30 julho 2019

Blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência (02)


O blues cresceu em cidades fecundando o mundo da música. Com o decorrer dos anos, tornou-se o pai orgulhoso do rhythm and blues e do rock and roll. Entretanto, à medida que os filhos alcançavam fama individuais, a popularidade do pai ia declinando. Até que, lá pelo começo dos anos 60, os bluesmen foram descobertos pelos jovens brancos dos EUA e principalmente da Inglaterra. Foi o primeiro blues revival, que trouxe à tona os Bluesbreakers de John Mayall, os Rolling Stones, o Cannid Heat e os Yarbdirds. Desde então esse fenômeno pode ser esperado sempre que a música pop fica por demais carregada de esquemas e armações – e o blues acaba virando um refúgio contra a tirânica insipidez da parada de sucesso.

A história do blues traça uma rota que sai do Delta do Rio Mississipe e vai  ziguezagueando pelos EUA até chegar a Chicago, Illinois. Em sua marcha para o Norte, o blues foi fazendo a cabeça de todo mundo em que encontrava. Elvis Presley, em sua adolescência, ouvia B.B.King em Memphis; Chuck Berry foi cria de Muddy Waters; Jimi Hendrix cresceu ouvindo os dois. Na Inglaterra, não só estes bluesmen, mas também Albert King, John Lee Hooker e Robert Johnson eram objetos de culto para Mick Jagger, Keith Richards, Jeff Beck, Jimmy Page e Eric Clapton. A epidemia se alastrou até a terra dos cangurus, deixando Angus Young doente. E Eddie Van Halen pegou a febre de Clapton. Ninguém escapou: do rockabilly ao metal pesado, de Elvis a Led Zeppellin, a influência do blues é seminal.

Breve história do blues

1619 - Primeiro navio de carga de escravos americanos é vendido para colonialistas na Virgínia. Logo em seguida começam a surgir as canções de lamentação nos campos. Nos séculos seguintes as canções de trabalho, tradição oral, crenças religiosas e práticas, e ritmos se misturaram com as melodias europeias e também com formas de música folk americanas. Então, a semente do blues foi plantada.

1833 - Christian Friedrich Martin constrói seu primeiro violão feito na America.

1843 -  O primeiro show público de menestréis foi apresentado por todos os menestréis brancos de Virgínia com os rostos pintados de preto. Em manifestação para o direito dos negros de terem entretenimento.

1860 – Fazendeiros e religiosos começam a prestar atenção nos cantos e lamentos dos escravos nos campos do sul dos EUA.

1863 - A Proclamação da Emancipação liberta os escravos nos estados confederados. Em 1870 seguinte a Reconstrução, os estados do sudeste impõem a segregação.


1903 - Lider de banda negro W. C. Handy ouve o Blues estilo Delta no Mississipi.

1910 - Indignado por um linchamento W.E.B DuBois co-funda a Associação Nacional para o Progresso da População Negra (National Association for the Advancement of Colered People – NAACP).

1912 - Handy lança “The Memphis Blues”. Baby Seals lança “ Baby Seals Blues” e Hart Wand e Lloyd Garret lança “Dallas Blues”. Essas são as primeiras composições com Blues no título.

1914 – Handy lança o hit “ St. Louis Blues”. Música que transforma o Blues em um estilo musical parte integrante da música popular americana. Mais tarde, ele se torna conhecido como o “Pai do Blues”.

1917 O “Chicago Defender” ( Jornal de Chicago ) chama os negros americanos para fugir do Sul e ir para o Norte em busca de melhores condições de vida. (O jornal, semanalmente publicava vagas de empregos e todo tipo de anúncios e informações, para ajudar as pessoas a migrarem). Os EUA entram na Primeira Guerra.

1918 – Com o início da Primeira Guerra Mundial, consolida-se a migração dos negros da zona rural para cidades importantes do sul do país.

1919 - Ratificação da Décima Oitava Emenda promulga a Proibição de venda de bebidas alcoólicas nos EUA. Bares ilegais de música ao vivo na época da proibição (conhecidos como speak-easies), festas em casas e estabelecimentos que tinham juke-box, atraiam os beberrões. Motins raciais se proliferam no Norte.


1920 - Mamie Smith estabelece “Crazy Blues” como a primeira gravação de blues feita por uma negra pela Okeh Records. A indústria fonográfica substitui as partituras enquanto o blues se populariza. A propagação do rádio disponibiliza a música a toda nação.

1921 – Auge do sucesso das damas do blues: Bessie Smith e Gertrude Ma Rainey.

1922 - A primeira leva de tratores para colheita chegam, ajudando os trabalhadores da roça.

1923 - Ma Reiney grava “ Bo-Weavil Blues” pela Paramount e uma onda de novas cantoras de blues do sul aparece.

1925 - Blind Lemon Jefferson faz a primeira gravação pela Paramount. O processo eletrônico de gravação é introduzido no mercado e as gravadoras pressionadas pela competição com as rádios lança novos estilos como o folk.

1927 - Ocorre a grande enchente do Rio Mississipi.

1928 - O Piano Blues surge nas adegas do Sul e nas festas de Chicago. Clarence “Pine Top” Smith faz sucesso com “ Pine´s Top Boogie Woogie”. Leroy Carr and Scrapper Blackwell são os pioneiros no dueto guitarra – piano. O take “It´s Tight Like That” de Tampa Red e Georgia Tom Dorsey apresenta a dança sexualmente carregada do piano blues conhecida como hokum blues.

1929 - Surge o Black Friday (dia após o Dia de Ação de Graças, o qual há uma grande queima de estoque no país inteiro). Acontece a Grande Depressão. O mercado fonográfico perde força e gravadoras pedem falência nos próximos anos. Bessie Smith aparece no filme “St. Louis Blues”. Blind Lemon Jefferson morre congelado em uma tempestade de neve em Chicago.

1930 - Bukka White estreia na Victor Records.

1932 – A bola da vez é o blues criado na Costa Leste dos EUA (Caroline do Sul, Kentucky e Tenessee). Blind Willie McTell e Sonny Terry dominam a cena.

1933 - A Proibição é revogada. John e Alan Lomax começam a garimpar o Sul em busca de artistas para gravações de folk e blues de campo. Assim, eles imortalizam Lead Belly quando o gravam em uma penitenciária na Louisiana. Graças ao novo acordo do presidente Roosevelt e Administração Pública do Trabalho, os Negros, que em geral eram Republicanos, começaram a mudar de partido. As autoridades do Vale do Tennessee criaram represas para conter as enchentes e erosões, enquanto abastecem parte do Sul com energia.

1934 - Robert Johnson faz suas primeiras gravações para Vocalion. Dois anos depois ele morre no Mississipi, vítima de um whiskey envenenado.

1937 - Bessie Smith morre em um acidente de carro no Mississipi.

1938 - Carnegie Halla apresenta o primeiro festival From Spirituals to Swing, que tem como participantes Big Bill Bronzy, Sonny Terry, e outros grandes do blues.

1939 – Com a Segunda Guerra Mundial, encerra-se a primeira fase do blues urbano. Destaque: Big Bill Broonzy (Chicago) e Memphis Minnie (Memphis).

1945 – A guitarra elétrica começa a aparecer nos discos de blues.

1948 – Gravadora Chess é fundada em Chicago com sucessos de Sonny Boy Williamson, Willie Dixon e Muddy Waters. B.B.King e Elmore James surgem em Los Angeles. John Lee Hooker conquista os EUA com “Boogie Chillen”.

1949 - Lead Belly toca na França e se torna o primeiro blues man a tocar em carreira solo na Europa.


1952 – Sam Phillips funda a gravadora Sun, em Memphis e contrata Howlin´Wolf e Junior Parker.

1953 – Delmark Records em Chicago contrata Big Joe William e recebe gênios como Junior Welles e Mighty Joe Young.

1959 – Geração de Chicago pinta na área: Ottis Rush, Magic Sam e Buddy Guy.

1960 – Com o estouro do rock´n´roll o blues cai de popularidade nos EUA, mas passa por uma febre na Europa.

1961 - A Columbia lança um LP coletânea do Robert Johnson chamado “ King of the Delta Blues Singers”.


1963 – Bandas históricas influenciados pelo blues pipoca pela ilha: Yarbirds, Animals, Rolling Stones e John Mayall and the Bluesbreakers. Uniu rock´n´roll e blues. Jimmi Hendrix começa a inventar um novo blues nos EUA.

1964 - Recentemente redescobertos pelos fans de blues, Son House e Skip James tocam no Newport Folk Festival.


1966 – Psicodelismo do Cream e Jimmi Hendrix (que se muda para Londres) tinge outras cores o blues de Robert Johnson, Willie Dixon e Muddy Watters.

1968 – A maior cantora branca de blues brilha em “Summertime” no disco Live At Winterland: Janis Joplin.

1970 – Blues em grandes grupos de rock: Led Zeppelin, Allmann Brothers Band, Lynyrd Skynyrd, Aerosmith....B.B.King, responsável pela popularização do estilo vira embaixador do blues.

1976 - A cantora e compositora Joni Mitchell vista o blueseiro Furry Lewis em Memphis. Essa experiência inspira a cantora a compor “Furry Sings the Blues”, a faixa está no álbum Hejira.


1980 – Robert Cray, um guitarrista com voz de soulman estremece com o elogiado Who´s Been Talking.

1983 – Stevie Ray Vaughan estreia com Texas Flood

1991 – Blues Traveller (liderado por John Popper) estreia em disco e injeta nova energia na cena.

1994 – Eric Clapton paga seu maior tributo transformando num ídolo com o disco From the Cradle, recheado de clássicos do blues.

1997 – Jonny Lang desponta com o álbum Lie To Me, um sucesso capaz de seduzir as novas gerações.

Bibliografia:

HERZHAFT, Gérard. Blues. Campinas, SP: Papirus, 1989

MUGGIATI, Roberto. Blues – Da lama à fama. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995

SANTELLI R., WARREN H.G., BROWN J. American Roots Music. New York, NY. Harry N. Abrams, Inc.


29 julho 2019

Blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência (01)


Ele deixou de ser um mero gênero musical para se tornar um dos mais importantes patrimônios da humanidade. Não é um estilo musical, é um estado de espírito. Nasceu para dar voz aos escravos dos Estados Unidos. A partir da década de 1860, os spirituals (canções religiosas entoadas pelos negros africanos desde sua chegada à América) sofreram uma mutação. Além de apelar para Deus, os escravos começaram a curar suas dores de amor através da música.

 


Como revela o pesquisador Roberto Muggiati, o blues nasceu com o primeiro escravo negro na América. O negro era uma ferramenta de trabalho. Até nos raros momentos de lazer, quase tudo lhe era interditado. Não podia tocar instrumentos de percussão ou de sopro. Os brancos receavam que pudessem ser usados como um código, incitando à rebelião. Assim, a voz ficou sendo o principal – senão o único – instrumento musical do negro. Era usada nas work-songs, canções em que o feitor cadenciava o trabalho dos escravos, a batida dos martelos ou machados, o levantamento de cargas etc. Estas canções ajudavam a amenizar e racionalizar o trabalho e o tornavam mais rentável.

 


Para o estudioso inglês Paul Oliver, "...o blues é um estado de espírito e a música que dá voz a ele. O blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada do fatalista. O blues é a emoção pessoal do indivíduo que encontra na música um veículo para se expressar. Mas é também uma música social: o blues pode ser diversão, pode ser música para dançar e para beber, a música de uma classe dentro de um grupo segregado. O blues pode ser a criação de artistas dentro de uma pequena comunidade étnica, seja no mais profundo Sul rural, seja nos guetos congestionados das cidades industriais. O blues é a canção casual do guitarrista na varanda do quintal, a música do pianista no bar, o sucesso do rhythm and blues tocado na jukebox. É o duelo obsceno de violeiros na feira ambulante, o show no palco de um inferninho nos arredores da cidade, o espetáculo de uma trupe itinerante, o último número de uma estrela dos discos. O blues é todas estas coisas e todas estas pessoas”.

 


O berço do jazz foi no Delta do Mississipi, nas vizinhanças de Nova Orleans. Já o blues teve como berço o delta lamacento do rio Yazoo nas proximidades de Vicksburg, parte sul do Mississipi. O estilo também marcou uma ruptura no formato musical. Fugindo da complexidade do jazz e da rigidez dos eruditos, o blues nasceu como uma música crua. Em sua grande maioria as canções têm apenas três acordes, construídos segundo a famosa escala pentatônica, uma sequência básica de apenas cinco notas musicais. Com essa base harmônica quase simplória, o estilo disseminou-se rapidamente pelo sul dos Estados Unidos. Durante o século XIX, o blues era uma tradição oral passada nos campos de geração para geração.

 


O blues nasceu por volta da segunda metade do século XX, logo depois da Guerra Civil Americana, destilado da música africana que os escravos trouxeram para o Sul dos EUA. Embora a vida que levassem nas lavouras de algodão fosse um inferno, os negros ainda encontravam tempo para cantar suas tristezas (blues) e fazer disso uma arte.



Foi dos cantos de trabalho no campo, das baladas, da música de igreja e dos ritmos das danças africanas que evoluiu uma música da chamada-e-resposta entre o cantor e seu violão, isto é, cada verso cantado era respondido por um fraseado o instrumento. O blues primitivo era irregular e seguia a cadencia da fala, como pode ser observada nas gravações feitas nos aos 20 e 30 por Blind Lemon Jefferson, Robert Johnson e Lightnin´Hopkins. Quando o radio espalhou o blues pelo Sul dos EUA, a música da raça tornou-se mais regular, estabelecendo-se numa fórmula na qual um verso era repetido e respondido sobre uma progressão de acordes em doze compassos. Nascido de uma longa tradição oral e abalando então pesadamente as regras do solfejo e da harmonia, o blues desafiou durante muito tempo os hábitos da escrita musical. Todo estudo profundo do blues deve então apoiar-se em raras fontes escritas, na escuta atenta e comparativa das gravações sonoras desde 1930



Nas décadas de 30 e 40 o blues foi subindo para o Norte acompanhando a migração negra e infiltrando-se nas big-bands de jazz. Ele também foi eletrificado quando a guitarra elétrica se popularizou. Em cidades como Chicago e Detroit, no final dos anos 40 e início dos 50, Muddy Waters, John Lee Hooker, Howlin´Wolf e Elmore James amplificaram o blues básico do Delta do Mississipi, estabelecendo a formação das bandas em baixo, bateria, piano, guitarra e gaita, e obtendo sucesso nacional. Na mesma época, T-Bone Walker, em Houston, e B.B.King, em Memphis, aperfeiçoavam um estilo de guitarra solo que usava a suavidade de técnica jazzística em cima do lamento gritante do canto blueseiro.

27 julho 2019

Maldito, um rótulo que estigmatiza a arte – 2


A maldição atingiu também o cineasta baiano Glauber Rocha, que realizou uma verdadeira revolução formal no cinema brasileiro e se indispôs, sobretudo a partir do movimento do Cinema Novo, contra toda a estrutura conformista que impregnava nosso ambiente cultural. Inquieto, polêmico, combativo, Glauber utilizou nessa luta as armas com que fez seus filmes: agressividade, choque, ternura, imperfeição formal, desprezo pelo convencional. Por sua participação nos principais debates políticos e culturais do País recebeu o rótulo de maldito, mas também o reconhecimento, por parte dos especialistas como o mais importante cineasta brasileiro e um dos maiores da sua geração do mundo inteiro.

Há mais de cem anos o poeta francês Paul Verlaine criou o rótulo ao lançar uma antologia de nomes que lutavam contra a corrente parnasiana: Lês Poetes Maudits, que incluía versos de Rimbaud, Mallarmé, Corbière e do próprio Verlaine, entre outros. Segundo o professor, tradutor e poeta Haroldo de Campo, malditos eram aqueles autores verdadeiramente criativos em oposição ao domínio dos parnasianos. A expressão ganhou notoriedade e passou a designar o artista ou a obra que traz em si a antecipação no futuro, que molda as novas direções da arte. O maldito pode também continuar a sê-lo por muito tempo, ainda que sobre ele se acendam as luzes de um tênue reconhecimento.


O cantor e compositor Jorge Mautner, que misturou na sua trajetória política e cultura sempre foi considerado um maldito com letra maiúscula. Divulgador do PK (Partido do Kaos), inspirado no suporte que inclui a Numerologia, a Cabala, a Astrologia, Telepatia, Empatia e toda e qualquer fenomenologia, a psicanálise freudiana e a todos os dissidentes, Mautner retornou em 1986 ao panorama musical brasileiro justamente se opondo ao rótulo que carregou por tanto tempo, com o lançamento do disco Antimaldito. O tempo passou e ele continuou maldito.

A sociedade elimina os diferentes, isso é ponto pacífico. E para que isto aconteça basta que se esteja um momento em desacerto com as regras estabelecidas pela sociedade. Na maldição incorrem aqueles que chocam a moral corrente, no Ocidente ou no Oriente, nos regimes mais diversos, incorrendo na rejeição social que pode acobertar uma grande obra. Uma referência aos malditos desconhecidos que a posteridade poderá ou não resgatar. A exemplo de tantos que a seu tempo incomodaram e agora estão nas escolas. O limbo não é necessariamente eterno, mas viver nele é árduo, exige todas as forças de um ideal. O escritor Fernando Gabeira, por suas ideias inconformistas, chegou a ser expulso do País, anos mais tarde é digerido com aparente facilidade pela sociedade brasileira. Ainda maldito?


Se fosse o caso de citar os brasileiros considerados malditos, teríamos ainda a dramaturga Leilah Assumpção com seus textos fortes e marcadamente urbanos, refletindo a barra pesada de se viver numa grande metrópole com todos os conflitos a que se tem direito. Não menos inquietos e inconformados foram os dramaturgos Plínio Marcos (que construiu um retrato fiel da falsa sociedade burguesa classe media brasileira) e José Celso (este com a revolução instaurada através da montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade). Não esquecer do poeta brasileiro que melhor encarnou a contracultura, Torquato Neto.

Num ponto todos concordam: a maldição é uma forma de discriminação, de separar o joio do trigo, como se em arte as coisas fossem tão evidentes como o joio e o trigo, o negativo e o positivo. E ser maldito já aparece agora como uma garantia de venda. Quando se vêem malditos vendendo mais que os outros, é sinal que as coisas mudaram. Não se sabe mais o que chamar de maldito, os limites ficaram indefinidos.


Do roqueiro Lou Reed ao cineasta Godard, do escritor Gabeira ao dramaturgo Plínio Marcos, passando pelos cantores Walter Franco e  Sérgio Sampaio, a maldição esteve presente nas suas obras, tornando-os mais inquietos do que já eram naturalmente, pela incompreensão imputada pela sociedade massificadora e pasteurizadora. Muitos já sofreram o estigma e outros ainda hoje são rotulados. Em síntese, se hoje as estrelas badaladas pelos meios de comunicação são castigadas pela rebeldia ao stablishment, a maldição antigamente não poupava os gênios incompreendidos nas artes. Assim é que Baudelaire, Poe, Artaud, Fellini, Mautner, Glauber e outros do mundo literário e artístico estão associados ao conceito de maldição. O debate fica, por assim dizer, aberto.




26 julho 2019

Maldito, um rótulo que estigmatiza a arte - 1


A arte foi dessacralizada. A contemplação deu lugar à participação. A palavra foi deformada em grito, o som se fez ruído, a cor agrediu e o gesto atingiu o transe. O cinema acabou com a conseqüência temporal, o teatro pôs fim à separação ortodoxa ator-espectador, a dança entrou em convulsão, a música se dirigiu também aos olhos e a pintura se apropriou dos objetos em vez de pintá-los. O frenesi, a estridência e o transe dominaram os espetáculos. Rebelde e inconformada com a própria década, a arte retirou desta o tom selvagem da violência com que escreveu, cantou e criou a mitologia dos anos 60. Estava deflagrada, irreversivelmente, a maldição, que já havia atingido os artistas do mundo inteiro tempos atrás.


Mas já vai longe a famosa década de 60 e muita gente já pode falar dela para os filhos. Alguns já estão falando dela para seus netos. Mas ela permanece uma área de referência muito forte, graças à variedade de desejos políticos, não burocratizados, que mobilizou e colocou em discussão. E permaneceu ainda mais forte porque a década de 70 foi um período de refluxo e rebordosas as mais variadas, tornando ainda mais sedutoras as possibilidades desencadeadas na década de 60. E nada mais maldito do que a Geração Beat, que teve seus anos de máxima potência entre, justamente, 55 e 60. Com as cabeças feitas pelo ácido, saíam pela estrada figuras como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady e outros tantos tidos como malditos.


É o maldito Allen Ginsberg, velho admirador e conhecedor de artistas franceses (não menos malditos) como Apollinaire, Rimbaud, Celine, Breton, quem vai fazer a ponte entre a geração Beat americana e os movimentos europeus de contestação na década de 60. Essas considerações todas nos levam à questão central da matéria: maldição. Por que, desde a antiguidade, alguns artistas foram considerados malditos? Que conceitos regem a classificação? Na realidade, maldição (do latim male e dictio) refere-se, de certo modo, à má dicção, mau dito, mau feito. Enfim valores do bem e do mal, do bom e do mau.


A maldição implica sempre estar à margem da sociedade. Ser maldito em arte ou na vida, ou em ambas, é um fardo que não se carrega voluntariamente, pois o criador, ainda que nem sempre consiga, almeja a compreensão, quer estar ao lado do homem, quer subir junto com ele. Maldito é um rótulo que não permite a indiferença e que revela o fato artístico como elemento de inquietação e inconformismo, e quem o realiza como agente confesso ou não da transgressão e da dessacralização. O maldito se posiciona à margem da cultura dominante com seus valores estabelecidos, parâmetro pelo qual se julga o novo. A maldição não é procurada, é simplesmente vivida.


Foi vivendo a maldição que Jean-Luc Godard, por exemplo, realizou Je Vous Salue Marie, onde trata de uma forma totalmente inesperada, irônica e desmistificadora, figuras como a da Virgem Mareia e de José. Ao longo de sua carreira, Godard foi um contestador profissional dentro de sua arte, procurando derrubar os tabus. “O que eu quero antes de tudo é destruir a idéia de cultura”, declarou certa vez.

A maldição é condição de quem nela está, de quem não concorda com as regras artísticas ou sociais, ou ambas, e deseja a sua mudança, contribuindo para subverte-la, antecipando o futuro e, muitas vezes, preparando um paradoxo póstumo, o reconhecimento de sua obra pela história, a imposição de um novo rótulo para atenuar a contundência de sua ação: os clássicos Rimbaud, Van Gogh, Pasolini ou mesmo Glauber Rocha, incompreendidos quando vivos, incensados quando mortos, itens importantes no quadro da indústria cultural que tem na arte dita maldita um potencial mercadológico constante.


O fato que mais ressalta na vida e nas obras desses autores malditos é que eles transgrediram os preceitos morais dominantes em suas épocas. Van Gogh só vendeu um quadro em vida e terminou suicidando-se de desespero. Ernest Hemingway, ao sentir-se incapaz de criar, teve o mesmo fim. Baudelaire, além de ir parar nas barras dos tribunais acusado de imoralismo em seu livro, era um excêntrico na maneira de se comportar em público. Enfim, esses homens hoje considerados geniais sofreram na vida as mais diversas privações. Assim sofreu também o dramaturgo Jean Genet, com sua força poética, violência, erotismo criminoso e fantasia desvairada. Quem viu o filme “Querelle”, de Fassbinder a partir da história de Genet, pode comprovar a maldição desse francês irreverente.



22 julho 2019

Quadrinho minimalista de Alexandre S. Lourenço: Boxe


Boxe é a primeira HQ impressa do quadrinista carioca Alexandre S. Lourenço. Lançada em 2017 marca a estreia da La Gougoutte, selo do estúdio homônimo em Curitiba, dividido por Lourenço com os também quadrinhistas Bianca Pinheiro, Yoshi Itice e Greg Stella. A ideia é que as publicações independentes do quarteto saiam sob esse selo.


O foco é o embate entre dois boxeadores pelo título municipal de boxe amador de São José dos Pinhais. De um lado, Raul “Seis Cabeças” Quintino e do outro Fabrizio “Fabuloso” Figueiredo, também conhecido como “O Rei do Boqueirão”. Os lutadores compartilham 368 cenas de troca de cruzados, ganchos, diretos que se repete e o confronto ganha contornos dramáticos a partir de seu terceiro round. No entanto, encerrada a luta, o quadrinho ganha outro tom, ainda mais emocionante que o combate entre os boxeadores.


Nas 22 páginas o leitor desfruta de belas ilustrações. São 35 quadros por página durante quase todo o gibi: desenho miudos e livres de requadro que dão a impressão de vermos mesmo uma batalha em miniatura na nossa frente: Lourenço nos traz o Boxe de Bolso. A série de desenhos apresenta pouco texto, necessário. A luta é de 368 quadros. Esse recurso é muito eficiente pois mantêm a cadência do combate, como um bom pugilista. Na grade fixa da página a sequência de desenhos miúdos e a repetição de alguns dos quadrinhos. É preciso que o leitor acompanhe essa luta para descobrir a força dessa narrativa. Excelente.


Ele utiliza a linguagem de quadrinhos no Brasil como poucos. A obra prende a atenção do leitor do começa ao fim. Em cada movimento ele revela algo e domina muito bem a linguagem quadrinhográfica. Arte minimalista com qualidade! A força criativa desse álbum vem das sutilezas. O gibi marca a estreia do selo La Gougoutte. Compre.Com formato 21 x 29,7 cm e 22 páginas coloridas, a revista custa R$ 22,00 e está à venda no site do autor e também na Amazon Brasil.

Antes Lourenço publicou obras em formatos quadrados Robô Esmaga (JBC, 2015) e Você é um babaca, Bernardo (Mino, 2016), duas Gibi sim, senhor (independente, 2012 e 20113), Boxe é vertical (29,7 x 21 cm). Durma Bem, Monstro (La Gougoutte, 2018. 20,5 x 27,5 cm). O quadrinista já publicou na Café Espacial, Folha de São Paulo, participou da Antologia o Fabuloso Quadrinho Brasileiro e mantém desde 2010 o blog robô esmaga.




19 julho 2019

Maurício de Sousa: 60 anos de quadrinhos


Há 60 anos Maurício de Sousa publicava a sua primeira tira na Folha de São Paulo: 19 de julho de 1959. Não parou mais. Primeiro criou Bidu e Franjinha conquistando um espaço para publicar suas histórias semanalmente nos jornais do grupo Folhas. Um ano mais tarde, fazia tiras diárias de Bidu, Cebolinha (criado em 1960) e Piteco e lançava a Revista do Bidu, pela Editora Continental. Em 1963, Maurício já dirigia uma pequena equipe de desenhistas e iniciava a publicação de novos personagens no Diário da Noite – Chico Bento, Penadinho, Astronauta e Boa Bola. Naquele mesmo ano, saía a Folhinha de São Paulo, com um novo personagem, o dinossauro Horácio, que ele considerava um reflexo de si mesmo.


Finalmente, em 1966, fundou sua própria distribuidora, sustentando-se com as tiras e histórias em quadrinhos. A decisão de associar suas criaturas ao merchandising veio em 1968, como uma decorrência natural do sucesso artístico de seus personagens, quando Mauricio colocou sua Turma da Mônica a serviço da Trol e da Duplex. Daquela época em diante ele passou a firmar contratos com grandes indústrias para a produção de uma enorme variação de itens que incluía alimentos, artigos escolares, vestuário, cama e mesa, enfeites para festas, brinquedos, sombrinhas e aparelhos de som – totalizando mais de 3 mil produtos. Essa iniciativa valeu-se o prêmio Destaque de Marketing, na área de merchandising, concedido pela Associação Brasileira de Marketing em 1977.


EXPOSIÇÃO - Para celebrar os 60 anos, a Mauricio de Sousa Produções começou a exposição inédita Olá, Mauricio!, no Espaço de Exposições do Centro Cultural Fiesp (Avenida Paulista, 1313), em São Paulo/SP. A mostra permanecerá aberta ao público até o dia 15 de dezembro e os horários de visitação são terça a sábado, das 10h às 22h, e domingo, das 10h às 20h. A entrada é gratuita.

Estão expostas obras que mostram parte das criações das centenas de personagens e trajetoria do desenhista Maurício de Sousa, e destaca a história dos quase 500 personagens da MSP, base da criação de diversos produtos culturais, como os quadrinhos, reconhecidos no processo de alfabetização de milhares de brasileiros, além de apps, jogos, desenhos animados, filmes, animações e mais de 3.500 produtos licenciados.


DESENHOS ANIMADOS - A partir de 1969, Mauricio de Sousa lançava-se na produção de desenhos animados, executando mais de uma centena de comerciais com seus personagens para empresas como a Cica, Caloi, Phebo, Estrela e Haspa, para campanhas internacionais – como a de economia de energia elétrica no Pará – passado por alguns especiais para a televisão, como o Natal da Turma da Mônica.

Consolidadas as tiras em quadrinhos, Maurício partiu para as revistas. Em 970, um contrato com a Editora Abril colocou nas bancas de todo o país as revistas Mônica, Cebolinha e Pelezinho – um time aumentado com as revistas Cascão e Chico Bento – que garantia sua tiragem mensal de cerca de 1 milhão de exemplares.


PELO MUNDO - Em 1974, os personagens de Mauricio de Sousa começaram a empreender uma longa e vitoriosa viagem pelo mundo. Naquele ano, um contrato entre Mauricio de Sousa Produções e a United Feature Syndicate levava suas histórias aos Estados Unidos em através da UPI (United Press International), a mais de 20 países. No Japão, por exemplo, graças a um acordo com a empresa Sanrio, de Tóquio, o dinossauro Horácio foi um dos maiores heróis das histórias em quadrinhos. E houve toda uma linha de artigos escolares desse personagem para o resto do mundo.

Quando trocou a Abril pela Globo, o estúdio Mauricio de Sousa Produções estava crescendo e queria atuar em outros segmentos além dos quadrinhos, como a televisão, o rádio e os discos. Em abril de 1991, os gibis da Turma da Mônica, somados, alcançaram vendagem superior a 2,3 milhões de exemplares mensais e ocuparam as dez primeiras posições no ranking nacional. Quem atestou as informações foi o IVC (Instituto Verificador de Circulação), no boletim sobre o desempenho do setor no terceiro bimestre de 1990. Maurício imprimiu 31 milhões de exemplares de revista em 1990.

Primeiro cartunista a ocupar uma cadeira na Academia de Letras de São Paulo, Maurício de Sousa desenvolve trabalho diretamente ligado à formação infantil. Só em 2014, 520 livros didáticos utilizaram conteúdo da Turma da Mônica. Ele empresa seu nome à Maurício de Sousa Produções, empresa responsável pela sua marca, com mais do que revistas. São cerca de três mil produtos infantis, variando entre brinquedos, utensílios domésticos e roupas.


DIREITOS HUMANOS - No ano de 1998, Mauricio de Sousa recebeu a medalha dos Direitos Humanos, das mãos do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2006, saiu da Editora Globo e levou a sua criação para a Editora Panini, uma multinacional italiana.

Atualmente, entre quadrinhos e tiras de jornais, as criações do grande cartunista brasileiro chegam a cerca de 50 países, com 1 bilhão de revistas publicadas, além de livros ilustrados, revistas de atividades, álbum de figurinhas, livros em braile, CDs e livros tridimensionais. Além da Turma da Mônica, que é a principal, Mauricio de Sousa também é responsável pela turma do Chico Bento, a turma do Bidu, da Tina, do Pelezinho e do Piteco, dentre vários outros personagens.

Agora em 2019 o universo criado por Maurício de Sousa expandirá para a televisão, videogames e smartphones. A MSP anunciou uma parceria com a produtora de televisão HBO a criação de uma série animada do personagem Astronauta. Outra parceria entre a MSP no mundo da televisão diz respeito à série de quadrinhos Turma da Mônica Jovem, desenvolvida com os personagens clássicos - Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali - em suas versões adolescentes. Essa criação da Maurício de Sousa terá uma série animada e será transmitida no canal de televisão fechada Cartoon Network. A MSP criará um aplicativo que disponibilizará todo o acervo de gibis da Turma da Mônica.


Títulos novos, que serão distribuídos nas bancas e livrarias, e arcos diferenciados, como as graphic novels, também estarão dentro da aplicação. A Turma da Mônica irá voltar ao mundo dos videogames em 2019. Para os consoles - PS4, Xbox, Nintendo Switch e PC -, haverá o lançamento do jogo “Turma da Mônica e a Guarda dos Coelhos”, que será desenvolvido em 2D, com jogabilidade arcade, semelhante ao que se vivencia nos fliperamas. Será possível jogar com até quatro pessoas ao mesmo tempo.  Em 2011 Maurício esteve na Câmara de Vereadores para a sessão solene de entrega do título de cidadão de Salvador, Na foto o artista está ao lado do desenhista Antonio Cedraz e do estudioso Gutemberg Cruz na foto de Rodrigo Soares.



18 julho 2019

Quando vão reeditar O Ferrão do Escorpião com Capitão América?


Ele foi criado para inspirar os americanos durante a Segunda Guerra e se tornou o mais famoso dos heróis patrióticos. O Sentinela da Liberdade já enfrentou nazistas, super vilões, terroristas e o próprio governo. Um homem que luta contra a opressão e a injustiça: Capitão América. O personagem não foi o primeiro super herói de quadrinhos com o uniforme baseado na bandeira americana. Esse título pertence ao Escudo, um herói criado pela editora MLJ em janeiro de 1940. Jack Kirby afirmou, certa vez, que sua criação era melhor: “Tinha a bandeira e ele fica bom mesmo assim. Nós demos a ele uma camiseta de cotton e um escudo, como um cavaleiro cruzado moderno. As asas no elmo eram de Mercúrio. O Capitão América simbolizava o sonho americano”.


Criado em 1941 por Jack Kirby e Joe Simon, durante a Segunda Guerra Mundial, o personagem foi encomendado pela editora Timely Comics (mais tarde Marvel Comics), que queria um herói patriótico para combater a ameaça nazifascista, representando, defendendo e divulgando os ideais e as políticas norte-americanas predominantes no período. Em seu mundo fictício da Segunda Guerra Mundial, o jovem patriota Steve Rogers, após ser recusado pelo exército devido às suas condições físicas inadequadas, teve uma segunda oportunidade de se engajar no esforço de guerra contra o Eixo ao ser submetido a um projeto secreto que o transformou em um supersoldado: o Capitão América. Um defensor dos Estados Unidos, de seu modo de vida e ideais, ao ser caracterizado como um super-herói explicitamente americano ele se estabeleceu ao mesmo tempo como um representante de uma nação americana idealizada e como um defensor do status quo americano.


Entretanto, ao longo de sua existência (mais de 70 anos), o personagem passou por diversas equipes criativas que introduziram consecutivas adaptações para mantê-lo atualizado, consumível e com algum significado para diversas gerações de leitores. Isto o transformou em um personagem que é familiar a diversas gerações de americanos. Essas interpretações do personagem e sua permanência no imaginário político e cultural dos Estados Unidos conferiam ao Capitão América uma característica de símbolo nacional que poucos super-heróis de HQs têm.


A história (de Stan Lee com ilustrações de Gene Colan e Joe Sinnott) O Ferrão do Escorpião foi publicada em dezembro de 1969 nos EUA. No Brasil saiu pela Editora Brasil-América na revista A Maior  nº5 em outubro de 1970. O personagem estava em dúvida existencial e ideológica em pleno final da década de 60, e esse fato foi um marco para os quadrinhos. O herói-bandeira se perguntava se os rebeldes estavam errados e lamentava: “não fui ensinado a aceitar as regras de hoje em dia!”, para depois colocar em dúvida tudo pelo qual lutou: “talvez fôsse melhor eu ter lutado menos e perguntado mais”.

Capitão América é o símbolo máximo da editora Marvel e da proclamação dos ideais norte-americanos pelo mundo afora desde sua origem, que vão de sua luta contra as forças nazistas, de sua dedicação como rapaz que servir a seu país a qualquer custo, passando pelo seu uniforme. Quando o mundo mudou o herói foi readaptado para a década de 1960, ele continuava sendo o porta-voz da ideologia norte-americana, proclamando seu padrão pelo mundo, e no século 21 ele passou a ser um soldado, líder de uma força antiterror, que enfrenta organizações inimigas até alienígenas.


Hoje, 50 anos depois do lançamento é de se perguntar às editoras brasileiras: porque foram reeditadas muitas das narrativas do Capitão América em suas diversas fases e nunca essa (O Ferrão do Escorpião). Qual o motivo? A história continua atual.



17 julho 2019

Asterix comemora 60 anos


Criado em 1959 pelo italiano Alberto Uderzo, e por um judeu crescido na Argentina, René Goscinny, a mais francesa das histórias em quadrinhos, Asterix comemora 60 anos no dia 29 de outubro. As aventuras dos gauleses vão ter um ano com várias iniciativas especiais. Uma delas é a publicação de um novo livro, ainda sem título, que chega às livrarias poucos dias antes do aniversário, a 24 de outubro. Está a ser finalizado pelos sucessores de Goscinny e Uderzo, Didier Conrad e Jean-Yves Ferri. É o álbum número 38 das aventuras de Astérix e Obélix.



Ainda em 2019 o universo de Astérix terá ainda reedições de luxo, um audiolivro, um livro de arte relacionado com a saga, e um tributo a estes gauleses de vários ilustradores. Além disso, em janeiro, estreou em Portugal o filme “Astérix e o Segredo da Poção Mágica”. Um dos personagens de quadrinhos mais famosos da França (e do mundo também), Asterix, ganhou uma homenagem nas moedas de dois euros para celebrar os 60 anos de sua criação.

 


Ele nasceu na revista Pilote, como insulto aos livros escolares que contavam as glórias dos gauleses, “antigos franceses”. E acabou adotado como material didático. De insulto, o personagem passou a identidade nacional. Unindo aulas de história com muito humor, os até agora 37 álbuns de Asterix, o Gaulês são um verdadeiro tesouro dos quadrinhos que precisam ser explorados e devorados por todos, além das adaptações para TV e cinema. Além das histórias serem muito boas, elas representavam um sentimento nacional francês. Na década de 1950 o país perdia sua importância para a nova potência mundial, os EUA e Asterix acabou se tornando símbolo da resistência cultural francesa. Publicado no Brasil pela editora Record desde 1983, o personagem clássico Asterix ganhou uma nova casa. Segundo o Universo HQ, a partir de agora a Panini é a nova editora do gaulês em nosso país.



GUERREIRO - Asterix, o gaulês, apareceu pela primeira vez na revista francesa Pilote, em histórias apresentadas em capítulos. O personagem era um guerreiro baixinho e de aparência inofensiva que habitava uma aldeia da Gália (território que compreendia França, Bélgica e a Itália) por volta de 50 a.C. À época, o poderoso império romano já havia invadido a região, mas encontra resistência exatamente da aldeia de Asterix, já que seus habitantes rechaçavam os invasores graças à enorme força que conseguem ao tomar a poção mágica do druida da aldeia.

 


O maior aliado de Asterix é o grandalhão Obelix, que é proibido de tomar a poção mágica, pois caiu dentro do caldeirão da poção quando era bebê e desenvolveu força constante. Ao lado de Obelix e do cãozinho Ideiafix, Asterix viveu inúmeras aventuras ao redor do mundo, contadas em 35 álbuns em quadrinhos que já venderam um total de 325 milhões de exemplares em diversas línguas. A série já rendeu filmes, desenhos animados e um parque temático, além de ganhar alguns dos mais importantes prêmios da indústria dos quadrinhos ao longo dos anos.



Além da força que obtém ao tomar a poção, Asterix também se destaca pela inteligência

Aliados e coadjuvantes: Obelix, seu atrapalhado melhor amigo; Ideiafix, o cãozinho aventureiro; Panoramix, o druida que cria as poções mágicas para a aldeia; Abracurcix, o chefe da aldeia; Chatotorix, o desafinado cantor da aldeia

 


Criado pelo roteirista René Goscinny (1926-1977) e pelo desenhista Albert Uderzo (nascido em 1927), o personagem e suas aventuras pelo mundo antigo foram sucesso imediato, tornando-se uma das BDs (sigla de bande dessinée que, em tradução literal significa “tira desenhada” ou, na tradução mais correta, simplesmente histórias em quadrinhos) mais famosas do mundo. O primeiro álbum, publicado em 1961 (Asterix, o Gaulês, contendo material dos números 1 a 38 da Pilote), vendeu 6 mil cópias na França à época de seu lançamento. O segundo álbum, A Foice de Ouro, publicado em 1962, vendeu 20 mil cópias. Só aí, com a triplicação das vendas em apenas um ano na década de 60, é possível notar o quão influente a obra da dupla Goscinny/Uderzo seria. E não deu outra. O nono álbum, Asterix e os Normandos, de 1967, vendeu impressionantes 1,2 milhões de cópias não durante o ano de seu lançamento, mas em apenas dois dias.



Asterix continuaria sendo publicado basicamente na proporção de um álbum por ano até 1979, com Asterix na Bélgica, o último álbum contando com o desenhista René Goscinny, que morrera em 1977, em meio à produção. Mas Albert Uderzo continuou sozinho, assumindo o manto de escritor também e, mesmo com menos qualidade, manteve seus personagens vivos até 2005, ainda que com maior espaçamento entre cada publicação. Somente em 2013, Uderzo passou o bastão adiante, permitindo que o primeiro álbum sem sua participação direta fosse lançado: Asterix e os Pictos com desenhos de Didier Conrad e Jean-Yves Ferri.

 


Goscinny também roteirizou outros personagens que fizeram sucesso nos quadrinhos, como Lucky Luke, personagem criado pelo desenhista Morris (Maurice de Bevère), em 1946, que satirizava os cowboys americanos (Goscinny passa a escrever a partir da década de 50), e Iznogoud, criado em 1962 (desenhado por Jean Tabary), grão-vizir que queria ser califa e elaborava planos para usurpar o trono. Goscinny exercitou toda sua verve cômica e seu pendor para trocadilhos, que abundam na história. Mesmo os nomes dos personagens são trocadilhos. Asterix vem de asterisco e Obelix vem de Obelisco. A dupla tem um cachorro de estimação, Ideiafix, que ganhou esse nome por tinha a ideia fixa de segui-los para onde quer que eles fossem. Na história, todos os gauleses têm nomes terminados em ¨ix¨, os romanos nomes terminados em ¨us¨ (Acendealuz, Apagaluz, etc).



As histórias de Asterix ganharam as salas de cinema nos anos 60. O primeiro desenho animado foi “Asterix, o gaulês” (1967). Em 1999, o diretor Claude Zidi transpôs para as telas os personagens em carne e osso em “Asterix e Obelix contra César”, com Christian Clavier no papel de Asterix e Gérard Depardieu como Obelix. Os números relativos à Asterix são grandiosos: 37 álbuns, oito longas animados e quatro filmes (sempre com Depardieu no papel de Obelix). As histórias foram traduzidas para 83 línguas e os álbuns já venderam 350 milhões de exemplares em todo o planeta e inspiraram jogos, brinquedos e um parque temático, localizado nos arredores de Paris.

 


Mary Beard – especialista no mundo romano da Universidade de Cambridge (leia uma entrevista com ela em espanhol) – se perguntava em seu último livro, Confronting the classics (Confrontando os clássicos, em tradução livre, não publicado no Brasil), sobre o motivo do sucesso de Asterix e também sobre a dificuldade para exportar a historieta aos Estados Unidos, um dos últimos lugares do Ocidente imunes à poção mágica e, em geral, à chamada linha clara europeia (tipo história em quadrinhos feita com desenhos de linhas de espessura uniforme, narrativa linear e bem-humorada e temática que privilegia a aventura e referências históricas). "Asterix é selvagemente europeu", explicava Beard. "O legado do Império Romano proporciona um marco dentro da cultura popular para que os diferentes países europeus falem sobre cada um deles, sobre sua história e seus mitos compartilhados". Como diriam os Monty Python, o sucesso do povo gaulês se explica pelo que os romanos fizeram por nós, pelas marcas – culturais e não apenas linguísticas – que Roma deixou.