14 setembro 2007

Linguagem sexual (6)

A linguagem sobre o sexo é o tema de hoje. A arte sacra é erótica. Já o barroco estava sempre em conflito entre o sagrado e o carnal. A imagem dos santos barrocos são bonitos para serem desejadas inconscientemente. Diante das imagens, queremos tocá-las, queremos senti-las, queremos desfrutar de sua beleza. Quanto mais bonita a imagem, mais queremos levá-la para casa, possuí-la, tê-la ao alcance de nossos olhos. A arte sacra é tão semiótica quanto um quadro do Van Gogh ou do Monet. É, sobretudo, uma adoração à imagem, ao que está implícito, ao que os olhos não conseguem captar, pois seu verdadeiro significado está nas inferências do próprio sentimento que desencadeia a leitura da imagem.

O pensador francês Michel Foucault observou que em quase todas as culturas existe uma arte erótica, isto é, formas de iniciação ao prazer e à satisfação sexual (como por exemplo, o Khama Sutra ou a arte amorosa japonesa). Em contrapartida, nossa cultura – cristã, européia, ocidental – deu origem a algo insólito: uma ciência sexual, curiosidade e vontade de tudo saber sobre o sexo para melhor controlá-lo. “Scientia sexuales” opõe-se culturalmente, segundo Foucault, a “ars erótica” que certas civilizações (China, Índia, mundo muçulmano) aplicam à sensualidade, definida como mistério e assunto passível de um processo de iniciação e aprendizado. A “scientia” ocidental procura, ao contrário, definir seus parâmetros dentro dos quais opera a inclusão do que é aceitável no campo da normalidade, e a exclusão do inaceitável deste mesmo campo. Mas ao excluí-los, é preciso estudá-los conscientemente. Os psiquiatras criam toda uma terminologia para designar o anormal. Krafft-Ebing estuda os zoófilos e os zooerastas; Rohleder trata dos auto-monossexuais. Surgem expressões como mixoscofilos, ginecomastas, presbiófilos sexoestéticos e mulheres dispareunistas. Cada uma destas perversões corresponde à identificação de um conjunto bem articulado de sintomas. A normalização do sexo implica, desta maneira.

As práticas de controle da sexualidade produziram violências que ainda hoje se reproduzem em sociedades africanas e entre os muçulmanos, como a extirpação do clitóris na mulher, que teriam seu contraponto nas práticas sadomasoquistas até os dias de hoje. Segundo a historiadora britânica Geraldine Brooks, o costume da circuncisão feminina se originou na África Central na Idade da Pedra, seguindo para o norte do continente africano. No Ocidente, a circuncisão era utilizada como processo terapêutico até os anos 50. Médicos britânicos e norte-americanos praticavam a clitoridectomia e a castração feminina (retirada dos ovários) para enfrentar melancolia e ninfomania. Até o século 19, acreditava-se que as mesmas práticas “curavam” histeria, masturbação, lesbianismo e epilepsia.

A partir do século X, a Igreja se empenha em aprimorar seus instrumentos de controle e dominação. Dois séculos mais tarde, ao instituir a confissão, vê-se em condições de reger o íntimo. Para o bispo Étienne de Fougères, a mulher é portadora de mal. Ele repete com vigor no “Livre dês manières” (Livro das maneiras), composto entre 1174 e 1178. Escreveu-o em língua romântica, dirigido, portanto, aos membros da corte, aos cavaleiros e às damas. Trata-se de um longo poema – 336 estrofes, 1.344 versos -, sob forma de um sermão. Uma coleção de seis sermões, cada um deles referente a uma categoria social, sublinhando seus defeitos específicos e propondo-lhe um modelo de conduta. Esse homem de Igreja julga, define as infrações a fim de as reprimir, baseando-se na autoridade de seus antecessores (Marbode, o bispo Burchard de Worms, entre outros), e deste modo assentar solidamente, pouco a pouco, as regras de uma moral.

“A Igreja decidiu colocar a sexualidade sob seu estrito controle. Estava, então, dominada pelo espírito monástico. A maior parte de seus dirigentes, e os mais empreendedores, eram ex-monges. Os monges acreditavam-se anjos. Como estes, pretendiam não ter sexo e vangloriavam-se de sua virgindade, professando o horror à mácula sexual. Por conseguinte, a Igreja dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus, proíbe servir-se de seu sexo; permite-o aos outros nas condições draconianas que decretou. Restavam as mulheres, o perigo, já que tudo giravam em torno delas. A Igreja decidiu subjuga-las. Com esse fim, definiu claramente os pecados de que as mulheres, por sua constituição, tornavam-se culpadas. No momento em que Burchard compunha a listas dessas faltas específicas, a autoridade eclesiástica acentuava seu esforço para reger a instituição matrimonial. Impor uma moral do casamento, dirigir a consciência das mulheres: mesmo projeto, mesmo combate. Ele foi longo. Acabou por transferir aos padres o poder dos pais de entregar a mão de sua filha a um genro, e por interpor um confessor entre o marido e sua esposa”, escreveu Georges Duboy no terceiro volume da trilogia Damas do século XII – “Eva e os Padres”.

A grande maioria das religiões, sempre preocupada com a elevação da alma, nunca soube muito bem o que fazer com o corpo. A preocupação do sexo é a manutenção da vida carnal. Nada a ver com a sublimação proposta pela religião, o sexo valoriza o instante ao invés da eternidade, o físico ao invés do espiritual, o imperfeito ao invés do perfeito. As sociedades matriarcais sempre encaram melhor essa contradição do sexo. A Terra, afinal, é útero (dela nasce a vida) e sepulcro (a ela retornam os mortos). Daí o sexo ser interdito para várias religiões e a arte erótica sempre ter sido razão de polêmica. Além de tentar provocar excitação sexual, a arte erótica tenta reproduzir, em imagens, os objetos do desejo humano. Ou reproduzir, meramente, o ato sexual. A religião confina a sexualidade à zona do secreto, criando a culpabilidade, a proibição. A essa zona onde a proibição dá ao ato proibido uma claridade opaca, ao mesmo tempo “sinistra e divina”, claridade lúgubre que é a da “obscenidade” e do “crime”, e também a da religião.

A partir de segunda-feira (dia 15) estarei de férias. Serão 15 dias. Volto no dia 01 de outubro quando estarei comentando a realidade virtual, o amor cortês, dadaísmo, trilha sonora e tantos outros temas de interesse geral. Até lá

13 setembro 2007

Linguagem sexual (5)

A proliferação de discursos sobre o sexo no Ocidente, acelerada a partir do século XVIII, foi incitada pelas próprias instâncias do poder – como a pastoral católica e o sacramento da confissão, por exemplo – com a finalidade de estabelecer controles caracterizados pela repressão ao prazer. No século XIX, o discurso médico científico, ainda não totalmente liberto da repugnância quanto a tais assuntos, passou a dissecar a sexualidade humana em todos os seus aspectos. O saber legitimados com o qual os médicos (principalmente) passaram a ser investidos com relação a questões sexuais, ainda que fruto de processos anteriores, teve no XIX uma força e virulência que impressionam o observador do século XX, dados os extremos de crueldade atingidos – a par de toda uma tradição de normatização do sexo pela violência.

Declarando perversas todas as práticas e expressões do impulso sexual que não atendesse à única finalidade “natural” da procriação, lidando com categorias de perversão e perversidade – como Krafft-Ebing – combatendo a masturbação – como Havelock Ellis e cortes de outros colegas seus -, médicos e estudiosos da sexualidade esforçaram-se por nomear, controlar e higienizar a sexualidade, freqüentemente em nome de um ideal nacional, segundo o qual o “desvio” sexual não só prejudicava o indivíduo, mas também fazia com que se debilitasse a nação. É por isso que a emergente sexologia de Krafft-Ebing tinha como objetivo primordial estudar os comportamentos sexuais desviantes, e não a norma, pois, entendidos dessa forma, os atos sexuais eram trazidos para a esfera pública.

Havia um consenso médico, de forma alguma absoluta, mas ainda assim predominante, que via no apetite sexual feminino um sintoma de distúrbio ou doença mental. No Brasil o discurso médico aliado de uma classe industrial tentava apropriar-se da infância e da mulher para controlar e impedir “desvios” morais, programando que o espaço da criança era a escola e o da mulher, o lar. É sempre bom lembrar que as práticas eróticas foram lidas segundo as classificações das “perversões sexuais” elaboradas pelo médico vienense Richard von Krafft-Ebing, em meados do século XIX, onde a busca do prazer sexual foi fortemente condenado.

Desde Foucault que este discurso, instituídos das referências modernas sobre a sexualidade, é severo, moralista e sexista. Para os médicos do século passado, o desejo sexual era visto como força ameaçadora, vulcânica, destrutiva que deveria ser combatida e bem administrada pelo intelecto. A relação sexual deveria ser reprimida para que se evitasse a perda desnecessária do sêmen masculino. Obcecados com a sexualidade, voyeuristas disfarçados, os homens da ciência falaram ininterruptamente da sexualidade desde o século XIX, principalmente para normatizá-la. Dissecaram o corpo da meretriz, do cafetão, do homossexual, “perverteram o sexo”. Todas as práticas sexuais foram postas sob o signo do discurso científico, analisadas, classificadas, contidas e condenadas. Mas todas ganharam ampla visibilidade. A ciência domou o sexo, com medo de ser dominado.

A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.

Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

O controle social continua a ser a principal semelhança entre a mulher – corpo do século XIX e a mulher corpo de hoje. As do passado estavam presas a vertas “verdades” sobre seus corpos, como a fragilidade e o perigo para a sua saúde física, e, principalmente, mental caso ousassem romper com estas verdades. Hoje o controle sobre as mulheres está embalado no pacote da saúde, da beleza, da juventude, do dinamismo, enfim, do bem-estar fotogênico que consumimos todos os dias. A indústria da beleza, com toda a sua diversidade, também afeta os homens, mas as mulheres estão na sua origem e continuam a ser o alvo privilegiado. Hoje, não basta ser uma boa profissional, ser competente no que faz, ter seu espaço e ser respeitada pelo que é. Se você não for tudo isso e mais uma milhão de outras coisas relacionadas ao que você aparenta, então não será percebida e, na nossa cultura visual, isso pode ser um problema, uma fonte de frustração e de amargura. Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona.

12 setembro 2007

Linguagem sexual (4)

O assunto de hoje é a linguagem para o sexo. A retórica é a técnica de convencer o interlocutor através da oratória, ou outros meios de comunicação. Classicamente, o discurso no qual se aplica a retórica é verbal, mas há também — e com muita relevância — o discurso escrito e o discurso visual. A retórica é a arte de bem falar, de mostrar eloquência diante de um público para ganhar a sua causa. Isto vai da persuasão à vontade de agradar: tudo depende (...) da causa, do que motiva alguém a dirigir-se a outrem. O caráter argumentativo está presente desde o início: justificamos uma tese com argumentos, mas o adversário faz o mesmo: neste caso, a retórica não se distingue em nada da argumentação. (...). Para os antigos, a retórica englobava tanto a arte de bem falar - ou eloquência - como o estudo do discurso ou as técnicas de persuasão até mesmo de manipulação. Na questão do sexo, saber abordar ou convencer é uma técnica bem específica.

A exclusão do outro opera através da marginalização da mulher. A relação entre a exclusão com base na nacionalidade, etnicidade e/ou raça, e a exclusão com base no gênero explicita, mais uma vez, a complexidade dos sistemas de classificação social e orientação sexual. A utilização da imagem da mulher para simbolizar o sexo frágil em relação ao homem é notório. Não é à toa que o início da fotografia a imagem de uma mulher quase nua, e não a de um homem era muito explorada. Além da submissão e exploração do sexo, muitos estudos têm enfatizado a relação entre a submissão dos povos das Américas, da Ásia e da África, e a submissão das mulheres. A relação entre ciência e dominação dominou no século passado.

O historiador de Berkeley, especialista em historia social e da medicina, Thomas Laqueur analisou em seu livro “Inventando o Sexo – Corpo e Gênero dos Gregos a Freud”, a invenção cultural da bipolaridade sexual humana. Nem sempre, dizia ele, concebemos os seres humanos divididos em dois sexos com características próprias. Até as últimas décadas do século 18, a medicina só admitia a existência de um sexo, o masculino. O que, atualmente chamamos de sexo feminino era visto como um sexo masculino “frio” e “invertido”. Ou seja, a mulher não possuía o mesmo “calor vital” do homem, e, por isso, seu sexo não se desenvolvia para fora, mas para o interior do corpo: o útero era o escrito, os ovários, os testículos, a vulva, o prepúcio, e a vagina, o pênis.

A medicina ocidental do século 18 não podia representar a sexualidade humana como dividida, originalmente e de forma bipolar, entre sexualidades masculina e feminina. O modelo científico dominante era o modelo do sexo único. O modelo, inspirado na filosofia neoplatônica de Galeno, via a mulher como um homem invertido e inferior. Invertido porque seus órgãos sexuais eram os mesmos dos homens, só que voltados para dentro. Inferior porque a mulher era concebida como um homem imperfeito, a quem faltavam a força e a intensidade do calor vital, esse último responsável pela evolução do corpo até a perfeição ontológica do macho.

Durante séculos a cultura judaico-cristã teria afirmado a idéia de que homens e mulheres tinham os mesmos genitais – os das mulheres seriam voltados para dentro, porque mal formados. Assim, no século 16, a ideologia dominante na Europa era a do sexo único. Deus criou o homem à sua imagem, dizia a cristandade. A mulher era vista como cópia anatômica piorada do homem. Essa visão não se dissipou até a Revolução Francesa. O interesse por provas fundadas na constatação realista ocorreu quando, politicamente, virou interesse burguês demarcar distância dos postulados da Igreja. O domínio burguês dotou o Ocidente de uma visão biologizante, reforçando a idéia de diferença entre os sexos. O biológico se contrapunha à explicação teológica. Passou a associar a idéia do sexo à do gênero (masculino e feminino). Mas o raciocínio biológico começou a ser usado para reforçar o sexismo, a noção de inferioridade feminina: sua constituição física frágil seria por natureza carente de tutela. O sexo volta a reproduzir as predileções da hegemonia cristã: pensando para a reprodução, tendo o homem como dominante. É o auge do esforço científico de comprovar a inferioridade do corpo feminino.


11 setembro 2007

Linguagem sexual (3)

Hoje vamos falar da linguagem dos sexos, ou seja, linguística sexual. O caráter chulo desta ou daquela palavra ou acepção prende-se aos tabus fisiológicos (especialmente sexuais) que envolvem o corpo humano no contexto social, ou seja, a revelação entre o comportamento público e privado. Transgredir o limite entre o privado e o público (quer no ato, quer no dito) significa “ofender” conveniências/convenções ética, religiosa ou jurídica – donde a “ofensa” ser usada como “insulto”. Sendo o palavrão ofensa/insulto, e consequentemente policiado na linguagem escrita mais que na falada (já que esta segue menos regras que aquela), fica restrito/rebaixado, respectivamente, à pornografia e à vulgaridade, apenas tolerado sob a camuflagem do eufemismo.

A obscenidade é imoral, mas, para sê-lo, precisa ser dita. O “escondido” deve mostrar-se de alguma forma. E para exibir-se como “escondido” deve utilizar-se de um código próprio: um código que simultaneamente anuncie e oculte sua própria fala. A linguagem é um campo privilegiado que oferece amplas possibilidades para esse jogo, pois as palavras se prestam a duplos sentidos, permitindo a ambigüidade necessária. Fica o dito, pelo não dito – essa parece ser a fórmula ideal da linguagem erótica. Essa é a ordem da linguagem proibida, instaurando uma linguagem da ordem, ainda que pelo avesso. Pois, nem o obsceno pode fugir à uma ordenação cultural, e a colocação da sexualidade em discurso obedece a uma normatização.

Através das definições do dicionário pode-se perceber a dupla moral de uma época em que o comportamento burguês de “bons costumes” procura mascarar a latente ideologia machista. O processo metafórico se organiza sempre a partir do ponto de vista masculino, e ao desmontá-lo Dino Preti deflagra algumas das formas de opressão da mulher na nossa sociedade. A obra é “A Linguagem Proibida: um estudo sobre a linguagem erótica”. O termo porrada, por exemplo – literalmente, uma pancada ou surra –, é também usado para designar o próprio ato sexual. Está intimamente ligado ao termo porra, o termo popular mais freqüentemente usado para sêmen ou esperma. Porra, por sua vez, está ligada aos termos esporrar e esporro, usados para descrever a ejaculação do esperma e também uma agressão verbal. Esta ênfase na potência liga-se ao papel representado não apenas pelo pênis, mas por toda a região genital, a virilha, como o lugar de força e vontade masculinas. Na linguagem do dia-a-dia, pirocuro, ovudo, sacudo adquirem conotações tanto de virilidade como de coragem. A idéia de ter “ovos grandes” ou “saco grande” significa ter “coragem”, ser “homem”, no português do Brasil. É nessas estruturas simbólicas que um entendimento de masculinidade é construída na vida brasileira.

O processo metafórico da linguagem erótica está ligado às características básicas da linguagem popular, em particular do vocabulário gírio, ou seja, ao sentimento de ridículo, produto de uma visão cômica do mundo. E nada mais fácil de ridicularizar do que o ato sexual. As metáforas humorísticas insistem em seus aspectos deformados: contar as tábuas do teto, afinar a flauta, tocar trombone de vara, enforcar o gato, virar macaco referem-se, entre outras, à masturbação masculina; tocar rebeca, à feminina; falar ao telefone, tocar clarineta, à felação; filé, padaria, rosca, quiosque, às de copas, às partes anais; reboque, à prostituta; berimbau, minhoca, lombriga, ao pênis; tomates, aos testículos; engenhoca, casa da barbada, países baixos, ao órgão sexual feminino; Zé Pereira, à gravidez; navio cruento, greve, à menstruação, etc.

Como os costumes, submetidos a um processo competitivo de forças sociais opostas, em que se alternam e se equilibram leis de continuidade e da renovação, controladas pelo grau de aceitabilidade do povo, em diferentes épocas, assim também o estoque lexical sofre a influência das pressões sociais que ora o prendem a tradição de uma hipotética “boa linguagem”, ora o libertam para a aceitação de novos vocábulos, novos conceitos, surgidos da necessidade de expressar idéias e atividades mais recentes. Sob a perspectiva moral, por exemplo, as frágeis linhas que marcam os limites dos “bons costumes”, cujos conceitos continuamente se renovam dentro da comunidade, são transpostas para o campo do léxico. Formas vulgares se incorporam à fala culta ou vice-versa. A vida das palavras torna-se um reflexo da vida social e, em nome de uma ética vigente, proíbem-se ou liberam-se palavras, processam-se julgamentos de “bons” ou “maus” termos, apropriados ou inadequados aos mais.

10 setembro 2007

Linguagem sexual (2)

A linguagem com sexo (estilística sexual) é onde as fronteiras entre o erótico e o pornográfico se tornam difíceis de distinguir. A característica essencial aos dois conceitos (erótico e pornográfico) é a sexualidade. Ao erotismo é deixada uma porta aberta ao sentimento amoroso, embora em situação urgente, de experiência extremada. A pornografia supõe uma certa capacidade de excitar os apetites sexuais de seus consumidores, algo que fale à libido. No jogo da representação erótico-pornográfica, o imaginário e a fantasia cumprem um papel de importância inegável. Os dicionários nos dizem que a pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres carnais. Já o erotismo é essa mesma descrição com algo mais, com certa arte de falar dos prazeres.

Toda cultura produz alguma forma de arte e literatura sexualmente explícita, mas nem todas distinguem o erótico do pornográfico, e a pornografia não é definida da mesma forma em todos os casos. O advento da imprensa ofereceu um meio mais eficaz de disseminar o saber, mas também gerou atividades subsidiárias que tiveram proveito da formação de um público leitor urbano e do poder d reprodução de imagens. A circulação privada de manuscritos concorria com um mercado menos regulamentado de figuras impressas. Gravuras de Marcantonio, Raimondi e de Agostino Carracci, antes produções artísticas únicas, tornaram-se produtos populares. Enquanto as pinturas eróticas de Ticiano no palácio Escorial de Filipe II ficava escondidas sob uma cortina e só eram vistas por visitantes selecionados pelo monarca, as estampas e os livros populares eram encontrados em livrarias na maioria dos centros urbanos.

As reações das autoridades ao surgimento do material impresso erótico e obsceno refletiu uma inquietante transição social: de uma sociedade em que o acesso ao conhecimento era restrito à elite e intelectual para uma sociedade que divulgava seus segredos cotidianos indiscriminadamente. Ampla circulação de segredos políticos, sexuais e científicos no século 16 levou ao surgimento de mecanismo de censura, usados para definir os limites entre o lícito e o ilícito. Era um modo de controlar a circulação de mercadoria moralmente perigosa e imprópria, agora não mais restritas ao mundo dos humanistas, mas ao alcance de um público mais amplo. O papa Paulo IV estabeleceu em 1559 o Index de Livros Proibidos para expurgar escrito protestante do mundo católico, além do conteúdo moral da arte e da literatura. Os esforços da Inquisição e do Índex em vez de erradicar esse tipo de literatura proibida, deram-lhe um status especial ao dificultar sua aquisição. Nas áreas reservadas das livrarias, os livreiros mantinham uma literatura erótica burguesa para um público ávido. Uma cultura ilícita prosperou como reação às restrições.

A distinção mais corriqueira entre os dois fenômenos, o erótico e o pornográfico, atribui ao primeiro um certo grau de nobreza e grandiosidade, uma relação mais lírica ou mais velada, pois não se vincula diretamente à sexualidade – que está implícita. Em contrapartida, o segundo fenômeno, o pornográfico, ficaria caracterizado como grosseiro e vulgar por abusar da sexualidade, explicitá-la. O erótico estaria para o erudito já que visto como superior e de restrito acesso, enquanto o pornográfico estaria ligado ao massivo, apresentando-se como um produto cultural a ser comercializado.

06 setembro 2007

Linguagem sexual (1)

O sexo consome a humanidade há milênios e está longe de ser satisfatório o grau de conhecimento que temos. Ele tem uma relação sinuosa mais estreita com a linguagem. Há muitos meios pelos quais o verbo se faz carne. Há uma linguagem no sexo (etimologia sexual), uma dimensão das palavras dadas aos órgãos e atos sexuais ao longo dos séculos. Existe uma linguagem com sexo (estilístico sexual), uma forma de exprimir que promete levar à excitação, em que as fronteiras entre o erotismo e o pornográfico se tornam difíceis de distinguir.

Há ainda a linguagem dos sexos (linguística sexual), a possibilidade de homens e mulheres expressarem formas distintas do mesmo idioma. E há igualmente uma linguagem para o sexolinguagem sobre o sexo, a forma como a expressão humana ganha autonomia a ponto de virar um sistema que afeta a vida humana em todas as manifestações e, por conseqüência, contamina a própria maneira como encaramos a sexualidade. Uma semiótica do sexo. (retórica sexual), para a realização sexual, para tornar uma linguagem mais efetiva e intensa antes, durante e após a expressão de um ato amoroso. Além disso, há um impacto inverso, o da

Na questão etimológica, expressões como “ficar por baixo” ou “ficar de quatro”, reproduzem toda uma tradição cultural masculinizada. O movimento para o alto é uma determinação cosmológica atribuídas ao homem porque se vincula à ereção. À altura maior do homem, à posição “cobertor” que ele ocupa no ato sexual convencional. Basta lembrar que o símbolo feminino (♀) é formado por um círculo com uma cruz para baixo e o masculino (♂), com uma seta voltada para cima.

A representação é a de um pênis ereto. E essa representação ecoa na linguagem. A sociedade ocidental associou essa posição “superior” no momento da relação sexual como masculina, e a estendeu a tudo que é elevado, vertical, hierarquicamente melhor. A mulher é relacionada à queda (a que Eva teria imposto a Adão), ao ato de curvar-se ou estar embaixo, na horizontal. Assim, há mais conteúdo simbólico em expressões como “ficar por baixo” ou “levantar a cabeça”. A presença da sexualidade na linguagem, e vice-versa, pulsa.

Linguagem no sexo (etimologia sexual)

Em diferentes dicionários o homem ainda é o centro da linguagem. O pênis é os mais adulados no rol de palavras do brasileiro médio. Pelo menos, no léxico dicionarizado. São 369 sinônimos, ante 299 designados para vagina e 90 para nádegas. A linguagem revela as opções de uma cultura. É uma via sinuosa. A quantidade de sinônimos para ânus, pênis e vagina pode tanto significar que uma entidade é valorizada por uma comunidade quanto o medo que esses termos provocam a uma sociedade reprimida. O ato sexual no Brasil é um dos mais fartos na escala libertina de sinônimos. São 232 sinônimos para “foder”, sem contar os 72 termos chulos que equivalem à palavra “foda”.

A um sentimento de força, poder e de violência, essencialmente masculino, corresponde uma afirmação de fraqueza e impotência feminina, com imagens desvalorizadoras referentes às suas partes pudendas, tais como engenhoca, fenda, greta, quitanda, ruptura (órgão genital) e bolacha, bombordo, disco, esfera, gelatina, melancia, orifício, rosca, quiosque (para as partes anais). O falo toma forma como uma arma, um instrumento de força e violência potencial (cacete, ferro, lança, pistola, trabuco, vara), de resistência, rigidez (eixo, ferro, jacarandá e maniçoba, pau, peroba). De agilidade, astúcia (bagre, gato, músculo) e de dimensão (banana, bisnaga, cano, espiga, nabo, varão).

Já os termos mais comumente usados para falar da vagina conjuram um sentido de inferioridade e imperfeição. E assim as formas vulgares se incorporam à fala culta ou vice-versa. A vida das palavras torna-se um reflexo da vida social e, em nome de uma ética vigente, proíbem-se ou liberam-se palavras, processam-se julgamentos de bons ou maus termos, apropriados ou inadequados aos mais variados contextos.

05 setembro 2007

Tango, um sentimento triste que se baila (2)

Outro grande nome do tango argentino, contemporâneo de Gardel, foi Astor Piazzolla. Sua música encontrou resistência nas tradicionais famílias argentinas, mas representava a evolução de um ritmo que transcendeu os limites do popular para incorporar o erudito. Compositores europeus como Stravinski e Milhaud utilizavam elementos do tango em suas obras sinfônicas. A partir daí o tango começa a sofrer tentativas de renovação. Entre os representantes dessa tendência figuram Mariano Mores e Aníbal Troilo e, sobretudo, Astor Piazzolla que rompeu decididamente com os moldes clássicos do tango, dando-lhe tratamento harmônicos e rítmicos modernos. E o tango (como o samba, no Brasil) tornou-se símbolo nacional com forte apelo turístico. Casas de tango e o culto aos nomes famosos de Gardel e Juan de Dios Filiberto perpetuaram o gênero.

Com a invao do rock and roll americano as danças de salão passaram a ser praticadas apenas por grupos de amantes e o tango passou a ser substituído por outros ritmos estrangeiros. Com o desinteresse comercial das gravadoras, poucos grandes tangos foram compostos. Muitos críticos musicais lembram quem o tango é irmão do fado. Os dois nasceram em meios difíceis, onde os homens se refugiam para esconder a solidão. Os dois gêneros abordam essa realidade. O tango nasceu na cidade portuária de Buenos Aires, nos bordéis e bares, assim como o fado em Portugal.

O tango inspirou grandes obras de diversos artistas em diferentes meios artísticos, seja no cinema, na moda, nos quadrinhos, na literatura, no teatro e nas artes plásticas. O tango tem sido uma inspiração para os filmes desde a invenção do cinema. Como a cena de tango interpretada por Rudolph Valentino no filme “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse”. “Tango”, de Carlos Saura é imperdível. A música e a dança aparecem também no filme de James Cameron, “True Lies” com Arnold Schwarzenegger e Jamie Lee Curtis. E a famosa dança de Al Pacino em “Perfume de Mulher”. Não se pode esquecer o clássico “Último Tango em Paris”, com Marlon Brando e Maria Schneider, do cineasta Bernardo Bertolucci. Muitos outros filmes, através dos anos, apresentaram o tango, além dos musicais “Chicago”, “Rent” (Os Boêmios) e “Moulin Rouge”.

Nas histórias em quadrinhos o tema que me vem à lembrança é a imortal criação do italiano Hugo Pratt, Corto Maltese que atravessa meio mundo para procurar velhos amigos na Argentina ("Tango Argentino"), mas tem diversas obras que aborda o assunto. Por sua forte sensualidade, o tango que foi, a princípio, considerado impróprio a ambientes familiares, mais tarde o ritmo herdou algumas características de outras danças de casais como as corridas e quebradas da habanera, mas aproximou-se mais o par e acrescentou grande variedade de passos. Os dançarinos mais exímios compraziam-se em combiná-los e inventar outros, numa demonstração de criatividade.

Da ancestral e complexa relação entre os seres humanos, fora dos ambientes populares e dos prostíbulos (onde imperava nos subúrbios), o tango perdeu um pouco da lendária habilidade dos bailarinos. Admitido nos salões, abdicou das coreografias mais extravagantes e evitou posturas sugestivas de uma intimidade considerada indecente, numa adaptação ao novo ambiente. A entrada da mulher na dança acrescentou vida, beleza e sensualidade no baile.

A dança é um ritual. Os dançarinos, impassíveis estão sempre sérios e com o olhar fixo. Em nenhuma dança o olhar desempenha um papel tão importante quanto o tango. As pernas são fundamentais, cruzam e entrecruzam em movimentos rápidos e o movimento do corpo é dramático. A Assim, o tango é o grande protagonista cultural da vida da cidade, e talvez a maior contribuição de Buenos Aires à cultura popular universal. Não é só música ou dança, o tango é uma maneira trágica de viver. Um sentimento triste que se baila.

04 setembro 2007

Tango, um sentimento triste que se baila (1)

Ao ouvir o som do tango surge sempre a imagem de glamour, sensualidade e determinação no olhar. Mas nem sempre foi assim. O início da dança mais famosa dos argentinos não passava de uma simulação de luta entre dois homens com faca em punho. A princípio era apenas um ritmo para dançar e suas origens nasceram do Tanguillo da Andaluzia (Espanha) e da Habanera, rumba cadenciada que se dançava em Havana, Cuba. Recebeu influências de ritmos africanos, candombe, de onde aliás se deriva o nome tango (em alguns dialetos africanos tango significa lugar fechado onde as pessoas se encontram). Inicialmente era considerado música de marginais, em que homens dançavam entre si nas ante-salas dos prostíbulos.

No final do século XIX, Buenos Aires era uma cidade em expansão. Sua população era de imigrantes espanhóis, italianos, alemães, húngaros, árabes e judeus. Cerca de 70% da população era composta por homens ávidos pelas promessas de fortuna e 25% de negros que dançavam no ritmo do candombe. E é neste cenário que dá início ao tango, praticado em bordéis e prostíbulos ao som de violino, flauta e violão. O bandoneón surgiu somente em 1900, substituindo a flauta.

Assim o tango nasceu como expressão folclórica das populações pobres, oriundas de todas aquelas origens, que se misturavam nos subúrbios da crescente Buenos Aires. Os imigrantes, na sua maioria gente pobre e com um fardo difícil, transmitiram nostalgia e um ar melancólico para as músicas. Talvez por isso os portugueses se identifiquem tanto com o tango. Dança multicultural que se identifica com o povo português, o folclore, os bairros pobres, a nostalgia, assemelhando-se ao fado.

A fase inicial era puramente dançante. O povo se encarregava de improvisar letras picantes e bem humoradas para as músicas mais conhecidas. O baile era corporal, provocador, com movimentos explícitos e letras obscenas: “duas sem tirar”, “gozo com tanto vento”, “a espiga de milho” (no sentido metafórico). O êxito desses espetáculos tornou-os mais frequentes. Eram organizados apenas por homens. Em público, apenas dançavam homens com homens. Naquele tempo era considerada obscena a dança entre homens e mulheres abraçados, sendo este um dos aspectos do tango que o manteve circunscrito aos bordéis.

Enquanto aguardavam a vez para entrar nos quartos das prostitutas, passavam o tempo bailando, homem com homem. Mais tarde, o tango se tornou uma dança tipicamente praticada nos bordéis, principalmente depois que a industrialização transformou as áreas dos subúrbios em fábricas transferindo a miséria e os bordéis para o centro da cidade. Nessa fase haviam letras com temática voltadas para esses ambientes. Eram letras francamente obscenas e violentas. As letras são escritas no peculiar dileto portenho, o lunfardo. Gíria usada por delinqüentes e gigolôs, mistura de espanhol, de dialetos italianos, de português, de idiomas indígenas. Tanto a música como a letra assumira tom acentuadamente melancólico, com temas obre os tropeços da vida e desenganos amorosos. A temática é ligada à boemia, com menção ao vinho, aos amores proibidos e às corridas de cavalos.

As pessoas ricas não podiam dançar o tango, porque dizia que os dançarinos ficavam muito juntinhos, fazendo passos sensuais e as outras danças da época eram mais comportadas. Por isso, o tango só era dançado nas áreas pobres de Buenos Aires. Dos subúrbios chegou ao centro de Buenos Aires, por volta de 1900. E as primeiras composições assinadas surgiram na década de 1910, no período conhecido como Velha Guarda. É nessa época que os emigrantes argentinos chegaram a Paris, levando consigo o tango. A sociedade parisiense da época ansiava por novidades e extravagâncias. O tango logo se transformou numa febre na capital francesa e, como Paris era o ícone cultural de todo mundo civilizado, depressa o tango alastrou ao resto da Europa.

O tango começou a ser exportado para o mundo por intermédio de marinheiros de diversas partes do mundo, encantados com suas incursões em terras pelas noites argentinas. A Argentina reabilitou o tango cantado, que a ditadura dos generais tentara erradicar, e redescobre a riqueza de suas origens e a filosofia que o acompanha. Até países como a Finlândia o tango tornou-se uma verdadeira instituição. Os mais conservadores e moralistas condenavam o tango (assim como já tinham condenado a valsa), por o considerarem uma dança imoral. Afinal, meter a perna entre as pernas de uma senhora era ofensivo e obsceno. A própria alta sociedade argentina desprezava o tango, que só passou a figurar nos salões da classe alta, graças ao efeito de ricochete provocado pelas notícias eu anunciavam o sucesso da dança em Paris. A partir de 1917 a letra passou a ser parte essencial do tango e, consequentemente, surgiu os cantores de tango. “Mi Noches Tristes” é considerado o primeiro (ou pelo menos mais marcante nessa transição) tango-canção. De 1928 a 1935 Carlos Gardel reinou e atraiu multidões. Ele foi responsável pela popularização do tango, estrelando filmes musicais de tango produzido em Hollywood. A figura lendária de Gardel é o símbolo clássico do tango cantado. Seu parceiro, compositor e escritor de suas canções inesquecíveis como “Mi Buenos Aires Querido”, “El Dia que me Quieras” e “Volver”, foi Alfredo Le Pera, brasileiro.

Invadindo a cena da música para tirar o tango da marginalidade do “bas-fond”, Gardel cantou os caminhos e descaminhos do “Viejo Barrio”, “Mano a Mano”, “La Cumparsita”, “Caminito” e “Mi Buenos Aires Querido”. Com pinta de Rodolfo Valentino, o ator romântico do cinema mudo de então, Gardel gravou 500 discos, tendo ainda atuado no cinema, filmando nos anos 30 em estúdios da França e dos EUA. Só não acumulou fortuna porque foi também um perdulário, tão apaixonado pelo tango como por mulheres e corridas de cavalo.

03 setembro 2007

Jeremias, o sangue bom, está de volta

Entre 1965 e 1969 Ziraldo publicou Jeremias, o Bom nas páginas do Jornal do Brasil, seguindo para a revista O Cruzeiro logo depois. Ele já assinava uma página dominical de cartuns no jornal, abordando temas diversos do Brasil, “faltava um personagem. Como o Amigo da Onça, que era um malandro, fazia sucesso, resolvi criar um anti-Amigo da Onça”, conta Ziraldo, referindo-se à criação de Péricles Maranhão, celebrizada nas páginas daquela mesma revista.

No início o personagem fazia crítica de costumes, depois “aderiu” à política durante as cerca de 20 semanas em que foi publicado, segundo Ziraldo, sem que os editores de O Cruzeiro notassem as críticas ao regime militar. Essa militância de Jeremias acabou com adesão do cartunista da revista. Quarenta anos depois, sem os militares no poder, Ziraldo revisita o cotidiano daquele brasileiro sangue bom no cuidadoso álbum “Jeremias, o Bom” que a Melhoramentos coloca no mercado. São reedições de Jeremias com episódios que não saíram à época da ditadura militar. O lançamento da reedição de Jeremias, o Bom faz parte da inauguração do Jeremias, o Bar (no bairro da Bela Vista, São Paulo), uma homenagem do empresário Walter Mancini a Ziraldo, seu amigo. No bar haverá exposição permanente de desenhos originais de Ziraldo e de importantes cartunistas dos últimos 50 anos.

Na apresentação do álbum, Antonio Callado diz que Jeremias retrata o homem comum, de classe média, “espremido entre os bacanas e a ralé”. “Jeremias é um santo de gravata, o que é duríssimo. Tem mulher, tem sua contazinha bancária, protege crianças, leva até a mãe às boates e socorre os amigos estróinas. Tudo isso de colarinho, gravata, calça vincada e sapato engraxado num mundo de cabeludos e meninas de coxas de fora é fogo. Difícil mesmo é fazer o bem com dignidade, sem escândalo, sem se mostrar”.

Espécie de Dom Quixote, como compara Ziraldo em texto da nova edição do álbum (publicado antes pela Expressão e Cultura), Jeremias era flamenguista roxo, aceitava ficar de fora de uma pelada, mesmo sendo o dono da bola, e, dizem, era tão bom, tão bom, que nem causou dor a sua mãe ao nascer. Era o lado comportamental, de crítica de costumes. Na curta fase política, Jeremias aparece num festival de música, aplaudindo um cantor parecido com Geraldo Vandré, autor de “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, e ainda participa de passeata estudantil ou ajudando agricultores nordestinos a assistirem a uma missa clandestina do ex-arcebispo Pernambucano Dom Hélder Câmara, o “bispo vermelho”, como era conhecido.

A história de Jeremias é tão intensa quanto curta: a figura que marcou época a partir de1965, morreu em 1969. Uma figura de terno escuro e sempre impecável, sapato engraxado e brilhante. Sua elegância se traduz no comportamento: Jeremias é sempre polido com todos, cuidadoso ao extremo. Ele é aquele cara que sempre vai para o gol, para evitar discussões. Ou mesmo de tanto comprar dropes de crianças nas ruas - Jeremias seria incapaz de fechar o vidro ou ignorar um apelo de um menino pobre -, acabou tornando-se diabético. Chega ao cúmulo de ter sua residência assaltada e sua reação inesperada é fazer o miserável do ladrão jantar. Um alerta ou uma cutucada sobre questões tão comuns no cotidiano brasileiro

O personagem de Ziraldo é o símbolo de uma brasilidade esquecida, simboliza o bem, a gentileza e a cortesia esquecidos nas delegacias, nos porões de tortura e nos ambientes profissionais. Um clássico do humor gráfico. Passando da crônica de costumes aos temas políticos, ele vive muitas situações, sempre mostrando porque é conhecido como o Bom. Não "o bom" de espertalhão, aproveitador, mas o bom solidário, prestativo, amigo, enfrentando tudo com uma abnegação silenciosa e rendendo-se mudo à sina de ajudar parentes, colegas de trabalho e desconhecidos. “O Jeremias é tão bom que pode ajudar as novas gerações a ir descobrindo o Brasil", afirmou seu criador.

Peço desculpas ao leitor. Nos dias 30 e 31 de agosto (quinta e sexta) não foi possível publicar o blog por questão técnica (problema com o fornecedor).