31 maio 2019

O inovador Juarez Paraíso na Academia de Letras da Bahia


Um dos nomes mais importantes da cultura baiana contemporânea, o professor e artista plástico Juarez Paraiso tomou posse na cadeira número 39 da Academia de Letras da Bahia (ALB) na última quinta-feira, 30 de maio de 2019. Juarez é professor, pintor, escultor, gravador, fotógrafo, muralista, publicitário, cenógrafo, figurinista, decorador e artífice. Artista gráfico de todas as técnicas (xilogravura, metal, serigrafia, offset), pintor de todas as tintas (do pincel à pistola). Um artista completo. Juarez Paraíso nasceu em 1934 na pequena Arapiranga. Seus pais vieram, parar em Salvador no início na década de 30. Deles herdou a rara sensibilidade – a mãe tocava bandolim e o pai era professor. Com apenas 14 anos entrou para a Escola de Belas Artes. Com 16, por necessidade, iniciou carreira de professor de desenho. Formou-se em pintura, gravura e escultura. Começou a ensinar na UFBa. Em 1992 passou a ser diretor da Escola de Belas Artes da UFBa. As atitudes, aliadas ao seu audacioso trabalho, tornaram Juarez uma espécie de maldito, dentro do fechado mundo artístico de Salvador.

 


Na adolescência Juarez era fã de histórias em quadrinhos, apaixonado pelos traços dos artistas Alex Raymond (Flash Gordon), Burne Hogarth (Tarzan), Harold Foster (Príncipe Valente) e Will Eisner (O Spirit). Mais tarde essa influência quadrinística irá aparecer em seus trabalhos. “Aqueles desenhistas das histórias em quadrinhos foram os primeiros a chamar a atenção do menino para uma arte mais nova. Eles representam uma quebra da tradição: nas formas atrevidas quer substituíam a realidade do bom desenho, no exagero, na atmosfera que criavam, e no assunto desenvolvido em torno das eternas lutas do bem contra o mal. A influência dos quadrinhos surge nas entrelinhas de trabalhos de Juarez, pelo uso de estratégicos recursos do domínio das arte que provocam o mesmo impacto, como a distorção de quem tem o domínio do correto, bem diferente da outra de quem não sabe fazer corretamente”, escreveu a crítica de arte Matilde Matos no livro A Obra de Juarez Paraíso. Na Escola de Belas Artes foi aluno de Raymundo Aguiar, mestre que nas horas vagas fazia caricatura para a imprensa alternativa utilizando-se do pseudônimo K-Lunga. Também foi aluno dos mestres Alberto Valença, Emídio Magalhães e Mendonça Filho.

 


Temido e odiado pelos acadêmicos, rejeitado pelos medalhões e amado, sobretudo, por seus alunos, Juarez Paraíso faz parte da segunda geração de artistas baianos modernos. Fez duas bienais nacionais de artes plásticas (1966 e 1968), três números da Revista da Bahia, a Galeria Convívio, e participou de toda a luta para criar uma associação de artistas modernos, um sindicato e conseguiu a regulamentação da profissão. Esses ideais morreram com a suspensão da segunda bienal, em 68 e a prisão de Juarez. Mais tarde ele fez diversos murais paras a cidade, monumentos, esculturas, a decoração do Carnaval baiano (um deles com tema em louvor a Jorge Amado), foto-design e no cinema viveu Pedro Arcanjo no filme Tenda dos Milagres, dirigido por Nélson Pereira dos Saltos. Dirigiu o curta sobre a gravura da Bahia na década de 60.

 


Em 1966 ele fez uma arte ambiental no Cine Tupy, obra futurista de terceira dimensão. Ele sempre buscou a experimentação e a pesquisa nas artes plásticas. O desenho a bico-de-pena e o trabeculado de linhas são o seu forte. A habilidade e a desenvoltura em tratar o material sobre o papel ou tela fazem de Juarez Paraíso o mestre da sua época. Sua obra está marcada pela qualidade e modernidade. Expôs no Peru, Espanha, Chile, EUA, entre outros países apresentando trabalhos em pintura, desenho, fotografia, serigrafia, gravura, tapeçaria, cenário para teatro e cinema, sempre com tendências vanguardistas. Artista dos mais renovadores, sempre em constante pesquisa não só nas artes gráficas como também no campo da escultura e mural. Em 1996 conclui seu mandato de diretor da Escola de Belas Artes e se aposentou como professor após 44 anos no exercício da profissão e recebeu o título de Professor Emérito.

 


E Jorge Amado o descreveu com dois adjetivos opostos, mas não contraditórios: solidário e solitário. “Solidário com a vida, com a luta do homem, com o tempo e o chão presentes, com as vocações violentadas, com os jovens, armado em guerra contra a injustiça, a miséria, as limitações, contra tudo quanto lhe parece feio e mau (…) solidário com seu tempo, sua terra, seu povo, seus artistas – generoso, militante, solidário promotor de cultura (…) criador vário e inquieto, múltiplo, que não se parece com nenhum outro, solitário em sua criação”.



Parte da sua obra sucumbiu diante da intolerância religiosa. Era de Juarez Paraíso os mosaicos que retratavam o nascimento de Oxumarê, instalados nos antigos cinemas Arte I e II, que ficavam no Politeama. Os painéis foram destruídos a marretadas, em 2000, quando a Igreja Renascer em Cristo comprou o espaço. Além da destruição, picharam por cima dos destroços “Deus é Fiel”. O artista perdeu outros painéis em situações parecidas. Um ficava no Cine Tupi e foi destruído quando a multinacional CIC comprou o espaço. Um mural de 40 metros quadrados de sua autoria ruiu quando a Igreja Universal comprou o Cine Bahia, que ficava na Carlos Gomes. No caso das obras que estavam nos cines Art I e II, Juarez foi à Justiça.

 


Ícone de inquietação e modernidade durante décadas no âmbito das Belas Artes baianas, Juarez Paraíso foi um dos primeiros artistas a se utilizar na arte do produto da natureza. Ele fez uso das cabaças para compor instigantes esculturas na intenção de derrubar a mítica em torno do sexo, gerador da vida entre os seres animados. Buscava as formas sugestivas, a perfeição das superfícies curvas, e sem mudar a cor natural, uniu as cabaças às significativas aberturas, saliências, reentrâncias e tonalidades dos búzios, amolgados com a fibra de vidro. Como em qualquer trabalho de Juarez, se no esboço anterior que cria deixa claro o conceito, a perfeição da técnica ao unir as peças assegura a integridade da escultura.



Numa época em que existia alta e baixa cultura, o preconceito contra a cultura popular, incluindo aí as histórias em quadrinhos, Paraíso não esqueceu de seus sonhos de infância. Foi nele beber na fonte a inspiração para produzir quadros baseados em personagens dos velhos gibis da infância. Em outros países os quadrinhos entraram na moda através do movimento artístico pop art. A Pop Art anunciou o fim dos limites entre “alta” cultura e cultura popular.

29 maio 2019

The Umbrella Academy é sucesso nos quadrinhos e na Netflix


Em 2009 escrevi neste blog sobre o excepcional The Umbrella Academy. A trama conta a história de um grupo de jovens que nasceu com poderes especiais. Cada criança era denominada com um número. Um é Luther, o líder e mais forte de todos, tornou-se o Spaceboy. Dois é Diego (Kraken) capaz de segurar a respiração por tempo indeterminado. Três, Allison (Rumor) tem, o poder de fazer tornar verdade qualquer coisa que fale. Quatro, Klaus (Seance) pode levitar e falar com os mortos. Cinco, Ben (Horror) têm monstros de outras dimensões embaixo de sua pele. Sete, Vanya não aparentava ter poder algum, exceto ser muito interessada em música. São os membros da Umbrella Academy.

 


A história foi escrita por Gerard Way, o vocalista da banda My Chemical Romance. E as ilustrações são do brasileiro Gabriel Bá. Publicada originalmente pela norte- americana Dark Horse Comics. O álbum chegou ao Brasil pela Editora Devir. Os quadrinhos foram compostos por duas minisséries: The Umbrella Academy: Apocalypse Suite, lançada em 2007 nos EUA e que chegou a ganhar um Prêmio Eisner de Melhor Série Limitada, e The Umbrella Academy: Dallas, de 2008.

 


Após um hiato de 10 anos, em que Gerard Way voltou a focar sua carreira música, a terceira minissérie foi lançada: The Umbrella Academy: Hotel Oblivion. Preciosismo. Roteiro ágil e com referências pop. Desenho excepcional, cores que seguem a trama, perfeita. Conheci Gabriel Ba no 6º FIQ de BH e fiquei impressionado pela serenidade do rapaz. Tranquilo, ele sabe o que faz, tem consciência do que quer e, acima de tudo, é preparado. Sabe fazer quadrinhos como ninguém, entende toda sua linguagem e engrenagem.

 


Aproveitando uma série de filmes de heróis, a Netflix investiu em The Umbrella Academy e conseguiu adaptar muito bem a trama dos quadrinhos para as telonas.  Nem tudo está como era lá, porém as mudanças ajudam a contar a história de uma maneira bem divertida mais de 10 anos depois de sua publicação original: 43 crianças nascem simultaneamente em diferentes lugares do mundo. Sabendo que os bebês têm superpoderes, um homem rico adota sete deles e começa a treiná-los para combater o crime. Já crescidos, cada irmão segue seu próprio caminho e só voltam a se reunir com a morte do pai adotivo.

 


A série é fiel aos quadrinhos, mas fez pequenas mudanças que foram importantes e fundamentais para o seu desenvolvimento. A história de Vanya (uma das sete personagens) foi reescrita. Em Apocalypse Suite, ela foi influenciada pelo grupo Orchestra Verdammten, que queria destruir o mundo com música. Já na série, ela foi manipulada apenas por um único homem, chamado Leonard Peabody. Mas a jornada dela acabou de forma semelhante, após ela quase acabar com o mundo ao adotar a identidade de White Violin/Violino Branco. A primeira temporada foi de grande repercussão e a segunda já está programada para começar este semestre.

28 maio 2019

Entre música e poesia, harmonia (2)


Há um antigo dilema entre poesia e letra de canção. Enquanto a maioria das canções fala de amor, a poesia atual aborda uma faixa bem mais ampla de assuntos. Os poetas contemporâneos optam pelo verso livre e pelas formas abertas, as letras continuam se valendo de metro, rima, estrofe, refrão, ferramentas a que a poesia hoje mal recorre, ou utiliza em circunstâncias especiais. O articulador da Folha de S.Paulo, Nelson Archer já abordou com maestria o tema. Para ele, depois de João Cabral, a produção nacional perdeu popularidade e isso coincidiu com duas décadas e meia de apogeu da MPB (1960/85), quando a inteligência local achou um jeito de converter uma arte considerada menor no veículo dos principais debates da época. “A poesia escrita eclipou-se parcialmente entre nós à medida que a cantada chegava ao centro do palco”, escreveu. Assim, o reconhecimento das realizações de duas outras gerações de letrista foi adiado.

 


Tanto a música como a poesia são artes que se organizam no tempo, diferentemente da pintura e escultura que o fazem no espaço, e o cinema e o teatro que o fazem nos dois. A prosa (o romance e o conto) também se organiza no tempo. As duas são registradas por meio da escrita, mas devem ser executadas como som (exceto e poesia concreta, cuja revolução foi assimilar formas expressivas das artes plásticas). O registro da música se dá pela partitura. Essa registra o ritmo e a melodia. O ritmo diz respeito à acentuação das notas por compasso. A melodia diz respeito à sequência de notas tocadas, como dó, ré, mi e fá, por exemplo. São esses elementos básicos que se encontram descritos numa partitura. Na música moderna, o ritmo pode ser irregular, e a melodia ter grandes variações.



Na poesia, o ritmo também está registrado, não por notas, mas por sílabas átonas e tônicas. E como na música, a regularidade do poema também é construída por eles. E como o compasso da música, a poesia também tem uma unidade: o verso. E nela, as pausas também têm seus símbolos: ponto, vírgula e ponto e vírgula, que também diferem em duração. A escolha das palavras é necessariamente uma escolha de sílabas, que por sua vez, carrega em si a escolha de vogais e consoantes: fonemas. Assim, na música, a melodia e o ritmo são registrados, enquanto o timbre e o andamento fazem-se na execução, dependendo do intérprete, do instrumento, e assim por diante. Na poesia, o ritmo e o timbre são registrados, enquanto a melodia e o andamento fazem-se na execução, dependendo também do intérprete.

 


Para Paul Valéry, a prosa e poesia, “servem-se das mesmas palavras, da mesma sintaxe, das mesmas formas e dos mesmos sons ou timbres, mas coordenados e excitados, distinguindo-se, portanto, através da diferença de certas ligações feitas e desfeitas em nosso organismo psíquico e nervoso, enquanto os elementos desse modo de funcionamento são idênticos”. “A prosa utiliza-se da linguagem útil, isto é, a linguagem que serve para o homem atingir seus objetivos; ou seja, para ser compreendida; quando isso ocorre, ela transforma-se em algo totalmente diferente. Entretanto, no poema, é feito expressamente para reviver e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser, ou seja, reconhece-se por esta propriedade: ela tende a fazer reproduzir em sua forma: ela nos excita e reconstituí-la identicamente”. Sendo assim, poema utiliza-se da linguagem como um fim em si mesma, procurando exprimir um ideal, um estado de alma:



“A tarefa do poeta – diz Valéry - é nos dar a sensação de união íntima entre a palavra e o espírito, o que resulta no maravilhoso, na magia, agindo em nós como um acorde musical. A impressão produzida depende da ressonância, do ritmo, do número dessas sílabas, mas resulta da simples aproximação dos significados”. Fernando Pessoa, em Ricardo Reis, diz que a poesia é "música que se faz com ideias”, enquanto Mallarmé afirma que "se faz com palavras, não com ideias". Para Antonio, “a poesia se faz com palavras-ideias e com ideias-palavras. O que Mallarmé quer excluir é a tese de que a ideia separada da palavra seja suficiente para fazer poesia”.




Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade)



Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.



Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.



Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.



O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.



Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.



Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?



Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

27 maio 2019

Entre música e poesia, harmonia (1)


Desde os magníficos trechos poéticos da Bíblia, do lirismo erótico de Safo, dos textos gregos e latinos, a poesia sempre se fez presente. E a música era instrumental. Durante um longo período, a música ocidental foi homofônica. Existia uma única linha melódica ou voz, sendo que o restante da música era composto de harmonia que sustentava essa linha melódica. Geralmente, a melodia principal era em um tom mais elevado e identificava a peça. A música religiosa do século IV não necessitava de um acompanhamento musical. Uma única voz cantava a melodia simples em latim. No século VI, o Papa Gregório I decidiu governar também a feitura das músicas. Como resultado, surgiu o canto gregoriano, que era cantado em uníssono.

 


Foi na Idade Média que houve a descoberta que os vários sons podiam ser feitos ao mesmo tempo, sem que um cancelasse o outro, ou em resultar em mero ruído, e, assim, nasceu a polifonia Coincidiu que a polifonia surgiu com a construção das grandes catedrais góticas e o nascimento da harmonia, que culminaram com a Renascença e o início das ciências modernas e da matemática. O interior de uma antiga igreja de arquitetura romana com teto alto e em volutas, paredes paralelas e uma longa arcada, espaço ideal para as procissões, mas também para as reverberações do canto gregoriano. Já no interior de uma catedral gótica, com seus ângulos, corredores, estátuas, escadarias, nichos e complexas fugas em pedra, um canto gregoriano seria partido, fragmentado.

 


Na Idade Média os trovadores surgiram para cantar o amor cortês. Eram cantigas com letras resistentes à leitura mais sensível e rigorosa. Depois a música colou-se à pele das palavras numa relação intensa e apaixonada. É quando acontece a síntese entre música e poesia. Muitos versos soam banais quando lidos sem acompanhamento musical. Mas quando aparece junto ao suporte sonoro, emociona. Faça um este com as músicas que você costuma ouvir com freqüência, retire o suporte musical e tente ler a composição em voz alta. Muitas dessas composições não convencem sem seu lado musical.



Mas quando a pele da palavra se encaixa nos acordes dos sons e decifra seus códigos, se aprofunda nos sentimentos humanos e nos muitos compassos da música, o resultado é exitoso. Paixão para os ouvidos, carícias para a mente. E nessa relação intensa onde a voz ilumina a corda instrumental em que se equilibra a vida, uma vida musical do universo estético equilibrado e não apenas um simulacro da expressão artística que se ouve nos atuais ritmos populares (pagode, axé...)



Música e letra de qualidade acaricia a pele de verdade, invade todos os infindáveis poros, por cima ou por baixo dos acordes. Busca com avidez os segredos da língua, uma menina ao som do seu bel prazer, deixando feliz todo e qualquer ser. Afinal, a palavra pele é uma tinta que não se expele.

 


“A nossa poesia é uma só/eu não vejo razão para separar/todo o conhecimento que está cá/foi trazido dentro de um só mocó/e ao chegar aqui abriram o nó/e foi como se ela saísse do ovo/a poesia recebeu sangue novo/elementos deveras salutares/os nomes dos poetas populares/deveriam estar na boca do povo//Os livros que vieram para cá/O Lunário e a Missão Abreviada/A donzela Teodora e a fábula/obrigaram o sertão a estudar/de repente começaram a rimar/a criar um sistema todo novo/o diabo deixou de ser um estorvo/e o boi ocupou outros lugares/os nomes dos poetas populares/deveriam estar na boca do povo//No contexto de uma sala de aula/não estarem esses nomes me dá pena/a escola devia ensinar/pro aluno não se achar um bobo/sem saber que os nomes eu louvo/cão vates de muita qualidades./O aluno devia bater palma/saber de cada um o nome todo/se sentir satisfeito e orgulhoso/e falar deles para os de menor idade/os nomes dos poetas populares” (Poesia de Antonio Vieira)




26 maio 2019


Ele é poderoso e inteligente. E tem um conjunto de regras que se recusa a quebrar como nunca mentir (para ele isso é degradante) e ama ver o circo pegar fogo sem sujar suas mãos. Seu poder de persuasão faz com que seja capaz de manipular as pessoas. Estamos falando de Lúcifer, um personagem da editora Vertigo, uma divisão da DC Comics, bem como sua revista em quadrinhos homônima. O personagem é diretamente baseado no anjo caído.



Inicialmente, ele surge idealizado por Neil Gaiman como um personagem secundário nas páginas da aclamada série de quadrinhos Sandman; e depois é detalhado e expandido por Mike Carey em título próprio, utilizando-se de todos os mitos judaicos e cristãos sobre os anjos e suas batalhas, não deixando de mencionar as histórias de cunho místico que não se vinculam a nenhuma das religiões principais.

 


Lúcifer surgiu nas páginas de Sandman, de Neil Gaiman, era o governante do Inferno que entendiado decidi fechar os portões do inferno e ir para o mundo dos mortais, baseado na aparência de David Bowie e na versão do demônio criada por John Milton em Paradise Lost. Logo ganhou uma serie própria de quadrinhos, com 75 edições lançadas entre 2000 e 2006, pelas mãos de Mike Carey, que foi bastante elogiada pelo público e pela crítica.

 


A série tanto dos quadrinhos quanto da TV segue o basicamente o mesmo prelúdio. Narrando os acontecimentos da vida de Lúcifer Morningstar (Lúcifer Estrela-da-Manhã) após ele ter abandonado o Inferno e ter se estabelecido entre os mortais,  em sua boate/piano bar chamada Lux (latim para luz) junto de sua amante e companheira Mazikeen .

 


O foco da série é a dicotomia entre a noção de destino (personificado como a vontade divina) e a noção de livre arbítrio, sendo esse o motivo da punição de Lúcifer que se rebelou contra a ideia original da criação. Outro aspecto que permeia a série são os arquétipos pré-concebidos sobre a função do diabo, como a crença de que o pecado é a tentação do mal e não o resultado de nossas escolhas ou o papel dele com compra e venda de almas, como se fosse um mercador. Em muitas edições ele se revolta contra esses arquétipos e como os mortais o culpam pelos males do mundo.



O personagem dos quadrinhos tem mais semelhanças com o Lúcifer do clássico inglês  “Paraíso Perdido” de John Milton: uma figura bela, que exala liderança, apaixonada, soberba, ciente de sua força e de sua inteligência. Uma alma nobre, atormentada, de natureza aristocrática e dotado de um código de honra que segue à risca. O Lúcifer de John Milton e dos quadrinhos do selo Vertigo tem esse ar de desprezo pela fraqueza, de pouco caso com os que aceitam a obediência. Desprezo pela moral dos fracos, dos que ficam à espera de um mundo melhor no por vir.

 


Preferido do Criador, o Portador da Luz é um ser amargurado por se sentir traído por Deus ao descobrir que uma eternidade de serviços prestados será ignorada em prol de uma nova raça criada pelo Senhor: os homens. Claramente inferiores aos Anjos, sem sua beleza, inteligência e força, mas que receberão o maior presente de Deus – negado aos Anjos – o livre arbítrio. Em sua fúria ao ter todo seu amor e serviço não valorizados e em ter negado o direito ao livre arbítrio, Lúcifer articula uma rebelião nos Céus, sendo por fim derrotado por Miguel Arcanjo.



Derrotado, jogado ao Inferno com sua hoste de seguidores, Lúcifer por fim transforma a derrota em conquista, declarando aos seus seguidores o direito de tomar suas próprias decisões, seguirem seus desejos, reinando a seu modo. É deste personagem Miltoniano – e não do bíblico – que Neil Gaiman bebe para contar a história de Lúcifer, quando o mesmo percebe que não, ele ainda não tem seu livre arbítrio. Que seu reinado individual no Inferno é falso.

 


Deus quem decide as regras de salvação ou condenação da alma e quem envia ao Inferno ou perdoa os atos. O julgamento das ações humanas é sempre de Deus, nunca de Lúcifer. Este apenas recebe as almas mandadas por uma Ordem Superior. Lúcifer percebeu que estava sendo enganado. Ele não reinava. Obedecia. Ele não era livre, mas mantinha seus vínculos de vassalagem com o Todo Poderoso.



A série de quadrinhos é filosófica. Discute a questão do livre-arbítrio e da predestinação, a criação da identidade, a ansiedade da responsabilidade pelas próprias decisões e pela criação do próprio destino em um mundo que está sempre em mudança; onde a noção de hierarquia está deteriorada e não existem mais papéis fixos. De certa forma, o personagem Lúcifer está até o pescoço envolvido com todos os assuntos que sociólogos como Zygmunt Bauman retratam na atual modernidade líquida.

23 maio 2019

Trinta anos sem Lindembergue Cardoso


Maestro, compositor, pintor, caricaturista, professor de música, há 30 anos morria Lindembergue Cardoso (maio de 1989). Nascido em 1939 no município baiano de Livramento de Nossa Senhora, Lindembergue Cardoso revelava seu talento pela música desde os oito anos de idade. Na filarmônica da cidade, ele aprendeu os primeiros rudimentos musicais. Aprendeu a tocar sax-soprano e trompa. Participou de alguns conjuntos populares.

 


Aos 16 anos se mudou para Salvador e aos 20 era sax-tenor do Bazooka Joe Jazz. Estudante do Seminário de Música da UFBa, foi membro da Orquestra Sinfônica da Bahia, onde atuava como percussionista. Em 1967 ganhou a medalha Reitor Edgar Santos, com um trio para cello, violino e piano. Foi professor de composição, percepção, improvisação, instrumentação e orquestração da UFBa.



Fez trilhas para espetáculos de dança, a exemplo de Salomé e Simôa, Paixão, Vida e Morte no Ano de Aquarius, Medeia, Arena conta Zumbi, entre outros, além de teatro de bonecosCobra Norato, As Relações Naturais, Auto de Natal, etc. Montou diversos trabalhos didáticos.

 


Fiel às suas raízes, ele dizia que sua música tinha motivações populares, sendo a principal influência os cantos do sertão. Instrumentista de renome, compôs 110 peças ao longo de sua vida, em variações que iam do popular ao erudito.  Duas de suas composições Espectros e Quinteto representam o Brasil nas bienais de Paris, realizadas em 1971 e 1972.



Ele levou o país ao Festival de Graz, na Austrália, a convite do Itamaraty, para o qual compôs Reflexões II. Conquistou 16 prêmios, entre nacionais e internacionais, ocupou a cadeira 33 da Academia Brasileira de Música, foi vice-diretor da Escola de Música da UFBa, co-fundador do Grupo de Compositores da Bahia e da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, e atuante professor de composição,  além de músico instrumentista e maestro.

 


Uma das figuras mais representativas da música clássica e popular da Bahia. Morreu de enfarte em 23 de maio de 1989 (A maioria dessas informações está no livro Gente da Bahia, volume 1 que lancei em 1997).


21 maio 2019

Mordaça brasileira


Há 502 anos, quando o Brasil ainda era adolescente, nasceram nossas primeiras regras de censura. Isso mesmo, em 1517 os portugueses começaram a montar o tripé institucional que regulamentaria a censura na metrópole (e consequentemente na colônia) até 1768. Juízes eclesiásticos denominados Ordinário, representantes do Estado absolutista (cuja instituição era chamada de Mesa do Desembargo do Paço), e pelo Santo Ofício da Inquisição. Era essa a estrutura formada para censurar.

 


A censura nesses primeiros séculos, tanto no Brasil quanto em Portugal, seguia ditames religiosos, amordaçando grandes literatos como Gil Vicente e até Camões. Segundo a professora de História da USP, Maria Luíza Tucci Carneiro, “o argumento usado para apreender e queimar livros é que eles feriam a verdadeira fé católica. É uma luta contra o herege, o inimigo número um deles”.

 


A repressão só começaria a mudar de ritmo com a ascensão do marquês de Pombal ao poder português. Assim, o ministro do rei Dom José 1º cria, em 1768, a Real Mesa Censória, instituição formada por leigos e religiosos que passou a regulamentar as perseguições oficiais. “A censura ganha um tom político” conta Maria Luiza. “Perseguia não mais o cristão-novo, mas os maçons, que representavam a trama de algo secreto contra o governo, os teóricos da Ilustração, como Voltaire, e os jesuítas, grandes inimigos de Pombal”.



Essa nova censura política se estenderia ao Brasil, que só deixou de espelhar as práticas censoriais portuguesas depois de 1808, com a abertura dos postos e o nascimento oficial da imprensa no país. E a mordaça no Brasil não parou mais. Um mês depois da Proclamação da República, em 1889, já existia um decreto restringindo a atuação da imprensa. Em 1923 é decretada a Lei Adolfo Gordo (senador paulista) que cerceava a atuação da imprensa, e o alvo era os anarquistas e comunistas.



E como explicou a professora: “O século 20 é o auge da censura. E os seus dois grandes momentos são, claramente, o período Vargas, com o DIP e a polícia política atuando como aparatos censores e repressores, e, depois, a ditadura militar, sobretudo o período de 1968 a 1975”. “A censura é a mais forte arma que os regimes totalitários têm utilizado, desde a Antiguidade, para impedir a propagação de ideias que podem pôr em dúvida a organização do Poder e o seu direito sobre a sociedade.



Sempre, em todos os tempos, os homens que detêm a direção de um Estado se valem da força para fazer cair os que contestam a sua legitimidade. Pensar diferente foi considerado crime no Antigo Regime, na época moderna, como foi em vários períodos de nosso século”, escreveu a professora Anita Novinsky no capítulo “Os regimes totalitários e a censura”.

 


Quem deseja conhecer toda a trajetória da censura em território brasileiro não deve deixar de ler a obra organizada por Maria Luiza, “Minorias Silenciosas – A História da Censura no Brasil”, lançada pela Edusp, Imprensa Oficial de SP e a Fapesp. O livro reúne ensaios e depoimentos de 22 intelectuais de campos distintos. Trata-se de um time de historiadores, professores de literatura, jornalistas, sociólogos e educadores. Eles fazem uma análise sobre a censura à atividade intelectual e artística em diferentes momentos da história brasileira, desde o período colonial até os anos posteriores ao golpe militar de 1964.



 “A repressão à liberdade não é só inerente aos governos autoritários – lembra José Mindlin na orelha do livro -, ela pode ter outras origens – a Igreja, a existência de classes mais fortes e mais fracas, e as injustiças da sociedade em geral”. “Se quisermos combater a censura, não será ridicularizando seus excessos, mas contestando o seu cerne”, afirma Renato Janine no prefácio da obra. (Texto escrito em 2010)


20 maio 2019

Lençóis: 255 anos de autonomia


Hoje, dia 20 de maio, o município comemora 255 anos de emancipação. Lençóis possui um rico conjunto arquitetônico, com vários prédios históricos. Está localizada na Chapada Diamantina, em uma região de serras de deslumbrante beleza natural. Em 1973, a cidade foi tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN).



É preciso dispor de muito tempo para conhecer o município de Lençóis. Conhecida como a capital informal e principal destino da Chapada Diamantina, a cidade tem seu patrimônio histórico tombado e é considerada a capital do diamante e uma das maiores referências entre as cidades baianas ligadas ao garimpo. Lençóis oferece o turismo cultural, histórico, esotérico e de aventura. A história de Lençóis confunde-se com o ciclo dos diamantes. Seu próprio nome, segundo uma das versões, remete ao garimpo: as lonas das barracas dos garimpeiros, vistas de longe, pareciam lençóis. Outra corrente de historiadores defende a tese de que o nome deriva da imagem dos rios descendo as montanhas que se assemelhavam a lençóis.



Difícil resistir à tentação de desembarcar no município e não visitar seus vales, cachoeiras, grutas, rios, rilhas e morros, como o mais famoso deles, o do Pai Inácio, de onde se descortina ampla visão de uma região que era inundada pelo mar há muitos milhões de anos. A 452 km de Salvador, Lençóis surgiu em meados do século XIX, hoje, sua população estima-se em 11 mil habitantes. A cidade apresenta um casario colonial muito rico e interessante, com bares, restaurantes e hospedagens, na sua maioria, instalado nesses prédios antigos, o que confere um clima altamente charmoso à cidade.



A atmosfera de tranqüilidade absoluta nas ruelas de Lençóis convida permanentemente seus nativos e visitantes à descontração. Atualmente, a cidade conta com uma ótima infra-estrutura para absorver a demanda do turismo. A Cidade Patrimônio é considerada pelo meio turístico como um dos 10 melhores destinos turísticos do Brasil. O tradicional lampião e o casario antigo simbolizam a cidade, por cujas ruas passavam ricos senhores do garimpo, escravos e estrangeiros compradores de diamantes. Dentre outras finalidades, foram usados na construção do metrô de Londres e nas fábricas da Ford.



PONTOS TURÍSTICOS - Antigo garimpo, Serrano originou o município, é formado por rochas coloridas e grandes crateras, que se transformaram em bacias, um lugar ideal para deliciosos e refrescantes banhos. Já o Salão de Areias, fica a 1 km da cidade e é um passeio para todas as idades, aqui, chega-se até uma boca de gruta, onde formações rochosas multicoloridas propiciam por decomposição, areias de diversas cores que são utilizadas para o artesanato.



Cachoeirinha, descendo entre os rochedos, é uma queda d' água de água cristalina, ficando a poucos metros do Serrano, é outra excelente opção de banho. Originada do Rio Grisante, Cachoeira da Primavera despeja suas águas em terreno de pedras, dando um tom ferruginoso, fica a 3 km de Lençóis. Já a maravilhosa Cachoeira do Sossego, a 7 km da sede, está num “canyon” formado pelo Rio Ribeirão e cercada por uma extensa área verde.



A Gruta do Lapão, distante dois quilômetros da cidade, é formada por rochas coloridas de grande beleza e possui fendas que se direcionam a profundos abismos. A Praia Zaidã, de areias alvas e com muita área verde ao seu redor, é uma praia fluvial que fica no rio São José, próxima à entrada da cidade. Por fim, o Rio Mucugezinho, a 4 km da sede, corre em alguns trechos sobre lajes, formando “tobogãs” e crateras, o banho e o mergulho são ideais.



Não deixe de conhecer também a exuberância da Cachoeira da Fumaça, experimentar a Malamba, uma comida indígena que era oferecida nas grutas da pratinha, feita de fubá e milho, miúdos de galinha e arroz. Aproveitar o misticismo da cidade e fazer uma boa massagem, além de conhecer a Casa de Geléia de José Carlos. Outros pontos importantes: Igreja de Nossa Senhora do Rosário (construída na segunda metade do século XIX em estilo rural), Mercado Cultural, Casa de Cultura Afrânio Peixoto (reúne precioso acervo), Casarão no alto do bairro São Félix (foi quartel general do Coronel Horácio de Mattos), Praça do Coreto (ponto de encontro dos jovens) e a Igreja Senhor dos Passos (dedicado ao padroeiro dos garimpeiros).