Eros, o Amor. De Géia, nasceu Urano, o céu. E de Géia e Urano surgiu a primeira geração divina da mitologia grega. Nunca se viu mitologia tão humana como a grega. Tão humana que os deuses frequentemente desciam do Olimpo para se intrometer na vida dos mortais, quando não para se entregar a eles.

Hermes, por exemplo, capaz de atravessar o espaço repentinamente, graças às suas sandálias aladas, é o Superman de hoje (ou o Flash, o homem relâmpago, para ser mais preciso). E Afrodite, exuberante, que encarna a fecundidade, mas também o erotismo, um tipo de Marilyn Monroe ou Catherine Deneuve do cinema. A mitologia era a projeção, na tela do céu, da imaginação, dos desejos e dos temores dos gregos. Os combates do Olimpo refletiam fielmente as rivalidade reais entre as cidades. Segundo as lendas, cada cidade possuía seu deus fundador. Zeus (senhor do raio e do trovão) é originário de Creta; Dionísio (deus da força vital), da Trácia; Afrodite (deusa do amor), de Rodes; Atemis (deus da caça), de Esparta. Os habitantes dessas cidades consideravam os deuses como seus longínquos ancestrais. Assim deuses e humanos são quase a mesma família.

A figura do herói fascina o cidadão comum. Com ele nos transportamos para um mundo mágico, onde as soluções dependem desse ser encantado. Na Antiguidade, o herói era cantado em prosa e verso (Ilíada, Odisséia). A mitologia grega era povoada de herói (Aquiles, Heracles, Ulisses). Mas todas as culturas tiveram ou têm os seus heróis e seu significado é modelo exemplar para a sua comunidade. E mesmo na mitologia, o herói nem sempre é perfeito. Heracles matou os próprios filhos. Teseu abandonou Ariadne que o havia ajudada a percorrer o Labirinto.

Há heróis da pátria (Tiradentes, Bolívar, Bonaparte) que merecem um lugar no panteão, há outros que são produtos de biógrafos e historiadores. São alguns dos homens públicos que acabam recebendo coroa de louros nas páginas da História porque tiveram enriquecimento ilícito de parentes ou propina das empreiteiras. É do poeta Jean Cocteau esta convicção: “A História prefere a Mitologia, porque a História parte da verdade e ruma em direção à mentira; a Mitologia parte da mentira e se aproxima da verdade”. E o que dizer do anti-herói? O sem nenhum caráter Macunaíma, de Mário de Andrade, ou do herói bandido como Robin Hood nos bosques de Sherwood, Giuliano nas montanhas da Sicília ou Lúcio Flávio nos morros do Rio. Tem ainda os heróis trágicos, os mártins como Saco e Vanzetti do movimento comunista, Joana D´Arc, Maria Quitera entre outros.

Sabemos apenas que nos dias de hoje os heróis mitológicos foram substituídos pelos heróis da moderna ficção: cinema, televisão, histórias em quadrinhos e videogame. Os do cinema são mais perenes (por graças aos mitos criados pelo celulóide que a arte cinematográfica construiu a ponto que faz com que o mundo bidimensional da tela e o tridimensional do espectador entram em confluência), enquanto os da TV são mais voláteis, têm vida curta. Gary Cooper, Errol Flynn, Greta Garbo, Claudia Cardinale, Brigitte Bardot encantaram gerações e gerações, agora os tempos são outros e a TV vai competir com o cinema mas sem a mesma capacidade de sedimentar a figura do herói. A TV fabrica mitos e os devora. Já nas histórias em quadrinhos os super-heróis continuam imbatíveis. Abrangendo um público que vai da criança ao adulto, o culto é de encantamento. Por isso o cinema e a TV estão sempre aproximando os mitos dos quadrinhos para permanecerem atuais e atingir o grande público.

11 março 2008

O que diziam os filósofos gregos

Muitos dos filósofos, durante milhares de anos, pelo amor à sabedoria, inspiraram algumas das mais fascinantes e ousadas realizações do intelecto humano. Em torno do Mediterrâneo e no Oriente Médio, na Índia e na China, surgiram filósofos cujas idéias iriam estabelecer idéias e pensamentos em suas várias tradições por milênios no futuro. A filosofia grega emergiu da mistura de mitologia, mistério e matemática. À medida que comerciavam em torno do Mediterrâneo, apropriaram-se de elementos de outras culturas. Dos fenícios, tomaram um alfabeto, tecnologia e idéias religiosas. Do Egito, tomaram os modelos que definiram a arquitetura grega, fundamentos da geometria e idéias religiosas. Da Babilônia (hoje Iraque), tomaram a astronomia, a matemática, a geometria e novas idéias religiosas.

Tales que viveu no século VII a.C. (624-546) sugeriu que o mundo está cercado de água, tendo dela nascido em última instância. Ele adotou o que poderíamos chamar de uma perspectiva naturalística. Já Anaximandro (610-545 a.C.) propôs uma idéia diferente, distinguindo terra, ar, fogo e água e explicou as várias propriedades desses elementos atuavam umas sobre as outras e se opunham entre si. Para ele nenhum dos elementos era mais básico. Anaxímenes veio em seguida afirmar que o ar era o mais essencial dos elementos. Os três foram materialistas, o mundo para cada um deles, era composto de algum tipo básico da matéria.

Pitágoras (571-497 a.C.) insistiu que os ingredientes básicos de como eram números e proporções, formas e relações. Ele usou a teoria das proporções para explicar a natureza da música e os movimentos dos astros, defendeu a crença da reencarnação. Heráclito (536-470 a.C.) gostava de enigmas, paradoxos e jogos de palavras enigmáticas que cultuavam seus próprios significados. Para ele a natureza só se dá a conhecer a muitos poucos, e o mundo estava em constante mudança, e a estabilidade aparente era uma ilusão. Foi Heráclito quem insistiu, num dito célebre, que não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio (“Sobre aqueles que se banham nos mesmos rios, águas diferentes e novamente diferentes fluem”).

Parmênides e Zenão diziam que a realidade deve ser uma unidade. Demócrito (460-370 a.C.) acreditava que o mundo consistia em um número indefinido de múltiplas partículas, que diferiam em tamanhos e formas, ou seja, o que existe são átomos, movendo-se no vácuo. Outra geração de filósofos, chamados sofistas (praticantes de sabedoria) usaram novas técnicas de argumentação. Górgias (483-376 a.C.) disse que nada existe e se alguma coisa existisse, seria ininteligível e se houvesse algo ininteligível nada poderá dizer a respeito. Já Protágoras (490-420 a.C.) declarou que “o homem é a medida de todas as coisas”, ou que deveríamos acreditar no que é útil para nós, conhecemos o mundo porque o vemos em termos humanos. Sócrates (470-399 a.C.) afirmou que era possível usar a razão não só para vencer polêmicas como para dissolver as mais importantes verdades sobre a vida humana. Acreditava que a verdade é o mais valioso de todos os bens, que a verdade reside além das sombras de nossa experiência cotidiana. Provocados, foi condenado e executado.

Platão (427-347 a.C.) trouxe a teoria de dois mundos. Um deles é o nosso mundo cotidiano de mudanças e transitoriedade, o mundo do vir-a-ser, ou devir, que estava em fluxo. O outro é um mundo ideal, o mundo do ser, eterno e imutável. Os dois mundos eram inter-relacionados. Podíamos ter pelo menos um vislumbre desse mundo através da razão. Surge A República, livro político e polêmico. Aristóteles (384-322 a.C.) se empenhou no cultivo das virtudes. Para ele uma pessoa deve ser criada com as virtudes, instruída nelas até que se tornem sua segunda natureza. Uma essência é o que torna uma substância o que ela é.

A filosofia apareceu em todas as partes. Não há nenhuma filosofia única e verdadeira. Hoje há uma coleção de idéias, o dinamismo das confrontações em curso, uma nova percepção global. Assim a filosofia é uma abertura reflexiva para o mundo, para o conhecimento.


10 março 2008

Ciência da rede avança cada vez mais


Um bom exemplo de que nossa vida está conectada a uma série de redes. No século 13, os inquisidores católicos perseguiam os heréticos medievais, pessoas que rejeitavam, entre outras coisas, a autoridade do papa. A Igreja Católica instruía os cruzados a matar todos os que viviam em vilas e cidades suspeitas de abrigar dissidentes. Esse foi só o começo e a igreja não conseguia destruir a rede de heréticos com destruição indiscriminada. Os massacres aleatórios conseguiram um alívio temporário, mas a heresia sempre ressurge.

Como a heresia se espalhava, os inquisidores decidiram encontrar uma maneira melhor de extirpar a epidemia herética. Escreveram manuais para inquisidores detalhando a melhor maneira de derrubar uma rede sem escala. O esforço deveria se dirigir a identificar os heréticos que visitaram o suspeito em sua casa, bem como os guias que os conduziam até lá. O importante são as conexões, não os nódulos. Assim mudaram seu estilo de punição com a doutrina de isolamento. Aqueles que tivessem contato com heréticos eram forçados a usar uma cruz amarela na frente e nas costas de toda vestimenta visível. Quem era visto com um portador dessas cruzes corria o risco de ser acusado de simpatizante pela heresia. Essa medida funcionou mas não deteve a disseminação da heresia.

Os inquisidores perceberam a importância das conexões da rede. Como a Internet, por exemplo que tem Yahoo e Napster funcionando como atalhos para conectar muitas pessoas por meio de poucos links. Assim, a heresia dependia das atividades de umas poucas pessoas influentes. E os inquisidores enviaram um espião para descobrir onde eles se escondiam. Vários frades dominicanos foram treinados na caça a heréticos para capturá-los. A operação custou muito para o Vaticano. Era a fórmula ideal que a Inquisição adotou para lidar com as redes sem escalas. Os inquisidores envolvidos eram conhecidos como pessoas que pensavam cientificamente. Afinal, os frades dominicanos era uma das ordens mais cultas. Diferente da Idade Média, as aplicações modernas da teoria das redes sem escala estão salvando vidas, tal como o controle de doenças.

Os sistemas complexos da natureza funcionam de forma similar a proliferação de heresias. A todo momento, centenas de moléculas do corpo ficam loucas e deixam de cumprir sua função original. O motivo de continuarem vivos por anos e anos é que a rede dentro da célula é dominada por “centros de distribuição” – as falhas aleatórias têm pouco efeito. Se alguém distribuísse as moléculas que servem de centros de distribuição, o resultado seria mortal. Bem no estilo do adolescente canadense que conseguiu paralisar algum dos maiores sites da Internet (incluindo Yahoo, Amazon e eBay) com seu computador ligado à rede. Graças ao avanço no entendimento das redes que está havendo uma revolução na biologia. Graças a ela temos hoje a lista dos genes humanos. A ciência das redes está mapeando as interações entre as moléculas dentro da célula e vai ajudar a desvendar, por exemplo, o que são as doenças.

A sociedade em rede tem cinco séculos de existência. Basta lembrar da Renascença onde os banqueiros já teciam sua rede financeira florescente. Os artistas, nesse período, armaram outra rede, sólida e influente, por meio do barroco, primeiro estilo internacional. Outra rede de sucesso: a ferroviária da Europa, iniciada no século 19 e teve vasta repercussão social. Dessa forma, a rede existiu em outros tempos e espaço. Agora a tecnologia da informação é a base para uma rede que tudo alcança no mundo todo. Milhões de pessoas estão unidas pelo e-mail, na Web. É a comunidade virtual. Baudelaire escreveu sobre o sentimento de se sentir sozinho no meio da multidão e ao mesmo tempo, e por isso mesmo, com ele virtualmente “linkado” na cidade moderna. Vivemos virtualmente, sempre fomos virtuais – o que nunca nos impediu de sermos reais.

A nova ciência pode ser aplicada a virtualmente todas as áreas do conhecimento. Todas as redes – sejam elas de computadores, pessoas, empresas ou moléculas – são frutos de uma rede intricada de ligações. A vida é fruto da interação de uma complexa rede de moléculas dentro das células. A economia é uma rede complexa de empresas e consumidores. A sociedade é uma rede complexa de pessoas conectada por laços de família, amizade e trabalho. A Internet é uma teia complexa de computadores conectados por fios. Todos fazemos parte, queiramos ou não, de várias redes.

Em seu livro “Seis Graus de Separação”, o dramaturgo John Guare apresentou a idéia de que cada um de nós está a somente seis apertos de mão de qualquer um dos seis bilhões de habitantes da Terra. O sociólogo americano Duncan Watts testou se isso seria verdade também em outras redes. Ele e colegas descobriram que redes tão diversas como a World Wide Web (ou WWW), os neurônios do organismo e os atores de Hollywood têm a mesma propriedade da rede social que nos une. Todos fazem parte do fenômeno conhecido como “mundo pequeno”. Nele, estamos todos a uma pequena distância de nossos pares de rede. Pouco importa se a rede é o bilhão de páginas da WWW ou 500 mil atores de Hollywood. Uma página de WWW está a somente 19 cliques de qualquer outra e um ator está a três apertos de mão de seus colegas. Todos fazem parte de várias redes. Até mesmo você caro leitor.


07 março 2008

Música & Poesia

A Seta e o Alvo (Paulinho Moska e Nilo Romero)

Eu falo de amor à vida,
Você de medo da morte.
Eu falo da força do acaso
E você de azar ou sorte.

Eu ando num labirinto
E você numa estrada em linha reta.
Te chamo pra festa,
Mas você só quer atingir sua meta.
Sua meta é a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu olho pro infinito
E você de óculos escuros.
Eu digo: "Te amo!"
E você só acredita quando eu juro.

Eu lanço minha alma no espaço,
Você pisa os pés na terra.
Eu experimento o futuro
E você só lamenta não ser o que era.
E o que era?
Era a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu grito por liberdade,
Você deixa a porta se fechar.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar.

Eu corro todos os riscos,
Você diz que não tem mais vontade.
Eu me ofereço inteiro
E você se satisfaz com metade.
É a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa não te espera!

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?

Sempre a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?


Disritimia (Adélia Prado)

Os velhos cospem sem nenhuma destreza
e os velocípedes atrapalham o trânsito do passeio,
O poeta obscuro aguarda a crítica
e lê seus versos, as três vezes por dia,
feito um monge com seu livro de horas.
A escova ficou velha e não penteia.
Neste exato momento o que interessa
são os cabelos desembaraçados.
Entre as pernas geramos e sobre isso
se falará até o fim sem que muitos entendam:
erótico é a alma.
Se quiser, ponho agora a ária na quarta corda,
pra me sentir clemente e apaziguada.
O que entendo de Deus é a sua ira,
não tenho outra maneira de dizer.
As bolas contra a parede me desgostam,
mas os meninos riem satisfeitos.
Tarde como a de hoje, vi centenas.
Não sinto angústia, só uma espera ansiosa.
Alguma coisa vai acontecer.
Não existe o destino.
Quem é premente é Deus.



Não, eu não lamento nada (Non, Je Ne Regrette Rien, de Charles Dumont e Michel Vaucaire na voz de Edith Piaf)

Não, absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é indiferente.

Não, absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Está pago, varrido, esquecido
Dane-se o passado.

Com minhas lembranças
Acendi o fogo
Minhas mágoas, meus prazeres
Não preciso mais deles.

Varri os amores
Com todos os seus tremores
Varridos para sempre
Vou recomeçar do zero.

Não, absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é indiferente.

Não, absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Pois minha vida, minhas alegrias hoje
Isso tudo começa com você.

06 março 2008

Heroínas da Disney refletem os valores sociais

Nos desenhos animados de Walt Disney os roteiristas se baseiam num conto de fadas e manipulam os personagens para refletir os valores sociais. As histórias dos contos de fadas – Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela – eram lindas e puras, e enfrentavam as adversidades com inocência e lágrimas. Sabiam que um dia seu príncipe iria chegar. Elas foram produtos de suas próprias épocas.

Depois de ter protagonistas chinesas, havaianas, indianas, ciganas e árabes, a Disney lançará em 2009 sua primeira princesa afro-americana. Tiana será a personagem principal de The Princess and the Frog, no musical que se passa na cidade de Nova Orleans, em pleno auge do jazz. Os estúdios divulgaram a primeira imagem do longa, que narra o conto de fadas da menina que vive no Quarteirão Francês, nas margens do rio Mississipi, e deve trazer ainda músicas de origem africana e manifestações da cultura local, como os feitiços e rituais.

Branca de Neve, produto dos anos 30, era infantil e passiva. Cinderela, a ingênua dos anos 50 acreditava que sua bondade seria recompensada pelo casamento. Encarnavam ternura e passividade. “Elas eram heroínas-vítimas. Não importa o que sua madrasta horrorosa fizesse, elas sempre acreditavam que alguém viria salvá-las. Era sua crença em sua pureza que possibilitava sua salvação”, conta Linda Wollverton, que escreveu o roteiro de A Bela e a Fera e um esboço do roteiro de Aladdin.

Mas as coisas mudam. A nova geração de mulheres Disney – Ariel, A Bela, Jasmine – prefere abordar seus problemas de forma ativa. Ariel, de A Pequena Sereia foi uma das primeiras. Ela desafia seu pai e vai atrás do homem de seus sonhos em lugar de esperar que ele apareça por conta própria. A sereia teen, uma ruivinha esperta, lançada em 1989, quer mesmo fazer parte do mundo humano, e troca sua bela voz por pernas e vai atrás do seu príncipe. Mesmo fazendo suas próprias opções, as feministas se queixaram de todos os esforços de Ariel – abrir mão de sua voz, abandonar seu lar marítimo – visavam apenas conseguir o príncipe em lugar de, por exemplo, abrir sua própria loja de novidades aquáticas.

A reação surpreendeu os executivos da Disney. Determinada a não ser criticada outra vez, a Disney fez de sua heroína seguinte, a Belle de A Bela e a Fera (1991), uma mulher liberada (para uma França do século 17), morena, forte e contemporânea. Alvo das atenções de toda a cidade porque lê livros, é a primeira heroína de Disney com dotes literários, uma musa cabeça. Ela busca aventuras e foge das atenções do ostentador Gaston.

A Bela e a Fera ignora quase totalmente o conto de fadas original e em seu lugar cria uma heroína esperta e independente que faz um papel visivelmente mais interessante do que outras heroínas anteriores – verdadeiras caçadoras de maridos – de Disney. Belle enfrenta os obstáculos do provincianismo e luta corajosamente contra os lobos na floresta. Ela jamais é vista brincando com bichinhos, limpando a casa ou costurando vestidos. Belle é a única a enxergar a bondade que existe debaixo da superfície medonha da fera, é curiosa e, em última instância, heróica: seu amor transforma a fera e a salva. O filme mostrou que é possível existir uma heroína com tutano no cérebro.

Jasmine, do desenho Aladdin (1992) está mais interessada em liberdade do que num marido bonito. Mulher madura, morena e espevitada. Filha de um sultão e objeto do amor de Aladdin, ela não quer se casar com um príncipe, quer aventuras e liberdade. Mas Jasmine acaba sendo salva de um triste destino por Aladdin – o herói evidente da história. Mesmo assim a personagem agradou ao público pela sensualidade e inconformismo diante do destino. Mark Henn, o supervisor de animação responsável por Ariel em A Pequena Sereia e Belle em A Bela e a Fera, foi encarregado de criar a protagonista de Aladdin. Segundo ele, Jasmine é seu personagem favorito entre essas três, “cada uma delas tem uma personalidade completamente diferente”, explica Henn a cerca de suas três mulheres de animação. “Jasmine é a mais diferente de todas; e bem mais temperamental que Belle, e menos ingênua que Ariel”.

Os desenhos seguintes mostram mulheres decididas como a índia Pocahontas (1995), independente e decidida, como pede a mais adulta história infantil dos estúdios Disney. O amor interracial de Pocahontas por John Smith impede o derramamento de sangue entre ingleses e índios. Ou mesmo a liberada cigana Esmeralda de O Corcunda de Notre Dame (1996). Os carnudos e insinuantes rabiscos cinematográficos da beldade cigana é o ponto máximo do processo de emancipação por que as protagonistas animadas da Disney vêm passando no conteúdo – corajosas, livres e voluntariosas – e na forma – morena de cabelos longos, pernas compridas, formas definidas, movimentos sensuais – nestes últimos anos. A dançarina Esmeralda é a atração do terrível Frollo. Essa atração que deflagra o principal conflito de O Corcunda de Notre Dame. Os desejos do juiz vilão é um dos destaques do filme, mas o fascínio de Esmeralda é do supervisor de animação Tony Fuclle que transforma os movimentos da heroína em atrações tão grandes quanto os vôos acrobáticos de Quasímodo ou a impressionante arquitetura da catedral de Notre Dame.

Já Mégara, ou Meg para os íntimos, no filme Hércules (1997), é uma heroína bem diferente do padrão Disney. Despachada e geniosa, ela tem um passado romântico e definitivamente não está atrás de um novo amor – isto é, até encontrar Hércules. Apaixona-se por ele, porém, é um problema dos grandes: Meg é, na verdade, a arma secreta do vilão Hades contra Hércules. Conseguirá Meg escapar da trama do ardiloso bandido para cair nos braços de Hércules? O desenho dirá! (Gutemberg Cruz)

05 março 2008

Giordano Bruno e seus furores (3)

O filósofo Giordano Bruno, em pleno Renascimento, teve uma maneira de olhar o olhar, no encontro poético entre os olhos (falando da razão) e o coração (em nome das paixões). Para ele, “a vista é o mais espiritual de todos os sentidos”. E dedicou um livro aos olhos: Heróicos Furores. Na obra ele escreve o diálogo – o enbate – entre os olhos e o coração. O diálogo começa com uma acusação e um lamento do coração. Ele se queixa do fogo que o consome e acusa os olhos de serem “causa desse cruel incêndio” que nem toda a água do oceano bastaria para apagar. É que a primeira chama veio dos olhos, porque a razão excita o desejo: “Perceber, ver, conhecer, eis, em verdade, o que o desejo acende. É, pois, graças aos olhos que o coração é incendiado”.

Por sua vez, os olhos acusam o coração de ser o princípio de todas as lágrimas; na verdade, o fogo e a dor do coração fazem brotar as lágrimas dos olhos: se os olhos incendeiam o coração, é por causa do coração que os olhos são incendiados em lágrimas. “Copiosas lágrimas que, se espalhadas, inundariam o universo”.

Os olhos perguntam: se toda matéria, convertida em jogo móvel e ligeiro, eleva-se às alturas do céu, “por que você, que um tão grande jogo de amor atormenta, não é levado, rápido como o vento, de um só ela até o sol?”. O coração responde: “Louco é aquele que, fora das aparências, nada conhece e que, pela razão, recusa-se a acreditar: o fogo que está em mim não pode alçar vôo, nem pode ver esse desmesurado incêndio, porque acima dele estende-se o oceano de olhos e o infinito não pode ultrapassar o infinito”.

E assim, como romper o equilíbrio de duas forças iguais? “Onde existem duas forças – comenta Giordano – uma não sendo superior à outra, uma e outra cessam de ser operantes, uma vez que a resistência de uma iguala-se à insistência da outra”. A igualdade só é possível entre dois infinitos. Duas forças finitas em oposição sempre produzem a ruptura da harmonia e do equilíbrio, por serem desiguais.

E no fim do diálogo vem a resposta: acima dos olhos e do coração está o Desejo. “Estas duas potências da alma jamais são e podem ser satisfeitas por seu objeto uma vez que infinitamente elas o buscam”. O Desejo é o infinito que trabalha o interior das paixões e da razão. É o Desejo que leva o ver a se transformar em ação de ver, dando às paixões e ao intelecto movimento infinito.

A relação dos olhos e do coração, do pensado e do sentido, é posta num duplo movimento, ou seja “dois ofícios”. “Para os olhos: imprimir no coração e receber a impressão no coração, da mesma maneira que o coração tem dois ofícios: receber a impressão dos olhos e imprimir nos olhos. Os olhos apreendem as aparências e as propõem ao coração; elas se tornam então, para o coração, objeto de desejo, e esse desejo, ele o transmite aos olhos; estes concebem a luz, irradiam-na e, nela, inflamam o coração; este, abrasado, espalha sobre os olhos seu humor. Assim, primeiro a cognição emite a faculdade afetiva que, por sua vez e em seguida, emite a cognição”. Cada idéia dos Furores Heróicos faz ressentir o corpo e a busca incessante da felicidade e do prazer. Eis dois poemas de Giordano Bruno da obra Dos Furores Heróicos:

Bem que a martírios tu me tens sujeito
devo-te muito e te sou grato,Amor:
com nobre chaga me rasgaste o peito
e o coração me deste a um tal senhor,


de tão excelso e de tão vivo aspeito,
na terra imagem do divino autor,
Pense quem quer que é ímpio o meu destino,
se morro esp'rança e vivo desatino.

Contenta-me alta empresa;
e quando o fim clamado me escapara,
e em tanto arder minh´alma se gastara,

basta que seja nobremente acesa,
e que eu mais alto ascenda
e do número ignóbil me defenda.

04 março 2008

Giordano Bruno e seus furores (2)

Em 1584, são publicadas as suas obras principais (“O Banquete das Cinzas”, “A Causa, o Princípio e a Unidade”, “Do Infinito, do Universo e dos Mundos”), nas quais expõe uma visão cosmográfica revolucionária, quase visionária. Refuta a velha concepção do geocentrismo e apóia a representação do mundo de Copérnico (heliocentrismo), excedendo-a: “o universo é infinito, povoado por uma multiplicidade de mundos análogos ao nosso”. Concebendo um mundo aberto, que sempre existiu e que sempre existirá, Bruno dá um salto na imensidão. Contudo, permanece ancorado no seu tempo, acrescentando às suas intuições geniais credos herméticos, mágicos e animistas. Sua audácia atinge um ponto culminante com a publicação de “Os Furores Heróicos”, no qual defende a idéia de um mundo desprovido de centro, em que Deus não tem lugar.

Monista, muito mais do que os outros naturalistas, identificou Deus com a substância do universo. Negou a existência de uma esfera exterior a este nosso mundo; este, uma vez identificado com a divindade, devia ser infinito, e em decorrência se podia imaginar outros e outros mundos, com os respectivos sóis. Em Bruno se refletem as doutrinas panpsiquistas do seu mestre Francesco Patrizzi. A matéria é por si mesma princípio de movimento, dela emanando todas as formas. Concebeu as coisas conforme o atomismo de Demócrito, influenciado entretanto pela imagem neoplatônica do mundo com riqueza imanente. .

INDEPENDENTE - No século XVI a filosofia se liberta da religião, e a ciência moderna nasce da filosofia. A ciência não mais será a busca da verdade na propriedade lógica de conceitos, mas através das lentes de microscópios e telescópios. Bruno é a figura principal nessa transição: torna-se um filósofo independente e pressente que a verdade está para além do autoritarismo lógico dos filósofos escolásticos. Embora não seja um cientista, pois não era nem matemático nem astrônomo, dá prontamente crédito a Copérnico, um observador do céu e do movimento dos astros. Copérnico ousa contrariar a cosmologia das esferas celestes perfeitas do sistema aristotélico-ptolomaico que tomava a terra, "logicamente", como o centro do universo.

Sua idéia de que o universo era infinito, e que muitos mundos deveriam existir além daquele então conhecido foi uma das grandes idéias estimuladoras da ciência, durante o Renascimento. O seu livro "Sobre o Universo Infinito e Mundos" em que faz sua afirmação da existência de outros mundos povoados por seres inteligentes é ainda hoje um grande apelo para a imaginação de muitos. Sua técnica de classificação sistemática de objetos da observação no preenchimento de tabelas, suas tábuas combinatórias, foram o germe os métodos empíricos que marcaram o início da ciência experimental.
PIONEIRO - Ele foi um pioneiro que acordou a Europa de seu sono intelectual e foi martirizado devido ao seu entusiasmo. A morte de Bruno pairou sobre as ações da Igreja Católica um medo sombrio. Viram-na como uma instituição capaz de perseguir os doutos e os sábios caso eles ameaçassem a autoridade do Alto Clero e da burocracia papal. Imagem negativa que só o Papa João Paulo II tratou de mandar reparar ao desculpar-se pela infelicidade do processo contra Galileu, reabilitando-o em 1992. Mas ainda não tomou uma decisão favorável a Giordano Bruno. A Igreja Católica só deplorou a execução, mas não os motivos da sua condenação.
Giordano elegeu a liberdade de pensamento como a única estância a que o homem pode e deve submeter-se. Nesse sentido, reproduz o espírito do Alcorão quando afirma que a inteligência humana é infinita e, assim, não pode aceitar a submissão a verdades absolutas, por ser incoerente com a natureza humana. Ele foi capaz de detectar a natureza irracional dos conflitos teológicos-políticos-filosóficos, clamando à razão, o humano, por isso, foi queimado vivo. Cinco séculos se passaram e o homem individual ou coletivo ainda permanece submetido a poderes hierárquicos, abstratos, extra-terrenos, cimentados na fé reencarnacionista da matéria e na qualidade do sangue, sob a égide de mandatários ocultos que atuam como mandrakes das histórias em quadrinhos. É traumática a servidão humana e inaceitável a preguiça em assumir os próprios passos, sem interventores ou feitores, responsabilizando-se por suas ações e omissões perante as próprias consciências.

03 março 2008

Giordano Bruno e seus furores (1)

Há 460 anos nascia Giordano Bruno (1548/1600), o filósofo italiano, ex-padre dominicano do século XVI, que foi, provavelmente, o primeiro mártir da Ciência. Suas teorias radicais, fruto de complexa personalidade visionária, racionalista, científica e, também, ocultista, abalaram dogmas políticos, religiosos e científicos da cultura ocidental, batendo de frente com preceitos dogmáticos estabelecidos pela Igreja Católica e seu braço repressor, a Inquisição. Apesar do destino trágico, ele sustentou até o fim os seus ideais, escritos e obras. Seus ideais, com a idéia mestra de universos infinitos e multiplicidade dos mundos, não só permaneceram através dos séculos, como influenciaram figuras como Galileu, Newton, Huygens, Leibniz, Popper, Spinoza e até mesmo Shakespeare. Ele morreu pelas suas idéias que na época eram conhecidas como um "materialismo degenerado". A época ficou conhecida como o período das reformas político-religiosas: o Renascimento. O filósofo foi condenado pelas três correntes: catolicismo, calvinismo o luteranismo (protestantismo).

Vamos conhecer um pouco dessa figura pouco divulgada nos dias de hoje. Inúmeros estudos sobre as obras tentam aprisioná-lo em escolas místicas ou desconsiderar suas pesquisas e teorias que influenciaram a ciência astronômica, assim como toda a filosofia moderna. Sobre ele há um ótimo livro de Michael White (O Papa e o Herege), além do texto da peça de teatro "Galileu Galilei", de Bertold Brecht, e o filme "Giordano Bruno", de 1973, dirigido pelo cineasta italiano Giuliano Montaldo, com uma excelente interpretação de Gian Maria Volonté, no papel de Giordano Bruno.

Desde o século II, a filosofia permanecia mergulhada no território imóvel da fé, a teologia católica. A terra permanecia como o centro do Universo imóvel e finito. Doutrinas filosófico-teológicas, declaravam a terra como o centro do Universo. Giordano Bruno foi um dos precursores da Teoria do Infinito e, em conseqüência, contrariou os interesses políticos e religiosos estabelecidos há séculos como verdades absolutas.

COSMOLOGIA - Bruno nasceu em Nola, Reino de Nápoles, sul da Itália. Ingressou em 1565 na ordem dos dominicanos, ordenado sacerdote em 1572, e doutor em teologia em 1575. A sua curiosidade intelectual leva-o à leitura de Erasmo, humanista considerado herético desde 1559. Giordano navega no hermetismo e na magia, iniciando uma enorme paixão pela cosmologia. Deixou a ordem e a igreja católica já no ano seguinte, porque duvidava dos dogmas da virgindade de Maria, da transubstanciação do pão na ceia eucarística, d
a divindade de Jesus. Perseguido pela Inquisição Romana, fugiu para o norte da Itália, dali para a Suíça, depois França.

Em Paris conseguiu algum sossego e começou a lecionar. Acumula problemas com os mentores do poder espiritual da época por ousar pensar livremente. Foi excomungado pelos calvinistas de Genebra, foi recebido com hostilidade pelos anglicanos de Oxford e de Londres. Por meio de procedimentos escusos, a Inquisição Romana conseguiu capturá-lo, e tê-lo em Roma. Depois de oito anos de prisão e resistência a uma abjuração forçada, durante os quais foi submetido a todo o tipo de sevícias físicas e morais, foi posto no alto de uma fogueira, sob a vigência do pontificado do papa Clemente VIII.

O Papa Clemente VIII tentou acabar com o processo, propondo a G. Bruno o perdão em troca de uma declaração de arrependimento. A sua resposta foi a seguinte: “Não temo nada e não renego nada e não sei o que deveria renegar”. Em 20 de Janeiro de 1600 Clemente VIII ordena ao Tribunal do Santo Ofício que se pronuncie. Após a leitura da sentença que o condena a ser queimado vivo, G. Bruno diz: “sentis vós mais medo e dúvida a pronunciar essa sentença do que eu a aceitá-la”. E, numa antevisão de futuro, respondeu: "O tempo tudo dá e tudo tira; tudo muda, mas nada perece...".