31 janeiro 2017

Capoeira, uma escola de cidadania (2)



A capoeira é uma herança deixada pelos negros bantos vindos de Angola como escravos. Para não levantar suspeitas, os movimentos da luta foram sendo adaptados  às cantorias e músicas africanas para que parecesse uma dança. Símbolo de identidade e resistência, a capoeira também é uma das mais belas e fortes expressões culturais brasileiras e, sobretudo, baiana.

O surgimento da Capoeira Regional foi um grande marco na história deste esporte, que moldou a luta e a forma como ela é vista hoje pela sociedade. Mestre Bimba foi o responsável pela capoeira ser hoje jogada em mais de 150 países e pela, cada vez mais próxima, profissionalização do mestre de capoeira.

Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, nasceu em 23 de novembro de 1899, no bairro de Engenho Velho de Brotas, em Salvador, Bahia. Seu apelido resultou da aposta que sua mãe e a parteira fizeram: quando Maria Martinha do Bonfim, sua mãe, estava grávida, achava que ia dar a luz a uma menina e a parteira achava que seria um menino, então fizeram a aposta e quando a criança nasceu ganhou o apelido de Bimba, por ser o nome popular dado ao órgão sexual masculino na Bahia.

PRIMEIROS GOLPES - Mestre Bimba começou sua carreira aos 12 anos de idade, jogando capoeira Angola, a mesma que ele ensinou por 10 anos. Durante o período em que a capoeira (e qualquer outra manifestação da cultura negra era proibida), mestre Bimba conseguiu, junto com a Secretaria de Educação do Estado da Bahia, manter aberta a primeira academia reconhecida de capoeira.

A história da capoeira Regional se inicia quando Mestre Bimba, na década de 1930, percebe que a luta estava perto de sucumbir diante de sua proibição e pela entrada e assimilação das lutas estrangeira, cada vez mais presentes no Brasil. Diante de tal situação, Bimba começou a procurar um meio de modernizar a capoeira, sem, contudo, perder sua tradição, pois mesmo analfabeto, ele possuía a consciência de que a capoeira era a única luta verdadeiramente nacional.

E foi assim que Mestre Bimba desenvolveu novos golpes misturando a capoeira Angola com o batuque - uma outra luta popular baiana - focando sua eficiência no bloqueio para ela se tornar mais competitiva e poder ser usada contra outras modalidades de artes marcais. Bimba retirou da roda regional a maior parte da ritualidade presente na roda de capoeira Angola. Colocou um ritmo mais rápido para dar um caráter mais dinâmico e implementou fatores estritamente didáticos a fim de formar alunos e mestres para que sua arte se propagasse.

O berimbau, símbolo máximo da capoeira, é outro mérito de Mestre Bimba, pois antes disso, nas rodas de Angola, também era admitido o uso da viola. Contudo, por sua praticidade tanto de confecção quanto de manejo, o berimbau encontrou seu lugar nas rodas de capoeira Regional sendo aos poucos preferido nas rodas de Angola também.

Em 1932 Mestre Bimba consegue de fato a liberação da prática da capoeira, e junto com ela a liberdade de todas as outras formas de manifestação da cultura negra. Neste mesmo ano é fundada sua primeira academia, a primeira especializada em capoeira a ter um alvará de funcionamento. Bimba criou um código de ética rígido e a partir daí a capoeira começou a conquistar alunos na classe média branca. Segundo registros, para ser aluno do Centro de Cultura Física e Regional era exigido ter autorização da família e estar trabalhando ou estudando.

Passaram pelas aulas do mestre desembargadores, juízes e médicos. Não só eles: ar dar ares de atléticos ao jogo, o mestre atraiu também as mulheres, até então excluídas das rodas. O estilo foi exportado para o mundo e ficou conhecido, mais tarde, como Capoeira Regional.

Mestre Bimba sempre afirmou que o maior diferencial da capoeira Regional era a sua sequência de ensino onde ele passava ao calouro os movimentos básicos para a prática da capoeira e também incutia a noção de parceria, de autoconfiança, de
esquiva, etc. Apesar de tanto ter feito pela capoeira, o filho de Mestre Bimba, Mestre Formiga, afirma que seu pai morreu de “tristeza por não ver a capoeira ser respeitada”. Mas, hoje, a história é bem diferente.

A capoeira não é só respeitada como também é divulgada e praticada pelos quatro cantos do mundo, e o nome Mestre Bimba é conhecido no mundo inteiro, pois é a primeira coisa que qualquer calouro aprende, em qualquer lugar do mundo em que se ensine a sua capoeira regional.

30 janeiro 2017

Capoeira, uma escola de cidadania (1)



O baiano "Ratto" venceu a primeira edição do Red Bull Paranauê e foi eleito o capoeirista mais completo do mundo, durante um evento realizado no Farol da Barra, no último sábado, 28. Com participantes de vários lugares do Brasil e do mundo, Lucas Dias Ferreira, o "Ratto" (de roda) como ficou conhecido, levou o prêmio e foi consagrado em frente a um público de cerca de 3.500 pessoas, pelo mestre João Grande, uma lenda da capoeira mundial.

Não se pode compreender a  cultura de um povo sem conhecer a sua história. 

Para conhecer a história de um povo, é preciso conhecer a historia dos  seus grandes homens.

Aqueles que fizeram a história do seu povo e determinaram seu destino

A capoeira baiana é um processo dinâmico, coreográfico, desenvolvido por dois parceiros, caracterizado pela associação de movimentos rituais, executados em sintonia com ritmo ijexá, regido pelo toque do berimbau, simulando intenções de ataque, defesa e esquiva, ao tempo em que exibe habilidade, força e autoconfiança, em colaboração com o parceiro do jogo, pretendendo cada qual demonstrar sua superioridade sobre o companheiro. O complexo coreográfico se desenvolve a partir dum movimento básico denominado de gingado do qual surgem
os demais num desenrolar aparentemente espontâneo e natural, porém com um objetivo dissimulado de obrigar o seu parceiro a admitir a própria inferioridade.

Dentre as características mais importantes da capoeira destacamos a liberdade de criação, a estrita obediência aos rituais, a preservação das tradições, o culto dos antepassados e o respeito aos "mais velhos" como repositório da sabedoria comunitária. Existem muitos tipos de capoeira, mas os dois principais são a capoeira Angola e a Regional. Esta última foi criada pelo baiano Manoel dos Reis Machado, o respeitado Mestre Bimba.

IDENTIDADE - Herança dos negros escravos trazida para o Brasil e usada como luta no movimento da busca de liberdade ou como um ritual, capaz de manter a identidade de um povo subjugado pelo poder dos 'senhores'. Nos diversos olhares temos a capoeira como manifestação da cultura afro, passando por esporte praticado em academias, folclore para turista ver e clicar, e ferramenta terapêutica no tratamento de doenças mentais.

No Brasil colonial a luta era permitida, mas os senhores deixava acontecer manifestações culturais negras, espécie de válvulas de escape das tenções inerentes. Os negros, então, tiveram que dissimular a capoeira, disfarçando-se de dança com direito a cânticos e um instrumento musical (o berimbau). Ainda para disfarçar a luta, os
negros faziam a ginga, emprestando à dança um aspecto malicioso, lúdico e cadenciado, aparentando muito mais uma brincadeira inofensiva do que uma luta mortal.

Historicamente, coube ao ex presidente Getúlio Vargas, com o objetivo de angariar apoio e aceitação das massas, liberar as 'válvulas de escape' da população marginalizada. Exercendo, ao mesmo tempo, um controle sobre essas manifestações e sobre os atos de seus participantes.

Assim, Vargas eliminava a inconveniência de desordem e determinam regras e normas para a sua prática. E, no ano de 1930, em Salvador, Mestre Bimba ao sentir que esta seria apenas para exibição em praças e deixava muito a desejar em termos de luta, apresenta sua luta regional baiana.

Apresentada ao ex presidente, caracterizada por um método de ensino racional, foi liberado e transformado em esporte, passando a ser ensinado em academias e a fazer parte dos programas de governo para incentivar o turismo.

24 janeiro 2017

Verdadeiro escândalo visual: Saga de Xam



Há 50 anos surgia Saga de Xam, a graphic novel francesa, escrita por Jean Rollin e desenhada por Nicolas Devil, publicado pelo lendário editor Eric Losfeld. Considerado pelo crítico Jacques Marny como um verdadeiro “escândalo visual”, definição que traduz bem o impacto que o livro teve nos leitores da época, Saga de Xam conta a viagem de Saga, a bela jovem de pele azul vinda do Planeta Xam para salvar um planeta Terra.

Xam é um planeta habitado exclusivamente por mulheres. Para salvar a raça xamiana, a Grande Senhora designa Saga em missão à distante Terra, cujos segredos poderiam conter a chave da vitória. Em sua espaçonave de luz, Saga atinge a Terra em plena época das cruzadas. A partir daí começam as aventuras de Saga através de um verdadeiro redemoinho espaço-temporal-visual, entre o surrealismo, a arte nouveau e o naturalismo desenvolve-se o desenho de Devil, explodindo nos poemas visuais do fim.

É um dos mais raros e autênticos exemplares de graphic novel psicodélica, sendo um símbolo artístico da segunda metade do século 20. As detalhadas páginas de Saga de Xam foram desenhadas em grandes quadros e, ao serem reduzidas ao tamanho de um livro, resultou-se na diminuição das letras e é necessário uma lupa para lê-las. Verdadeira viagem pela História de Arte Universal, do antigo Egito à Pop Art, passando pela pintura flamenga, Saga de Xam é um belo e luxuoso livro-objeto, encadernado a pano e impresso em papel de 300 gr, feito mais para ser visto do que para ser lido.

O livro, impresso em papel de 300 gramas, é extremamente raro e muito valorizado ao longo dos anos por colecionadores de todo o planeta, mesmo por nunca ter sido reimpresso. Esta obra é relacionada à emancipação sexual feminina dos anos 60.

O enredo em geral trata de problemas raciais e da violência. Esta obra é relacionada à emancipação sexual feminina dos anos 60. Herdeira direta de Barbarella, de Jean-Claude Forest, Saga de Xam foi revolucionária porque ousou perverter todas as regras dos quadrinhos, tanto no conteúdo quanto nas técnicas. Tratou do liberalismo feminino com ousadia, colocando em foco uma linda humanóide alienígena de exuberante corpo azul, inspirado na modelo Handa Humbert, que aparece desnuda por quase toda a narrativa.

A personagem é independente, toma suas próprias decisões e sustenta uma relação homossexual durante boa parte da história. Os desenhos são psicodélicos, complexos e detalhistas, e os balões enormes, com textos longos em letras bizarras.

Saga vem do planeta-mar de Xam, enviada por sua soberana para estudar a Terra e desenvolver uma proteção psíquica contra os invasores que ameaçam o seu planeta. Ela chega em meio a um grupo de cavaleiros medievais que acabaram de devastar uma aldeia. Capturada, é levada a um castelo onde as mulheres sofrem todo tipo de violência. Entregue ao feiticeiro Abdul Alhazred, Saga escapa, mas é recapturada e amarrada a um poste de pedra onde será queimada viva. Mas ela descobre um botão oculto que, ao ser pressionado, transforma o poste de pedra em um veículo futurista com o qual Saga foge para o mar.

Enquanto manobra pelas ondas, Saga encontra um barco de guerreiros vikings com uma carga de mulheres sequestradas. Uma delas, chamada Zo, está sendo torturada amarrada a quilha do barco. Saga a liberta e ambas atacam os vikings, matando-os e assumindo o controle da embarcação. Saga decide partir, mas Zo se revela apaixonada por ela e ambas embarcam no veículo de Saga, deixando o barco viking entregue às mulheres. Nos saltos seguintes, Saga e sua amante passam por várias épocas e ficam algum tempo no antigo Egito. Mais tarde, Saga retornará para sua dimensão, onde irá confrontar seus inimigos.

Saga de Xam foi o divisor de águas entre o quadrinhos clássico e a moderna escola narrativa, abrindo o caminho para obras como Paulette, de Wolinski e Pichard, Valentina, de Guido Crepax, 5 x Infinitus, de Steban Maroto, Delirius, Philip Druillet, e toda a escola ligada a revista Métal Hurlant. 

A obra teve uma única tiragem de 5 mil exemplares e nunca foi republicada; elevada a categoria de obra de arte, seus exemplares são raros e valiosos.

Para além do editor, Eric Losfeld, outro nome foi determinante para a concretização de Saga de Xam. O de Jean Rollin, cineasta de culto com uma grande atração pelo fantástico e pelo erotismo, que escreveu o argumento de Saga de Xam e apresentou Devil a Losfeld.

23 janeiro 2017

Harmonia e imperfeição



Na vida tudo gira em torno da harmonia. Um bom exemplo disso é a coreografia dos ciclos naturais,
primavera, verão, inverno e outono mostrando como a vida coexiste e improvisa com o meio ambiente e como padrões simétricos tendem a se repetir. Basta ver a bifurcação dos troncos das árvores e dos leitos dos rios, as espirais das galáxias, e das conchas, a simetria das asas de uma borboleta e dos flocos de neve.

No universo não há só harmonia e simetria. Se só houvesse equilíbrio jamais haveria transformação. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilíbrio. O próprio Universo se originou do desequilíbrio. Quando o sistema está equilibrado, não se transforma. Sem transformação não há criação, nada acontece. Portanto, tudo o que ocorre e que se transforma no mundo o faz devido a imperfeições, ao desequilíbrio. É a tensão entre harmonia e imperfeição que gera a criatividade do mundo natural, das formas mais simples àquelas mais complexas. Como pode existir harmonia em um Universo que tende à desorganização. Esse é um dos grandes desafios da Ciência.

As imagens vindas dos mais distantes recônditos cósmicos mostram as profusões de cores e formas de uma beleza espetacular que alguns defendem como harmonia universal. Puro mito. O que existe se olharmos mais atentamente no espaço cósmico são fenômenos catastróficos como galáxias em colisões gerando devastadoras explosões e até buracos negros engolindo tudo ao seu alcance. Um verdadeiro caos absoluto. A imperfeição e falta de harmonia também se encontra em nosso planeta. Um bom exemplo são os dinossauros que, de tão imperfeitos, já nem existe há mais de milhões de anos porque não alcançaram a harmonia e perfeição exigidas naquele momento. Se houvesse de fato harmonia universal não teríamos o velho confronto entre o bem e mal (e tantos outros opostos).

Toda a história contemporânea gira em torno do problema da desigualdade ou da igualdade dos direitos humanos. E neste século a história registra um movimento igualitário cada vez mais acelerado. Velhos querem parecer jovens. Professores se dizem iguais aos alunos. Governantes procuram igualar-se aos governados, padres querem nivelar-se aos fiéis.

Assim, a desigualdade permite a ordem e harmonia do Universo. A beleza do arco íris só é possível pela desigualdade harmoniosa das cores. É a desigualdade das notas musicais que permite a música. No reino vegetal, a desigualdade cresce de valor diante da variedade: cedros majestosos no Líbano, orquídeas delicadas nas selvas brasileiras e repolhos em qualquer horta. E nos animais? O rei das selvas é o leão mas ele tem defeito na vista, só vê coisas grandes; o morcego somente pousa de cabeça para baixo, tendo uma visão invertida. Nos seres humanos todos são iguais em tudo, nos acidentes é que são diferentes (altos, baixos, gordos, magros, loiros, morenos, negros etc).

Sem encontrar paz na Terra, o astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) buscou a harmonia do mundo nos céus. Durante toda a vida, os homens se destroçaram em conflitos religiosos. Com imaginação e observação, a base da investigação científica, Kepler tornou-se o primeiro a compreender o movimento planetário. Ao constatar que uma força física movia os planetas, ele ajudou a fundar a Ciência moderna. Mas Kepler só conseguiu mudar a maneira de pensar de sua época porque não temia o que descobria. Sua curiosidade sobre seu Deus, dizia Carl Sagan, era maior
que seu temor.

Assim, ao final, Kepler encontrou harmonia do mundo. Já o cientista Marcelo Gleiser, a imperfeição. Harmonia e imperfeição são pensamentos científicos de duas épocas distintas. Imperfect Creation, o livro de Marcelo Gleiser. "Vou escrever sobre a importância da imperfeição no universo. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilíbrio, o próprio universo se originou de um desequilíbrio. Quando o sistema está equilibrado, ele não se transforma. Sem transformação não há criação, nada acontece", diz. "Mas o que vemos é a organização, a simetria. Um dos grandes desafios da Ciência é explicar como pode existir harmonia em um universo que tende à desorganização. A ideia que eu quero trazer é explicar como imperfeição e harmonia caminham juntas.". Pela primeira vez, Gleiser vai mesclar - deliberadamente - a Ciência com a própria biografia. Ele quer mostrar qual foi o papel da imperfeição, do desequilíbrio e da morte na criação da sua vida. Como ele alcançou à sua pró-cura.