25 setembro 2018

Impunidade, omissão, corrupção no Brasil


Uma educação voltada para a cidadania, que faça as pessoas se perceberem como parte de um coletivo, é uma forma de combater a corrupção. Onde a corrupção está presente, a sociedade em geral sofre. A corrupção debilita os sistemas judiciais e políticos, que deveriam trabalhar para o bem de todos, enfraquece a aplicação das leis e acaba por silenciar a voz do povo.

O desempenho da Justiça é comprometido pela sua morosidade, negligência das autoridades executivas, ardis de advogados chicaneiros e a vista grossa, complacente, das autoridades judiciais em tribunais abarrotados de processos civis e criminais. Uma reforma do Judiciário limitaria os casos de impunidade. E os retrocessos continuam.


Um deputado federal custa ao Brasil, mensalmente, R$ 179 mil, um deputado estadual, na Bahia, custa R$ 157 mil, e o Senado custa ao Brasil, por mês, 3 milhões, 72 mil e 433 reais. Já os magistrados (juízes, desembargadores, ministros) custam cada um, em média, R$ 47,7 mil por mês - incluindo salários, benefícios e auxílios. O custo de um magistrado é, portanto, quase 20 vezes a renda média do trabalhador brasileiro.


Pois esses dois poderes, Judiciário e Legislativo reivindicam reajustes que segundo eles, é constitucional. Os dois guardiões do equilíbrio de direitos e garantias, asseguram seus ganhos sempre no pico. É justo? O povo não concorda. Os maiores salários do Judiciário estão nos Tribunais de Justiça. Justiça para quem? Para eles.

O Brasil é um dos países que mais oferece possibilidade de apelação ou recursos, ao tempo em que assiste ao franco crescimento da criminalidade e dos índices de violência. O assunto está em discussão há alguns anos e um projeto de reforma do Código de Processo Penal tramita no Congresso Federal há década. Alguns consideram o Estatuto cada vez mais brando com os criminosos, outros defendem o recuo nas penas punitivas com a privação de liberdade. É preciso estabelecer também a súmula impeditiva de recursos. Isso irá prevenir o excesso de recursos que torna os processos muito lentos. Muitas vezes a lei admite brechas e os advogados usam todos os recursos permitidos a favor dos seus clientes.


A corrupção se tornou prática comum no Brasil. O quer se observa na política é que oposicionista e situacionista se corrompem em maior ou menor grau, quando no exercício do poder. Suas promessas de decoro no desempenho da representação popular chegaram a ser teatral. Eles próprios se imunizam contra acusações, parceiros de uma permissividade geral. O que se nota é que o corporativismo pesa, conforme mostraram os julgamentos de cassação de mandatos. Há uma solidariedade implícita entre eles, na certeza da impunidade. A única punição será pelo voto do eleitor. A impunidade no país tem contribuído para o grande aumento da criminalidade.


A cada dia cresce a crise ética que assola, em graus diversos, os três poderes. A maioria dos deputados rejeita qualquer reforma que reduza privilégios, vantagens e mordomias que compõem o ganho mensal de mais de R$100 mil de um dos melhores empregos do mundo. Há um novo modelo democrático no país, não se deixa escândalo sem resposta: apura-se o fato, encaminha-se à Justiça e fica por isso mesmo. Nada se pune nesse reino de mordomias, do sagrado privilégio da imunidade que cobre a cúpula dos três poderes.

Esse texto foi escrito e publicado há 10 anos, em 2008. As alterações foram atualizadas numericamente.



20 setembro 2018

Cordel ganha título de patrimônio imaterial do Brasil


A literatura de cordel foi reconhecida, por unanimidade, na última quarta-feira (19/09/2018) pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O gênero é ofício e meio de sobrevivência para inúmeros cidadãos brasileiros. Segundo o instituto, apesar de ter começado no Norte e no Nordeste do país, o cordel hoje é disseminado por todo o Brasil, principalmente por causa do processo de migração de populações. O cordel foi inserido na cultura brasileira ao final do século 19. O gênero resultou da conexão entre as tradições orais e escritas presentes na formação social brasileira e carrega vínculos com as culturas africana, indígena e europeia e árabe.

Histórico, moralista, biográfico, humorístico e até mesmo político são alguns temas que a literatura de cordel vem abordando desde o seu aparecimento até os dias atuais. Um dos poetas de cordel mais conceituado do Brasil foi o baiano Cuíca de Santo Amaro, justamente por causa de sua mordacidade – era um poeta satírico na linha de Gregório de Matos. Exibidos ao público em cordas estiradas no alto das barracas das feiras nordestinas – daí a expressão “literatura de cordel” -, os folhetos aparecem com as pequenas tipografias do interior e são consumidos principalmente por vaqueiros, lavradores e vendedores ambulantes.

Os mais variados temas são abordados pelos autores desses folhetos, desde pitorescas histórias, criadas pelo matuto (“A moça que dançou com uma caveira”), à crítica social (“O gozo da mocidade”), passando pela crendice popular (“A moça que sonhou com Padre Cícero e jogou no cavalo”). Também o fato político – real ou resultante da fantasia do povo – mereceu farta bibliografia.


O cordel ainda é o jornal por excelência do povo do interior, e o trovador é o seu repórter. Quando acontece um fato importante, ele tem de escrever o folheto rapidamente, mesmo que não dê lucro. Naqueles tempos, na zona rural, em lugares que nem o rádio alcançava, o povo só acreditava nos acontecimentos depois que lesse sobre eles nos versos do cordel. É famoso (e verídico) o caso do matuto que só acreditou que o homem foi à lua depois que leu os detalhes n um folheto popular. É a literatura de cordel refletindo a problemática social do homem nordestino.

O início da literatura de cordel está ligado à divulgação de histórias tradicionais, narrativas de velhas épocas que a memória popular foi conservando e transmitindo. São os chamados romances ou novelas de cavalaria, de amor, de narrativas de guerras, viagens ou conquistas marítimas. Mas ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, também começaram a aparecer no mesmo tipo de poesia e de apresentação, a descrição de fatos recentes, de acontecimentos sociais que prendiam a atenção popular.


A expressão literatura de cordel surgiu no Brasil entre 1875 e 1880, utilizada pelo folclorista Silvio Romero para definir o conjunto de folhetos de feira. O folheto tem habitualmente de oito a 64 páginas, mede 11 x 16cm e já circulava pelo Nordeste em meados do século XIX. Entre 1893 e 1908 surge a literatura de cordel brasileira, com a publicação de folhetos de pres poetas paraibanos: Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde.

As capas dos cordéis antigos eram ilustradas com vinhetas nas tipografias do interior nordestino. É a partir da década de 30 que surgem nas capas de postais, retratos de Padre Cícero e Lampião. E as xilografias (arte de gravar em madeira) só começam a aparecer regularmente a partir da década de 40. Franklin Cerqueira Machado (Maxado), de Feira de Santana, e Francisco Silva (Minelvino), de Itabuna são os xilógrafos mais conhecidos na Bahia.


No início da publicação da literatura de cordel no País, muitos autores de folhetos eram também cantadores, que improvisavam versos, viajando pelas fazendas, vilarejos e cidades pequenas do sertão. Com a criação de imprensas particulares em casas e barracas de poetas, mudou o sistema de divulgação. O autor do folheto podia ficar num mesmo lugar a maior parte do tempo, porque suas obras eram vendidas por folheteiros ou revendedores empregados por ele.

De custo baixo, geralmente estes pequenos livros são vendidos pelos próprios autores. Fazem grande sucesso em estados como Pernambuco, Ceará, Alagoas, Paraíba e Bahia. Este sucesso ocorre em função do preço baixo, do tom humorístico de muitos deles e também por retratarem fatos da vida cotidiana da cidade ou da região. Os principais assuntos retratados nos livretos são festas, política, secas, disputas, brigas, milagres, vida dos cangaceiros, atos de heroísmo, milagres, morte de personalidades.


Em versos de 10 ou 12 sílabas, em rica variação de versos, a poética de cada folheto conta fatos do cotidiano, estórias de bichos, casos pitorescos, de amor, de Lampião, Padre Cícero, Conselheiro, de figuras públicas, acontecimentos colhidos dos jornais, rádio e tevês, enfim, toda a gama do rico universo do nordestino. Os próprios poetas populares classificam a literatura de cordel em cinco temas mais frequentes: romance, valentia (história de um valentão, que sempre acaba mal), gracejo (uma história engraçada), desafio e encantamento (histórias de reinos encantados, com fadas e bruxas). Geralmente, o próprio poeta popular é o editor e vendedor de suas historinhas, que são penduradas num cordão, enquanto o autor, acompanhado de viola, canta trechos de seus poemas.

17 setembro 2018

HQ sueca promove desconstrução da vagina


Ao longo da história ela foi muito mal estudada. Seu nome é proibido, o cheiro é um tabu. Cientificamente ignorada por anos, teve suas características únicas minimizadas e foi tratada como um pênis que não deu certo — ou que estava de cabeça para baixo. Mas agora a vagina parece finalmente estar ganhando a atenção que merece. Usando a linguagem dos quadrinhos, com muita ironia, bom humor e uma extensa pesquisa histórica, a quadrinista sueca Liv Strömquist reconta como a relação da humanidade com a vagina e a vulva mudou ao longo dos tempos.

A obra A Origem do Mundo: uma história cultural da vagina ou da vulva vs. o patriarcado (lançado originalmente em 2014) já foi traduzida para mais de dez línguas e chegou às livrarias brasileiras pela Quadrinhos na Cia em 2018, selo de HQs da Companhia das Letras. Deliciosamente sarcástico, mas também instrutivo e bem pesquisado e, de uma forma arrojada, com humor afiado e usando uma personagem que conversa diretamente com o leitor, causando interação direta e empatia, a artista fala sobre a eterna luta  das mulheres pelo domínio do próprio corpo.  O quadrinho é praticamente um relato didático do quanto o patriarcado tentou conter, oprimir, castrar restringir, impedir, silenciar e padronizar o sexo feminino ao longo da história da humanidade.

O traço da autora é simples, plano e um tanto propositadamente naïve, porém muito bem coadunado com o uso da tipografia. É uma forma eficiente de acomodar o vasto volume de conhecimento histórico, antropológico e cultural que ela investiga para defender sua completa desconstrução a respeito do que se pensa sobre a vagina. Além de ser uma das quadrinistas mais reconhecidas da Suécia, Strömquist é também cientista política.

Lendo os quadrinhos, é possível saber sobre sociedades antigas que adoravam vaginas e como alguns cientistas que, segundo Liv, "que se interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar de 'genitália feminina'" ajudaram a transformá-las em algo vergonhoso, um assunto sobre o qual não se fala. Strömquist demonstra que sociedades arcaicas, em sua maioria paleolíticas, depositavam outro olhar sobre a vulva, que era central para seus imaginários culturais, associados à espiritualidade, fertilidade e, é claro, ao nascimento humano. Isso é algo que nossa cultura paradoxalmente prefere esquecer, talvez porque para o mundo masculino simplesmente não seja interessante associar a origem do mundo à sexualidade feminina. Não surpreende, portanto, que o quadro do pintor francês novecentista Gustave Courbet (A Origm do Mundo) ainda cause escândalo. Mas esta HQ sueca está aí para criar um novo vórtice.


A autora começa com um questionamento instigante: por que a genitália feminina é constantemente reduzida somente à vagina (que é apenas o orifício que liga as partes interna e externa da vulva)? Seria uma tentativa secular de simplificar as diversas partes do órgão sexual feminino e promover a sua invisibilidade? Um de seus argumentos mais pungentes é pegar as imagens dos humanos enviadas pela sonda Pioneer da NASA em 1972 com o intuito de informar civilizações alienígenas e notar que o desenho representando a mulher não possui genitália, e sim apenas uma espécie de espaço em branco.

A mensagem é clara: seria motivada por certa “inveja do pênis”, ou ela sequer existiria enquanto linguagem do inconsciente. O discurso da autora não coloca o desaparecimento da vulva apenas como parte de um erro cultural/científico, mas também de a tentativa de invisibilizar a vagina é a mesma de podar a autonomia sexual feminina, e logo o sujeito feminino como um todo. Como dizem clichês de psicanálise, a mulher uma doutrinação ideológica.


O próprio Freud é um dos que mais toma bordoadas de Strömquist, mas sobra também para outros pensadores célebres, como Sartre e Santo Agostinho. Eventualmente, a autora recai sobre certo anacronismo ao querer analisar pensamentos pré-científicos ou pseudo-científicos à luz da nossa ética e conhecimento atuais, mas a argumentação é sistemática, persistente e provocativa.

Para a autora, a culpabilização do prazer feminino foi um dos instrumentos mais efetivos de dominação do patriarcado sobre as mulheres. E ela explica o porque através deste quadrinho, necessário, esclarecedor, pontual, libertador, de uma forma crítica, sem deixar de ser hilária. Em entrevista à Tpm, Liv conta que “a percepção negativa do órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo”. Ela também reflete sobre menstruação, machismo e o papel dos homens em meio ao feminismo em ebulição.


“Acho que a percepção negativa do órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo. O órgão sexual feminino é retratado como algo fraco – "não seja uma pussy" –, enquanto o órgão sexual masculino está constantemente ligado a conotações positivas de potência, força, masculinidade e assim por diante. Claro que isso afeta como nos sentimos sobre nós mesmas e limita a ideia do que podemos fazer no mundo. É um auto-ódio, eu acho. Para mim foi importante descobrir e aprender todas as informações que conto no livro, porque isso me fez sentir mais fortalecida e espero que a leitora sinta o mesmo.”

Liv Strömquist, de 40 anos, nasceu em Österlen, sul da Suécia, um país que já “percorreu um longo caminho quando se trata de igualdade de gênero e educação sexual”, segundo ela. A cartunista é formada em ciência política e,  além dos quadrinhos, tem um podcast chamado Conversa de verão, em que fala sobre menstruação. Já escreveu uma peça de teatro e o roteiro de um curta sobre o cineasta Ingmar Bergman, que foi exibido em Cannes, este ano.


Em 2017, a artista foi convidada a expor a série The Night Garden, de desenhos de mulheres pintadas em preto e branco com manchas vermelhas na calcinha, no metrô de Estocolmo. As ilustrações, que se referiam à menstruação com naturalidade, provocaram críticas nas redes sociais e duas peças foram danificadas. Liv também é autora das HQs Cem por cento de gordura (2005), Desejo (2006), A mulher de Einstein (2008), Os sentimentos do príncipe Charles (2010) e A cartilha da Liv (2011), ainda não lançadas no Brasil.