29 fevereiro 2008

Páginas de sensação (2)

Cartas pornográficas de d. Pedro I, Os amores secretos de Pio IX, A mulher e o padre, Os prazeres do vício, O amor da baronesa e A divorciada são alguns títulos que exploravam personalidades políticas e religiosas, as orgias, o adultério ou as elegantes rodas da prostituição. Depois que os editores lusitanos já haviam exibido em seus catálogos coleções como a Biblioteca Reservada, Biblioteca Picante, Biblioteca Noites de Amor, Contos Salgados (para gabinete particular), permeadas de imagens ‘artisticamente ilustradas’, além de pseudônimos famosos iguais aos de ‘Rabelais’ e ‘Arsênio de Chatenay’, nossos homens de letras, incentivados pelo sucesso comercial, desses livros, passaram a produzir suas próprias histórias de teor malicioso e pornográfico. No Brasil (...), a voga e a popularidade da escola literária do naturalismo foram decisivas para essa produção nascente”.

“Se os homens estavam livres para gozar seus devaneios junto aos livros dedicados ao seu gênero, as mulheres, além da vigilância familiar, tinham de enfrentar os alertas das teses e das falas médicas que atentavam para os sérios problemas da busca feminina pelo prazer. Entre eles, o principal efeito dessas leituras: a ação isolada da masturbação, também chamada ‘ditorismo’ ou ‘onanismo feminino’.”. Os médicos enumeravam os terríveis resultados sofridos pelo corpo como seios moles, hálito forte, gengivas e lábios descorados, perda de umidade nos olhos, sardas, espinhas, diminuição do tecido muscular entre outros.

A grande diversidade de “livros para homens” em circulação no Oitocentos, era composta de obras que dialogavam entre si, difamavam as regras morais em voga e ironizavam o contexto social, político e religioso da época. Mas, para a satisfação dos leitores, valorizavam, acima de qualquer coisa, o ato sexual e a permanente busca de satisfação através dos encontros entre homens e mulheres. O naturalismo no Brasil contou com um mercado editorial em plena expansão. Entre os mais vendidos do naturalismo brasileiro estão A Carne (1888) do filólogo Júlio Ribeiro, O Aborto (1893) de Figueiredo Pimentel, e A Mulata (1896) de Carlos Malheiro Dias.

Adolfo Caminha fez sucesso com O Bom-Crioulo (1895), história de um marinheiro de origem escrava, homossexual, que, sob a influência do meio, obedeceu aos “instintos torpes” de seu organismo para assassinar o amante. “A crença de que os ‘romances só para homens’ teriam sobre a ‘frágil personalidade’ da mulher influência perniciosa fortaleceu-se ainda mais diante do temor de um dos principais efeitos do livro pornográfico: o incentivo à masturbação. Numa época em que os médicos e juristas apontavam para os perigos da busca do prazer feminino fora da esfera do casamento, os textos obscenos, interessados em instigar a imaginação criativa de cada leitor em proveito da sua própria satisfação sexual, constituíram um verdadeiro flagelo a ser combatido.


Essas obras licenciosas operavam de diferentes maneiras sobre a libido daqueles que percorriam suas páginas, como também discorriam sobre uma variedade de temas filosóficos, políticos e sociais, que, lidos sob os códigos culturais da época, davam pluralidade e complexidade aos seus enredos. Para Alessandra El Far (Páginas de Sensação), “o leitor, que sabia diferenciar um enredo picante de outro apenas sugestivo, levaria para casa aquele que melhor correspondesse às suas expectativas, para alegria dos livreiros, ou então para a preocupação dos que acreditavam nos efeitos nocivos da leitura”.

28 fevereiro 2008

Páginas de sensação (1)

O romance foi um dos gêneros literários mais disseminados nas últimas décadas do século XIX no Brasil. O romance-folhetim, publicado nos rodapés dos jornais diários, desde o final da primeira metade do século XIX, havia conquistado um número considerável de leitores. Além dos originais franceses e ingleses, traduções portuguesas entraram no país para agradar àqueles que não sabiam ler no original. Entre as diversas publicações populares, duas se destacaram: os chamados “romances de sensação” (com dramas emocionantes, mortes inesperadas e crimes violentos) e os “romances para homens” (com enredos recheados de cenas de sexo, luxúria e obscenidades não aconselháveis às mulheres, vistas como pessoas frágeis, suscetíveis e facilmente influenciáveis pelos encantos da narrativa).

Na obra de Alessandra El Far (Páginas de Sensação – Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro – 1870-1924. Companhia das Letras, 2004) descobrimos o enredo de alguns romances que prometiam cenas de luxuria, sexo e aventura. Os editores do Oitocentos caprichavam no que podiam para agradar ao leitor: diálogos obscenos, desfechos imprevisíveis e, sem dúvida alguma, cenas de tirar o fôlego.

“Se nas histórias sensacionais os heróis e heroínas, vítimas de um destino cruel, viam-se de uma hora para outra à mercê de um futuro inglório, de uma noite prematura ou de um sofrimento injusto e sem fim (...), nos livros reservados somente ao público masculino, de modo semelhante, cada aventura sexual demarcava o desmoronar de preceitos sociais, familiares e matrimoniais tão caros àquela época. Aos olhos do leitor, acostumado a uma realidade mediana por rígidas convenções sociais e pelos severos laços de obediência, parecia ser extremamente atraente inteirar-se de histórias comprometidas em explorar as brechas e fragilidades da ordem cotidiana”, escreveu Alessandra na introdução de sua obra. “Esses livros, que ate então foram ignorados por serem considerados um gênero menor, sem qualquer refinamento estético ou intelectual, revelam, nessa perspectiva, uma oportunidade ímpar de entrar num universo literário marcado por tantas diversidades e repetições”, concluiu.

Esses romances direcionados ao público masculino baseavam nos pressupostos morais em voga, mas nem sempre se mostrava eficaz, graças ao apurado espírito capitalista dos livreiros e à curiosidade das mulheres, que poderiam se apoderar de tais enredo sem qualquer livraria da cidade depois de driblar os olhos vigilantes dos pais e maridos. Segundo a pesquisadora, desde a ascensão do romance na Europa, diversos pensadores atinaram o mau exemplo dado às leitoras pelas heroínas das histórias de ficção, que, muitas vezes, em atitude ou pensamento transgrediam as regras e convenções sociais. As mulheres de carne e osso não deveriam, na opinião desses homens, ter acesso a narrativas que pudessem faze-las sonhar com afetividades e emoções distantes da sua realidade.

Mesmo com os olhos atentos dos intelectuais e autoridades mais preocupadas, os “romances para homens” proliferaram pelas ruas do Rio de Janeiro. Se ao longo dos anos 1870 a importação e produção ainda apresentavam escalas tímidas, nas décadas de 1880 e 1890, com o desenvolvimento do nosso mercado editorial, uma variedade bem maior de tecidos colocou-se à disposição do leitor carioca.

27 fevereiro 2008

O Amante de Lady Chatterley

Há 80 anos o escritor David Herbert Lawrence (1885/1930) com a obra O Amante de Lady Chatterley entrou para a história da literatura inglesa pela portado escândalo. O tema ousado (a relação extraconjugal de uma aristocrata com um empregado) e a descrição detalhada das cenas de sexo levaram o romance a ser banido – com direito à circulação de várias edições piratas antes da primeira publicação oficial na Inglaterra, em 1960.

Na imprensa, foi considerado “o livro mais sujo da literatura inglesa”. Só 32 anos depois sua publicação foi liberada no Reino Unido. Enquanto isso, circulou clandestinamente, em edições piratas ou publicadas em outros países. Hoje é considerado uma das obras seminais da literatura moderna, com sua ousada história de uma lady inglesa que busca a satisfação com o jardineiro de sua casa, depois que o marido fica impotente devido a um acidente na guerra. Na obra, Lawrence glorifica a alegria dos corpos durante o sexo, o que para ele é uma das leis eternas da natureza.

D.W.Lawrence, perseguido muitas vezes pela censura inglesa com a publicação de O Amante de Lady Chatterley, afirmou que os que atacam o erotismo não passam de hipócritas: “Metade dos grandes poemas, quadros, obras musicais e histórias deste mundo tem sua grandeza no apelo sexual. Em Ticiano ou Renoir, no Cântico de Salomão ou em Jane Eyre, em Mozart ou em Anne Laure, a beleza surge impregnada de apelo sexual...”. Lawrence aponta, enfim, para o grande problema moral do nosso tempo. O povo, moralizado, passou a ser a unidade de medida para definir o que é moral e imoral, erótico e pornográfico. Os moralistas se aproveitam disso como o axioma: vox populi, voz Dei. Perde-se assim o discernimento entre sentido massa e sentido individual; ou melhor, o indivíduo não pode mais exercer a sua capacidade de julgar: “o hábito-massa de condenar todas as formas de sexualidade é excessivamente forte para deixar que a tomemos como coisa natural”.

Lawrence pergunta: ao qualificar uma obra ou uma ação pornográfica, erótica ou obscena, estou tendo uma reação individual ou estou agindo conforme o senso comum (interrogação) É uma questão delicada quando se sabe que o erotismo está associado tanto ao imaginário individual quanto às atividades cerebrais: o espírito livre qualifica como sexuais objetos, seres e até mesmo momentos que em si nada têm de sexuais.

TERROR DO CORPO

O Amante de Lady Chatterley, o décimo e último romance de D.H.Lawrence, narra a história da esposa frustrada de um aristocrata arrogante e impotente, ferido na Primeira Guerra Mundial, e seu caso com um jardineiro de quem ela engravida e por quem abandona o marido, a casa e sua classe social. Apesar do tema adúltero, Lawrence estava convencido de ter escrito um livro afirmativo sobre o amor físico, que poderia ajudar a libertar a mente puritana do “terror do corpo”. Ele acreditava que séculos de ofuscação tinha deixado a mente “subdesenvolvida”, incapaz deter uma “reverência adequada pelo sexo e uma admiração apropriada da experiência estranha do corpo”. Dessa forma, criou com Connie Chatterley uma heroína que desperta sexualmente e ousa renovar a folha de parreira do ventre de seu amante para examinar o mistério da masculinidade.

Embora a exposição da fêmea nua fosse aceita havia muito tempo como prerrogativa de artistas e pornógrafos, o falo costumava ser obscurecido ou disfarçado com acrógrafo e jamais era revelado ereto. Mas a intenção de Lawrence era escrever um “romance fálico”, e com freqüência, no livro, lady Chatterley concentra sua atenção no pênis do amante, afaga-o com os dedos, acaricia-o com os seios, toca-o com os lábios, segura-o nas mãos e observa-o crescer, estende a mão para acariciar os testículos e sente seu estranho peso suave; e enquanto seu assombro era descrito por Lawrence, milhares de leitores do sexo masculino sentiam indiscutivelmente sua própria excitação sexual, imaginavam o prazer do toque frio de lady Chatterley em seus órgãos cálidos e tumescentes e experimentavam por meio da masturbação a emoção vicária de ser seu amante. O texto erótico muitas vezes leva à masturbação, e isso era motivo suficiente para tornar controverso o romance de Lawrence.

O livro foi rotulado de obsceno nos Estados Unidos durante 30 anos, mas em 1959, um juiz federal, influenciado pela nova definição de obscenidade da Suprema Corte, suspendeu a proibição do romance e admitiu que D.H.Lawrence, o autor do livro, era um homem de gênio. Lawrence terminou a versão final do romance em 1928. O editor recusou a publicar e Lawrence levou o manuscrito para Florença, onde, cm a ajuda de tipógrafos italianos que não entendiam uma palavra de inglês, produziu uma edição em capa dura limitada a mil exemplares. Os livros foram contrabandeados para a Inglaterra e distribuídos por meios de seus amigos a muitos leitores. A primeira edição esgotou-se rapidamente, e seguiu-se uma segunda impressão. Editores undergrounds fizeram cópias fac-similares e venderam-nas aos milhares. O livro só foi declarado legal nos EUA no verão de 1959.

Para além do escândalo, o romance de Lawrence permaneceu atual por trazer o ponto de vista da mulher para o primeiro plano (coisa rara na época) e por tocar francamente em questões consideradas tabus, como a sexualidade. O texto serviu de base para uma série de filmes e adaptações cinematográficas.

26 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (6, final)

Ao estudar o processo de gravidez e do parto, a obstetrícia não produziu um conhecimento técnico e neutro. Este saber contribuiu para uma definição determinista do feminino ao afirmar que a Natureza havia criado as mulheres para dar continuidade à espécie humana, dotando-as de órgãos específicos para tal finalidade, bem como de uma contribuição física adequada para a maternidade. Portanto, as mulheres deviam natural e moralmente ser preparadas desde cedo para exercer esta função interna.

Ao estudar o corpo feminino e sua capacidade reprodutiva, a obstetrícia contribuiu para limitar a definição do feminino à maternidade, afirmando que qualquer desejo por algo além desta norma do corpo era um sinal de desvio, caminho para patologia. Não é coincidência que só no século XIX a representação da mãe devotada passasse a estar tão presente no imaginário, seja na religião, nas artes, na literatura ou na escrita médico-científica. Mas foi a ginecologia que contribuiu mais decisivamente para este aprisionamento da mulher ao corpo.

A grande questão da ginecologia não era a capacidade reprodutiva, mas entender o que era a mulher. Questão ideológica. Os médicos voltaram-se para o interior do corpo feminino, mais especificamente para o baixo ventre, procurando nos órgãos sexuais as respostas para a distinção feminina. Útero e ovários passaram a ser uma metonímia da mulher: ou elas se enquadravam na norma da maternidade ou criam no terreno pantanoso onde proliferam as patologias de etiologia sexual.

Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

O controle social continua a ser a principal semelhança entre a mulher – corpo do século XIX e a mulher corpo de hoje. As do passado estavam presas a vertas “verdades” sobre seus corpos, como a fragilidade e o perigo para a sua saúde física, e, principalmente, mental caso ousassem romper com estas verdades. Hoje o controle sobre as mulheres está embalado no pacote da saúde, da beleza, da juventude, do dinamismo, enfim, do bem-estar fotogênico que consumimos todos os dias. A indústria da beleza, com toda a sua diversidade, também afeta os homens, mas as mulheres estão na sua origem e continuam a ser o alvo privilegiado.

Hoje, não basta ser uma boa profissional, ser competente no que faz, ter seu espaço e ser respeitada pelo que é. Se você não for tudo isso e mais uma milhão de outras coisas relacionadas ao que você aparenta, então não será percebida e, na nossa cultura visual, isso pode ser um problema, uma fonte de frustração e de amargura. Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona.

25 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (5)

A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.

O conhecimento científico sobre as diferenças humanas de gênero e raça, que começou a ser elaborado em meados do século XVIII e durante todo o século XIX, estabeleceu como verdade que a constituição física dos corpos seria uma espécie de base indelével que definia o destino ou a função dos indivíduos na sociedade. Os homens de ciência partiram de um modelo físico bem determinado – o homem branco, tido como mais inteligente, forte, capaz de exercer o poder, criar obras artísticas e produzir o conhecimento. Seu corpo passou a ser a medida, enquanto todos os outros corpos se tornaram objeto de estudo científico que precisava conhecer aquelas diferenças de gênero e de raça, submetê-las a um conjunto de procedimentos científicos e estabelecer o seu lugar, tanto na classificação da espécie humana, quanto na classificação social.

Anatomistas, fisiologistas e médicos afirmaram que o corpo feminino era determinante na vida das mulheres. Se nos homens predominava o alto corporal, o cérebro como sede da razão e o auto controle, nas mulheres predominava o baixo corporal, o útero, a capacidade reprodutiva, a sexualidade, as paixões e todo o potencial ameaçador e desestabilizador que os homens da ciência creditavam a elas. Segundo uma tradição mais antiga, tanto pagã quanto cristã, dizer que as mulheres eram predominantemente seus corpos podia significar que a mulher era uma ameaça, uma fonte de poluição associada ao mal e à morte. Já de acordo com uma concepção naturalista e romântica, o significado da mulher-corpo muda, ou seja, o corpo feminino é fonte de vida, berço e não túmulo.

Essas representações sobre o feminino (produzidas tanto pela ciência e medicina quanto pelas artes e literatura) é que elas são intercambiáveis. O mesmo autor que demonstra temor pelo corpo feminino pode enaltecer as qualidades maternas deste corpo. Assim, a representação da mulher-corpo não foi única ou homogênea. Ela tem diferentes significados ao longo do século XIX, dos mais negativos e depreciativos aos mais poéticos e enaltecedores.

Como a ciência tem o poder de nominar as coisas, de dizer a verdade sobre elas, era um poder tão grande quanto o da religião. Para os termos do século XIX, isso significava estabelecer não só identidades, mas criar normas, fixar os objetos do conhecimento nos limites deste esquadro que é a norma. Quando os homens da ciência e da medicina enunciaram que a mulher era tão diferente do homem que nem pareciam pertencer à mesma espécie, isso teve um impacto na vida das mulheres.

Naqueles tempos, como no nosso, as diferenças não convivem com a igualdade; portanto, as mulheres eram consideradas naturalmente indivíduos de segunda categoria, mais frágeis física e emocionalmente, mais suscetíveis aos ditames do corpo do que da razão. Tais idéias tinham uma força enorme, impedindo que as mulheres pudessem exercer direitos políticos, estudar, expressar livremente suas idéias, dizer não a pais ou maridos prepotentes, até mesmo praticar exercícios físicos como andar de bicicleta, por exemplo.

22 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (4)

É sempre bom lembrar que as práticas eróticas foram lidas segundo as classificações das “perversões sexuais” elaboradas pelo médico vienense Richard von Krafft-Ebing, em meados do século XIX, onde a busca do prazer sexual foi fortemente condenado. Desde Foucault que este discurso, instituídos das referências modernas sobre a sexualidade, é severo, moralista e sexista. Para os médicos do século passado, o desejo sexual era visto como força ameaçadora, vulcânica, destrutiva que deveria ser combatida e bem administrada pelo intelecto. A relação sexual deveria ser reprimida para que se evitasse a perda desnecessária do sêmen masculino. Obcecados com a sexualidade, voyeuristas disfarçados, os homens da ciência falaram ininterruptamente da sexualidade desde o século XIX, principalmente para normatizá-la. Dissecaram o corpo da meretriz, do cafetão, do homossexual, “perverteram o sexo”. Todas as práticas sexuais foram postas sob o signo do discurso científico, analisadas, classificadas, contidas e condenadas. Mas todas ganharam ampla visibilidade. A ciência domou o sexo, com medo de ser dominado.

Um dos maiores países mestiços do mundo, o Brasil foi gerado em ventre escravo. Raras foram as sociedades coloniais nas quais terá havido tamanho intercurso sexual entre senhores e escravas como o que aconteceu na lascívia dos trópicos brasileiros. A partir do instante em que o número de “fêmeas” vindas da África aumentou, e o trabalho forçado adquiriu feições também domésticas, muitas escravas foram transferidas da senzala para o seio da casa-grande. Eram amas-de-leite e mucamas.

Além disso, o desejo, consciente ou não, de fazer a escrava reproduzir um n ovo servo empurrava muitos senhores ao relacionamento com as mulheres da senzala. A perversão pura e simples foi outro componente constante nessa relação. Resultado: o panorama de desregramento sexual no Brasil-colônia estava no auge. Era o pecado em clímax no sul do Equador.

O aparecimento de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freire, em 1933, fornece um repensamento fundamental do problema da miscigenação que tanto incomodou a elite, enfatizando mais positivamente a mistura de culturas e a criação de uma nova civilização nos trópicos, como resultado dessa mistura. O caráter sexual da vida brasileira estava ligado ao contexto social que a produziu. A noção de escravidão foi empregada metaforicamente na descrição das relações de poder, de dominação e opressão que marcaram todo o processo de conquista e colonização. O regime de escravidão foi claramente ligado a uma ética sexual particular dominada por diferenças de poder, por sadismo e masoquismo, por atividade e passividade. Foi na instituição da própria escravidão que a depravação sexual da vida brasileira tomou forma, manifestada mais claramente, como Freyre enfatiza, nos prazeres perversos dos filhos de fazendeiros.

O legado do passado patriarcal tornou-se essencial ao movimento de auto-interpretação na sociedade brasileira. A autoridade do patriarca repousava em grande parte na distância social que este potencial para a violência estabeleceu entre ele e seus continuadores – entre o senhor e seus escravos, o pai e seus filhos, o macho e suas fêmeas. Com o poder investido inteiramente em suas mãos, o homem era caracterizado em termos de superioridade, força, virilidade, atividade, potencial para a violência e o legítimo uso da força. A mulher, em contraste, em termos de sua evidente inferioridade, como sendo em todos os sentidos o mais fraco dos dois sexos – bela e desejável, mas de qualquer modo sujeita à absoluta dominação do patriarca.

O homem jogava de uma liberdade sexual quase absoluta. O patriarca mantinha relações sexuais não apenas com a sua mulher, mas também com muitas amantes e concubinas. As atividades sexuais de suas mulheres, por outro lado, eram rigidamente reguladas e controladas pelo próprio patriarca. Essa moralidade sexual dualística permeava e efetivamente dividia todos os aspectos da vida cotidiana.

Mas é nas expressões, termos e metáforas utilizados para falar do corpo e suas práticas, que as relações da criança com a realidade começam a tomar forma e que os sentidos associados ao gênero na vida brasileira são mais poderosamente expressos. E é na existência de duas estruturas anatômicas opostas - o pênis e a vagina – que a distinção entre macho e fêmea é literalmente incorporada e tomam significados não como marcadores da ordem natural, mas como representações de um conjunto particular de valores culturais.

21 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (3)

O relatório de Caminha tem a intenção tanto de encantar como de escandalizar. A beleza e a inocência dos nativos é exaltada através de vívidas referências exatamente àquelas partes que, no universo moral da sociedade do próprio Caminha, deviam ser mais escondidas e omitidas. E os viajantes do Velho Mundo trataram de levar a sério o trecho da Bíblia, no Velho Testamento que invoca a máxima “crescei e multiplicai-vos...”. E foi o que aconteceu. Afinal, os portugueses vieram de um mundo onde as mulheres se cobriam dos pés ao pescoço e chegaram a um paraíso, onde as nativas viviam nuas. O processo de colonização foi o resultado da construção de alianças entre nativos e brancos. Para os índios, os portugueses eram parceiros nas suas guerras, enquanto eles representavam mão-de-obra gratuita para os europeus.

Avesso às tarifas civilizatórias do invasor, os índios foram considerados preguiçosos. Então, os portugueses decidem importar mão-de-obra da África, transformando, do mesmo passo, homens livres em escravo. Esses novos habitantes chegaram na condição de escravos, mão-de-obra que garantiria o sucesso da colônia. A miscigenação foi estimulada no processo de colonização. E a mistura de branco com índio, dando caboclo/mameluco; branco com negro, resultando no mulato; e negro com índio, que deu o cafuso, foi só o começo da história.

A mistura das três raças, o índio, o português e o africano, como a chave da sua constituição histórica, a questão da sexualidade, da interação sexual como mecanismo concreto da mistura racial, assumiu uma importância sem paralelos no pensamento moderno brasileiro. O clássico “Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira”, de Paulo Prado, publicado em 1928, traz uma visão pessimista e estigmatizada do nosso povo. Prado argumenta que a tristeza brasileira está ligada aos próprios impulsos que caracterizaram tanto a descoberta como a colonização: à luxúria e à cobiça. Ele explicita o significado da tristeza, que passa progressivamente a denominar, a partir de um vocabulário médico, de melancolia. Informa ainda que a melancolia é o estado físico e psíquico decorrente da “hiperestia sexual”.

De tantos excessos sexuais e vícios da multiplicação das “uniões de pura animalidade”, desde os inícios da colonização no Brasil, tornamo-nos um povo triste, cansado, prostrado. A terra virgem, a mata abundante, os rios caudalosos, a natureza farta, o clima, “o homem livre na solidão”, o encanto da nudez total das índias, posteriormente a presença das negras sensuais, tudo, na formação histórica do País, contribuiu para que nos tornássemos um povo mole, instintivo e sensual. Dionisíaco em comparação com os americanos apolíneos.

O pessimismo sobre o povo brasileiro na visão desse historiador parece assentar-se na concepção altamente negativa da sexualidade que tem o próprio autor, para além de toda a influência do darwinismo social em sua obra. Muitos historiadores basearam-se em fontes documentais para construir suas interpretações históricas de nosso passado e certamente os viajantes, inquisidores e colonizadores que desvendaram o país, desde o século 16, além do olhar masculino, traziam toda a bagagem de preconceitos culturais da Europa renascentista, por meio da qual codificaram as práticas sociais e sexuais. Assim, enxergaram nas práticas sexuais dos indígenas todos os vícios que o cristianismo lhes ensinava ver.

Antonio Risério em seu livro “Uma História da Cidade de Bahia” observou que dois escritores da época, o católico Claude d’Abbeville (que encontrava dificuldade para desviar seus olhos das ameríndias nuas) e o calvinista Jean de Léry, concordam num ponto importante em suas reflexões obsessivas sobre as fontes da tentação. Ambos observam que a nudez cotidiana, habitual, das índias brasileiras era menos perigosa, como germe ou manancial da lascívia, do que as vestes sedutoras das mulheres européias. Ou seja – a lucidez missionária constata que a via para o pecado está menos na nudez rotineira do que no vestuário erotizante; menos no corpo que se exibe sem atavios de sedução do que no corpo que se cobre para insinuar e sugerir; menos no que se mostra do que no que se entremostra; menos na fêmea que no fetiche.

Segundo o pesquisador, os índios ensinaram os brancos os caminhos da água e da terra, as virtudes e os venenos da flora e da fauna – o que plantar, o que comer, o que fazer. Em suma, submeteram os europeus a uma pedagogia ecológica. A uma didática dos trópicos brasílicos. Sem essa pedagogia tropical, os portugueses não teriam sobrevivido aqui. Em contrapartida, os índios não receberam dos europeus nada que fosse tão fundamental. A grande maioria das coisas que os portugueses lhes ensinaram contribuiria apenas para a sua desintegração final, a curto, médio e longo prazos.

20 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (2)

O sexo era a prova conclusiva da diferença “para menos”. O modelo dos dois sexos, a partir daí, se torna hegemônico. Mulheres e homens passaram a ser comparados pelo padrão da descontinuidade/oposição e não de continuidade/hierarquia, como na metafísica neoplatônica. O “sexo” deixou de ser sinônimo de aparelho genito-urinário e reprodutor e veio a substituir seu similar neoplatônico, a “perfeição metafísica do corpo”. Em vez do “corpo perfeito e do calor vital únicos”, a abstração do “sexo” dividido, originalmente, em dois, cada um com propriedades “naturais” específicos.

As propriedades foram, principalmente, definidas por suas relações com os comportamentos morais. Homens e mulheres deviam ter um tipo de prazer sensual, de conduta social e de vida emocional adequados à natureza biológica de “seus sexos”. Do contrário, não seriam exemplares normais da espécie, e sim indivíduos desviantes, anormais, doentios ou degenerados. Os sujeitos, até então avaliados moralmente por seus atos, pensamentos e sentimentos religiosos ou pelos valores de hierarquia aristocrática, passam a ser julgados pela conformidade à finalidade sexual de suas supostas “natureza biológicas”. Na anatomia estava o destino psicológico-moral dos viciosos e virtuosos.

A proliferação de discursos sobre o sexo no Ocidente, acelerada a partir do século XVIII, foi incitada pelas próprias instâncias do poder – como a pastoral católica e o sacramento da confissão, por exemplo – com a finalidade de estabelecer controles caracterizados pela repressão ao prazer. No século XIX, o discurso médico científico, ainda não totalmente liberto da repugnância quanto a tais assuntos, passou a dissecar a sexualidade humana em todos os seus aspectos. O saber legitimados com o qual os médicos (principalmente) passaram a ser investidos com relação a questões sexuais, ainda que fruto de processos anteriores, teve no XIX uma força e virulência que impressionam o observador do século XX, dados os extremos de crueldade atingidos – a par de toda uma tradição de normatização do sexo pela violência.

Declarando perversas todas as práticas e expressões do impulso sexual que não atendesse à única finalidade “natural” da procriação, lidando com categorias de perversão e perversidade – como Krafft-Ebing – combatendo a masturbação – como Havelock Ellis e cortes de outros colegas seus -, médicos e estudiosos da sexualidade esforçaram-se por nomear, controlar e higienizar a sexualidade, freqüentemente em nome de um ideal nacional, segundo o qual o “desvio” sexual não só prejudicava o indivíduo, mas também fazia com que se debilitasse a nação. É por isso que a emergente sexologia de Krafft-Ebing tinha como objetivo primordial estudar os comportamentos sexuais desviantes, e não a norma, pois, entendidos dessa forma, os atos sexuais eram trazidos para a esfera pública.

Havia um consenso médico, de forma alguma absoluta, mas ainda assim predominante, que via no apetite sexual feminino um sintoma de distúrbio ou doença mental. No Brasil o discurso médico aliado de uma classe industrial tentava apropriar-se da infância e da mulher para controlar e impedir “desvios” morais, programando que o espaço da criança era a escola e o da mulher, o lar.

Quando a esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral aportou na aprazível Porto Seguro no dia 22 de abril de 1500, viviam nestas terras cerca de cinco milhões de nativos. A primeira reação dos portugueses foi de encantamento. Pero Vaz de Caminha não escondeu seu fascínio pelos habitantes da terra. Descrevendo-lhes a aparência, volta repetidas vezes à mais surpreendente característica que apresentavam – sua nudez – e à combinação de beleza e inocência que os distinguiam de seus semelhantes europeus.
O escrivão não tirava os olhos das índias, que andavam nuas, sem nada que lhes cobrissem “as vergonhas”, como ele se referia ao sexo. Nus, alegres, desligados dos bens materiais, os índios (a palavra “índio” foi criada por um engano dos exploradores, que acreditavam ter desembarcado na Índia) eram um mistério intrigante para os portugueses quinhentistas, mal saídos da Idade Média.

19 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (1)

Negar a paixão às mulheres: esse foi um eficiente modelo político que se estabeleceu para a organização social do Brasil Colônia. A estratégia imposta pela Igreja em aliança com o Estado, pela dominação do corpo social, usando a mulher ao mesmo tempo como agente e inimigo, é mostrada na obra da historiadora Mary Del Priore, “Ao Sul do Corpo”. Ela mostra que, da obrigação de se portar como católica e não se desonestar publicamente, a mulher foi – num processo que se iniciou no século XVII, atravessou o século XVIII e se fechou no XIX – empurrada para o conceito de sexo como pecado, aturável apenas dentro do “santo matrimônio” e com fim único de concepção.

E a Igreja tinha à disposição argumentos da medicina. Como registra a autora, “a medicina aliou-se à Igreja na luta pela constituição de famílias sacramentadas, e o médico, tal como o padre, tinha acesso à intimidade das populações femininas. Enquanto o segundo cuidava das almas, o ‘doutor’ ocupava-se dos corpos, sobretudo no momento de partos dificultosos e doenças graves. Ao penetrar o mundo fechado de pudores, mistérios e usos tradicionais dessa espécie de terra desconhecida que era o corpo feminino, o médico interrogava a sexualidade da mulher e era também por ela interrogado”.

Cercada por confessores e pregadores, a mulher era admoestada a não sair sequer à rua na ausência do marido se, para tanto, não tivesse autorização escrita. Estado e Igreja uniram-se num projeto de dar uma organização social à colônia, trocando aventureiros por famílias. O papel da mulher nesse contexto necessariamente seria grande. Mas, dentro da visão misógina da Igreja, ela não era confidencial. Para exorcizar a gula de pecadora, pregava a Igreja, só transformando-se em santa mãe. Amamenta era sua missão sagrada. Sexo durante o aleitamento era condenado. Mas a aparente submissão que o papel de mãe santa e recolhida lhes impunha deu-lhes o controle direto sobre a casa e os filhos. Na fala de confessores, teólogos, médicos e moralistas fabricou-se, na opinião de Mary Del Priore, um limite e uma função para esses corpos. Seu objetivo era demarcar um papel social para a mulher, normatizar sua sexualidade e sua alma, domesticá-la no interior da família exclusivamente para servir aos fundamentos da colonização portuguesa na América.

O historiador de Berkeley, especialista em historia social e da medicina, Thomas Laqueur analisou em seu livro “Inventando o Sexo – Corpo e Gênero dos Gregos a Freud”, a invenção cultural da bipolaridade sexual humana. Nem sempre, dizia ele, concebemos os seres humanos divididos em dois sexos com características próprias. Até as últimas décadas do século 18, a medicina só admitia a existência de um sexo, o masculino. O que, atualmente chamamos de sexo feminino era visto como um sexo masculino “frio” e “invertido”. Ou seja, a mulher não possuía o mesmo “calor vital” do homem, e, por isso, seu sexo não se desenvolvia para fora, mas para o interior do corpo: o útero era o escrito, os ovários, os testículos, a vulva, o prepúcio, e a vagina, o pênis.

A medicina ocidental do século 18 não podia representar a sexualidade humana como dividida, originalmente e de forma bipolar, entre sexualidades masculina e feminina. O modelo científico dominante era o modelo do sexo único. O modelo, inspirado na filosofia neoplatônica de Galeno, via a mulher como um homem invertido e inferior. Invertido porque seus órgãos sexuais eram os mesmos dos homens, só que voltados para dentro. Inferior porque a mulher era concebida como um homem imperfeito, a quem faltavam a força e a intensidade do calor vital, esse último responsável pela evolução do corpo até a perfeição ontológica do macho.

Os médicos, portanto, notavam as diferenças anatômicas entre homens e mulheres, assim como distinguiam o masculino e o feminino. Mas não interpretavam o que viam como diferença de qualidade entre espécies naturais, e sim como diferença de graus em uma mesma espécie. Nos fins do século 18, tudo muda. Os revolucionários europeus – franceses, sobretudo – precisavam justificar a tradicional desigualdade entre homens e mulheres, de modo a torná-la compatível com os ideais igualitários republicanos. Todos os “homens” eram iguais, mas as mulheres eram mentalmente frágeis, infantis e, por conseguinte, estavam incapacitadas para exercer as tarefas intelectuais, científicas e políticas dos homens. Não por serem “imperfeitas”, do ponto de vista ontológico, mas por serem diversas, do ponto de vista biológico. A teoria do sexo único justificava o poder masculino e a insignificância histórica das mulheres, limitadas, na vida pública e nas atividades do espírito, pelas tarefas da maternidade. Existe um sexo, o masculino, e seu complemento menos perfeito, porém necessário, o sexo feminino. No “pacote” das características sexuais primárias e secundárias, define-se o que seriam os homens e as mulheres, seu lugar na sociedade, os limites e o alcance de seus destinos pessoais.

18 fevereiro 2008

Controle e disciplina dos fiéis (6)


A religião confina a sexualidade à zona do secreto, criando a culpabilidade, a proibição. A essa zona onde a proibição dá ao ato proibido uma claridade opaca, ao mesmo tempo “sinistra e divina”, claridade lúgubre que é as da “obscenidade” e do “crime”, e também a da religião. Por outro lado, a medicina, na época, provava com dados estatísticos e argumentos materialistas que as mulheres foram destinadas pela Natureza ao exercício da função reprodutiva, e acenava para quem seguisse seu destino natural, promovendo a mulher-mãe e o exercício da maternidade a uma função não só natural, mas de ordem moral e política.

Nascida na sociedade judaica patriarcal da Palestina, a Bíblia denota uma sinistra associação das mulheres à tentação do pecado. Servas que tinham como principal função a procriação, elas atuavam um papel social secundário. Representam apenas 10% dos três mil nomes citados no livro sagrado, como apontou a pesquisadora norte-americana Elisabeth Cady Stanton, que em 1892 escreveu A Bíblia da Mulher. “Há cerca de 200 mulheres mencionadas pelo nome, além de outras 100 anônimas”, contabiliza a historiadora e pastora metodista Margarida Ribeiro. Pior: elas são frequentemente associadas a ações ruins, como no caso de Eva, a responsável pelo “pecado original”. Sara, a mulher de Abraão, é estéril e sofre de inveja da escrava Hagar, escolhida para conceber o filho que dará prosseguimento à linhagem.

Por séculos a leitura das escrituras sagradas foi exclusivamente dos líderes cristãos, o que permitiu que a experiência de Jesus Cristo (que quebrou o tratamento discriminatório das mulheres com seu discurso libertador, de amor e de igualdade) na Terra sofresse adaptações nem sempre fiéis à realidade. Nenhuma distorção parece ter influenciado tanto a sexualidade cristã como a da história de Maria Madalena. Personagem feminina mais citada no Novo Testamento (seu nome aparece 12 vezes), ela foi a única pessoa a testemunhar a morte e a ressurreição de Cristo, segundo os quatro evangelhos. Apesar dessa exclusividade, a personagem ficou marcada como se tivesse sido uma prostituta arrependida, possivelmente uma confusão com outras Marias mencionadas.

A Bíblia conta que Jesus andava, sem preconceitos, com prostitutas, mendigos e leprosos, e que expurgou do corpo de Madalena c”sete demônios”. Esse mistério pode ter dado origem à interpretação errada. O fato é que, no ano de 591 d.C., o papa Gregório determinou que Madalena e a prostituta era a mesma pessoa. O mito vigorou por 13 séculos até que, em 1969, o papa Paulo VI desfez a confusão.

A grande influência do catolicismo como o conhecemos vem do discurso de São Paulo, um celibatário convicto. Líder de origem judaica ortodoxa que perseguia e torturava cristãos, Saulo de Tarso converteu-se ao cristianismo – e adotou o nome de Paulo – depois de uma visão milagrosa de Jesus. Passou, então, a ser o maior divulgador da doutrina fora de Jerusalém, inclusive em Roma. Depois dele, Santo Agostinho (354-386) associou o ato sexual ao pecado, discurso logo encampado em 392 pelo papa Siríco. Voraz defensor da virgindade, Siríco era o chefe supremo da Igreja quando o Império Romano assumiu o cristianismo como religião oficial, no século 4.

Rechaçado por São Paulo, o casamento dos padres da Igreja Cristã ocidental foi oficialmente proibido no século 16, quase ao mesmo tempo em que o padre alemão Martinho Lutero rompia com os católicos e dava origem ao protestantismo. A vida sexual ativa da comunidade eclesial,. Graças a Lutero, tornou-se um dos grandes diferenciais dos cristãos protestantes. O radicalismo de impor o celibato como obrigação – e não opção – aos padres diocesanos virou um fardo tão pesado para humanos de carne e osso que deu origem aos escândalos de pedofilia e assédio sexual dentro da Igreja Católica.

15 fevereiro 2008

Controle e disciplina dos fiéis (5)

Uma importante reflexão sobre os diversos fundamentalismos presentes na sociedade moderna e suas conseqüências na vida das mulheres está no livro da teóloga feminista Nancy Cardoso Pereira, “Palavras...se feitas de carne – leitura feminista e crítica dos fundamentalismos”. O fundamentalismo religioso tem como resultado o impedimento do fortalecimento do Estado democrático e o exercício da cidadania plena de todas as pessoas, em especial das mulheres. As igrejas deixam pouca ou nenhuma margem de diálogo aos seus/suas fiéis para tomarem decisões em relação às questões morais, que envolvem a obrigatoriedade do celibato, a vivência da sexualidade, a autonomia no controle da reprodução, a indissolubilidade do casamento, entre outros.

O livro aborda, além do religioso, os aspectos econômicos, políticos e geopolíticos das ações fundamentadas na tradição e suas conseqüências nas formatações de poder na sociedade contemporânea. A obra também faz a relação entre tais conseqüências e a luta feminista, travada por mulheres que brigam, por exemplo, por direitos sexuais e reprodutivos, barrados nas argumentações do fundamentalismo. No livro Nancy Pereira diz como o fundamentalismo está presente na espinha dorsal do império norte-americano e no próprio cristianismo ocidental, que chegou ao Brasil através dos colonizadores. A teóloga também discute a relação incestuosa entre o cristianismo e o modelo de civilização ocidental construído nos alicerces do capitalismo.

“Cinco mulheres morrem no Brasil a cada dia em abortos clandestinos (pelo menos). Na América Latina são 46 a cada dia. No mundo todo, a cada dia, morrem 500 mulheres. Morrem de abandono e medo. Morem porque ousam decidir. Morrem pela redução de argumentos éticos. Morrem pelas trocas de poder e influência entre Estado e Igrejas. Como se já não bastassem a fome, o desemprego, a doença e o desespero de sobreviver. Morrem deste igrejismo estreito e repressivo incapaz do diálogo com as vivências concretas das mulheres. Morrem desse igrejismo disfarçado em políticas públicas do Estado. A igreja diz que é pecado. O Estado diz que é crime”. Para ela “o fundamentalismo é a expressão majoritária do cristianismo: sexista, autoritário, elitista e moralista” (...) “A religião é uma das linguagens primárias com maior capacidade de mostrar e esconder, de negar a pertença da voz no balbucio da prece, de dissimular o ordinário no extraordinário das revelações”.

Ao longo dos séculos, a teologia vem contribuindo no reforço do amor como vocação das mulheres. “As culturas modernas formataram o feminino como uma predisposição natural para o amor e seus afazeres. Assim, as mulheres estão encurraladas na sensibilidade sem escolha e assimiladas num imaginário caótico e irracional, enquanto os homens ocupam o lugar supostamente confortável do sexo sem amor” (...) “A mulher participa da linguagem amorosa como vítima, como sedutora ou como impossibilidade (...) Assim, entre assexuadas ou corriqueiras (como as esposas/mães), o cristianismo disputa com o mito do amor romântico no ocidente o controle dos discursos sobre as mulheres. Permanecer numa posição inacessível continua sendo uma das tarefas que a cultura ocidental cristã designa para as mulheres. Presas nos discursos do amor (materno, romântico, aos pobres, ao sagrado, à família, etc) ou nos modelos da sensualidade devoradora as mulheres são mantidas numa passividade necessária para a manutenção da hegemonia masculina”.

E é o que observamos nos capítulos a seguir como a música, poesia, literatura, cinema, quadrinhos apresentam a mulher seja no erotismo ou na pornografia. Nos meios de comunicação de massa (no imaginário musical, da telenovela e da propaganda, entre outros) o mito feminino é mostrado como imagem controladora. É preciso uma leitura crítica e criativa sobre esse discurso para desvendar os comprometimentos e as armadilhas da linguagem religiosa que participa no reforço da miséria amorosa em que se encontram homens e mulheres e sua relação com os mecanismos de expropriação e opressão.

Os símbolos e imagens, metáforas e relações que habitam no imaginário popular a partir das tradições bíblicas é uma mescla entre homens e mulheres cheios de ordenações e danações em seus corpos pecadores e mortais, uma visão simplificada e que continua nos dias atuais. É preciso desenvolver uma reflexão maior sobre tudo isso.

14 fevereiro 2008

Controle e disciplina dos fiéis (4)

A partir do século X, a Igreja se empenha em aprimorar seus instrumentos de controle e dominação. Dois séculos mais tarde, ao instituir a confissão, vê-se em condições de reger o íntimo. Para o bispo Étienne de Fougères, a mulher é portadora de mal. Ele repete com vigor no “Livre dês manières” (Livro das maneiras), composto entre 1174 e 1178. Escreveu-o em língua romântica, dirigido, portanto, aos membros da corte, aos cavaleiros e às damas. Trata-se de um longo poema – 336 estrofes, 1.344 versos -, sob forma de um sermão. Uma coleção de seis sermões, cada um deles referente a uma categoria social, sublinhando seus defeitos específicos e propondo-lhe um modelo de conduta. Esse homem de Igreja julga, define as infrações a fim de as reprimir, baseando-se na autoridade de seus antecessores (Marbode, o bispo Burchard de Worms, entre outros), e deste modo assentar solidamente, pouco a pouco, as regras de uma moral.

No século XI as modalidades de administração do sacramento de penitência elaboraram-se lentamente. Os padres deviam ajudar os pecadores a purgar-se inteiramente, devendo, para tanto, submetê-los à tortura, forçá-los à confissão. No limiar do segundo milênio, na época em que o bispo Burchard de Worms trabalhava, um acontecimento de importância considerável produziu-se na Europa: a modificação das relações entre masculino e feminino. “A Igreja decidiu colocar a sexualidade sob seu estrito controle. Estava, então, dominada pelo espírito monástico. A maior parte de seus dirigentes, e os mais empreendedores, eram ex-monges. Os monges acreditavam-se anjos. Como estes, pretendiam não ter sexo e vangloriavam-se de sua virgindade, professando o horror à mácula sexual. Por conseguinte, a Igreja dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus, proíbe servir-se de seu sexo; permite-o aos outros nas condições draconianas que decretou. Restavam as mulheres, o perigo, já que tudo giravam em torno delas. A Igreja decidiu subjuga-las. Com esse fim, definiu claramente os pecados de que as mulheres, por sua constituição, tornavam-se culpadas. No momento em que Burchard compunha a listas dessas faltas específicas, a autoridade eclesiástica acentuava seu esforço para reger a instituição matrimonial. Impor uma moral do casamento, dirigir a consciência das mulheres: mesmo projeto, mesmo combate. Ele foi longo. Acabou por transferir aos padres o poder dos pais de entregar a mão de sua filha a um genro, e por interpor um confessor entre o marido e sua esposa”, escreveu Georges Duboy no terceiro volume da trilogia Damas do século XII – “Eva e os Padres”.

É pelo casamento que a mulher desse tempo tem acesso à existência social. Antes, ela não é nada: “mesquinha”, esse termo que nos ficou designava a moça no século XII. No ritual do casamento, em seus gestos, em suas fórmulas, exprimiam-se claramente as obrigações da mulher. O casamento, garantia da ordem social, subordina a mulher ao robusto poder masculino.

O texto da Bíblia, no começo do livro do Gêneses, vem reforçar a convicção de que a mulher, auxiliar, foi colocada junto ao homem apenas para ser “conhecida”, tornar-se dama e sobretudo mãe, um receptáculo, uma matriz preparada para a germinação da semente masculina, de que não tem nenhuma outra função que não a de ser fecundada, de que sem esse papel o mundo teria muito facilmente passado sem ela. É pensamento da época: o homem é a imagem de Deus, a mulher não é mais do que o simulacro. Assim, mais próximo de Deus, o homem é mais perfeito; detém o poder sobre a mulher assim como sobre todas as outras criaturas; sua sabedoria confere-lhe mais dignidade; é também mais terno, pelo amor que tem por aquela que ele tem a missão de dirigir. E é no século XII que a expansão das práticas da penitência interna torna mais urgente a pergunta: o que é o pecado? Onde ele está? Na mulher mais que no homem, respondem os eruditos: lede a Bíblia. Deus criou o homem à sua imagem, a mulher, de uma parte mínima do corpo do homem, como uma impressão sua ou, antes, um reflexo. Apenas o homem está em situação de agir. A mulher, passiva, tem os movimentos comandados pelos de seu companheiro. Essa é a ordem, primordial. Essas certezas são apoiadas na leitura do texto bíblico. Elas dão sustentação à ação dos padres para afastar do mal a sociedade leiga.

Como são os homens que dominam e agem, os reformadores preocupam-se antes de mais nada em ajudá-los, considerando-os, de agora em diante, como estando claramente divididos em duas categorias, a dos religiosos, assexuados, e a dos sexuados. Para eles, na origem de toda transgressão da lei divina encontra-se o sexo. O pecado capital é o da carne.

A grande maioria das religiões, sempre preocupada com a elevação da alma, nunca soube muito bem o que fazer com o corpo. A preocupação do sexo é a manutenção da vida carnal. Nada a ver com a sublimação proposta pela religião, o sexo valoriza o instante ao invés da eternidade, o físico ao invés do espiritual, o imperfeito ao invés do perfeito. As sociedades matriarcais sempre encaram melhor essa contradição do sexo. A Terra, afinal, é útero (dela nasce a vida) e sepulcro (a ela retornam os mortos). Daí o sexo ser interdito para várias religiões e a arte erótica sempre ter sido razão de polêmica. Além de tentar provocar excitação sexual, a arte erótica tenta reproduzir, em imagens, os objetos do desejo humano. Ou reproduzir, meramente, o ato sexual. A religião confina a sexualidade à zona do secreto, criando a culpabilidade, a proibição. A essa zona onde a proibição dá ao ato proibido uma claridade opaca, ao mesmo tempo “sinistra e divina”, claridade lúgubre que é a da “obscenidade” e do “crime”, e também a da religião.



13 fevereiro 2008

Controle e disciplina dos fiéis (3)

A oposição instituída entre erotismo e maternidade pelo biopoder (modalidade teórica de pensar no processo de medicalização do Ocidente, denominado pelo pensador francês Michel Foucault), retomou num discurso cientificista aquilo que fora estabelecido pela moral do cristianismo. A histeria foi matéria-prima do discurso psicanalista.

Foucault observa que em quase todas as culturas existe uma arte erótica, isto é, formas de iniciação ao prazer e à satisfação sexual (como por exemplo, o Khama Sutra ou a arte amorosa japonesa). Em contrapartida, nossa cultura – cristã, européia, ocidental – deu origem a algo insólito: uma ciência sexual, curiosidade e vontade de tudo saber sobre o sexo para melhor controlá-lo. “Scientia sexuales” opõe-se culturalmente, segundo Foucault, a “ars erótica” que certas civilizações (China, Índia, mundo muçulmano) aplicam à sensualidade, definida como mistério e assunto passível de um processo de iniciação e aprendizado. A “scientia” ocidental procura, ao contrário, definir seus parâmetros dentro dos quais opera a inclusão do que é aceitável no campo da normalidade, e a exclusão do inaceitável deste mesmo campo. Mas ao excluí-los, é preciso estudá-los conscientemente. Os psiquiatras criam toda uma terminologia para designar o anormal. Krafft-Ebing estuda os zoófilos e os zooerastas; Rohleder trata dos auto-monossexuais. Surgem expressões como mixoscofilos, ginecomastas, presbiófilos sexoestéticos e mulheres dispareunistas. Cada uma destas perversões corresponde à identificação de um conjunto bem articulado de sintomas. A normalização do sexo implica, desta maneira.

As práticas de controle da sexualidade produziram violências que ainda hoje se reproduzem em sociedades africanas e entre os muçulmanos, como a extirpação do clitóris na mulher, que teriam seu contraponto nas práticas sadomasoquistas até os dias de hoje.

Em 1997 uma somaliana fugitiva denuncia a mutilação feminina. Em 28 países africanos, na Índia e em alguns países asiáticos, quando as meninas começam a apresentar os atributos femininos, os pais exigem e as mães executam a extirpação do clitóris e, às vezes, até dos lábios da vagina, usando tesouras, lâminas e mesmo pedaços de vidro. Numa cerimônia banhada em sangue e dor, costuram tudo, deixando uma pequena abertura para a saída da urina e da menstruação. A tortura acompanha a vida destas mulheres. Nada sensibiliza os pais que exigem a mutilação como garantia de pureza, enquanto os maridos a exigem como garantia de felicidade da esposa. As mães compactuam com o crime e repetem, o que lhes ensinaram: é um ato religioso, que faz parte da cultura do povo e que lhes foi transmitido pelas mães e avós, como o único meio de garantir o bom comportamento das meninas e impedir que elas fiquem livres.

“O rito de passagem, iniciático e religioso, serve de véu para encobrir o verdadeiro motivo do ato cruel, bárbaro, macabro. As sociedades ocidentais e orientais foram contaminadas por uma máxima que elas repetem incessantemente: a superioridade do macho sobre a fêmea, que se manifesta no âmbito biológico, intelectual, social e religioso; foram contaminados ainda pelo postulado fundamental, aceito pelos pensamentos greco-romano e judaico-cristão: o desejo e o prazer femininos são animalescos e a sexualidade da mulher, comandada pelos sentidos, deve ser domada, porque é perniciosa para a sociedade e para o homem”, informa a professora Maria Nazareth Alvim de Barros.

Segundo a historiadora britânica Geraldine Brooks, o costume da circuncisão feminina se originou na África Central na Idade da Pedra, seguindo para o norte do continente africano. No Ocidente, a circuncisão era utilizada como processo terapêutico até os anos 50. Médicos britânicos e norte-americanos praticavam a clitoridectomia e a castração feminina (retirada dos ovários) para enfrentar melancolia e ninfomania. Até o século 19, acreditava-se que as mesmas práticas “curavam” histeria, masturbação, lesbianismo e epilepsia.

Fatores culturais não devem servir de pretexto para violações aos direitos humanos, segundo a advogada norte americana Layli Miller, que obteve asilo nos EUA para uma africana que fugiu de Togo a fim de evitar a mutilação genital: Fauziya Kassindja. Entre as formas de discriminação contra as mulheres, a advogada cita o tráfico de mulheres, a violência doméstica e o “horror killings” (assassinatos motivados por ofendas à “honra”). “Crimes de honra também são um problema no Brasil. Parecem diferentes do que ocorre no Paquistão, onde uma mulher pode ser morta por se recusar a casar-se com o homem indicado por seu pai, mas traduzem a mesma idéia: a honra de um homem é um pretexto para assassinatos. Por exemplo, se ele descobre que a mulher o trai, ele a mata e não necessariamente é enviado à prisão. Isso também é crime de honra”. A cultura judaica-cristã atribuiu a idéia de culpa relacionada ao sexo e a circuncisão masculina (corte no pênis) indica o ingresso da criança no seio da comunidade.

12 fevereiro 2008

Controle e disciplina dos fiéis (2)

Foram necessários quase dois séculos para que essa lógica se transformasse em normas sociais e conferisse a tal igualdade de condições entre os sexos. Foi uma longa marcha que se realizou em várias etapas, na qual as mulheres foram progressivamente ganhando terreno no espaço social. Com efeito, do direito de votar ao de poderem ser educadas, passando a ter acesso aos espaços sociais da masculinidade, o percurso das mulheres foi marcado por um longo combate de muitas idas e vindas, progressões e retrocesso. Os anos 60 do século XX foram o momento crucial dessa ruptura, quando o feminismo rompeu de vez as amarras tradicionais da condição da mulher no Ocidente.

Enquanto a mulher teria de ser destituída de seu erotismo, o homem era perfeitamente reconhecida sua potencialidade desejante ao lado de sua efetividade reprodutiva. Deslocando-se livremente entre os espaços público e privado, isto é, entre os espaços social e familiar, ao homem era permitido o duplo exercício erótico e reprodutivo. Assim, o sacrossanto espaço para a reprodução da espécie era a família, e o espaço social era o lugar efetivo para a existência do erotismo.

Assim, a grande expansão da antiga prática da prostituição, que ocorreu ao longo do século XIX, seria a contrapartida social para que pudesse definir o exercício do erotismo masculino. Nesse espaço, os homens poderiam satisfazer suas demandas eróticas, impossibilitadas parcialmente no campo da família. Contudo, a prostituição foi muito bem regulada pelo Estado, por instrumentos da nascente medicina social, para que não colocasse em risco a demanda de reprodução na família. Desta forma, a prostituição teve territórios muito bem circunscritos do espaço urbano – apenas em certos quarteirões e bairros da cidade a prostituição era permitida. Por isso mesmo, tais lugares passaram a ser amaldiçoados e proibidos no imaginário coletivo, representando sempre a desordem, a presença do mal e a ameaça de morte

Assim, a prostituição era objeto de vigilância exercida pelo Estado, por intermédio da polícia médica e da higiene social. O desejo e a reprodução eram bem regulados entre os espaços público e privado, ou seja, entre o espaço social ampliado e a família. Conseqüentemente, o erotismo poderia ser usufruído pelos homens no circuito semiclandestino da prostituição, enquanto o amor, em contrapartida, se identificava com a ordem da família, sempre voltada para a reprodução.

As mulheres que fugiam e se desviavam do reto e sagrado caminho da maternidade eram ativamente culpabilizadas, moralmente diminuídas em seu valor e até mesmo criminalizadas pela assunção de outras figuras sociais. Essas mulheres desviantes eram bem definidas nas suas configurações sociais e morais. Existia uma verdadeira galeria de “mulheres perigosas” que foram bem delineadas pelo discurso da medicina de então. A produção médica da época descreveu minuciosamente quatro modalidades de desvio moral da feminilidade: a prostituição, caracterizada pela assunção positiva do erotismo como forma de vida e a recusa da existência familiar e maternal; a ninfomania, marcada pelo erotismo excessivo, que transbordava numa espécie de desejo insaciável presente nessas mulheres; a infanticida, aquela que mata de bom grado os filhos recém-nascidos, para se livrar do peso da maternidade e manter-se livre para aventuras eróticas; a mulher histérica seria aquela que gostaria de ser como a prostituta, a ninfomaníaca e a infanticida, mas não suportaria passar da imaginação para ação, isto é, deslocar-se do registro da fantasia para o do ato. Presa no conflito psíquico entre erotismo/maternidade, não conseguiria jamais se deslocar do registro do imaginário para o do real. Com isso, a mulher histérica adoeceria psiquicamente, presa ao seu conflito moral, imobilizada por não exercer todos os seus anseios e desejos.

Essas diferentes modalidades de produção de subjetividade advindas da estratégia desse poder, pela oposição que acabou de promover entre erotismo e maternidade no ser da mulher estabeleceu, no século XIX, a prática médica sistemática de extração do clitóris, nas mulheres mais indóceis aos imperativos da maternidade e que ansiavam também pelos doces deleites do erotismo. Com isso, a extração cirúrgica do clitóris poderia colocar essas mulheres no caminho virtuoso da maternidade, já que não seriam mais tomadas de assalto por suas demandas eróticas. A maternidade acabaria por se impor por si mesma pela despossessão do desejo feminino figurado pelo clitóris.

11 fevereiro 2008

Controle e disciplina dos fiéis (1)

A forma de punição evoluiu. Até o século VI, prevalecia a vendetta e o indivíduo tinha o direito de usá-la quando ofendido. Depois, do século VI ao XIII, o ordálio pela água ou pelo fogo podia esclarecer, em caso de dúvida, sobre a culpa ou inocência do acusado. Do século XIII até o XVIII, o inquisitio foi adotado. O processo se baseava em suspeita, denúncia ou confissão.

A Idade Moderna surge nas mãos de uma elite autoritária que pune com a morte física ou moral os que não se enquadram nas categorias que ela privilegiou e reconheceu como as únicas normas: os religiosos e os fiéis tementes a Deus e aos mandamentos da Santa Igreja, divulgados pelos eclesiásticos, os intérpretes das palavras dos apóstolos. Judeus, prostitutas, homossexuais, leprosos, hereges e bruxas eram marcados, segregados, depois de julgados eram condenados à fogueira. Coube à Igreja especificar o que podia e o que não podia ser feito em matéria de sexo; o que era certo e o que era errado. O sexo, mesmo entre marido e mulher, era sujo, pecaminoso, impedia a perfeição espiritual e só era tolerado como um mal necessário à preservação da espécie. O sexo por prazer era um pecado mortal; a única posição permitida, a que assegurava ao homem o domínio sobre a mulher, era a do missionário – os parceiros frente a frente, a mulher embaixo, o homem em cima. Relação anal, oral ou dorsal eram perversões e todas engrossavam a lista dos pecados mortais.

O artifício da Igreja para que a administração das culpas e dos pecados se mantivesse em níveis toleráveis eram as confissões e as penitências. Para os fiéis, funcionavam como catarse; para a Igreja, era a maneira de controlar e disciplinar os fiéis, mantê-los em rédeas curtas; para ambos, uma forma ilimitada de aguçar a imaginação, de se excitar por meio de relatos de intercursos sexuais, dos mais normais aos mais escabrosos, segundo a visão do clero e do interesse dos padres não só em escutar, mas também em insinuar, em perguntar, em exigir que tudo lhes fosse confiado, em detalhes, para que pudesse melhor avaliar a extensão do pecado e a penitência adequada para redimir o pecador.

E a medida que a repressão aumentava, os pecados se tornavam mais requisitados e foram necessários códigos minuciosos, em que os pecados eram alinhados segundo o grau da ofensa, as penitências distribuídas de acordo com o tamanho da falta. Surgiram os Penitenciais, livros elaborados com o zelo dos que se preocupavam com detalhes, com todas as nuanças que a prática sexual, desviada das normas estabelecidas, podia inventar, em cada perversão que os padres deviam conhecer para dirigir a confissão e aplicar o castigo certo. Os Penitenciais não devem nada à indústria de revistas pornográficas.

A noção de diferença sexual se constituiu firmemente no imaginário cultural do Ocidente na virada do século XVIII para o XIX, a partir das contradições produzidas pelo ideário igualitário constituído pela Revolução Francesa. Até então, os sexos eram concebidos de maneira hierárquica, sendo sempre regulados pelo modelo masculino, figurado como o sexo perfeito. Foi este último modelo que prevaleceu, como referência e paradigma, na tradição ocidental desde a Antiguidade. Foi a igualdade dos direitos dos cidadãos, propagada e sustentada ao longo do século XVIII, que subverteu definitivamente o modelo hierárquico do sexo único imperante no Ocidente desde a Antiguidade.

A ética cristã transformou radicalmente a positividade reconhecida no erotismo pela tradição do paganismo da Antiguidade. Com o cristianismo, o erotismo foi esvaziado de suas virtudes e concebido como pura negatividade. Somente existiria a concepção caso o orgasmo da mulher estivesse presente na relação sexual. Mas, o cristianismo desarticulou os registros do prazer e da reprodução, considerando o primeiro como da ordem do pecado. Constituiu-se, assim, a diabolização do desejo feminino, que poderia desviar as mulheres da existência casta e do caminho virtuoso da maternidade. Na ética cristã a relação sexual só seria permitida e reconhecida com fins reprodutivos, devendo ser silenciada qualquer dimensão de gozo no corpo feminino. A figura da mulher possuída pelo desejo foi, assim, identificada como a obra do Mal. O diabo seria responsável pelo erotismo feminino, manipulando o corpo da mulher na sua disputa incansável com Deus.

08 fevereiro 2008

Música & Poesia

A Seta e o Alvo (Paulinho Moska e Nilo Romero)

Eu falo de amor à vida,
Você de medo da morte.
Eu falo da força do acaso
E você de azar ou sorte.

Eu ando num labirinto
E você numa estrada em linha reta.
Te chamo pra festa,
Mas você só quer atingir sua meta.
Sua meta é a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu olho pro infinito
E você de óculos escuros.
Eu digo: "Te amo!"
E você só acredita quando eu juro.

Eu lanço minha alma no espaço,
Você pisa os pés na terra.
Eu experimento o futuro
E você só lamenta não ser o que era.
E o que era?
Era a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu grito por liberdade,
Você deixa a porta se fechar.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar.

Eu corro todos os riscos,
Você diz que não tem mais vontade.
Eu me ofereço inteiro
E você se satisfaz com metade.
É a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa não te espera!

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?

Sempre a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?


Poética I e Poética II (Vinicius de Moraes)

Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

Poética II

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
– Entrai, irmãos meus!

07 fevereiro 2008

Belo e emocionante Persépolis

Persépolis é uma história em quadrinhos tocante. Retrata a chegada de um regime tirano do ponto de vista de uma menina, a iraniana Marjane Satrapi, quando jovem. Narra o fato do lado de dentro, valorizando o drama humano de quem viveu injustiças, perdeu os direitos humanos básicos e pôs em dúvida todos os valores. Ela era apenas uma criança quando a revolução islâmica derrubou o xá do Irã, em 1979. Bisneta do antigo rei da Pérsia, Marjane cresceu em uma família de esquerda, moderna e ocidentalizada, e estudou numa escola francesa e laica. Com a chegada dos extremistas ao poder, as meninas foram obrigadas a usar o véu na escola e estudar em classes separadas dos meninos.

A trama (lançada inicialmente no Brasil em quatro volumes e\depois em uma única edição de 352 páginas pela Cia das Letras) se desenvolve com tanta graça, inteligência e charme que o leitor esquece dos aspectos extraordinários de sua execução. E Marjane cresce em uma família de intelectuais que sofrem primeiro sob a ditadura, depois, sob a vitória dos revolucionários islâmicos. Essa história política, que inclui guerra, tortura e assassinato, é passada nos quadrinhos com inteligência.

Conta a força da intolerância e da superstição, onde a menina segue os passos da sua avó e assume uma postura combativa. Para ela, a liberdade é um direito, por isso, desafia o mundo. Temendo por sua segurança durante o período de guerra e repressão, os pais de Marjane a mandam para a Áustria, e a alienação que ela experimenta lá é o contraponto da ansiedade vivida em Teerã. Lá na Áustria, ela se perde nos prazeres do punk rock e da cultura alternativa, mas se decepciona quando encara o niilismo europeu. Mas é em Viena que seu problema se torna claro, um dilema que não é só seu. Ou ela vive longe de casa com um pouco de liberdade, ou volta para casa mas deve abrir mão de sua individualidade.

Há momentos terríveis como o da mãe de Marjore que saíra sozinha de carro e, quando o automóvel quebrou, foi interpelada por vários homens que ameaçara violentá-la por ela não estar usando o véu (burka). Os especialistas na televisão afirmavam que os cabelos das mulheres emitiam energias que excitavam os homens, de forma que eles não eram responsáveis caso decidissem executar o estupro. Assim as mulheres que passaram a usar burka, mesmo forçada, eram chamadas de guardiãs da revolução, e muitas vigiavam as mulheres que usavam incorretamente o véu, ou que se vestiam com roupas consideradas inapropriadas. E o clima de terror piorava a cada dia. Quando começou a faltar adultos na guerra (onde morreram um milhão de soldados iranianos), o exército passou a recrutar crianças de 14 anos. Nas escolas eles davam aos meninos chaves de plástico, com as quais poderiam abrir as portas do paraíso, cheio de mulheres e comida, caso morressem na guerra. Um relato comovente de como o fanatismo religioso é nocivo e irracional.

Persépolis, para quem não sabe, foi uma antiga capital do Império Persa. A partir de 522 antes de Cristo foi a capital do Império Aqueménida, que na Antiguidade dominou a região do Oriente Médio. Acidade de Persépolis localizava-se no atual Irã, e foi a capital religiosa dos Aqueménida. Em 1931 foram encontradas ruínas de um enorme palácio. Devido a esta descoberta Persépolis passou a ser um importante sítio arqueológico do Império Persa (destruída pelo Exército de\Alexandre, o Grande, durante o extermínio do império persa). Persépolis foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1979.

A literatura gráfico visual de Satrapi é de uma simplicidade poética comovente. O traço em preto-e-branco lembra a xilogravura dos cordéis nordestinos com grossas linhas negras. A obra ganhou o importante prêmio do salão de Angoulême, na França, e em 2004 recebeu o prêmio de melhor HQ da Feira de Frankfurt. A série teve os direitos de publicação vendidos para vários países. Depois dos quadrinhos, a obra de Marjane Satrapi chega aos cinemas. Premiada em Cannes, Vancouver, Filipinas, Inglaterra e na Mostra de São Paulo, sua estréia no Brasil vai ser agora em fevereiro. E ainda concorre ao Oscar de melhor filme de animação.

Vale a pena conferir a obra em quadrinhos e no cinema. A história sobre a valorização da família, a busca da identidade própria e a necessidade de buscar uma vida melhor em outro país é realmente emocionante. E o encantamento e ousadia da resistência artística aos poderosos e opressores que insistem que o mundo só pode ser visto em preto e branco foi admirado em diversos países. Belo trabalho.