26 dezembro 2022

Em busca do quadrinho perdido: bela viagem

 

O mais amado quadrinho franco-belga é tema de uma graphic novel afetiva, emotiva, visceral, mágica: Em Busca do Tintin Perdido, fantasia autobiográfica de Ricardo Leite e publicado pela Editora Noir.  Ler essa obra me fez voltar a infância, essa relação afetiva que tenho com os quadrinhos. Lembro-me da minha grande admiração em ler Luluzinha, Flecha Ligeira, Fantasma, Batman, Tarzan e muitas outras. As trocas das revistas. Antes das sessões dos seriados havia troca de gibis. Era uma felicidade total a troca de gibis. Os olhos brilhavam com aquelas aventuras dos heróis da nossa infância, do nosso imaginário. E como sonhava com aqueles gibis. Muitas vezes esquecia de toda aquela pobreza em volta para sonhar com esses mitos, esses deuses de nossa imaginação.

 


Mas voltando ao trabalho de Ricardo, ele fez um passeio pela historieta, uma espécie de tributo a essa mídia proporciona. Nesse universo encantado ele presta homenagem aos artistas criadores de personagens que abriram portas para o fantástico. E provaram que o sonho é tão real ou mais verdadeiro que a realidade.

 


A aventura tem como pano de fundo uma viagem a Bruxelas para visitar o Museu Hergé. Através dessa fantasia autobiográfica, ele convida o leitor a reviver a seu lado uma jornada mágica e inspiradora que despertou seu desejo adormecido de desenhar quadrinhos. Um resgate emocional! O artista passeia por suas memórias e revive encontros, imaginários ou não, com centenas de grandes mestres da 9ª Arte. Ao longo das páginas, eles discutem técnicas de desenho e falam sobre as diversas escolas de linguagem, passando pelos grandes festivais de Quadrinhos de Itália, França, Bélgica e Brasil. Um grande mergulho no universo mágico dessa mídia fabulosa!

 

Do Brasil ele presta homenagem aos pesquisadores Álvaro Moya, Gonçalo Jr, Moacy Cirne entre outros. Vai do quadrinho de Ângelo Agostini (Nhô Quim) a Ziraldo (Pererê, Menino Maluquinho). Passa pelo quadrinho escatológico de Marcatti, as inquietudes de Laerte, a luminosidade de Mozart Couto, o sombreamento de Julio Shimamoto, o estilizado traço de Flavio Colin, o humor anárquico de Angeli, o caligráfico Henfil, Mauricio de Sousa e muitos outros.

 


Abrir as páginas dessa obra foi um revival de prazeres, lembrar do desenho clássico de Alex Raymond, do experimentalismo de Robert Crumb, da magia de Manara, Moebius, Guido Crepax. O artista conta, com sensibilidade e maestria, a história de nossa infância pelos quadrinhos. Esse amor imenso. Ele nos propõe um permanente diálogo imaginário (sobre a arte, a técnica e a história dos Quadrinhos) com os grandes criadores, por vezes, baseado em encontros reais ou inspirados por numerosas leituras. Um resgate emocional. Vale a pena conferir!.

 

 

23 dezembro 2022

Poesia e lirismo em nossos quadrinhos

 

Lirismo e poesia nos quadrinhos. Atualmente é o que mais gosto. E neste final de dezembro de 2022 fui surpreendido por duas publicações especiais: Big Hug de Melissa Garabeli e Phillip Willies, a outra, E o Mar Me Trouxe Até Aqui de Phellip Willian e Eduardo Ribas.


 

Big Hug é uma excelente brincadeira em forma de gibi. O título foi viabilizado através da plataforma colaborativa Catarse. Hug, o protagonista, vê sair de si mesmo um pequeno ser peludo. Quando tenta pegá-lo para o abraçar, o pequeno animal foge por entre as páginas, quadros e vários outros lugares. Assim nasce uma verdadeira aventura de "gato e rato", em um quadrinho que explora a linguagem de quadrinhos para além do caminho tradicional.


 

Este uso de recursos metalingüísticos é um meio do autor exercer sua criatividade, e muitas vezes obter bons resultados.  O uso da metalinguagem tem resultados positivos em duas situações, independentemente se o resultado criativo é maior ou menor. A primeira situação é quando é usada para fins humorísticos ou satíricos. Neste caso, a quebra das regras e convenções será sempre um desafio ao espectador, e a presença do inusitado, uma fonte de humor. A segunda situação é quando o objetivo é didático, ou seja, analisar e criticar os próprios códigos. 


 

A dupla Garabeli e Willian esbanja criatividade numa hq que vale a pena ler. Brinca com a narrativa dos quadrinhos rompendo quadros, rompendo a historieta além de nos envolver com bom humor e carinho entre os personagens. 

 

Escritor e roteirista, Phellip é formado em Letras pela UEPG e Mestre em Linguagem e doutorando em literatura. Atua como pesquisador de linguagens iconoverbais, principalmente quadrinhos. Lançou com a Melissa Garabeli a graphic novel Saudade (2018), finalista do Jabuti, vencedor do HQmix e do Angelo Agostini. Depois fez Uma nuvem no Seu oliveira (2021, com o Edu), Calmaria (2022) e E o mar me trouxe até aqui (2022).

Há potencialidade autorreflexiva e poética dos quadrinhos dessa dupla. São quadrinhos silenciosos, mudos, sem palavras. Muitas são as denominações dessas publicações onde não há uso de nada mais do que desenhos, um do lado do outro, contando uma história. As publicações de histórias em quadrinhos sem balões ou textos de acompanhamento fornecem aos leitores a liberdade de interpretação da narrativa desenhada. Os processos editoriais de HQs sem palavras são considerados por alguns quadrinistas como as mais desafiadoras, desde a criação até a impressão. Ao tentar traduzir em imagem as sequências que melhor expressam as ideias da mensagem a ser transmitida ou daquilo que deveria ser dito por um personagem, exige do artista um trabalho que envolva os elementos de expressão corporal, facial e gestuais. Além de domínio da cena para que a interpretação global possibilite ao leitor compreender a ambientação da história

Melissa Garabeli é ilustradora e quadrinista. Já trabalhou em diversos projetos e tem oito livros lançados. Em 2019, ganhou o prêmio HQmix de novo talento desenhista; o prêmio Angelo Agostini de melhor publicação independente; e foi finalista do prêmio Jabuti. Recentemente, lançou o infantil O urso e o Eco e sua graphic novel Calmaria (2022). É conhecida pelo seu trabalho como aquarelista, mas tá arriscando um pouco o digital no HUG. Ela adora bichos e, se dependesse dela, só desenharia animais. Vale dizer que ela é tutora da Chewie e da Leia, além de resgatar vários bichos da rua.


 

Já a graphic novel E o Mar Me Trouxe Até Aqui (dos artistas Phellip Willian e Eduardo Ribas) narra a aventura de um menino perdido no oceano. Sem memórias, sem saber para onde ir, o personagem encara desafios e encontra pessoas e animais que somente o mar proporciona. A dupla  brinca com os signos presentes no mar ao passo de entender os desafios das  exigências sociais e expectativas pessoais na formação de um menino homem. A obra tem um formato próximo de mangá (16×23), com miolo em Polen Bold e capa cartonada, e conta com 120 páginas em preto e branco. 

 

Segundo Eduardo Ribas, E o mar me trouxe até aqui tem sido um dos mais desafiadores que ele já desenhou. Um quadrinho mais metafórico e sugestivo, que surgiu depois de Phellip postar uma frase em uma rede social. “A ideia do quadrinho surgiu depois de uma sessão de terapia minha. Descrevendo o quanto


me esforço com trabalhos desde os 15 anos (e que nunca tive pausas desde então), eu me imaginei perdido no mar, tendo que nadar incessantemente, enquanto tinha esperança de um dia poder tirar férias, descansar ou mesmo me sentir satisfeito. Esta imagem ficou presa em minha cabeça, até que virou uma frase solta no Twitter. O Edu gostou da frase e propôs uma parceria, resultando no gibi que agora lançamos juntos”, conta Phellip Willian.

Escritor e roteirista, Phellip é formado em Letras pela UEPG e Mestre em Linguagem e doutorando em literatura. Atua como pesquisador de linguagens iconoverbais, principalmente quadrinhos. Lançou com a Melissa Garabeli a graphic novel Saudade (2018), finalista do Jabuti, vencedor do HQmix e do Angelo Agostini. Atualmente trabalha com worldbuilding para jogos e tem um perfil de poesia chamado @enquantohouver.

 


Paulista de nascimento e morando no RS desde 2005, Eduardo Ribas iniciou seu passeio nos quadrinhos em 2017, lançando O jogo mais difícil do mundo. Desde então, vem lançando histórias curtas como a "não-trilogia" de espada e magia PÛT, MÄQ e TÔM. Sempre de forma independente, segue produzindo e publicando histórias enquanto ganha dinheiro de outras formas.

 

22 dezembro 2022

A,B,C dos personagens do quadrinho brasileiro (De Nhô Quim, de Agostini aos Zeróis, de Ziraldo) (06)

 


Nem só de super-heróis imbatíveis e heroínas que nunca choram são feitas as HQs, seja no formato impresso, sejam as publicadas em páginas virtuais. Depressão, solidão,  melancolia,  ansiedade, crises existenciais, pessimismo, frustração – viram mote para diversos artistas do segmento do quadrinho alternativo ou independente. Quadrinhos reflexivos viram uma maneira de passar aos leitores a mensagem de que todos sofremos, em diferente grau e constância. Quadrinhos são uma linguagem complexa e podem servir para falar de qualquer coisa, só depende da intenção do autor.

 

O jeito convencional de produzir tiras com personagens regulares e um desfecho cômico inesperado, começou a ser repensado pelo cartunista Laerte em meados da virada do século. Foi quando ele começou a amadurecer a guinada de rumo que iria dar anos depois. Em 2003 ele produziu uma série de tiras abordando para onde teria ido o humor. Sem personagem fixo. Mas com humor. A partir de 2005 as tiras de Laerte tendem, a ter liberdades temática, estética e estrutural, ausência de personagens e situações fixas, experimentação gráfica.

 


A ausência de personagens regulares era algo que já ocorria no Brasil. Laerte fazia isso na série Classificados, publicadas na Folha de S.Paulo na segunda metade da década de 1990. Paulo Caruso enveredou pelo mesmo caminho ainda antes, na década de 1980 com a série Mil e uma Noites, no Jornal do Brasil. Em Violência Gratuita, publicada em 1994, Walmir Orlandeli, já utilizava o espaço de tiras de não possuir personagens fixos, abrindo possibilidades de falar do que quiser.

 


O novo caminho de Laerte influenciou a continuação de tiras mais descritivas de Caco Galhardo. O desenhista costumava chamar esses casos de Colirio na Folha de S.Paulo. Marcelo Campos produziu um conjunto de tiras para o livro Talvez Isso...(20007). Em 2010, o quadrinista Marcello Quintanilha estreou tiras no caderno de cultura do jornal O Estado de S.Paulo: Ensaio sobre a Bobeira, como um espaço de experimentação. Na internet, Rafael Sica registrou casos de experimentação no processo de criação de tiras em seu  blog intitulado Ordinário. Ainda nas páginas virtuais, Walmir Orlandeli deu início a série (SIC). José Aguiar é o autor de Nada com Coisa Alguma, série publicada no jornal paranaense Gazeta do Povo em 2011. Também circulou em mídias virtuais a tira H.E.I.T.O.R., de Heitor Isoda.

 

O mercado brasileiro de quadrinhos independentes está cada vez maior graças a iniciativas de financiamento coletivo e pequenas editoras incentivando a produção nacional. Para o estudioso Moacy Cirne, “só entenderemos os nossos quadrinhos entendendo melhor este país chamado Brasil: sua história, sua política, sua economia, sua variedade artística e cultural” (História e crítica dos quadrinhos, 1990, p.11).