31 maio 2006

Riso, o elixir da longa vida

O homem é a única criatura que ri e sabe que a morte é uma certeza absoluta. Os antigos filósofos defendiam o riso como manifestação pessimista diante da dramaturgia absurda que é a vida. Em seu livro “O Riso. Ensaio sobre a significação da comunidade”, o estudioso Henri Bergson (1859/1941) é dono da tese do riso como trote social. O riso embute o sentido de humilhar alguém. Daí o formato mais perto da vida social seria a comédia, não o drama.

De Aristóteles a Hobbes, de Platão a Georges Bataille, foram inumeráveis e quase infinitas as tentativas de conceituação do humor. Na Grécia antiga, o humor estava no centro da sociedade, nos rituais de sacrifício, danças e cultos, nos sagrados festivais báquicos, nas procissões orgiásticas. Na Idade Média, por sua vez, o humor também se expressa como representação essencialmente pública, uma prática coletiva de vilarejos, praças e igrejas, como as festas cristãs da celebração dos mistérios da Paixão, da Páscoa e do Natal. Ele integra a conjunto de práticas para as legítimas expressões próprias da época – exorcismos, conquistas, misérias, fantasias. A commedia dell´arte nasce na Itália no século XVI e se consolida no século seguinte na França como gênero teatral distinto do teatro medieval.

A partir do século XVII a tragédia se afirma como gênero “de conteúdo” e assim desqualifica a comédia, o humor e o riso como fontes de informação sobre o real. À medida que o sério na Idade Clássica passa a ser condição de credibilidade para conteúdos que pretendem exprimir verdades, o humor perde essa sua característica positiva e universal.

Na Antiguidade, na Grécia ou em Roma, na Idade Média e no Renascimento, tempos em que a razão não havia ainda espalhado certezas pelo mundo, o humor como produtor e veículo de verdade ocupa um espaço central no cotidiano da sociedade. Assim, a afirmação do poder absolutista na política, do capitalismo que o financiava na economia e do discurso da razão na ciência e na cultura, marcam a decadência da festa, da celebração e do riso como portadores da verdade.

A função do humor não é, imediatamente, provocar o riso, como supõe a razão, mas é, também, de se contrapor a ela como instância privilegiada exclusiva da verdade. Assim, “o humor não é resignado, mas rebelde” como dizia Freud. Assim, no século XVII, a razão troca as difusas verdades universais espalhadas pela sociedade por verdades oficiais, ancoradas pelo poder absolutista.

Desse modo, todas as práticas que anarquicamente enunciavam as verdades que eram capazes de formular (os loucos, alquimistas, astrólogos, bruxos) ficam esvaziadas, portadoras de um saber sem conteúdo, perdendo a positividade de seus discursos, o controle de seus dizeres e a ordem de seus prazeres. São postas à margem da sociedade e da cultura como difusoras de práticas negativas porque marcadas pela ausência da razão. O humor produz desordem na ordem da razão.

Festas populares (como o Carnaval) e quaisquer manifestações profanas são proibidas. Os ditos loucos também foram aprisionados, afinal de contas, é deles o riso mais libertário. O clero toma a dianteira nessa campanha conservadora. Baixa-se uma espécie de código na tentativa de abafar as gargalhadas. A alegria passa a ser crime.

A Idade Média, dominada pela Igreja, foi uma época de tristeza. De maneira oposta, o Renascimento, foi o grande momento da liberação do riso. A Contra Reforma não viu com bons olhos o humor. Vários teólogos pensavam que o homem deveria evitar o riso por causa de sua condição pecaminosa. O clero era instruído a não provocar o riso durante os serviços. Há um tempo de chorar e um tempo de rir, diz a Bíblia, e os escritores moralistas repetiram o veredicto: “Agora é o tempo de chorar e no céu será o tempo de rir”. O cristão deveria apenas esperar até a redenção dos pecados na Jerusalém sagrada, onde encontraria o único riso natural. Esse pessimismo agostiniano fez com que os religiosos condenassem o riso.

Os filósofos Hegel (1770/1831) que não queria rir, Schopenhauer (1788/1860) pessimista e rabugento, e Nietzsche (1844/1900) ao contrário, decretou o riso escancarado. Assim gargalhou Zaratustra e com o crepúsculo dos ídolos nascia o popular “quem ri por último ri melhor”. O historiador Georges Minois relata na sua “História do Riso e do Escárnio” que há um divórcio entre as folias modernas e o riso – o sujeito agora se perde totalmente no grupo -, ao contrário de antigamente, quando a farra era associada ao riso em razão do seu caráter excepcional, que permitia estabelecer um deslocamento da norma. A festa tecno (raves) seria apenas uma busca fetichista do sagrado. “Não é irônico ver multidões laicas viverem a festa tecno como uma verdadeira missa?” é a pergunta que nos deixa para uma reflexão.

“O riso moderno existe para mascarar a perda do sentido. É mais indispensável que nunca”, esta é uma das conclusões a que chega Minois em seu livro. Para outros, o riso é um elixir de longa vida. Afinal, neste milênio marcado pelo estresse, desigualdades sociais e idas rotineiras ao divã do analista, o humor comparece e se afirma como uma variável. Bom humor é necessário. Já para o sociólogo Gilles Lipovetski o riso perdeu sua força. No seu livro “A Era do Vazio” ele atesta: “Um novo estilo descontraído e inofensivo, sem negação nem mensagem, apareceu. Ele caracteriza o homem da moda, do texto jornalístico, dos jogos radiofônicos, televisivos, do bar...”. Para ele não há mais festa do espírito no riso, a esculhambação dionísica deu lugar ao “cool”.

30 maio 2006

A imagem de Cristo no cinema


O fascínio pela paixão de Jesus Cristo é um tema comum à arte de todas as épocas, atingindo proporções industriais com sua utilização pelo teatro, cinema, televisão e artes plásticas. O cinema sempre contou com muitas vidas de Cristo ou filmes inspirados em narrativas evangélicas. Utilizaram todos os textos sagrados, comentários de teólogos e pesquisas históricas ou arqueológicas sobre a época de Cristo. Assim, há várias maneiras de filmar a vida de Jesus. O cinema praticamente se apropriou da história de Cristo desde seus primeiros anos. Jesus Cristo foi representado no cinema pela primeira vez em 1912 em “Da Mangedoura à Cruz”, um filme norte-americano. Em 1916 D.W.Griffith dirigiu “Intolerância” sobre casos de intolerância em quatro períodos históricos diferentes. Em um deles é mostrada a condenação de Cristo pelos fariseus.

Em 1927 Cecil B.DeMille apresenta “O Rei dos Reis”. Em 1930 Luis Buñuel causou escândalo com cenas de orgia sexual em “L´Âge d´Or”. Em 1935 o cinema sonoro francês dedicou-se “Golgotha”, de Julien Duvivier em tom dramático e sentimental. Os filmes que utilizaram especificamente a narrativa da Paixão – entre esses os mais famosos e caros seriam “O Rei dos Reis” (o primeiro de Cecil B. DeMille onde Cristo é representado pelo ator H.B. Warner; o segundo, de Nicholas Ray com Jeff Hunter) e o apelo ao grande espetáculo cinematográfico “A Maior História de Todos os Tempos” (1965) de George Stevens. Dezenas de outros usaram a história como fundo para suas narrativas, como por exemplo “O Manto Sagrado”, “Demetrius o Gladiador”, “Barrabás”, “Bem Hur” e “O Grande Pescador”.

Nessa série de filmes religiosos, onde a mediocridade é absoluta rotina, duas exceções de alta qualidade: o despojado “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964), de Pasolini, e “Aquele que Deve Morrer”, incendiária parábola da paixão filmada por Jules Dassin. Em 1968 Woody Strode vive “Black Jesus”, o primeiro filme a retratar um Jesus negro. Nos anos 70 Norman Jewison filmou nos desertos de Israel sua superprodução “Jesus Cristo Superstar”, versão da ópera rock de Webber e Rice, narrada do ponto de vista de Pilatos. Judas é interpretado pelo ator negro Carl Anderson e Cristo pelo cantor Ted Neeley. Ainda em 1973, David Greene filma “Godspell, a Esperança”, versão da ópera rock que mostra o messias (Victor Garder) vivendo nos dias atuais, enfrentando trânsito, poluição, cantando e dançando mil rocks e sua mensagem der amor na canção “All´s for You”. Em 1976 foi a vez da objetividade quase científica de “O Messias”, de Roberto Rosselini, fiel aos textos dos evangelhos. Um filme sóbrio, nada de grandes reconstruções, os cenários são naturais. As personagens, familiares aos leitores dos Evangelhos, mostradas como camponeses, pescadores, gente de vida difícil.

Ainda em 1976 foi lançado nos EUA o filme “The Passover Plot”, baseado na obra de Hugh Schonf. A teoria desse autor é que Jesus e alguns discípulos conspiraram para que ele fosse removido da cruz (drogado e aparentemente morto) e mais tarde revivido para ser reconhecido primeiro como líder religioso, e depois como reformista político. Houve protesto. A discutida questão da imagem de Jesus no cinema veio a explodir quando o cineasta Franco Zeffireli apresentou em 1977 seu filme “Jesus de Nazaré”, drama histórico em duas partes para a rede da TV NBC. A imagem de Jesus como homem mostrado no filme foi combatida por vários grupos religiosos.

Em 1985 Jean Luc Godard atualiza a vida de Maria contando a história de uma jovem que engravida do filho de Deus mesmo virgem em “Je Vous Salue, Marie”. Em 1988 Martin Scorsese cria polêmica com “A Última Tentação de Cristo” por mostrar um Jesus que teria dúvidas quanto a sua fé e insinua um sentimento de atração sexual entre ele e Judas e também entre ele e Maria Madalena. O lado humano do religioso é mostrado em “Jesus de Montreal” (1989), de Denys Arcand, e em 2003, Moacyr Góes exibe “Mareia, Mãe do Filho de Deus”. Em 2004 a versão de Mel Gibson para as últimas horas de Cristo é exibido em meio à polêmica sobre seu suposto anti-semitismo, excesso de violência e mercantilização do ícone religioso. O filme em questão é “A Paixão de Cristo”.

E agora em 2006 a história da vida e morte de Jesus da Palestina do século 1 é transferido para um Estado africano dos tempos atuais mergulhado em guerra e na pobreza. Trata de “Sono of Man” retratando num Jesus negro, um revolucionário africano dos tempos modernos. O diretor Mark Dornford May disse na estréia de seu filme no Festival Sundace, nos EUA, que “a verdade é que Cristo nasceu em um Estado ocupado e defendeu a igualdade em um momento no qual isso não era muito aceitável”. A ressurreição de Cristo pretende ser um sinal de esperança para a África, o continente mais pobre do mundo.

29 maio 2006

Minha pátria é minha língua


No Brasil, houve um tempo em que uma língua se sobressaía entre as demais. Sua influência foi tão marcante que, mesmo quando a Europa pensava ter encontrado aqui uma Atlântida selvagem e Portugal acreditava serem essas suas terras, o tupi continuava firme e mais falada que a própria língua portuguesa.

Até os dias atuais, quando as comunidades indígenas lutam para não perder o que sobrou de suas identidades, o tupi continua sendo a base lingüística responsável pelas significativas mudanças entre a língua falada em terras lusitanas e brasileiras. Para se ter uma idéia do que isso significa, basta lembrar que na língua oficialmente falada no Brasil, existem dez mil vocabulários em tupi, sendo, segundo o professor da USP, Eduardo Navarro – a língua que mais designa nomes de localidades no país, depois do português. O especialista em letras clássicas pontua que existem cerca de 180 línguas de origem indígenas faladas no Brasil.

Dados levantados pelo engenheiro José Antônio Caldas, informou que a população indígena aldeada na Bahia, em meados do século XVIII, era de cerca de 12 mil, que mal seriam 6% da população residente no estado na época. Segundo a antropóloga e historiadora Maria Hilda Paraíso, todos os grupos indígenas da Bahia perderam suas línguas originais. “Exceto o tupi, o que se tem hoje das línguas das tribos jê (também conhecidos como tapuias) e kiriri são registros estáticos de um ou outro vocábulo, desprovido da gramática que dá o dinamismo da língua. Então é muito fácil chegar em determinadas comunidades indígenas hoje que utilizam algumas palavras recuperadas com a estrutura gramatical da língua portuguesa”, completa a especialista.

O estudo do tupi continua sendo uma exceção na academia e nas escolas brasileiras. Na UFBa, o tupi deixou de ser estudado como disciplina em 1993, com a aposentadoria da especialista no assunto, a tupinóloga baiana e discípulo de Frederico Edelweiss (maior especialista no assunto e fundador da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa) até a sua morte, a historiadora Consuelo Ponde de Senna.

De acordo com Consuelo Ponde, o tupi era falado em todo o litoral brasileiro e nas regiões Norte e Nordeste. “Chamada pelos portugueses de língua brasílica, o tupi – de acordo com a tribo – sofria algumas variantes dialetais, mas se mantinha como a língua mais falada no território nacional”, esclarece a especialista. A palavra tupi, na verdade, era a designação da própria nação que deu origem a vários troncos como os tupinambás, tupiniquim, tabajaras, tuxás, entre outros.

Para se fazer entender e conseguir desempenhar o papel de educadores, os jesuítas foram obrigados a aprender o tupi, falando e escrevendo a língua nativa. Dessa forma a língua brasílica cresceu nas terras da Santa Cruz, tornando-se mais falada que o próprio português. As disputas políticas entre o poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, e os jesuítas serviram de justificativa para que Pombal decretasse em 17 de agosto de 1758, a proibição do uso do tupi. A finalidade era enfraquecer o poder da Igreja Católica sobre a colônia. E espalhou-se na colônia uma regra comportamental que pregava que falar a língua gentílica era sinônimo de inferioridade. E a velha tendência de cultuar os costumes estrangeiros começava a fincar raízes.

Apesar das proibições de Pombal, o tupi continuou resistindo, principalmente no norte do país, onde a morosidade da colonização terminou por preservar a língua mãe do Brasil. E o tupi foi sendo paulatinamente esquecido até o final do século XIX quando um intelectual baiano, o estudioso Theodoro Sampaio trouxe o tupi de volta à visibilidade, através do Instituto Histórico de São Paulo. O personagem de Lima Barreto, Policarpo Quaresma, em plena ditadura republicana, sonhou restabelecer o tupi como língua nacional, e foi ironizado por Oswald de Andrade na sua afirmação modernista “tupy or not tupy, that is the question!”. Gonçalves Dias quis recuperar com suas obras como I Juca Pirama (que significa o que vai ser morto), assim como José de Alencar que, ao escrever Ubirajara, Iracema entre outros livros, buscava encontrar o rosto do Brasil.

Para a diretora do Instituto de Letras da UFBa, Evelina Hoisel, o “ensino do tupi nas escolas da universidade facilitaria a compreensão da formação histórica do país. O que não podemos imaginar é que a partir desse projeto, o tupi volte a ser uma língua falada”. Mais de duzentos anos depois da agressiva política de Pombal, o Brasil deixou de ser um país bilíngüe: o tupi é falado por não mais do que 30 mil índios – 10% da população indígena do Brasil, calculada em cerca de 300 mil pessoas.

Há milhares de expressões, como ficar de nhenhenhen (quer dizer falando sem parar), chorar as pitangas (pitanga é vermelho em tupi, ou seja, chorar lágrimas de sangue), cair um toró (toró é jorro d´água em tupi), ir para a cucuia (entrar em decadência). Grande parte dos verbos é tupi: socar (bater com a mão fechada), petec (bater com a mão aberta, daí vem peteca, espetar é cutuc (daí cutucar). O significado de grande parte de nomes de lugares só se sabe com o tupi: Itapoan, Itaparica, Itacaré, Guaratinga, Pindobaçu e Itajuípe. Na nossa fauna e flora, o tupi aparece massivamente: tatu, tamanduá, jacaré.

26 maio 2006

Música e poesia

Tocando em Frente (Renato Teixeira/Almir Satter)

Ando devagar porque já tive pressa
E levo o seu sorriso
Porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte
Mais feliz quem sabe eu só levo a certeza
De que muito pouco eu sei
Nada sei
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maças
É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz para poder seguir
É preciso chuva para poder florir
Sinto que seguir a vida seja simplesmente
Conhecer a marcha, ir tocando em frente.
Por um velho boiadeiro levando a boiada,
Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou,
Estrada eu sou.
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maças
É preciso amor para poder pulsar
É preciso paz para poder seguir
É preciso chuva para florir
Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora, um dia a gente chega.
E no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua própria historia
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz...
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maças.
É preciso amor para poder pulsar
É preciso paz para poder seguir
É preciso chuva para florir
Sinto que seguir a vida seja simplesmente
Conhecer a marcha ir tocando em frente.
Cada um de nós compõe a sua própria historia
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Todo risco, de Damário da Cruz

A possibilidade
de arriscar
é que nos faz homens.

Vôo perfeito
no espaço que criamos.

Ninguém decide
sobre os passos que evitamos.

Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos.

Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.

25 maio 2006

Zé Trindade


Humorista e poeta. Milton da Silva Bittencourt nasceu em Salvador no dia 18 de abril de 1915. Sua infância não foi das melhores. O pai, um boêmio deserdado por abastada família porque casara com uma moça pobre de apenas 13 anos, morreu cedo, vítima de tuberculose. Sozinha, Esther, quase uma menina, passou grandes dificuldades para sustentar o filho. Nessa época o garoto Milton passou fome em Salvador. Foi quando arranjou emprego no melhor hotel da cidade. Começou a trabalhar aos 11 anos de idade como office-boy e ascensorista de um hotel em Salvador. Com 13 anos, já frequentava cabarés e tinha amantes. No hotel, contando piadas, fazendo trovas num grupo em que pontificavam Dorival Caymmi e Jorge Amado, o baiano Milton da Silva Bittencourt acabou ganhando um programa de rádio e tendo de trocar de nome para não chocar os conservadores da família com seu humor. Conseguiu que Antônio Maltez (parceiro de Dorival Caymmi), musicasse um de seus poemas e passou a frequentar a Rádio Sociedade da Bahia. Convidado para dirigir o programa Teatro pelos Ares (cópia do apresentado pela Rádio Mayrink Veiga), acabou substituindo um ator cômico e adotando o nome artístico de Zé Trindade, para não constranger a família. Ídolo popular na Bahia, ele decidiu migrar para o Sul em 1945 e o sucesso nacional não tardou.

No Rio de Janeiro atuou nas rádios Clube do Brasil, Mayrink Veiga e Nacional. Durante quinze anos seguidos, a Rádio Mayrink Veiga, celeiro dos grandes nomes do humorismo brasileiro, concedeu-lhe o prêmio de Melhor Cômico. No rádio ele criou bordões como “Com licença da má palavra”, “É lamentável”, “O negócio é experimentar” que eram repetidos nas ruas. Ele inventava expressões que logo passava a fazer parte do vocabulário nacional. Uma delas virou título de um de seus filmes: Mulheres, Cheguei. Ele viveu a fase áurea da Rádio Mayrink Veiga nos programas humorísticos Vai de Valsa, A Cidade se Diverte, Este Norte é de Morte e Alegria de Rua, entre outros, programas com ‘scripts’ de Chico Anísio, Haroldo de Andrade e Antônio Maria. Nos anos 80 ele continuava a gravar quadros para o programa A Impecável Maré Mansa, com que a Rádio Tupi carioca atendia a sua assídua platéia de nordestinos. O comediante Zé Trindade ficou famoso com o bordão “Meu negócio é mulher”, que sempre dizia em tom enfático, porque, segundo Chico Anisio, “era sempre o irresistível e pegava as mulheres boas”. Ele criou o homem mulherengo e paquerador, a imagem profissional de bom malandro que a cada filme ia ganhando beijos das mais lindas mulheres do elenco.

Para Chico Anísio, Zé Trindade “não foi feliz na tevê, porque tinha horror à decorar textos”, enquanto nas rádios e cinema possuía outros recursos para dizer ‘scripts’, como ler e dublar. Ele também fez parte do elenco de Aperte o Cinto, humorístico da Rede Manchete . Com as dificuldades do cotidiano da televisão, Zé Trindade transformou-se também em comerciante. Ele tinha um restaurante de comidas típicas de sua terra, que mantinha em Ipanema. Fechou e abriu uma indústria de produtos alimentícios: a farinha de mandioca Bastante Boa e Baianinha Boa era vendida com exclusividade para a Casa Bahia.

Em 1948, estreou no cinema fazendo uma ponta no filme O Malandro e a Grã-fina, dirigido por Luís de Barros. O sucesso do tipo baixinho, gordo e de bigode fino foi tão grande que ele acabou atuando em outros filmes, como Mulheres, Cheguei; Prá lá de Boa; Garotas e Samba; Mulheres à Vista; Maluco por Mulher; Massagista de Madame; Batedor de Carteiras; e Marido de Mulher Boa. Entre seus últimos filmes estão Tem Folga na Direção e Um Trem para as Estrelas, de Cacá Diegues. Aproveitando o êxito, Zé Trindade também gravou 25 discos, sempre de músicas nordestinas e a maioria composições suas. Quando lançou o disco, pela CBS, É um Estouro, em 1963, recebeu o cobiçado troféu Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, do Ministério de Educação e Cultura, como melhor intérprete de música regional em disco.
Em 1965 lançou o livro de poesias O Poeta Zé Trindade, apresentação de Jorge Amado com ilustrações de Carybé pela Editora Ozon, do Rio. O livro foi um grande fracasso nas vendas, não obtendo nenhum lucro. Escreveu ainda o livro de trovas e pensamentos, Fonte Iluminada. O outro, de poemas e sonetos, Versos sem Retoque, e o terceiro, de memórias, Lágrimas e Glórias de um Cômico - A Vida de Zé Trindade Contada por Ele Mesmo, não chegaram a ser editados. “São 50 anos de profissão e 70 de vida. Mas confesso, sou cômico frustrado. Nasci poeta e gostaria de ser famoso à custa dos meus versos. Mas no Brasil só Castro Alves é quem vende poesia”, revelou o artista. Zé Trindade é também nome de rua, em Iguaba Grande, na Região dos Lagos, Rio de Janeiro, onde morou há muitos anos com a família. Em 1972, Zé Trindade resolveu dar um tempo na carreira. Tirou férias e viajou com a mulher para Portugal, levou a filha para casar em Lisboa e aproveitou para visitar 20 países.

Ele fez sucesso nos anos 50 e 60, quando interpretou tipos cômicos e mulherengos em 35 filmes, na maioria produzidos pela Atlântida e pela Herbert Richers. No cinema, sete entre dez chanchadas produzidas por Herbert Richers ou pela Atlântida levavam seu nome no elenco. Na televisão, integrou os elencos da Tupi e da Globo, participando durante oito anos do programa Balança mas Não Cai. Em 1986, participou da série Memórias de um Gigolô, também da TV Globo. Ele faleceu no Rio de Janeiro no dia 03 maio de 1990, aos 75 anos, vítima de câncer nos pulmões. Foi enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, Rio de Janeiro. O humorista Chico Anísio lembrou que Zé Trindade foi “o único comediante que conseguiu nos anos 50 e 60, competir com Brandão Filho nos programas de rádio e o único que conseguiu competir e até vencer Oscarito no cinema”.

24 maio 2006

Sangue, a força vital da vida


Todas as células do nosso organismo têm necessidade, para manter-se em vida e desempenhar as suas funções, de receber oxigênio e materiais nutritivos. A tarefa de transportar a elas esses elementos cabe ao sangue, o qual, por sua vez, recebe das células as substâncias de rejeição. Para realizar esse refornecimento, o sangue tem necessidade de circular continuamente: os canais dentro dos quais o sangue circula são os vasos sanguíneos, enquanto o coração é a bomba que dá ao sangue o seu impulso para circulação. Coração e vasos constituem, no seu conjunto, o aparelho circulatório.

“Tum, tum, tum, bate coração...”. O coração bate mais rápido, porque ele é que faz o sangue circular. Mas o que é sangue? É um tecido. No corpo de um adulto circulam, em média, cinco litros de sangue, variando de acordo com o peso. O sangue é formado por uma parte líquida (plasma), constituída por água, sais, vitaminas e fatores de coagulação, na qual estão misturados as partes sólidas; hemácias, leucócitos e plaquetas. Os globos vermelhos, brancos e plaquetas são como as peças de um carro. Cada um tem uma função definida. Os glóbulos vermelhos levam oxigênio. Os brancos combatem infecções, ou seja, vírus e bactérias que atacam o corpo. E as plaquetas ficam responsáveis por parar os sangramentos, como quando alguém faz um corte na mão, ou seja, ajuda na coagulação do sangue.

O Brasil necessita diariamente de 5.500 bolsas de sangue. O ato de doar sangue representa a única forma de muitas pessoas continuarem vivendo, pois ainda não existe substituto para o sangue. É essencial que as pessoas saudáveis façam da doação de sangue um ato voluntário e contínuo. Doamos sangue porque alguém dele precisa. Pela facilidade e segurança com a qual pode ser retirado, associado ao enorme benefício para quem dele necessita, doar sangue é considerado um gesto simples de pessoas dispostas a ajudar o próximo, contribuir para a cura de enfermos. Quando doado para aquele que não conhecemos pode ser considerado um ato de profundo humanismo e respeito ao próximo.

O doador de sangue deverá ser voluntário, estar com boa saúde, alimentado, descansado. Deverá ser de maior (por questões legais) e acima de 50 kg. Deverá ser respeitado um intervalo desde a última doação de três meses para a mulher e dois meses para o homem. Pacientes de grupos de risco, que tiveram hepatite, malária ou portadores de Doenças de Chagas são considerados inaptos definitivamente a doação. Toda ênfase é na proteção ao paciente. O ato de doar é simples e dura menos de dez minutos. Todo material utilizado é descartável e não poderia ser hoje de outra forma: bolsas plásticas estéreis em sistema fechado e inviolável até o momento do uso.

Para a religião africana tudo o que a natureza produz é sangue, é o Axé. Utiliza-se vários tipos de sangue para formar o Axé, visando ampliar, acumular e distribuir o mesmo, que é essencial para existência humana. Divide-se em três categorias que são: vermelho, o preto e o branco. Sangue vermelho é encontrado no fluxo menstrual, no sangue humano e animal. No reino vegetal, o azeite-de-dendê e o mel extraído das flores são os melhores exemplos. Já no reino mineral encontra-se presente nos metais como cobre e o bronze. Este sangue está relacionado ao fogo, movimento, coisas quentes, razão pela qual os orixás que exigem uma quantidade maior desses elementos dominam exatamente esses aspectos da natureza, como Exu, Xangô e Iansã.

O sangue preto no reino mineral é encontrado no carvão e no ferro. A cor verde e azul são variações da cor preta, por isso suas fontes são encontradas nas folhas e cascas de árvores. No reino animal, o sangue preto é encontrado principalmente nas cinzas dos animais. A associação do preto é com a terra e esta força da natureza responde entre outros os orixás Ogum, Oxossi, Ossain e Obaluaê.

O sangue branco é encontrado no sêmen, saliva, hálito, secreções e no plasma. Isto no reino animal, como o caracol por exemplo. No lado vegetal o sumo das plantas leitosas e bebidas alcoólicas extraídas de palmeiras e outros vegetais. Na parte mineral há a prata, chumbo e o sal, sem esquecer que nessa cor tem a água e o ar.

O sangue é de importância vital por estar ligada a fertilidade, concepção, ao nascimento, enfim todos os ciclos da vida. Ninguém vive sem sangue, e sem ele não há vida. Segundo a Umbanda, existem cinco tipos de sangue na natureza. O sangue verde (o sumo das folhas), sangue amarelo (o sal, o néctar das frutas e a seiva das árvores – dos troncos), sangue branco (a água), sangue negro (o petróleo, o magma) e o vermelho (dos animais). Assim, o nosso planeta não pode viver sem sangue.

23 maio 2006

Sabores apimentados e aromas exóticos



Até a Idade Média, condicionamentos raros vindos do Oriente tinham grande importância comercial. Pimenta, cravo, canela, gengibre e noz moscada caíram nas graças dos glutões medievais, que pagaram caro para sentir seus sabores apimentados e aromas exóticos. Vendidas por comerciantes italianos (que compravam de mercadores árabes), as especiarias eram sinônimos de riqueza, luxo e sofisticação, sendo imprescindíveis que qualquer mesa aristocrática.

No Brasil, elas começaram a ser introduzidas em meados do século XVII, a mando de D.Pedro II. Mudas de canela, cravo, noz moscada, pimenta e gengibre foram trazidas da Índia juntamente com alguns agricultores experientes. Hoje, as especiarias fazem parte da cultura e da culinária brasileiras, assim como os coqueiros e bananais (plantas antes “alienígenas” às Américas) foram totalmente incorporadas à paisagem do Brasil. Salvador, por exemplo, é conhecida inicialmente pela sua comida apimentada, enquanto Ilhéus é a terra da Gabriela, “cheiro de cravo e cor de canela”. Dos mais comuns, como a pimenta-do-reino, o cominho e orégano, aos menos conhecidos, como o açafrão e a páprica, estes produtos dão às comidas dos baianos um sabor especial.

Primeiros habitantes destas terras, os índios, com o conhecimento que tinham do meio ambiente, foram fundamentais para os colonos que aqui chegaram em meados do século XVI. A influência indígena foi definitiva para a sobrevivência dos portugueses, recém-chegados ao Novo Mundo. Foi vital para o colono aprender com o nativo que erva se podia comer (mandioca era o principal alimento), quais seriam as curativas, enfim, como se relacionar com aquela região, seu clima e seus animais.

Pela necessidade de adaptação, foi na culinária índia que os portugueses encontraram a forma de estabelecer e aprofundar contatos, apesar da precariedade do receituário. E foi a mandioca, o principal alimento dos índios brasileiros, que facilitou as coisas. Dela, saltaram para outras plantas e frutas e para a caça. E a mandioca foi devorada na forma de farinha, de tapioca, de beiju, de cauim (uma forma de bebida alcoólica preparada pelos índios, misturando-os com carnes, frutas e outros vegetais); das frutas, a preferida inicialmente, foi o caju. Mas a mandioca, na forma de pirão, mingau e paçoca, passaria a substituir o trigo europeu, embora com certa resistência inicial.

A tradição conservou outra prática culinária dos índios brasileiros que os portugueses logo foram forçados a experimentar e adotar. Até hoje, é comum verem-se nas cozinhas das casas de muitas regiões do interior, mantas de carne penduradas sobre o fogão, como a secar pela conjunção de calor e fumaça.É o velho moquém dos indígenas.

Mesmo aceitando influências para adaptar-se, os portugueses introduziram outro elemento importante na culinária das novas terras – o sal, tempero que não entrava no preparo dos alimentos tanto dos índios como dos africanos escravos. A carne salgada, como modo de preservá-la, logo alcançou importância e expressão econômica.

Espoliados e explorados em seus direitos, até hoje os índios lutam, pagando muitas vezes com a vida pela demarcação de um espaço que lhes permita viver dignamente, em harmonia com a natureza, como sempre fizeram. Se antes eles eram cinco milhões, hoje restam menos de 300 mil sobreviventes, depois de cinco séculos de contato com os “civilizados”.

Arrancados de sua pátria e vendidos como escravos no Novo Mundo, os africanos escreveram com sangue uma saga de resistência que prossegue com seus descendentes. Das senzalas mostrou a primeira manifestação de cultura autóctone – a dança, com a ginga e o canto dos negros, ao som de instrumentos de percussão, como forma de resistir ao cativeiro. Nas senzalas, plantações ou cozinhas, com palmas, vozes, cabaças, instrumentos musicais ou ferramentas de trabalho, o que importava era fazer música e movimentar o corpo, pois, assim, a vida se tornava melhor. Essa música e dança, feita ao modo africano, era o lazer, o consolo e, principalmente, o momento do encontro.

A força cultural da cidade de Salvador vem dessa população negra da rua, livre e escrava, em que se consumem as línguas, as manifestações religiosas, a culinária e as roupas. Os negros trouxeram gosto por novos temperos e habilidade de improvisar receitas, misturando ingredientes europeus e indígenas.

A Bahia hoje desponta como um dos principais pólos de produtores de especiarias, 365 anos depois destes produtos terem sido introduzidos no país. A região sul do estado é o primeiro produtor nacional de cravo-da-Índia, o segundo de pimenta-do-reino e produz, ainda, em menor escala, canela,noz moscada, pimenta-da-jamaica e cardamono.

22 maio 2006

Uma cidade feminina


A Bahia encanta pela sua topografia, arquitetura, clima ou paisagem. Frutos da arquitetura e do urbanismo barroco, Salvador foi se desenvolvendo em todos os sentidos e direções, o gosto e o hábito das coisas do mar. Como disse o historiador Wanderley Pinho (prefeito de Salvador de 1947 a 1951), “formação da alma marítima do cidadão da Bahia e seu Recôncavo”. No livro “Glauber Rocha, esse Vulcão” (Nova Fronteira, 1977), João Carlos Teixeira Gomes escreveu: “O baiano é um povo barroco por excelência, até na excessiva opulência hedonística do seu carnaval. Em certo sentido, nada pode existir de mais barroco do que um trio elétrico com a sua parafernália visual eletrônica, composta de cores berrantes, parâmetros de reprodução musical levados ao infinito da tecnologia do som, e, ainda, palco dos remelexos de mulatas (e louras) de formas redondas, que espalharam no país a glorificação dos traseiros em rotação”.

Mesmo tendo a grafia masculina, Salvador (que tem como símbolo popular o Elevador Lacerda que parece um falo) aparece no imaginário popular completamente feminina. Essa feminilidade soteropolitana foi inspirada na reprodução da tradição moderna ocidental. A França, por exemplo, foi o primeiro país a transformar a figura de uma mulher em símbolo do país (que também tem na torre Eiffel um símbolo nacional, falo de 300 metros de altura). Na Bahia, a idéia começou a ganhar espaço a partir do século XIX, quando as pressões sociais da época, exigiram que se criasse uma cabocla para desfilar ao lado do caboclo, no Dois de Julho, data da Independência da Bahia. A informação é do antropólogo Roberto Albergaria que acrescenta que foi ainda no final desse século que a branquitude da mulher estrangeira começou a perder o valor diante da exuberância da mulata.

E finalmente no século XX, a baiana sensual, inspirada em Carmem Miranda vinda do Rio de Janeiro, chega forte à Bahia. E ninguém melhor do que a morena, tropical, criada por Jorge Amado e difundida em todo mundo para fortalecer a cara da Bahia/mulher, Gabriela, Cravo e Canela. É bom lembrar que nos seus primórdios, Salvador foi abençoada por seis mulheres. A começar por Catarina Paraguaçu, mulher de Diogo Álvares (o Caramuru) e considerada a mãe do Brasil. O casal construiu uma capela em sua sesmaria louvando Nossa Senhora da Graça. Em seguida, com a chegada de Thomé de Souza mais quatro mulheres protegeram a cidade. Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora da Ajuda, nomes dados às duas primeiras igrejas da cidade. Depois, Santa Luzia e Santa Catarina nominando as portas da fortaleza de São Salvador.

“Roma negra”, já disseram dela. “Mãe das cidades do Brasil”, portuguesa e africana, cheia de história, lendária, material, e valiosa. Nela se objetiva, como na lenda de Iemanjá, a deusa negra dos mares, o complexo de Édipo. Os baianos a amam como mãe e amante, numa ternura entre filial e sensual. A cidade se divide em duas: a cidade baixa e a alta, entre o mar e o morro. Suas curvas e ladeiras, contornos arredondados, vales e morros lembram o corpo de uma mulher. Sua topografia acidentada remete as mentes mais imaginativas aos seios femininos, quadris, cintura. Assim é Salvador aos olhos dos turistas. A sensualidade de suas belezas naturais, o mistério de suas construções seculares, a magia de seu suingue, presente na dança, na música e no molejo do andar e falar dos soteropolitanos tornam a terra especial, despertando as mais diversas fantasias e lembranças.

Muitos lembram que os grandes vultos da cidade foram mulheres. Maria Quitéria, Anfrígia Santiago, Irmã Dulce, Mãe Senhora, Mãe Menininha, Henriqueta Catarino, Joan a Angélica, dentre outros. Essa feminilidade de Salvador é marcada pelo requebro da baiana, com sua elegância de andar, ao subir e descer ladeiras de pedras.

Com suas formas curvilíneas repleta de contornos, enseadas, ladeiras, curvas sensuais, Salvador ganhou a roupagem da terra feminina, de mulheres bonitas e atraentes, regida pelas divindades femininas mais fortes do candomblé, Oxum e Iemanjá. “Nessa cidade todo mundo é de Oxum, homem, menino, menina, mulher...”, diria o cantor Gerônimo. E o atual ministro da Cultura Gilberto Gil escreveu que “toda menina baiana tem um santo que Deus dá. Toda menina baiana tem encanto que Deus dá. Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá”. A regência de orixás como Oxum e Iemanjá é uma característica que fortalece bastante Salvador como cidade feminina. Elas são lembradas com muita fé. A festa de Iemanjá é um dos maiores ritos do mundo. A forte presença das mulheres negras em Salvador, as famosas mulheres do partido-alto que conseguiram muito progresso, também intensificou a idéia de Salvador terra das mulheres. Elas foram e são símbolos de força, mulheres do povo. A maior autoridade religiosa na Bahia foi mãe Menininha do Gantois. Toda essa história da cidade feminina tem muito das origens e cultura da terra.

19 maio 2006

Música e Poesia

O Vento e o Tempo
(Almir Sater / Paulo Simões)

Por mais que tente
Não entendo
Todo mundo enlouquecendo
Quem é que está com a razão

E tanta gente ainda lendo
Velho e novo testamento
Sem compreender a lição

Verdade é voz que vem de dentro
E mata a sede dos sedentos
O pior entre os meus sentimentos
De mim foi levado enfim pelo tempo

Mais um milênio vem nascendo
De repente se perdendo
A melhor das ocasiões
É só questão de investimento
Em vez de armas
Alimento
Deixar viver, dar o pão

Nesse universo tão imenso
O meu caminho eu mesmo penso
E se um dia restar meu silêncio
É que as minhas canções
Se perderam no vento

Motivo, de Cecília Meireles


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

18 maio 2006

Manuel Querino


Escritor, jornalista, historiador e artista plástico. Manuel Raimundo Querino nasceu na cidade de Santo Amaro da Purificação em 28 de julho de 1851. Quando ele tinha quatro anos de idade seus pais faleceram, vitimas de uma epidemia de cólera. Amigos de seus pais o trouxeram para Salvador. Mais tarde o Juizado de Órfãos nomeou como seu tutor o bacharel Manuel Correia Garcia. De tenra idade então, pode o professor Garcia ensinar o pequeno órfão, que veio a ser um dos homens de reputação firmada na Bahia, como artista, professor, folclorista, e rebuscador incansável do passado de nossa terra. Homem de cor, impôs-se pela seriedade com que desempenhou cargos públicos, difundiu cultura através do ensino e do que escreveu, deixando apreciável bagagem literária.

Aos 17 anos foi para Pernambuco, seguindo para o Piauí, onde foi recrutado para o serviço militar e daí para a Guerra do Paraguai como Voluntário da Pátria. Serviu à pátria, incorporando-se a um contingente que daqui partiu para o campo de batalhas travadas no Paraguai. Chegando ao Rio de Janeiro e reconhecidas as suas habilitações, ficou empregado na escrita do quartel do batalhão a que fora mandado engajar. Em 1870 foi promovido a cabo de esquadra e, meses depois, teve baixa do serviço militar. Tinha tão pouca idade e era tão franzino que não permaneceu lá, por magnanimidade de Dom Pedro II.

De volta à Bahia, em 1871, começou a exercer de novo a profissão de pintor e decorador, iniciando os estudos de francês e português no Colégio 25 de Março. Fora um dos fundadores do Liceu de Artes e Ofícios. Instalada a Escola de Belas Artes, inscreveu-se no curso de desenhista com o professor Miguel Cañyzares, recebendo o diploma em 1882. Nesse mesmo ano foi nomeado membro do juri da exposição da mesma escola. Em seguida, matriculou-se no curso de arquiteto. Estudou arquitetura, aritmética, álgebra, geometria, desenho industrial e geometria descritiva. Frequentou aulas de anatomia, estética, história das artes e pintura a óleo. Foi premiado com a menção honrosa e duas medalhas de prata pela Escola de Belas Artes. No Liceu de Artes e Ofício recebeu medalhas de bronze, prata e ouro. Em 1885, a diretoria do Liceu de Artes e Ofícios distingue-o com a nomeação de lente de desenho geométrico e depois concedeu-lhe o diploma de sócio benemérito em reconhecimento pelos serviços prestados à instituição. Lecionou desenho industrial no Liceu, Colégio dos Órfãos de São Joaquim, pintou Pano de Boca para teatros, trabalhou auxiliando o professor Manuel Lopes Rodrigues, na Igreja de Nossa Senhora da Graça. Realizou pinturas no Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

Quando o movimento abolicionista se espalhou por todo o país, Manuel Querino declarou-se francamente partidário da libertação imediata e incondicional. Integrou o Partido Liberal na Bahia. Foi um dos integrantes da Sociedade Libertadora Baiana. Com o advento do novo regime político, fundou a Liga Operária Baiana e os jornais A Província e O Trabalho. Em ambos defendeu os direitos da classe operária. A Província circulou de 1887 a 1888, quando estava no auge a campanha abolicionista. Desenvolveu, então, o máximo de seus esforços em favor dos escravos, ao lado do Dr. Frederico Marinho de Araújo, Eduardo Carigé, entre outros. Querino foi líder operário em defesa dos artifices frente aos empreiteiros. Isso lhe valeu a nomeação de membro do Conselho Municipal, em 1891. Além de jornalista e dono de dois jornais, ele foi vereador e estudioso da cultura afro-brasileira.

Sócio-fundador do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, começou a se interessar pelo estudo das nossas antiguidades históricas e da tradição popular, inserindo, na revista do Instituto, valiosos trabalhos de pesquisa histórica e folclórica. Em maio de 1928 um retrato seu foi colocado no Instituto Geográfico. Ele publicou livros sobre a religião afro-brasileira e outros temas ligados a presença do negro no Brasil. Foi um dos primeiros historiadores a publicar um trabalho importante até hoje utilizado por pesquisadores e estudiosos das artes do Brasil. Entre suas obras constam: Costumes Africanos no Brasil (1938), A Bahia de Out’rora - fonte indispensável para os estudiosos dos nossos costumes e de episódios históricos correlatos (1916), Republicando Desenho Linear das Classes Elementares (1903), Elementos de Desenho Geométrico, Artistas Baianos (1904), As Artes na Bahia (1909), Bailes Pastoris (1914), Arte Culinária na Bahia (obra póstuma), entre outros. O que mais concorreu para perpetuar seu nome, sem dúvida, foi a contribuição que nos legou como pesquisador do nosso passado.

Entre seus ensaios publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico, destacam-se Os Artistas Baianos (1906), Contribuição para a História das Artes na Bahia (1908), Teatros da Bahia (1909), Contribuição para a História das Artes na Bahia - Os Quadros da Catedral (1911), Episódio da Independência (1913), A Litografia e a Gravura (1914), Primórdios da Independência (1916), Candomblé do Caboclo (1919), O Dois de Julho e a sua comemoração na Bahia (1923), entre outros. Ele exerceu cargos públicos, na diretoria de obras públicas, e, depois na Secretaria da Agricultura. Depois de uma existência de trabalhos importantes, aposentou-se, em 1916, no cargo de terceiro oficial da Secretaria da Agricultura.

Manuel Querino é um exemplo de superação e persistência, que veio da orfandade e venceu por seu talento e esforço. Um negro que não se abateu diante da vicissitude da vida e do preconceito. Ele faleceu no dia 14 de fevereiro de 1923. A cidade do Salvador o homenageou colocando o seu nome em rua do bairro de Pitangueiras. Foi um dos maiores estudiosos dos assuntos africanos entre nós. Pesquisou a raça negra no Brasil e na Bahia, estudando-a nos seus variados aspectos e esmiuçando e ressaltando a sua valiosa contribuição no processo de desenvolvimento cultural da nossa civilização. Sua pequena bibliografia é indispensável quando se trata da contribuição do negro à civilização brasileira.

17 maio 2006

O último tabu do cinema


Por causa dos conselhos de classificação e os apetites do público, os filmes tratavam o sexo como um detalhe do romance, deixando o sexo propriamente dito para os filmes classificados com x-rated (pornográfico) e para as salas especiais. Mas, à medida que a oferta de pornografia por meio da Internet e da televisão a cabo se torna mais rotineira, mais filmes estão querendo ficar para trás e apresentam sexo explícito. A hiperexposição e a explicitação das relações sexuais foram a tona dos filmes na década de 90. “O privado, a intimidade do corpo são os temas que restam num mundo cada vez mais globalizado”, disse uma cineasta francesa.

“Tenho a impressão de que o cinema dos anos 90 passou por uma espécie de ´crise da representação´ do sexo, justamente por conta do abrandamento das restrições quanto ao que podia ou não ser exibido na tela. A necessidade de um certo véu favorece a criação de um imaginário erótico riquíssimo, baseado no jogo de mostrar/esconder, que estimula a imaginação e pode ser excitante também. Os filmes dos anos 70 beneficiaram-se disto. Nos anos 90, a obsessão de ´tudo mostrar´ criou um impasse, pois evidenciou que algo da relação sexual escapa a qualquer representação, imagética ou não. A compulsão de tudo mostrar é que faz o desligamento do erotismo para a pornografia”, explicou a psicanalista Maria Rita Kehl.

“De Olhos Bem Fechados” (1999), último trabalho de Stanley Kubrick fala de sexo o tempo todo, sem mostrar uma única cena realmente erótica ao longo das 2h40 de duração do longa. “O sexo é o último tabu do cinema”, disse a diretora francesa Catherine Breillat. A diretora, escritora, roteirista e cineasta Catherine Breillat, conhecida por seu trabalho como ativista, estudiosa da condição da mulher e de sua inserção sócio-cultural no mundo masculino lançou em 1999, seu sexto filme “Romance”, história de uma mulher insatisfeita no casamento. “Acho que dava para filmar pessoas fazendo amor de uma maneira humana. Na época, a lei classificava como pornô toda representação explícita do amor físico. Para mim, a indústria pornográfica é a outra vertente da lei islâmica. Uma e outra se baseia na idéia de que nos órgãos sexuais, principalmente no da mulher, há algo obsceno”.

“O Tédio”, de Cédric Kahn (1998) usa a sexualidade para discutir um antigo impasse social: o excesso de consciência, por parte de um parceiro (o professor de filosofia), contra a natureza em estado bruto do outro, a gordinha Cacília, uma jovem de 17 anos. A natureza puramente sexual do encontro dos dois fica evidente nas cenas explícitas nas quais não há nenhuma troca de carícias. O franco-belga “Uma Ligação Pornográfica” (1999), dirigido por Frédéric Fonteyene, trata da relação entre um homem e uma mulher que colocam anúncios no jornal em busca de parceiros sexuais em uma relação definida por eles como pornográfica. A partir daí, o espectador acompanha seus vários encontros até à plena realização das fantasias. Da ligação pornográfica descobrem uma ligação afetiva. As cenas de sexo são deixadas a cargo da imaginação de quem vê, ou, em parte, substituídas por discursos sobre o erotismo e o amor. O filme recusa-se o sexo falseado para a câmera em favor do discurso verbal sobre o erotismo e o mor. O que está em jogo é uma nova ética do olhar.

Dirigido pelo coreano Jang Sun Woo, “Mentiras” (1999) fala de um escultor de 38 anos que se envolve com uma garota de 18. O sadomasoquismo é assumido como prática sexual preferida do casal. Eles vivem a obsessão pelo prazer do sexo livre e largam tudo – família, dinheiro, lugares. Sexo explícito pode ser encontrado em “Olhe para Mim” (1999), do italiano Davide Ferrario. Ele explora os limites entre o pornográfico, o erótico e o melodramático. O espanhol “Lucia e o Sexo” (2001), de Julio Medem é um filme sobre a vida. Encara os seres humanos como ilhas à deriva, sempre movidos a desejos, fantasias, ações e acasos, em busca de controle sobre suas trajetórias. O olhar para os desejos e seus efeitos, expostos sobre viés trágico e poético.

O diretor canandense Bertrand Bonelo assina “O Pornógrafo”, filme franco-canadense (2001) sobre o conflito entre pai e filho. Trata-se de um diretor de filmes pornográficos em crise de identidade. O primeiro filme em língua inglesa do francês Patrice Chéreau, “Intimidade” (2001), é a um só tempo terno e visceral, ao narrar a história de um casal de estranhos que se encontra semanalmente num apartamento para um relacionamento de poucas palavras e muitos orgasmos. O intenso relacionamento sexual entre um homem inglês e uma estudante americana é o que se vê em “Nove Canções” (2004), do cineasta britânico Michael Winterbottom. As cenas de sexo são intercaladas com eletrizantes shows de música aos quais o casal assistem. Em 2003 o diretor Vincent Gallo lança o filme norte-americano “Brown Bunny”, um road movie sobre um piloto de motos angustiado e solitário que percorre os EUA em uma van recordando um antigo amor. Esses são alguns filmes exibidos a partir da década de 90 que aborda a intrigante questão do sexo no cinema. Um estudo mais aprofundado sobre o tema será lançado dentro em breve. Há cinco anos venho pesquisado sobre Erotismo e Pornografia na música, cinema, poesia, literatura, quadrinhos, artes plásticas e fotografia.

16 maio 2006

Um sentimento antigo chamado ciúme


O ciúme já foi tema de uma série de obras-primas da cultura brasileira. Para o compositor Lupicínio Rodrigues, nem “pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração” estão isentas. O exemplo maior quando se fala em ciúme é Otelo. Levado para a ópera por Verdi e transportado para o cinema por Zeffirelli, o protagonista da tragédia de Shakespeare estrangula a inocente Desdêmona, instigado pelas insinuações maldosas de Iago, para depois enterrar um punhal no próprio peito e morrer beijando os lábios frios da esposa morta. Em sua obra “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust tratou com tamanha dimensão esse sentimento que assalta o interior de quem ama, ou se esforça para amar. O livro é um grande tratado de etiqueta amorosa a partir da distorção do comportamento do ciúme. No imaginário de Proust, para se ter uma relação plena é preciso preencher todos os estágios do tempo que a outra pessoa ocupou. O ciúme seria inevitável, porque sempre haveria áreas inalcançáveis. O ciúme foi sempre um grande tema para as artes e letras. Na literatura brasileira, temos um verdadeiro tratado do ciúme no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Sentimento tão antigo quanto a humanidade, o ciúme tem a curiosa propriedade de fazer as pessoas verem coisas que não existem. E, algumas vezes, de esconder o que está claro para todos. Embora não livre a cara de ninguém, o ciúme costuma contaminar principalmente quem ainda não passou dos 18 anos. É uma fase em que todas as emoções são muito intensas. O medo de perder o ser amado ou de ser rejeitado toma proporções fantasmagóricas. E entre os adolescentes, o maior número de ciumento está entre os que estão apenas paquerando, de rolo ou começando a namorar, ficar na linguagem deles. Para os psicólogos, o ciúme é mais provável nas relações instáveis mas, todos sentem ciúme. Na verdade o estranho é alguém não ter ciúme nenhum. O ciúme na medida certa ajuda a temperar o amor, mas o exagero torna difícil a convivência. Em psicanálise, há diversas formas de ciúme. Nos neuróticos o ciúme é motivado pela incerteza e, nos psicóticos, pela certeza.

Na primeira estrofe do D.Juan, de Molière, está escrito: “O amor começa pelo ciúme”. Quem pretende não ser ciumento, está mentindo ou não ama. O ciúme é um sentimento doloroso que afeta não somente o casal, mas também os angustiados e até as crianças. O ser humano sendo racional, está sujeito a reações emocionais que escapam ao seu controle consciente. O ciúme é um fator importante em toda relação afetiva, pois está diretamente ligado ao sentimento do amor e serve de equilíbrio no relacionamento entre duas pessoas.

A relação amorosa cria laços únicos, talvez os mais intensos que somos capazes de formar. Os sentimentos gerados pelo ciúme são tão primitivos que muitas vezes nos arrastam a atitudes completamente fora do nosso padrão de comportamento. Muitas vezes, ter ciúme é querer e, geralmente, é disposição para lutar pelo próprio amor. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?. Ter loucura por uma mulher. E depois encontrar esse amor, meu senhor. Nos braços de um outro qualquer”. Lupicínio Rodrigues não sabia o que trazia no peito: se era ciúme, despeito, amizade ou horror. “Eu só sei – diz ele – é que quando a vejo, me dá um desejo de morte ou de dor”.

Em outro momento da música popular brasileira, o compositor Chico Buarque revela em seu “Olhos nos Olhos”: “Quando você me deixou meu bem. Me disse pra eu ser feliz, e passar bem. Quis morrer de ciúmes. Quase enlouqueci. Mas depois como era de costume, obedeci. Quando você me quiser rever. Já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos....”. Já Alceu Valença diz que o ciúme é a véspera do fracasso, e o fracasso provoca o desamor no “Romance da Bela Inês”. Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta descrevem “A Maça” assim: “Quando eu te escolhi para morar junto de mim. Quis ser tua alma, ter seu corpo, tudo enfim. Mas compreendi que além de dois existem mais. Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade. Sofro mas eu vou te libertar...”. “Quando o ciúme passa, tempestade já levou tudo. E o amor já virou uma caça, que se esconde pra não morrer”. É assim que Carlinhos Vergueiro e Novelli descrevem o “Ciúme”, uma tempestade. Em ritmo de bolero, Ednardo canta “Lupiscínica”, de Petrúcio Maia e Augusto Fontes. Na letra, “hoje sinto ciúmes até da tua falta. Mas não vou mais matar ninguém por tua causa. Mata-me que eu já te matei”.

“Ciúme expressão dolorida, das mil incertezas da vida. Julgar que outro alguém se interpõe e que tudo acabou entre os dois”. O vozeirão empostado, sem disfarce, que tão bem marcou o curso de toda a sua longa carreira: Francisco Alves interpreta “Ciúme”, tango de Jacob Gade, versão de Osvaldo Santiago. “Eu quero levar uma vida moderninha. Deixar minha menininha sair sozinha. Não ser machista e não bancar o possessivo. Ser mais seguro e não ser tão impulsivo. Mas eu me mordo de ciúme”, dispara Roger Moreira, o líder do grupo Ultraje a Rigor, sucesso nos anos 80. Caetano Veloso, Rita Lee, Roberto Carlos, Zizi Possi e tantos outros já cantaram o ciúme na MPB.

O ciúme consegue desarticular o ego adulto e fortalecer os aspectos infantis que contém. Exatamente por isso é tão terrível: por sua capacidade de nos transformar em crianças assustadas, chorando pelos cantos, flagelando-nos destrutivamente, ameaçadas e sem controle. E o pior é que, ao sofrimento causado pelo ciúme, acrescentamos a vergonha e a culpa por sermos ciumentos. Melhor seria, em vez de castigarmos nossa vulnerabilidade, tratar de nós mesmos com a paciência e carinho que dispensamos aos amigos. Em vez de ficaremos horrorizados com nossos sentimentos, tentar entendê-los e aceitá-los.

15 maio 2006

Aprisionamento da mulher


A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.

O conhecimento científico sobre as diferenças humanas de gênero e raça, que começou a ser elaborado em meados do século XVIII e durante todo o século XIX, estabeleceu como verdade que a constituição física dos corpos seria uma espécie de base indelével que definia o destino ou a função dos indivíduos na sociedade

Como a ciência tem o poder de nominar as coisas, de dizer a verdade sobre elas, era um poder tão grande quanto o da religião. Para os termos do século XIX, isso significava estabelecer não só identidades, mas criar normas, fixar os objetos do conhecimento nos limites deste esquadro que é a norma. Quando os homens da ciência e da medicina enunciaram que a mulher era tão diferente do homem que nem pareciam pertencer à mesma espécie, isso teve um impacto na vida das mulheres. Naqueles tempos, como no nosso, as diferenças não convivem com a igualdade; portanto, as mulheres eram consideradas naturalmente indivíduos de segunda categoria, mais frágeis física e emocionalmente, mais suscetíveis aos ditames do corpo do que da razão. Tais idéias tinham uma força enorme, impedindo que as mulheres pudessem exercer direitos políticos, estudar, expressar livremente suas idéias, dizer não a pais ou maridos prepotentes, até mesmo praticar exercícios físicos como andar de bicicleta, por exemplo.

Ao estudar o corpo feminino e sua capacidade reprodutiva, a obstetrícia contribuiu para limitar a definição do feminino à maternidade, afirmando que qualquer desejo por algo além desta norma do corpo era um sinal de desvio, caminho para patologia. Não é coincidência que só no século XIX a representação da mãe devotada passasse a estar tão presente no imaginário, seja na religião, nas artes, na literatura ou na escrita médico-científica. Mas foi a ginecologia que contribuiu mais decisivamente para este aprisionamento da mulher ao corpo.

A grande questão da ginecologia não era a capacidade reprodutiva, mas entender o que era a mulher. Questão ideológica. Os médicos voltaram-se para o interior do corpo feminino, mais especificamente para o baixo ventre, procurando nos órgãos sexuais as respostas para a distinção feminina. Útero e ovários passaram a ser uma metonímia da mulher: ou elas se enquadravam na norma da maternidade ou criam no terreno pantanoso onde proliferam as patologias de etiologia sexual.

Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

O controle social continua a ser a principal semelhança entre a mulher – corpo do século XIX e a mulher corpo de hoje. As do passado estavam presas a vertas “verdades” sobre seus corpos, como a fragilidade e o perigo para a sua saúde física, e, principalmente, mental caso ousassem romper com estas verdades. Hoje o controle sobre as mulheres está embalado no pacote da saúde, da beleza, da juventude, do dinamismo, enfim, do bem-estar fotogênico que consumimos todos os dias.

A indústria da beleza, com toda a sua diversidade, também afeta os homens, mas as mulheres estão na sua origem e continuam a ser o alvo privilegiado. Hoje, não basta ser uma boa profissional, ser competente no que faz, ter seu espaço e ser respeitada pelo que é. Se você não for tudo isso e mais uma milhão de outras coisas relacionadas ao que você aparenta, então não será percebida e, na nossa cultura visual, isso pode ser um problema, uma fonte de frustração e de amargura. Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona.

12 maio 2006

Música e Poesia

Sobradinho (Sá e Guarabira)


O homem chega e já desfaz a natureza
Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá prá cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-Sé
Adeus pilão arcado vem o rio te engolir
Debaixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o Gaiola vai sumir
Vai ter barragem no salto do Sobradinho
E o povo vai se embora com medo de se afogar
O sertão vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia




Mãos dadas (Carlos Drummond de Andrade)


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


11 maio 2006

Denise Tavares


Bibliotecária, professora. Denise Fernandes Tavares nasceu a 04 de maio de 1925 na cidade de Nazaré, Bahia. Fez os seus primeiros estudos na sua cidade natal, onde cedo viu surgiu a sua vocação para lidar com crianças, diplomando-se em professora primária em 1943. Este foi o primeiro passo para ingressar na vida pública. Em 1944 veio para Salvador, onde foi nomeada por concurso para regente de classe na Escola Marquês de Abrantes. Em 1958, diplomou-se em Bibliotecária Documentalista pela Escola de Biblioteconomia e Documentação da Universidade da Bahia. Jovem, estudante de vida, era uma idealista. O seu ideal ela o viu concretizado.

Entre as suas principais realizações está a organização e fundação da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato (BIML), fundada a 18 de abril de 1950, em homenagem ao escritor. O idealismo de Denise Tavares se concretizava e o seu sonho se tornava realidade, atrair o interesse das crianças para os bons livros. Respeitada pelo idealismo e pelos bons frutos que produziu, tornando-se modelo para outros centros. Realizou um trabalho dos mais importantes de biblioteconomia no Norte e Nordeste, com repercussão nacional e internacional. Ela criou uma rede de bibliotecas infantis e buscava aprimorar cada vez mais o seu trabalho, acompanhando a evolução do mundo contemporâneo, conhecendo novas técnicas de organização e atendimento aos seus jovens leitores. Quando Monteiro Lobato morreu, em 1948, o sentimento de saudade exacerbou mais a sua admiração pelo escritor. Ao desejar homenageá-lo, pensou em uma “casa de livros” aberta para todas as crianças baianas. Começa, então, a sua luta, a grande missão nos idos de 1949 a 50 da criação da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato. Esse período da vida cultural baiana não permitia o desenvolvimento de idéias, ações e iniciativas inovadoras. Idealistas eram vistos com pessimismo, descrédito. Especialmente às mulheres, não se permitia gestos ousados, corajosos.

A instituição biblioteca não era compreendida no nível de importância igual à escola. Mas em 1949 Denise participou de um curso patrocinado pela Secretaria da Educação com Anísio Teixeira, através do convênio com a Escola de Biblioteconomia. Planejado para preparar professores primários que atuariam como “encarregados de bibliotecas escolares”, o curso foi um sucesso. Conscientizada e reunindo mais argumento para o seu desempenho e luta, visita São Paulo com objetivo de conhecer a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato daquela cidade. De volta a Salvador, Denise continua procurando apoio e recursos para a sua biblioteca. Sem esmorecer à falta de disponibilidades financeiras, alegada por quase todos, mesmo reconhecendo a idéia maravilhosa, não se dispunham a patrociná-la. Num dos seus devaneios, ela teve uma idéia inusitada: enviou a todas as escolas públicas do estado um pedido de contribuição às crianças, para a biblioteca. Um dia, as respostas vieram. Foram centenas de listas de crianças com doações de 1 tostão que emocionaram Denise. O vereador Álvaro Franca da Rocha conseguiu convencer o prefeito Wanderley Pinho a doar o chalé, no jardim de Nazaré para a instalação da biblioteca.

Até 1953 a BIML somente funcionou com a Seção de Leitura, porém, com a ajuda do governo foi sofrendo reformas, ampliando, o aumento da frequência exigia maior espaço. As atividades que ali desenvolveu tornaram a casa pequena. Crescia o número de crianças que frequentava a biblioteca e urgia um prédio maior e em condições mais adequadas à finalidade do estabelecimento. A luta continuava, Denise estava sempre desejando o melhor para as crianças e os jovens baianos e, graças a sua força de vontade, e o seu amor, dedicação e espírito de luta, em 1967 ela conseguiu inaugurar uma sede ampla dentro dos moldes desejados. Lutou muito para consegui-lo, mas acabou inaugurando-o no governo Lomanto Júnior, quando o seu idealismo encontrou a compreensão dos poderes públicos. Daí por diante, a biblioteca floresceu.

Também sob sua orientação e direção, foram instaladas nove bibliotecas sucursais no interior do estado, e duas em bairros de Salvador. No campo educacional foi membro atuante em vários congressos, nos quais apresentou diversas sugestões a favor da classe. Escreveu para diversos jornais do estado. Foi redatora chefe do jornal da classe profissional e responsável pela coluna feminina do Diário da Bahia. Durante algum tempo escreveu com o pseudônimo de Stela Maria. Era um exemplo de amor aos livros, lia muito e sempre. Ao escrever, como em tudo que fazia, era ela autêntica, criativa, sensível. Fosse o que fosse, dedicatória num livro, crônicas ou cartas ela escrevia como falava, com entusiasmo, sinceridade e coragem. Até mesmo nos livros técnicos, sendo a criança seu constante objetivo, usava linguagem clara, acessível, no intuito de ajudar na organização de bibliotecas infantis - sua grande meta.

Sugestões para Organização de uma Pequena Biblioteca Infantil (1960), Monteiro Lobato, pai de Emília (1960), Bibliotecas na Bahia (1967), As Bibliotecas Infanto-Juvenis de Hoje (1970) e A Biblioteca Escolar (1973) são alguns títulos de suas obras. Entre os prêmios que recebeu consta a medalha de honra ao mérito da Rádio Nacional do RJ (1952). Nesse mesmo ano recebeu a medalha A Bahia te Agradece, na Rádio Sociedade da Bahia. Mais tarde, em 1961 recebeu o prêmio Paula Brito de a bibliotecária do ano, da Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro. E em 1973, foi homenageada pelo 7º Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, em Belém do Pará. Adoentada, recolheu-se ao Hospital Português, onde veio a falecer na manhã do dia 19 de abril de 1974. Um sensível desfalque no magistério baiano. A sua morte é muito sentida pelo largo círculo de suas relações, mas sobretudo, pelas crianças a que se dedicou com extrema devoção. Denise Tavares era professora do Estado e da Universidade Federal, técnica federal de Educação e bibliotecária. Foi diretora da BIML até seu último dia de vida.

10 maio 2006

Dicionário poético


Como assíduo leitor de livros sobre cinema, música, quadrinhos, artes plásticas, filosofia e sociologia, confesso que poucas vezes abro o dicionário. Agora parece que mudei. Estou apaixonado por um dicionário. “Pequeno Dicionário de Palavras ao Vento”, livro de Adriana Falcão traz preciosidades poéticas, reflexivas, bom mesmo. Leitura agradável, Falcão parece que aprisionou as palavras que o vento soprou para ela e agora está soltando, uma por uma, de A a Z. Vou selecionar algumas para que o leitor possa apreciar o trabalho dela:
Abandono – quando uma jangada parte e você fica.
Bondade - aquilo que sai do coração quando a torneira está aberta.
Calendário – Onde moram os dias.
Desculpa – Palavra que pretende ser um beijo.
Escuridão – o resto da noite, de alguém recortar as estrelas.
Fotografia – Um pedaço de papel que guarda um pedaço de vida nele.
Gula – quando chocolate é mais importante que espelho.
Horizonte – linha que serve para evitar que o céu e o mar se misturem.
Imaginação – todo filme que passa na cabeça da gente.
Juventude – os primeiros capítulos da pessoa.
Lealdade – qualidade de cachorro que nem todas as pessoas têm.
Manhã – o prelúdio do dia.
Nome – Toda palavra que já tem dono.
Óbvio – não precisa explicar.
Poeta – quem nasceu com talento para pôr do sol.
Querer – quando o olho do desejo brilha.
Razão – quando o juízo aproveita que a emoção está dormindo e assume o mandato.
Sonho – um outro você que fica acordado enquanto você dorme.
Ternura – amor com recheio de goiaba.
Universo – um só verso que contém toda a poesia desse mundo.
Virgula – a respiração da idéia.
– única palavra do dicionário das aves traduzida para o português.
Zíper – fecho que precisa de um bom motivo para ser aberto.

Adriana recolheu todas essas palavras e muitas outras e colocou neste precioso dicionário. A cada página, essas palavras soltas vão direto para a alma da gente. Ela estreou com o romance “A Máquina”. Depois veio a experiência no teatro com o musical “Cambaio”, parceria de Chico Buarque e Edu Lobo. Ela publica crônicas na revista Veja Rio, uma delas transformada no infanto-juvenil “Mania de Explicação”, sucesso de público.

Emoções, sentimentos e palavras estão no livro “Mania de Explicação”, a história de uma menina que tinha a mania de explicar o mundo. Nele, a menina explica que “saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue” e que “lembrança é quando, mesmo sem autorização, o seu pensamento reapresenta um capítulo”.

Falcão escreve roteiros para programas de TV, como “A Grande Família”, “Comédia da Vida Privada” e “O Auto da Compadecida”, da Globo. Outro sucesso da escritora e roteirista é o realismo mágico de um casal de adolescentes chamado “Luna Clara e Apolo Onze”, onde cria personagens tão extravagantes quanto Aventura e Doravante e que mistura amor adulto, amor juvenil, paciência, sorte, enganos e desenganos. Uma prosa gostosa de se ler, com jeito de criança pedindo bala. Sua prosa é talentosa.

Outra obra de Adriana Falcão é “O Doido da Garrafa”, coletânea de textos preparados para a edição carioca do suplemento de serviço da revista Veja no Rio de Janeiro. Suas crônicas são leves e livres, preparadas com esmero de uma artesã que sabe trabalhar o vernáculo com descontração e beleza. “A sala do coração tem muitas janelas e duas portas. A que dá para dentro e a que dá para fora. A que dá para dentro está sempre aberta. A que dá para fora vive trancada”, escreveu. Como um falcão, Adriana tem pleno domínio da palavra, do texto simples, belo, romântico. Quando se abre um livro de Adriana Falcão as portas e janelas da alma se abrem também e as palavras começam a circular em nossas mentes e corações. É uma boa companhia.

09 maio 2006

Uma revolução do desejo


Em maio de 1968, ocorreu uma rebelião popular na França que ultrapassou as divisões étnicas, religiosas e de classes. A revolução estudantil de maio de 68 começou por um motivo simples. No mês de março, o reitor da universidade de Nanterre proibiu os rapazes de visitar as moças em seus dormitórios. Em protesto, um grupo de cem estudantes invadiu a secretaria da universidade. O reitor, assustado, suspendeu as aulas e chamou a polícia. Naquele protesto na secretaria da universidade nasceu a figura de um líder estudantil que inspirou uma geração inteira: Daniel “le Rouge” (o vermelho, em francês). Dias depois ele incentivou os estudantes da Sorbonne a seguirem o exemplo da Nanterre. Resultado: a polícia invadiu a universidade e as aulas foram suspensas. Os estudantes e o sindicato de ensino entraram em greve.

Os estudantes tentaram retomar o prédio e resolveram enfrentar as tropas policiais. As ruas viraram um campo de batalha. De um lado, jovens armados de paralelepípedos arrancados das ruas; de outro, policiais e suas bombas de gás lacrimogênio. Sirenes foram ouvidas por dias, fogueiras queimavam em toda parte, centenas de estudantes foram presos. Feridos dos dois lados. Entre uma série de muros pixados, uma frase ficou famosa: “Défense d`interdire!” (É proibido proibir!)

Além dos estudantes, os operários também entraram nas manifestações. Centenas de fábricas foram ocupadas e o número de grevistas chegou a 10 milhões. Bandeiras de Mao, de Fidel, de Che Guevara e de Lênin se juntaram às manifestações. Quase todos os setores da sociedade se envolveram. Pessoas de todas as idades discutiam em auditórios lotados e liam diariamente os boletins dos estudantes.

Assim, entre 1965 e 1970, concentraram–se várias manifestações de estudantes, negros e trabalhadores em geral contra o assim chamado “establishment” (o sistema político estabelecido). Eram movimentos organizados, basicamente, em torno da efetivação dos direitos humanos declarados pela ONU (Organização das Nações Unidas). Destacaram–se, sobretudo, os protestos contínuos ocorridos de 3 a 30 de maio de 1968, em Paris, França. Inicialmente, exigia–se a reabertura da Faculdade de Letras de Naterre, mas devido à reação agressiva da polícia parisiense, uma onda de passeatas se levantou.

Uma revolta permanente foi implantada de um modo geral contra o governo conservador do general Charles De Gaulle (herói da resistência francesa, durante a Segunda Guerra). Sem um fim único concreto, passou a envolver, literalmente todo mundo – EUA, Alemanha, Itália, Inglaterra e América do Sul –, nas reivindicações dos trabalhadores, por melhores salários; dos negros, contra a discriminação racial e dos estudantes, por uma reforma mais democrática do ensino e contra a Guerra do Vietnam.

Os maios de 68 se repetiram ao redor do mundo, com diversos personagens e uma série de realidades diferentes. Zuenir Ventura, em seu livro “1968, o ano que não acabou”, diz que “movida por uma até hoje misteriosa sintonia de inquietação e anseios, a juventude de todo o mundo parecia iniciar uma revolução planetária”.

O movimento estudantil de maio de 1968, iniciado na Universidade de Nanterre e que prosseguiu na Sorbonne, em Paris, desde o início foi saudado com uma saraivada de significados, mas foi uma revolução do desejo e da libido, como escreveu Gilberto de Mello Kujawski. Maio de 68 não foi produto da luta de classes, e sim da luta de gerações, os jovens contra os seniores, o novo contra o velho. A faísca que incendiou os espíritos em maio de 68 foi a proposta apresentada pelo desconhecido e inconformado estudante Daniel Cohn-Benedit ao então ministro da Juventude e dos esportes, M. Missoffe, no centro esportivo da faculdade de Nanterre.

Em documento oficial divulgado pela revista L`Express, foi registrado o que se passou: “À saída do sr. Missoffe, cerca de 50 estudantes que o esperavam o receberam com gritos hostis. O ministro tentou iniciar um diálogo. Um estudante de origem alemã, o sr. Marc Daniel Kohn-Bendit, pediu-lhe, então, que se discutisse a questão sexual. O ministro achou que era uma brincadeira. No entanto, o estudante insistiu no tema e declarou que a construção de um centro esportivo era um método hitleriano destinado a dirigir a juventude ao esporte para desvia-la dos problemas reais, ainda que fosse necessário, acima de tudo, assegurar o equilíbrio sexual do estudante”. A interpretação ao ministro tinha que ver com a proibição, pelo reitor da Universidade de Nanterre, de uma conferência sobre Wilhelm Reich, um dos mentores da revolução sexual, fixado nas funções revitalizadoras do orgasmo.

Viver com paixão, com prazer, com utopia, é cada vez mais uma impossibilidade numa sociedade que segue os ensinamentos do romance Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, sabendo que a estabilidade social só é viável pela impossibilidade da emoção e do desejo. O maio de 68, foi um dos momentos decisivos que o sistema capitalista viveu porque se configurou a convergência de grupos e classes sociais, em vários locais do mundo, insatisfeitas com um regime visivelmente injusto e absurdo, reforçadas por uma nova crítica social que dissecava impiedosamente esse regime, possibilitando a sua compreensão.

08 maio 2006

Um estado de graça chamado amor


O amor é um sentimento universal e natural, presente em todas as épocas e culturas. O amor e a paixão existem. Poucos sabem descrevê-las, ninguém nunca viu ou tocou, mas todos sentem na hora em que menos se espera. Este vício ou virtude, este impulso que escapa à razão ou este luxo dos sentidos nos invade vez por outra e, numa posição confortável e segura, fica por detrás de nossas ações. É a nossa força motriz, o que nos faz viver.

Todo mundo sabe o que é isso. O fogo que arde sem se ver, a ferida que dói e não se sente (Camões), o sentimento que move o sol, como as estrelas (Dante), a força obscura e potente que dissolve membros (Safo) ou amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no elipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários (Drummond). É o amor, louco, delicioso, tolo, embriagante, o princípio unificador do cosmo, segundo os filósofos gregos, motor de todos os poetas, êxtase celestial e doce tormento de todos os apaixonados, alegria dos comerciantes no Dia dos Namorados.

O amor como uma força independente e incontrolável vem vendendo obras de ficção ao longo de muitos séculos. Muitas tentativas foram feitas para desvendar os mecanismos dessa reação química e que pode até criar dependência. Antropólogos, biólogos e químicos aliam-se na tarefa. Amor não é sexo, surgiu como conseqüência da necessidade de propagar e reforçar a sobrevivência da espécie – o que a pura reprodução sexual não garantiria. O amor evoluiu milhões de anos atrás para levar homens e mulheres a ficar juntos e criar seus filhotes. A fragilidade dos filhotes gerou o amor programado biologicamente, embutido no código genético, baseado em elementos químicos específicos. Para os cientistas, o amor é um mecanismo criado pela natureza para a perpetuação da espécie.

Trata de uma teoria conhecida como “banho químico”, uma cascata de elementos que, descarregados no cérebro, correm ao longo dos nervos, espalham-se pelo sangue e geram reações rigorosamente iguais nos humanos em estado amoroso. “Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso chegar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um”, espantava-se o francês Roland Barthes. “Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução. Por que desejo esse?”. A resposta está no mapa do amor, uma pré-seleção que a pessoa faz desde a infância, gravando no inconsciente as coisas que aprecia e as que não gosta e já na adolescência surge uma proto-imagem do parceiro ideal. Cultura, maneira como cada criança é criada, seu meio ambiente e as influências externas moldam os contornos dessa imagem. E quando alguém se encaixa nesse mapa do amor e passa por perto, a biologia entra em ação e o estágio de encantamento aparece.

Alguns poetas davam a entender que a origem do amor era totalmente orgânica. Outros creditavam à atividade profunda do coração a verdadeira origem. Na poesia satírica de Gregório de Matos “o amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias, uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um rebuliço de ancas, quem diz outra coisa é besta”. Arnaldo Jabor em seu livro “Amor é prosa, sexo é poesia” ele define: “O amor é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse ´absoluto´, que está na calma felicidade dos animais”. “Amor meu grande amor, só dure o tempo que mereça, e quando me quiser, que seja de qualquer maneira, enquanto me tiver, que eu seja a última e a primeira...”. A letra, arrebatadora, é de Ângela RôRô e Ana Terra. A paixão é o lado nervoso do amor, escreveu Milton Nascimento e Fernando Brant. Para os dois, “amar é a melhor maneira de viver”.

“O que será que me dá, que me bole por dentro será que me dá, que brota à flor da pele será que me dá, e que me sobe às faces e me faz corar, e que me salta aos olhos e me atraiçoar, e que me aperta o peito e me faz confessar, o que não tem mais jeito de dissimular, e que nem é direito ninguém recusar...”. “O que será?”. Chico Buarque e Milton Nascimento respondem na mesma canção. Amor é estado de graça, escreveu o poeta Drummond de Andrade. “Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida, o mundo é grande e cabe, nesta janela sobre oi mar, o mar é grande e cabe, na cama e no colchão de amor, o amor é grande e cabe, no breve espaço de beijar”.

“O amor e a agonia, cerraram fogo no espaço, brigando horas a fio, o cio vence o cansaço, e o coração de quem ama, fica faltando um pedaço, que nem a lua minguando, que nem o meu nos seus braços. . .”. Assim é o amor de Djavan, faltando um pedaço ou mesmo a beleza de pétala: “Por ser exato, o amor não cabe em si, por ser encantado, o amor revela-se, por ser amor, invade e fim”

05 maio 2006

Música e Poesia

O Vento e o Tempo
(Almir Sater / Paulo Simões)

Por mais que tente
Não entendo
Todo mundo enlouquecendo
Quem é que está com a razão

E tanta gente ainda lendo
Velho e novo testamento
Sem compreender a lição

Verdade é voz que vem de dentro
E mata a sede dos sedentos
O pior entre os meus sentimentos
De mim foi levado enfim pelo tempo

Mais um milênio vem nascendo
De repente se perdendo
A melhor das ocasiões
É só questão de investimento
Em vez de armas
Alimento
Deixar viver, dar o pão

Nesse universo tão imenso
O meu caminho eu mesmo penso
E se um dia restar meu silêncio
É que as minhas canções
Se perderam no vento


Traduzir-se

(Ferreira Gullar)


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

04 maio 2006

Licutixo é a cartilha do sambador Bule Bule


“Pau puro” é o samba chula que abre o novo CD de Bule-Bule, um recado para os sambadores desafiantes que têm no samba um meio de provocar desarmonias através de versos toscos. “É um alerta aos sambadores em desafio que, se me tratarem bem, tem um amigo. Mas se mudarem o procedimento, a conversa engrossa. Afinal, sambar pra mim é café pequeno”, diz o cantador. Xangai, Raimundo Sodré e o grupo cultural Sambadores de Tocos têm participação especial.

“Licutixo” é o título do novo trabalho do artista, nome de uma modalidade de samba rural, uma espécie de samba para desafio, muito praticado na região de Antonio Cardoso (sua terra natal) e Santo Estevão. O trabalho reúne 13 autênticas obras representantes do gênero nordestino como os sambas de chula, cocos, xote e repentes, sob a direção musical do competente Luciano Bahia. Inédito e autoral (com exceção do samba de domínio público Licutixo de Tocos, gravado ao vivo pelo Grupo Sambadores de Tocos, na comunidade de Antônio Cardoso), o álbum é um cuidadoso instrumento de pesquisa sobre o samba rural, derivado da região sertaneja, mas com ligeira influência da chula do Recôncavo.

No poema “Janela do Passado” ele vai da infância a vida adulta, uma homenagem ao pai e a terra onde nasceu. À figura do pai, o sambador Manoel Muniz (falecido em 1996, aos 81 anos), ele deve os ensinamentos sobre a arte e os traquejos da cultura sertaneja. Na quinta faixa, “Um pedaço de mim morreu no samba”, ele chora a partida da morena. O cantador Xangai participa na faixa “Banho de Manjericão”, a chula que fala de um amor proibido: “Ela está na janela/mas o ex-marido/não sai da cancela/com o rifle enganchado/na capa da sela/no dia que ele vacilar/eu carrego ela”.

Tem o poema matuto “A parteira” e a toada “Biluzinho”. Raimundo Sodré está no samba chula “Que moça bonita é aquela”. O xote “Cancela do sossego” e os sambas licutixo “Seu manso/A viola em caco”, “Nasceu no samba Romeu” e “Licutixo de Tocos” completam o CD.

Antônio Ribeiro da Conceição, nome artístico Bule Bule, nasceu no dia 22 de outubro de 1947 no município de Antonio Cardoso. Músico, escritor, compositor, poeta, cordelista, repentista, ator e cantador, ao longo dos seus 38 anos de carreira gravou seis CDs (Cantadores da Terra do Sol, Série Grandes Repentistas do Nordeste, A Fome e a Vontade de Comer, Só Não Deixei de Sambar, Repente não tem Fronteiras e Licutixo), quatro livros editados (Bule Bule em Quatro Estações, Gotas de Sentimento, Um Punhado de Cultura Popular, Só Não Deixei de Sambar), mais de 80 cordéis escritos, participação em vários seminários como palestrante, várias peças teatrais e publicitárias, agraciado pelo Prêmio Colunista, além de milhares de apresentações durante a sua carreira. Atualmente ele é diretor da Associação Baiana de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia e da Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel. Recentemente foi premiado com o Prêmio Hangar de Música no Rio Grande do Norte junto com Margareth Menezes e Ivete Sangalo.

Legítimo defensor de gêneros musicais nordestinos como chulas do sertão, cocos, martelos, agalopados, xote, marche de pé de sina e repentes, Bule Bule é escritor de cordéis, sinônimo de celebração nordestina em alta voltagem, mas desplugado da tomada. Ele cresceu sob a influência do samba rural do sertão e do Recôncavo, além dos repentistas sertanejos. Criado numa região que fica na entrada do sertão e próximo ao Recôncavo, Bule Bule mergulhou no samba rural derivado da região sertaneja, mas com ligeira influência da chula do Recôncavo.

Ele fez sua carreira de cantador e sambador circulando pelo interior da Bahia e diversos estados do Nordeste e do Brasil como artista popular e regional. Mesmo com toda essa globalização e tecnologia a arte dessa gente simples não foi totalmente esquecida. Existe a voz dos cantadores e sambadores da zona rural, esquecidos e pouco valorizados, mas prontos para contar e cantar seus casos e causos. Taí Bule Bule, uma lição de vida, de poesia e melodia. Ele semeia sabedoria, uma voz do povo que continua firme, pau puro numa cartilha de sambador. Quando o CD começa a tocar, ninguém fica parado, Haja rojão Bule Bule! (Gutemberg Cruz)

03 maio 2006

Espírito de nosso tempo


O tempo está na base dos problemas sociais. Quem não acreditar nisso basta ler o livro do economista Eduardo Giannetti (O Valor do Amanhã). Para Giannetti, a guerra contra o tempo faz o ser humano estabelecer suas prioridades e buscar sempre o prazer imediato, ignorando qualquer noção racional de planejamento ou aposta positiva na realização de seus sonhos no futuro. A questão da violência urbana (“quem tem fome tem pressa”) e política (a necessidade de enriquecimento rápido resultando na corrupção) estão relacionadas com o tempo.

O livro de Giannetti destrincha o porquê de o homem aceitar o pagamento de juros – “usufruir agora, pagar depois” e como “antecipar custa, retardar rende”, pagamos pela diminuição da espera. O que são os juros o não ser o valor que temos de pagar por não querermos esperar? Qual noção do tempo queremos ter: a da criança que não sabe esperar, a do jovem que nunca vê o futuro como previsão mas como sonho, ou a da velhice quando enxerga-se o passado como um tempo que nem demorou muito nem está tão distante e até que foi rápido e valeu a pena. Para o economista, toda a economia se reduz a “economizar tempo” e para pagarmos menos juros é melhor aprendermos a dominar o tempo.

Outro exemplo sobre a reflexão sobre o tempo é o recente filme “Flores Partidas” do cineasta Jim Jarmusch. Na fita o ator Bill Murray vive um velho rico e solitário que promove um acerto de contas com seu passado de conquistador, ao partir em busca de um filho desconhecido. Nessa busca ele reencontra três antigos amores e como lição o cineasta alerta que é melhor guardarmos os bons momentos na lembrança do que insistir em revivê-los.

Mesmo como os avanços científicos que aumentam a expectativa de vida, o homem tem cada vez mais pressa: a vida é curta, tempo é dinheiro, o tempo é o senhor da razão, dê tempo ao tempo, o tempo é o melhor remédio, tudo tem seu tempo, só o tempo vai dizer são alguns exemplos. A ideologia pós-modernista impõe a vida no tempo real, no aqui e no agora. Como afirmou o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, o prazer individual e imediato é o único bem possível. A sociedade americana de hoje com a sua libido consumista é um exemplo dos dias atuais. O consumidor tem pressa seja no atendimento, na troca, na garantia de satisfação do desejo manifestado na compra. E os shoppings são os lugares onde todos os desejos podem ser atendidos, inclusive, a fome de fast-food.

Gilles Lipovetsky, teórico do novo individualismo e intérprete da era moderna, em seu livro Os Tempos Hipermodernos, mantém sua linha de provocação e debruça-se novamente sobre o homem contemporâneo para atestar nossa transição da fase pós-moderna para a hipermodernidade. Escrito com a colaboração de Sébastien Charles, explica como a globalização fortaleceu o individualismo, o mercado e o avanço técnico-científico. A obra de Lipovetsky é profundamente marcada pela interpretação da modernidade. Em L´Ere du vide (1983), ele define o que chamou de "paradigma individualista" – um homem preocupado em se diferenciar na multidão, realizar seus desejos imediatamente, viver já, aqui e agora, sem se deixar seduzir por ideologias políticas ou ídolos. De lá par cá, o autor não parou de explorar as múltiplas facetas do homem contemporâneo: a ditadura da moda, a metamorfose da ética, a nova economia dos sexos, mas sobretudo a explosão do consumo de luxo para atender a um indivíduo hedonista que surgiu com as frustrações dos tempos modernos. Lipovetsky foi um dos principais responsáveis pela popularização do conceito de pós-modernidade e, hoje, é um dos defensores da democracia liberal.

Neste livro, Lipovetsky dá continuidade a este seu itinerário intelectual tão bem delineado por suas obras anteriores. No Brasil, foram editados O império do efêmero (Companhia das Letras, 1989), A terceira mulher (Companhia das Letras, 2000) e Metamorfoses da cultura liberal (Editora Sulina, 2004). Ele argumenta que, desde os anos 50, o mundo vive uma intensificação jamais vista do tripé que sempre caracterizou a modernidade: o mercado, o indivíduo e a escalada técnico-científica. A partir dos anos 80, com o avanço brutal da globalização e das novas tecnologias de comunicação, esse fenômeno – que ele batizou de hipermodernidade – adquire uma velocidade espantosa, passando a interferir diretamente sobre comportamentos e modos de vida.

Mais do que um lance de retórica, o termo hipermodernidade define a situação paradoxal da sociedade contemporânea, dividida de modo quase esquizofrênico entre a cultura do excesso e o elogio da moderação. De um lado, diz Lipovetsky, "é preciso ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda"; de outro, valorizam-se "a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou das religiões orientais". (Gutemberg Cruz)