27 abril 2007

Música & Poesia

Saga da Amazônia (Vital Farias)

Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta
mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
no fundo d'água as Iaras, caboclo lendas e mágoas
e os rios puxando as águas

Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores
os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores
sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir
era: fauna, flora, frutos e flores

Toda mata tem caipora para a mata vigiar
veio caipora de fora para a mata definhar
e trouxe dragão-de-ferro, prá comer muita madeira
e trouxe em estilo gigante, prá acabar com a capoeira

Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar
prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar:
se a floresta meu amigo, tivesse pé prá andar
eu garanto, meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá

O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar
e o fruto que dá no cacho prá gente se alimentar?
depois tem o passarinho, tem o ninho, tem o ar
igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar

Mas o dragão continua a floresta devorar
e quem habita essa mata, prá onde vai se mudar???
corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá
tartaruga: pé ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiura

No lugar que havia mata, hoje há perseguição
grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
castanheiro, seringueiro já viraram até peão
afora os que já morreram como ave-de-arribação
Zé de Nata tá de prova, naquele lugar tem cova
gente enterrada no chão:

Pos mataram índio que matou grileiro que matou posseiro
disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
roubou seu lugar

Foi então que um violeiro chegando na região
ficou tão penalizado que escreveu essa canção
e talvez, desesperado com tanta devastação
pegou a primeira estrada, sem rumo, sem direção
com os olhos cheios de água, sumiu levando essa mágoa
dentro do seu coração

Aqui termina essa história para gente de valor
prá gente que tem memória, muita crença, muito amor
prá defender o que ainda resta, sem rodeio, sem aresta
era uma vez uma floresta na Linha do Equador...



Touro (21 de abril a 20 de Maio)

Estás sob a dominante de Vênus
e de seus contraditórios influxos.
É por isso que te digo:
cuidado com teu umbigo.
Não te assombres
se o ponteiro do relógio, o pequenino,
se transformar num escorpião:
a cada volta que ele dá,
uma criança morre de fome
ao lado do meridiano mais amado.
Não brinques com a liberdade,
nem te atormentes tanto
com com os conceitos fundamentais.
Principalmente não brinques
com as posições de Vênus
quase ao amanhecer.
Touro tem reservas inesgotáveis de paciência,
mas um bom dia a casa cai, em pleno maio.
Recomendo cautela nos negócios
nacionais,
e um pouco mais de vergonha
nos internacionais,
porque Touro está-te vendo,
a ti,
homem encolhido e turvo,
cujo fim não tardará.
Certas prosperidades
avultam inevitáveis
no centro do quadrante.
Mas te advirto
que enquanto acumulas topázios,
está-se recobrindo de mofo
a flor silvestre de tua juventude.
Em caso de dúvida,
fabrica um navio
e convida a todos os teus amigos de infância.

Trata de repartir amor um pouco mais
do que se reparte a riqueza nacional.
Não terás problemas com teus filhos,
que crescerão muito limpos
e ciosos de sua candura.
Mas não te esqueças de que existem outras
crianças,
por aí, pelos caminhos de Touro.
Não recomendo muitas intimidades
com Capricórnio.
Deves fazer pausas bruscas
em tua fatigada rotina.
E ouve um concerto de Bach
de preferência para fagote
ou fuzil."

[Thiago de Mello "Horóscopo para os que estão vivos"]

26 abril 2007

Pratt, o Mozart dos quadrinhos

Foram 68 anos de vida. Hugo Pratt (1927/1995) buscava os elementos para suas narrativas à maneira de um repórter, vivendo de fato as aventuras. Ele acreditava que podia penetrar em seus mundos paralelos e conhecer de perto a matéria-prima de que eram feitos os sonhos. E assim viveu na Argentina, Etiópia, França, Venezuela, Inglaterra, Itália, Estados Unidos e Brasil. Aqui ele esteve em São Paulo, Mato Grosso, Selva Amazônicas e Bahia. E na terra de todos os santos ficou fascinado pelo misticismo. Quem deseja conhecer um pouco desse Pratt místico deve ler “Sob o Signo de Capricórnio” onde boa parte da história acontece entre a Bahia e o Xingu.

Ele teve uma infância veneziana. Nasceu na Itália (Rimini) a 15 de junho de 1927. Se vivo estivesse completaria 80 anos. Em 1937 até 1943 viveu uma adolescência etíope. Em dezembro de 1945, Marco Faustinelli, Alberto Ongaro e Pratt lançaram um jornal de quadrinhos, Asso di Picche (Ás de Espadas). O jornal foi bem sucedido e, em pouco meses juntaram outros desenhistas como Dino Battaglia, Rinaldo d´Ami e Paulo Campani. Depois de viajar por diversos países, chega na Argentina em 1949 e é lá que ele conheceu sua futura esposa, Anne Frognier, de origem belga, que ante fora modelo para sua historieta Ann de la Jungle (antes ele casou com Gucky Wogerer). De 1962 a 1970 morou wem Veneza. Trabalhou para o semanário infantil Corriere dei Piccoli (62 a 67), depois para a revista de quadrinhos Sgt. Kirk (67 a 69).

Em 1955 faz amizade com o jazzista Dizzy Gillespie e mais tarde deu cursos de desenhos na Escola Panamericana de Arte, do amigo Enrique Lipszyc. Em 1959 ele parte para a Inglaterra. Não durou muito. Ele recordava de sua assistente, Gisela Dester, um grande amor. Um geminiano com ascendente em escorpião pode explicar suas aventuras com belas mulheres pelo mundo afora.

Sobre sua viagem ao Brasil o próprio Pratt conta na entrevista a Dominique Petitfaux no livro O Desejo de Ser Inútil: “Nos anos 1962-1966, o Brasil foi um país que contou muito para mim. Tinha ido lá uma primeira vez a partir da Argentina, em 1957, depois, em 1962, no caminho de Buenos Aires para Lisboa, durante uma longa escala no Rio, eu tinha circulado pelo Brasil. A minha idéia era encontrar Lipszyc, que estava em São Paulo para aí fundar uma nova escola de desenho. Enrique Lipszyc era amigo de Raimundo Lisboa, um antigo oficial da polícia política e que tinha muitas relações de amizade com prostitutas e marginais. Foi por intermédio de Lisboa que em Salvador da Bahia travei conhecimento com a cartomante Bouche Dorée, que me inspirou para dar uma das perso

nagens de Corto Maltese, e uma das irmãs Dos Santos, umas negras soberbas versadas em magia. As Dos Santos tornaram-se a minha família da Bahia, e quando passo pelo Brasil, não deixo de as visitar. Como umas das meninas Dos Santos, uma mãe-de-santo, tive mesmo, em 1965, uma filha, uma bela mestiça, Victoriana Aureliana Gloriana. Quando a reconheci oficialmente como minha filha, reconheci ao mesmo tempo e os filhos ilegítimos das quatro irmãs, dando aos rapazes nomes de presidentes dos Estados Unidos. E eis como, em Salvador da Bahia, se pode hoje encontrar um Lincoln Pratt, um Wilson Pratt ou um Washington Pratt”.

O marinheiro cool e sofisticado Corto Maltese, espécie de alter ego, surgiu em 1967 (há 40 anos na revista Sgt. Kirk de julho de 67 a fevereiro de 69) na aventura “A Balada do Mar Salgado”. Maltese, filho de uma prostituta espanhola e um marinheiro inglês, fez sucesso em mais de 15 línguas. “Quando quero relaxar leio Engels, quando quero viajar leio Corto Maltese”, disse certa vez Umberto Eco. A partir de 1970 começou a colaborar com o semanário francês Pif. Em fevereiro de 1973 começou a publicar no jornal Tintim os primeiro episódios da série Os Escorpiões do Deserto. Em 1974 a revista Linus publica Corto Maltese na Sibéria. Em 1976 figurou no filme La Nuit de la marée haute. Em 78 participou em dois outros filmes: Caro lei quando c´era Lui e Blue Nude. Antes, em 1971 o documentário sobre ele, Os Mares da Minha Fantasia, de Ernesto Laura, foi apresentado no Festival de Cannes. Em 1981 vai a África com Jean-Claude Guilbert fazer um filme sobre ele: La Balade plus loin.

“A morte de Hugo Pratt marca o fim de uma determinada qualidade de quadrinhos que durante décadas se manteve na Europa. O que mais impressionava em sua obra era a combinação de sua arte maravilhosa e da dramaticidade de sua narrativa. Além disso, ele foi o primeiro autor que conheci que se dedicava realmente a fazer pesquisas e buscar referências para suas histórias, de modo a torná-las críveis, aceitáveis”, comentou o quadrinhista Joe Kubert. Pratt também tinha entre seus admiradores, Guido Crepax, o pai da Valentina, Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas), Milo Manara (que foi seu aluno), Woody Allen, François Mitterrand, Fontanarrosa, Calou e Vittorio Giardino, que disse que Pratt equivalia a Mozart no mundo dos quadrinhos.

25 abril 2007

Olfato, o sentido mudo, que não tem palavras

Quando respiramos, inalamos o mundo que passa por nossos corpos, assimilamo-lo ligeiramente e expiramo-lo, deixando-o livre novamente, levemente alterado por nos ter conhecido. Escreveu sabiamente Diane Ackerman em “Uma História Natural dos Sentidos”. Ao respirar percebemos os odores. Os cheiros envolvem-nos, giram ao nosso redor, entram em nossos corpos, emanam de nós. Vivemos em constante banho de odores. No livro “O Cão dos Baskervilles”, Sherlock Holmes identifica uma mulher pelo cheiro de seu papel de cartas, esclarecendo que “existe 75 perfumes, e um especialista criminal tem que ser capaz de identificar perfeitamente um do outro”. O escritor Kipling tinha razão ao dizer que “os cheiros são mais capazes de ativar as batidas do coração do que as imagens e os sons”.

Os sentidos da olfação e da gustação são considerados químicos, pois dependem do estímulo de substâncias químicas sobre receptores especiais. O olfato é o sentido que nos permite sentir os odores. As substâncias têm cheiro quando desprendem partículas que, levadas pelo ar, impressionam as terminações das células nervosa olfativa, localizadas na região superior da mucosa que reveste as fossas nasais. Estimuladas, as células olfativas transmitem impulsos nervosos ao nervo olfativo, que, por sua vez, os transmite à área cerebral responsável pela olfação. Aliás, muito do que geralmente chamamos paladar é realmente olfato.

Embora possa soar estranho, não é óbvio que com o olfato tudo esteja 100%. Existem pessoas que não conseguem sentir o cheiro de nada. Isso afeta o cotidiano tanto quanto a surdez ou a cegueira. Apesar de imprescindível, o olfato foi até pouco tempo um dos menos pesquisados órgãos dos sentidos. Somente há 15 anos, sabe-se como ele funciona. Na Europa, nos Estados Unidos, como também em outros países, pesquisadores trabalham tentando desvendar os mistérios do olfato. Cada pessoa possui cerca de 350 receptores olfativos diferentes. Isto não significa, entretanto, que possamos distinguir somente 350 tipos de cheiro. Os diferentes receptores são necessários devido à complexidade da estrutura molecular dos odores. Somente o espectro completo do aroma do café reivindica muitos e muitos receptores, afirma o professor de Neurofisiologia da Universidade de Stuttgart-Hohenheim, Heinz Breer. A cada odor corresponde, por assim dizer, um conjunto de receptores e, desta forma, também um conjunto de células sensoriais que podem ser ativadas por este cheiro, enquanto outras não.

Em 2005, o Prêmio Philip Morris para a Ciência foi concedido a pesquisadores do olfato da cidade de Bochum. Eles descobriram que os espermas possuem receptores olfativos semelhantes aos do nariz. Tudo o que é gostoso cheira bem? "É discutível se o fato de se estar com muita fome faz com que as coisas cheirem melhor. Que ovo podre fede e que pão fresco tem bom cheiro, isto se aprende com a experiência olfativa, pois somente com a língua não se pode distinguir mais do que se a comida é doce, azeda, salgada ou amarga. Em compensação, existem dezenas de milhares de odores – morangos frescos, café moído, baunilha, anis, canela, chá de menta...", responde Breer.

O sentido do olfato é o mais espiritual de todos os sentidos. A palavra hebraica para "olfato", rei'ach, é cognata àquela para espírito (ruach). Nossos Sábios ensinam que o olfato é o único sentido que "a alma desfruta, e não o corpo". O sentido do olfato é o mais sensível e complexo e, o menos entendido. É um sentido sutil e misterioso. Um odor nos passa uma sensação instantânea de prazer, nostalgia ou aversão.


Inúmeros estudos têm sido realizados com o objetivo de desvendar o poder do cheiro sobre o comportamento humano. Quando sentimos um cheiro, a nossa mente vai mergulhando numa viagem pelo tempo e as lembranças vão escorrendo, se derramando. E chegamos muitas vezes a tempos tão remotos que não sabemos explicar o sentimento que nos aflora. Cheiramos o tempo inteiro, sempre que respiramos. Os cheiros nos envolvem, giram ao nosso redor, entram em nosso corpo, emanam de nós. Se fecharmos os olhos, deixaremos de ver; se taparmos os ouvidos, deixaremos de ouvir; mas, se bloquearmos o nariz para não sentir o cheiro, morreremos.

O olfato é o sentido mudo, o que não tem palavras. O sentido do olfato é a própria imaginação. O bairro de Brotas, em Salvador, cheira a cajá. O bairro da Saúde em Nazaré é pura manga. Na Federação amêndoa tem cheiro forte e na Paralela o cheiro é de jaca. O mundo dos aromas é, portanto, um mundo sem palavras, um mundo de imagens, para ser explorado desde a ponta do nariz até o centro do nosso cérebro - um mundo de surpresas sutis e de um êxtase silencioso, com ondas de deleite percorrendo nosso corpo e produzindo sensações novas.

O mundo é cheio de sensações. O verão traz o sol iluminando a todos e trazendo um perfume doce no ar. No inverno o som matinal dos pássaros acorda os que teimam em ficar debaixo dos lençóis. No outono as folhas caem trazendo o sopro do vento e na primavera, as flores se abrem exalando perfume de todos os aromas. Os sentidos dividem assim a realidade em fatias vibrantes, juntando-as de modo a formar um padrão significativo. Os sentidos fornecem milhares de informações ao cérebro como se fossem microscópicas peças de um quebra-cabeça.

24 abril 2007

Loucura, a volta ao instinto livre

O louco já foi transformado em personagem em várias épocas e manifestações artísticas. De Machado de Assis ao cinema hollywoodiano, dos quadrinhos de Maurício de Souza à tragédias gregas, das artes plásticas ao teatro do absurdo surgiram muitas histórias das razões da loucura. O pensador francês Michel Foucault citou a frase em que Dostoievski diz que “não é trancando seu vizinho que você se convence da sua própria loucura”. Ele mostra é que uma sociedade como a nossa tem uma incapacidade mental de conviver com o diferente. O louco é a diversidade represada.

Criadora do Museu de Imagem do Inconsciente, no Rio, a doutora Nise da Silveira concorda ao afirmar que “louca é a sociedade, basta olharmos à nossa volta. Os loucos têm muito mais juízo do que a maioria das pessoas”.

As três grandes correntes de interpretação sobre a loucura surgem na Antiguidade Clássica. Homero inaugura a corrente mítica que atribui tudo o que acontece ao homem à vontade dos deuses. Depois tem Eurípedes e os trágicos onde a loucura aparece como uma exacerbação das paixões, e sua causa está no conflito entre a proibição e a norma, o desejo e a função. A última corrente é representada por Hipócrates que passa a entender o louco como alguém que sofre de um mal orgânico.
Com o tempo, as concepções de Homero foram reeditadas, de forma corrompida, pelos padres demonistas da Idade Média.E assim os deuses se transformariam em diabos e o homem seria culpado por seu desvio. A cura da loucura muitas vezes era a fogueira purificadora da Inquisição. Já as idéias de Hipócrates seriam reaproveitadas pelos alquimistas, ainda na Idade Média, e pela medicina do século XIX. As duas linhas permaneceriam em evidência até hoje. A primeira, no esoterismo que se propõe como remédio. E a segunda, na própria psiquiatria.

Mas teve um filósofo que foi soterrado pelo racionalismo platônico: Eurípedes, ele foi o único que não deixou sucessor. Até hoje, ninguém, recuperou plenamente a idéia de que a loucura pode surgir do lado emocional do ser humano. Freud foi um possível sucessor do autor de “Medeia”. Ele se aproximou da emoção mas não chegou a reaproveitar a idéia da loucura como uma explosão da passionalidade. Freud não tem uma teoria sobre a loucura. A loucura é a volta ao instinto livre, que procura o prazer desavergonhadamente, sem culpa. E Freud ainda apresenta uma visão médica, não consegue perceber que a cultura violenta o instinto.
A sociedade hoje classifica a loucura ou insânia como uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados "anormais" pela sociedade. É resultado de doença mental, quando não é classificada como a própria doença. A verdadeira constatação da insanidade mental de um indivíduo só pode ser feita por especialistas em psiquiatria clínica. Em algumas visões sobre loucura, não quer dizer que a pessoa está doente de mente, mas pode simplesmente ser uma maneira diferente de ser julgado pela sociedade. Na visão da lei civil, a insanidade revoga obrigações legais e até atos cometidos contra a sociedade civil com diagnóstico prévio de psicólogos, julgados então como insanidade mental

O Elogio da Loucura é um ensaio escrito em 1509 por Erasmo de Roterdã em 1509 e publicado em 1511. O Elogio da Loucura é considerado um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos catalizadores da Reforma Protestante. O livro começa com um aspecto satírico para depois tomar um aspecto mais sombrio, em uma série de orações, já que a loucura aprecia a auto-depreciação e passa então a uma apreciação satírica dos abusos supersticiosos da doutrina Católica e das práticas corruptas da Igreja Católica Romana. O ensaio termina com um testamento claro e por vezes emocionante dos ideais cristãos.

O ensaio é repleto de alusões clássicas escritas no estilo típico dos humanistas do Renascimento. A Loucura se compara a um dos deuses, filha de Plutão e Frescura, educada pela Inebriação e Ignorância, cujos companheiros fiéis incluem Philautia (amor-próprio), Kolakia (elogios), Lethe (esquecimento), Misoponia (preguiça), Hedone (prazer), Anoia (Loucura), Tryphe (falta de vontade), Komos (destempero) e Eegretos Hypnos (sono morto).

A loucura como parte integrante da própria razão: eis uma proposição tão espantosa que se resiste a aceitar. Mas fácil defini-la como doença mental ou desvio social. Pois é da relação loucura/razão que trata João Frayze-Pereira (no livro O que é loucura), demonstrando que a determinação dos estados "normal" e "patológico" depende menos da ciência que da cultura e da sociedade. O assunto rende debate. Pensem na loucura, pois!.

23 abril 2007

Mordaça brasileira

Há 590 anos, quando o Brasil ainda era adolescente, nasceram nossas primeiras regras de censura. Isso mesmo, em 1517 os portugueses começaram a montar o tripé institucional que regulamentaria a censura na metrópole (e consequentemente na colônia) até 1768. Juízes eclesiásticos denominados Ordinário, representantes do Estado absolutista (cuja instituição era chamada de Mesa do Desembargo do Paço), e pelo Santo Ofício da Inquisição. Era essa a estrutura formada para censurar.

A censura nesses primeiros séculos, tanto no Brasil quanto em Portugal, seguia ditames religiosos, amordaçando grandes literatos como Gil Vicente e até Camões. Segundo as professora de Historiada USP, Maria Luíza Tucci Carneiro, “o argumento usado para apreender e queimar livros é que eles feriam a verdadeira fé católica. É uma luta contra o herege, o inimigo número um deles”.

A repressão só começaria a mudar de ritmo com a ascensão do marquês de Pombal ao poder português.Assim, o ministro do rei dom José 1º cria, em 1768, a Real Mesa Censória, instituição formada por leigos e religiosos que passou a regulamentar as perseguições oficiais. “A censura ganha um tom político” conta Maria Luiza.”Perseguia não mais o cristão-novo, mas os maçons, que representavam a trama de algo secreto contra o governo, os teóricos da Ilustração, como Voltaire, e os jesuítas, grandes inimigos de Pombal”.

Essa nova censura política se estenderia ao Brasil, que só deixou de espelhar as práticas censoriais portuguesas depois de 1808, com a abertura dos postos e o nascimento oficial da imprensa no país. E a mordaça no Brasil não parou mais. Um mês depois da Proclamação da República, em 1889, já existia um decreto restringindo a atuação da imprensa. Em 1923 é decretada a Lei Adolfo Gordo (senador paulista) que cerceava a atuação da imprensa, e o alvo era os anarquistas e comunistas.

E como explicou a professora: “O século 20 é o auge da censura. E os seus dois grandes momentos são, claramente, o período Vargas, com o DIP e a polícia política atuando como aparatos censores e repressores,e, depois, a ditadura militar, sobretudo o período de 1968 a 1975”.”A censura é a mais forte arma que os regimes totalitários têm utilizado, desde a Antiguidade, para impedir a propagação de idéias que podem pôr em dúvida a organização do Poder e o seu direito sobre a sociedade. Sempre, em todos os tempos, os homens que detêm a direção de um Estado se valem da força para fazer cair os que contestam a sua legitimidade. Pensar diferente foi considerado crime no Antigo Regime, na época moderna, como foi em vários períodos de nosso século”, escreveu a professora Anita Novinsky no capítulo “Os regimes totalitários e a censura”.

Quem deseja conhecer toda a trajetória da censura em território brasileiro não deve deixar de ler a obra organizada por Maria Luiza, “Minorias Silenciosas – A História da Censura no Brasil”, lançada pela Edusp, Imprensa Oficial de SP e a Fapesp. O livro reúne ensaios e depoimentos de 22 intelectuais de campos distintos. Trata-se de um time de historiadores, professores de literatura, jornalistas, sociólogos e educadores. Eles fazem uma analise sobre a censura à atividade intelectual e artística em diferentes momentos da história brasileira, desde o período colonial até os anos posteriores ao golpe militar de 1964. “A repressão à liberdade não é só inerente aos governos autoritários – lembra José Mindlin na orelha do livro -, ela pode ter outras origens – a Igreja, a existência de classes mais fortes e mais fracas, e as injustiças da sociedade em geral”. “Se quisermos combater a censura, não será ridicularizando seus excessos, mas contestando o seu cerne”, afirma Renato Janine no prefácio da obra.

20 abril 2007

Música & Poesia

As Árvores (Arnaldo Antunes e Jorge Ben Jor)

As árvores são fáceis de achar
Ficam plantadas no chão
Mamam do céu pelas folhas
E pela terra
Também bebem água
Cantam no vento
E recebem a chuva de galhos abertos
Há as que dão frutas
E as que dão frutos
As de copa larga
E as que habitam esquilos
As que chovem depois da chuva
As cabeludas, as mais jovens mudas
As árvores ficam paradas
Uma a uma enfileiradas
Na alameda
Crescem pra cima como as pessoas
Mas nunca se deitam
O céu aceitam
Crescem como as pessoas
Mas não são soltas nos passos
São maiores, mas
Ocupam menos espaço
Árvore da vida
Árvore querida
Perdão pelo coração
Que eu desenhei em você
Com o nome do meu amor.


Mapa (Murilo Mendes)


Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado.
Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido.
Depois chego à consciência da terra.
Ando como os outros,
Me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem,
vou rindo, vou andando, aos solavancos.

Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos no ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,

Tonto de vidas, de cheiro, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com meus antepassados,
Saio às ruas combatendo personagens imaginários,
Estou com meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou do outro lado do mundo,
daqui a cem anos, levantando populações...

Me desespero porque não posso
estar presente em todos os atos da vida.

O mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários,

Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor,
outras caras aparecerão na Terra.
O vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
abraçarei as almas no ar,

me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo.
Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida,
os homens “práticos”...

Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, viva eu,
que inauguro no mundo um estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor.
Não me inscrevo em nenhuma teoria.

Estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto na praia do Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre,
sempre em transformação.

19 abril 2007

Monteiro Lobato e o mundo infantil (2)

Ao lado dessas inovações, está o fato de que Monteiro Lobato criou um mundo mágico. Nele, reina o faz-de-conta, através do qual convivem personagens do mundo real, ou seja, os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo, e todos os heróis do mundo das maravilhas, renovados por seu talento. Seus personagens apresentados em Reinações de Narizinho e protagonistas alternados de todos os 23 títulos que compõe sua obra são marcos na literatura brasileira. Tia Nastácia é a ama negra comum nas fazendas brasileiras do princípio do século. Inculta e boníssima, dá vida com suas mãos aos dois mais originais personagens da obra lobatiana, Emília e Visconde. Boneca que se transforma aos poucos em gente, Emília é a própria juventude de espírito e é através dela que o autor manifesta suas idéias mais polêmicas. Visconde, um sabugo de milho de cartola, é uma crítica viva à nobreza e ao saber “bolorento”.

Dona Benta é a avó ideal. Culta como poucas, é aberta a todas as novidades vividas pelos netos. É quem forma e informa, dando lições de coisas e de comportamento. Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, e Pedrinho, seu primo e companheiro de aventuras, são bons exemplos da infância sadia de todos os tempos. Alegres, criativos, honestos, corajosos e amigos, têm as virtudes das crianças felizes. Ávidas de conhecimento e de aventuras, descobrem o mundo através da palavra de Dona Benta, do afeto da tia Nastácia e principalmente de sua própria experiência, que re-elabora as informações recebidas nesse universo idealizado.

Monteiro Lobato foi um homem comprometido com o seu tempo, absolutamente consciente do momento histórico em que viveu. Jogando com personagens tão predominantemente o mundo da fantasia, questiona todo o tempo a realidade. Usa o maravilhoso para romper as estruturas estratificadas do real e levar a criança, em que via a única esperança da humanidade, à busca de novas soluções. Com Lobato, os pequenos leitores adquirem consciência crítica e conhecimento de inúmeros problemas concretos do País e da humanidade em geral. Ele desmistifica a moral tradicional e prega a verdade individual: instaura portanto a liberdade. “O segredo é um só, liberdade”. Tornou-se o escritor de literatura infantil mais lido em português e espanhol. A saga termina com Os 12 Trabalhos de Hércules: 39 histórias (sendo 32 originais e sete adaptações), cerca de 500 páginas, um milhão de exemplares vendidos. Criou o universo do Picapau Amarelo em que milhões de crianças passaram a viver na imaginação. Comprometido com o homem brasileiro, amado pelas crianças, incompreendido por muitos, foi uma consciência dividida entre as exigências de seu povo e a atualização dos modelos literários.

NOVO MUNDO

A indústria editorial brasileira sempre optou por histórias de origem européia, mais próximas da origem cultural dos editores quanto das elites. Esse predomínio estende-se ao longo da colônia e do império. Chegou porém o momento, já para o fim da chamada República Velha, em que a acumulação de capital proporcionada pela fase de ouro o café, juntamente com o espírito nacionalista em formação, criou as condições para uma obra revolucionária: a de Monteiro Lobato. Foi Lobato quem, pela primeira vez, criou não apenas uma história, mas todo um mundo: o Sítio do Picapau Amarelo, povoado por criaturas cheias de verdades e fantasias. Ele construiu sua obra infantil nas décadas de 20 e 30.

Nas décadas de 70 e 80, se desenharia um novo quadro, com o importante apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Essa instituição incentivou novos autores brasileiros, pesquisou a bibliografia brasileira existente, instituiu concursos e prêmios, promoveu programas de intercâmbio e treinamento e divulgou no Brasil o melhor da literatura infantil estrangeira. É a época de Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ziraldo, Sylvia Orthof, Ligia Bojunga Nunes, Joel Rufino dos Santos, Wander Pirolli e tantos outros. Como Monteiro Lobato, esses autores e outros mais estão mostrando através do seu fazer literário que escrever para crianças pode ser uma ótima aventura, pode levar ao aprofundamento das questões humanas.

Após o sucesso comercial e literário de Urupês, Monteiro Lobato empenhou-se para tornar realidade um antigo projeto: editar. Com o espírito pioneiro que o acompanharia até os últimos dias, enfrentou o problema do livro de maneira diferente e inovou. Para o editor Monteiro Lobato, o livro era uma mercadoria como outra, como um alimento, uma roupa, e sua comercialização deveria ser estendida a todos os lugares para que o livro fosse um bem acessível a todos. Lobato procurou uma fisionomia gráfica própria para os livros, diferenciando-os dos modelos franceses e portugueses, valorizando os capistas e desenhistas nacionais. Ele pôs ao alcance do grande público, a preços acessíveis, um certo requinte que somente era encontrado em edições restritas. Como ótimo editor, ele tinha enorme talento publicitário. Mas a crise de energia elétrica resultante da inesperada seca que assolou São Paulo, a partir do final de 1924, acarretou a falência da próspera editora, que não estava estruturada para suportar os riscos do seu pioneirismo.

Monteiro Lobato foi um dos fundadores da Companhia Editora Nacional e, por sua contribuição revolucionária à indústria e comércio do livro, ocupa hoje o seu nome o lugar de patrono, sendo o Dia Nacional do Livro Infantil ligado à sua memória. É, por outro lado, dos escritores de maior venda no Brasil. A criança foi a causa maior de Lobato. No fim da vida, arrependeu-se de não ter escrito mis para elas, como pretendia no dia em que escrevera ao amigo Godofredo Rangel: “Ando com idéias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé. Ainda acabo fazendo livro onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim, morar como morei no Robinson e no Os Filhos do Capitão Grant”. Em seus livros, Lobato dialogou com as crianças.

18 abril 2007

Monteiro Lobato e o mundo infantil (1)

Hoje, José Bento Monteiro Lobato faria 125 anos se vivo fosse. Escritor respeitado por seus contos e pelo romance “Urupês”, Lobato é antes de tudo amado pelas crianças brasileiras como seu maior e mais conhecido autor. Por escolha, já que se desencantara dos adultos, decidiu-se a escrever só para crianças e, com o Sítio do Picapau Amarelo, criou um universo próprio, um mundo de encantamento que vai tomando forma ao longo dos numerosos títulos que compõem sua vasta obra. Na história da literatura brasileira e, em especial, da literatura infantil, cabe a Monteiro Lobato posição de relevo. Ele abriu um caminho, criou uma série de tipos no cenário da história infantil e trabalhou de modo pessoal e original nesse campo, desvendando uma trilha nova.

E é sempre tempo de ler e conhecer Lobato. Aquele que não o conhece ainda, faça uma visita à Biblioteca Monteiro Lobato (no bairro de Nazaré) onde o visitante poderá ler textos informativos sobre a vida e obra do autor de Narizinho Arrebitado. 18 de abril é o Dia Nacional do Livro Infantil e, apesar do aumento da produção de autores brasileiros para crianças e jovens, principalmente a partir da década de 70, a figura de Monteiro Lobato continua a ter lugar de destaque. Trata-se do mais importante escritor do gênero infanto-juvenil, não apenas porque produziu uma obra ampla e coerente, como porque criou um riquíssimo universo ficcional que influenciou as gerações seguintes.

Em toda a sua obra, Lobato revela-se, principalmente, um escritor preocupado com a natureza: um ecologista, numa época em que o termo nem era conhecido. Sua defesa do verde nacional teve início em 1914e continua mais atual do que nunca. Passados 93 anos, os protestos do escritor contra as queimadas em sítios e fazendas, a que nomeou “uma velha praga”, identificam-se com a emergente preocupação ecológica de nossos dias. Defendeu o binômio saúde-educação como único caminho para a recuperação do caipira. Depois, uma passagem pelos Estados Unidos o convenceu de que os alicerces da prosperidade econômica eram o ferro e o petróleo. A partir daí, iniciou violentas críticas ao governo brasileiro que acabaram por levá-lo à prisão durante a ditadura de Getúlio Vargas.

CARREIRA

Monteiro Lobato nasceu em 1882, numa fazenda de Taubaté, Estado de São Paulo. Em 1904, formou-se em Direito, chegando a se tornar promotor público, cargo que abandonou em 1911 para administrar a fazenda que herdara do avô. Sua carreira literária começou em 1918 com um artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo. Nesse artigo “Urupês”, Lobato lançou um dos mais famosos personagens da literatura brasileira: Jeca Tatu, símbolo do caipira brasileiro e que serviria de ponto de partida para as críticas do autor o subdesenvolvimento do país e à inércia das autoridades.

Fazendeiro, escritor, pintor, editor, bacharel, homem público, misto de conservador e revolucionário, 125 anos depois e seu nascimento, continuam indefinidos os contornos da vasta, variada, polêmica e quase sempre esplêndida obra de Lobato. Homem de ação, reflexão e criação. Procurou petróleo, lutou por ele – antes da Petrobrás virar realidade. Foi perseguido. Lutou pelo saneamento rural, pela indústria do aço, pela reforma ortográfica. Foi perseguido – por políticos e politiqueiros, por gramáticos e gramatiqueiros, e pela ditadura. A defesa da tese da existência do petróleo do País foi uma luta pelo qual passou seis meses na prisão, em 1941.

A obra mais importante de Monteiro Lobato, porém, foi a série de histórias que escreveu para crianças, iniciada com a publicação de “Reinações de Narizinho”, em 1921. Antes dessa publicação, não existiam nos livros para crianças, escritos no Brasil, características da obra literária. Pioneiro do abrasileiramento da linguagem, criticava abertamente as traduções portuguesas então correntes no Brasil. Além de tornar a linguagem mais coloquial e, portanto, mais acessível às crianças, ousou criar neologismos, fazer inúmeros jogos de palavras, sem duvidar da capacidade de reflexão de seus pequenos leitores. Ele foi o primeiro escritor a tratar a literatura infanto-juvenil com seriedade. Seus livros não são apenas divertidos. Eles procuram informar e educar os jovens leitores. Outra novidade foi a discussão de temas políticos e sociais que empolgavam o mundo naquele tempo e a valorização da cultura popular, uma das vertentes do modernismo a qual ele antecipou.

17 abril 2007

Revisando o índio brasileiro

O índio tem ocupado um espaço minúsculo em nossa historiografia, deixando ao esquecimento. Mas o índio tem uma história, plural. É preciso reconstruir o verdadeiro cenário desconstruindo abordagens simplistas que eurocentrizaram as análises, configurando o índio num ambiente social exótico e primitivo.

A história do índio brasileiro permanece adormecida. O que se mostra nas escolas, principalmente no ensino fundamental, são apresentações distorcidas. O conceito de sincretismo deve ser revisto, afastando as possibilidades de folclorização da cultura indígena. Reduzir a contribuição da cultura indígena a sua herança (vocabulário, comida, etc), tal como vemos nos livros didáticos, é empobrecer a sua história. Reescrever a História Indígena é, antes de tudo, modificar os discursos que durante tanto tempo representaram os nossos nativos como os mais nocivos e pejorativos adjetivos. É preciso apontar perspectiva mais seguras de compreensão do universo histórico e cultural do índio.

Historiadores afirmam que antes da chegada dos europeus à América havia aproximadamente 100 milhões de índios no continente. Só em território brasileiro, esse número chegava 5 milhões de nativos, aproximadamente. Esses índios brasileiros estavam divididos em tribos, de acordo com o tronco lingüístico ao qual pertenciam: tupi-guaranis (região do litoral), macro-jê ou tapuias (região doPlanalto Central), aruaques (Amazônia) e caraíbas (Amazônia). Atualmente calcula-se que apenas 400 mil índios ocupam o território brasileiro, principalmente em reservas indígenas demarcadas e protegidas pelo governo. São cerca de 200 etnias indígenas e 170 línguas. Porém, muitas delas não vivem mais como antes da chegada dos portugueses. O contato com o homem branco fez com que muitas tribos perdessem sua identidade cultural.

Os índios faziam objetos utilizando as matérias-primas da natureza. Vale lembrar que índio respeita muito o meio ambiente, retirando dele somente o necessário para a sua sobrevivência. Entre os indígenas não há classes sociais como a do homem branco. Todos têm os mesmo direitos e recebem o mesmo tratamento. A terra, por exemplo, pertence a todos e quando um índio caça, costuma dividir com os habitantes de sua tribo. Apenas os instrumentos de trabalho (machado, arcos, flechas, arpões) são de propriedade individual.

O trabalho na tribo é realizado por todos, porém possui uma divisão por sexo e idade. As mulheres são responsáveis pela comida, crianças, colheita e plantio. Já os homens da tribo ficam encarregados do trabalho mais pesado: caça, pesca, guerra e derrubada das árvores quando necessárias.
A visão que o europeu tinha a respeito dos índios era eurocêntrica. Os portugueses achavam-se superiores aos indígenas e, portanto, deveriam dominá-los e colocá-los ao seu serviço. A cultura indígena era considerada pelo europeu como sendo inferior e grosseira. Dentro desta visão, acreditava que sua função era convertê-los ao cristianismo e fazer os índios seguirem a cultura européia. Foi assim, que aos poucos, os índios foram perdendo sua cultura e também sua identidade.

A historiografia costuma mostrar os índios como coadjuvantes incômodos, personagens secundários, selvagens infelizes e retraídos. Mas os índios tiveram um papel muito mais atuante e diferenciado do que se supõe, interagindo com os demais agentes sociais de diversas formas que vão da fuga ao ataque, da negociação ao conflito, da acomodação à rebeldia.

A quase totalidade dos índios do Nordeste foram contatados e passaram por experiências de aldeamento durante o período colonial. Sob a tutela dos jesuítas e de outras ordens religiosas como os beneditinos, os capuchinhos, os carmelitas e os franciscanos, os aldeamentos missionários totalizavam perto de uma centena em meados do século XVIII. O avanço da pecuária e da cultura do algodão e o assentamento de fronteiras no sertão foram devastadores para as populações indígenas. O índio brasileiro e baiano precisa ser reconhecido pelo seu próprio povo: o povo brasileiro.

16 abril 2007

Ziraldo apresenta a infância do futuro

O genial Ziraldo se valeu de um novo tempo verbal para narrar sua nova história. O Menino da Lua, lançado pela Melhoramentos, é um conto poético, fascinante. Ele conta a saga de um menino que vive no futuro, no terceiro milênio. Zélen adora brincar de pega-pega com o dragão verde da Lua. É o menorzinho da vizinhança e, por isso mesmo, deixado de lado. O que ele queria era fazer parte da “planeturma” de amigos e vestir a camisa número 10 dessa “sideralcatéia de lobinhos do Espaço e virar o futuro craque nos jogos de astrobol”, brincar as brincadeiras de roda em volta do Sol; planepatinar no vácuo e pegar uma carona numa cauda de cometa pra voar na via-Láctea, petsaltitar estrelas, perder-se em buracos negros ou galácticas cavernas, zanzoar por mil satélites, zuenir espaço afora.

A turma que ele queria fazer parte era formada por Irmin, de Mercúrio; Venício, o laranja, natural de Vênus; Nan, amarelo, vinha da Terra como Zélen; Marlim, o marciano verdinho; Ju, azul, nascido em Júpiter; o colorido Saturnino era de Saturno; Théo, também azul, veio de Urano; Tuna, o menino de Netuno, era violeta; e Plut, pretinho, veio de Plutão. Ninguém tinha tempo de brincar com Zélen. Um dia, sabe-se lá porque, ele foi convidado a brincar com a turma e, como era o melhor pula-planeta, deu um salto insuperável e sumir no Cosmos e nunca mais voltou.

E esse cantador de histórias começa a sua citando uma crença maia que o poeta guatemalteco Humberto Ak´abal lembrou: “Vista de longe, a montanha parece ser azul. De perto, porém, sabemos que ela é verde. O mar, de longe, é azul. De perto, a gente vê que ele é verde. O céu está perto ou longe? O céu está longe. Logo, o céu é verde”.

Ziraldo passou a infância viajando entre planetas nos quadrinhos do Flash Gordon e Brick Bradford. No livro Menino da Lua ele faz uma referência ao Blue Boy, quadro do pintor inglês Gainsborough (Saturno, o menino de Urano), os chapéus e os laços de fita das meninas que acompanham Venício, de Vênus, são uma homenagem à ilustradora australiana Sarah Kay, que segundo Ziraldo, “desenha as meninas mais graciosas do mundo”. O fundo entre ocre e o bege das páginas do menino de Netuno tem uma explicação. O astrônomo americano Karl Glazebrook descobriu que essa era a cor do Universo. Assim é Ziraldo revisitando as cores, a infância, dando asas à imaginação: “nada pode ir mais longe que a nossa imaginação”

Ziraldo Alves Pinto, desde pequeno, já era apaixonado por desenho e leitura. Foi lendo o primeiro número do lendário Gibi que ele pressentiu, pela primeira vez, o seu próprio futuro. Nos anos 50 começou a publicar uma página de humor no Folha de Minas. Nos anos 60 ganhou enorme popularidade com seus cartuns e charges políticas publicadas na revista O Cruzeiro e pelo Jornal do Brasil. Personagens como Jeremias o Bom, Supermãe e o Mineirinho passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros. E foi nessa década que ele realiza um velho sonho: fazer sua própria revista em quadrinhos. Nasce assim a Turma do Pererê, gibi de grande sucesso que fez a alegria da garotada durante muito tempo.

Em 1969 junto com outros desenhistas surgia O Pasquim, o primeiro e mais importante jornal da combativa imprensa alternativa da história do Brasil. É também em 1969, depois de receber o Oscar Internacional do Humor no 32º Salão Internacional de Caricaturas de Bruxelas e convidado a desenhar o cartaz anual da Unicef, ele publicou seu primeiro livro infantil: Flicts, a história simples e pura de uma cor que não encontra seu lugar no mundo. Dez anos depois Ziraldo resolve dedicar mais tempo para escrever histórias para crianças e publica O Planeta Lilás, O Menino Maluquinho e tantos outros. É Ziraldo espalhando cores para o mundo. Com vento nos pés e asas na imaginação. Um menino feliz!

13 abril 2007

Música & Poesia

O Pulso (Titãs)


O pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa
Peste bubônica, câncer, pneumonia
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia
Rancor, cisticircose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
O pulso ainda pulsa (pulsa)
O pulso ainda pulsa (pulsa)
Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia
Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria
Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania
E o corpo ainda é pouco
E o corpo ainda é pouco
Reumatismo, raquitismo, cistite, disritinia
Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia
Brucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, cárie, câimba, lepra, afasia
O pulso ainda pulsa
O corpo ainda é pouco
Ainda pulsa

Livro da Terra e dos Homens - 6 (Carlos Nejar)

Os homens eram sombrios,
esfinges de solidão.

Os homens eram sombrios,
quiseram tecer de sonhos
a água verde dos rios.

Os homens eram amargos,
quiseram compor o cisne
nas águas verdes dos lagos.

Os homens eram ardentes
como tochas de amaranto;
sobre o rosto do poente
deixaram rosas de pranto.

Os homens eram calados,
torres de vazio.

Eram terríveis, terríveis
contra o céu de esquecimento;
lançavam gumes de fogo
e adormeciam no vento.

Os homens eram de vento
(de um vento predestinado);
braços de ferro no tempo,
entre o presente e o passado.

Os homens eram profundos
na superfície das cousas
e ali ficavam no mundo
dos rosalábios e rosas.

Os homens eram ferozes
como estrelas de ambição;
mas no tempo-primavera,
se primavera chegasse,
eram brandos como espuma,
eram virgens como espada;
eram suaves, suaves
como aves de abandono.

Os homens eram de estrela,
soprando sobre o canal;
não era estrela de noite,
mas estrela de metal.

Os homens eram de estrela
e não podiam sustê-la.

Os homens eram de treva,
fizeram-se escravos dela.

Os homens eram remotos
no grande túnel de pedra.

Nem alga, nem alfazema,
nem junco, nem girassol,

floração ali não medra,
longe da terra do sol.

Floração ali não medra;
tudo o que nasce é de pedra.

O homem nasceu do vento
mas sepultou-se na pedra.

O tempo nasceu do homem
mas o homem não é pedra.

O tempo formou-se pedra
na eternidade de pedra.

Um sol compreendeu o homem;
era fogoso e de pedra.

Menino não como os outros,
menino feito de pedra.

Braços, só braços e mãos
na madrugada de pedra.

Os homem donde vieram,
se o seu destino é de pedra?

Que procuravam os homens
na eternidade de pedra?

Eram hálitos de aurora,
luz florescendo caverna?

Eram só pedra.

Talvez fonte, vento vento,
folhagem sobre montanha,
cintilações, pensamento?

Eram só pedra.

Talvez crianças relâmpagos,
Paredes de som, cantigas?

Eram só pedra.

Rostos ocultos no sono,
barcos de ânsia, velame?

Eram só pedra.

Talvez carícia, sossego,
desejo de despertar?

Eram só pedra de pedra.
Os deuses eram de pedra,
os homens eram de pedra
na eternidade da pedra.

Pedra de aurora mas pedra.
os homens eram pedras.

Lábios de pedra mas pedra
os homens eram pedras.

Ventre de pedra mas pedra,
os homens eram pedras.

Noite de pedra mas pedra,
os homens eram pedras,
os homens eram pedras,
os homens eram as pedras.

Eram as pedras, as pedras,
eram as pedras.

(de Livro de Silbion, 1963 - in Dois Poetas Novos do Brasil, Moraes editores, 1972 – Círculo de Poesia)

11 abril 2007

Jubileu do Ziraldo

Os 75 anos do cartunista, jornalista, artista gráfico, romancista, autor e ilustrador de livros infantis, chargista, humorista, teatrólogo e caricaturista Ziraldo estão sendo comemorados no XVIII Salão Carioca de Humor. A mostra intitulada “Jubileu do Ziraldo: 75 anos de um Menino Feliz” é uma bela homenagem a um dos maiores artistas gráficos brasileiros e de renome internacional. Nosso blog presta também uma homenagem com algumas das obras desse mineiro de Caratinga, um homem universal.
















































10 abril 2007

Perdemos o delator da simulação midiática (2)

A idéia que desenvolve em Simulacros e Simulação é a de que o que nós vemos como realidade não passa de sinais e símbolos (simulacros) que apenas simulam a realidade. Vivemos, de certa forma, um mundo de relações artificiais, sem real conteúdo por baixo. Daí para imaginar um mundo dominado por computadores que injetam na cabeça das pessoas uma “realidade falsa” – a idéia central de Matrix – foi o passo dos irmãos Wachowski. “Bem vindo ao deserto do real”, frase que Morfeu diz a Neo em certa cena do filme, é também frase dos livros do próprio Baudrillard. E nos primeiros minutos do primeiro filme Matrix, em que o hacker Neo é acordado em seu apartamento por amigos que lhe pedem um disco, o personagem de Keanu Reeves recebe seu pagamento e vai buscar seus programas de paraísos artificiais no fundo falso do livro “Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard. O filósofo diz ter assistido ao filme dos irmos Wachowski mas não gostou. “Matrix faz uma leitura ingênua da relação entre ilusão e realidade. Os diretores se basearam em meu livro mas não o entenderam”, disse certa vez.

No livro A Transparência do Mal (1970) ele não hesitou em exumar o pensamento reacionário do filósofo francês Joseph de Maistre: “É preciso viver inteligentemente com o sistema, mas revoltar-se com suas conseqüências. É preciso viver com a idéia de que sobrevivemos ao pior”, assegurou. Já no provocativo livro A Guerra do Golfo não Aconteceu (1991) ele afirmou que, no confronto entre os aliados e o governo de Saddam Hussein, o perdedor não havia sido derrotado (pois o ditador iraquiano continuou no poder) e os vencedores não haviam sido vitoriosos.

Na obra O Crime Perfeito (1995), Baudrillard descreve o “assassinato da realidade” pelas teorias intelectuais, pelo mundo virtual e pelas conquistas tecnológicas. “Todos os nossos valores não passam de simulacros”, afirmava ele. A superpotência EUA era, para ele, uma utopia tornada realidade, mas – por outro lado – uma “simulação do poder” que não serviria como ideal de democracia. “O que significa liberdade? Ter a opção de comprar um carro ou outro? Essa é uma liberdade ilusória”.

Sua provocante tese gerou controvérsia como a da “nulidade” da arte moderna. Em Madonna Deconnection (1996) ele analisa a imagem da cantora Madonna para discutir sexo na mídia e luta de gêneros. Em meados dos anos 80 uma viagem aos Estados Unidos o impressionou. “Os Estados Unidos são a utopia realizada”, disse. Anos depois, seu interesse pela atualidade resultou em Réquiem pelas Torres Gêmeas, escrito um ano depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque. Por sua análise da lógica do terrorismo, Baudrillard chegou a ser acusado de simpatia pelos terroristas. “Sou terroristas no sentido de que tento ler o terrorismo lá onde ele está”, replicou ele. Para Baudrillard, o terrorismo está “em toda parte, em forma de vírus ou na forma de evento”, sendo que os terroristas teriam feito “o que queríamos”. Segundo sua apresentação, o Ocidente substituiu Deus pelas máximas da globalização e declarou guerra contra si mesmo de uma forma suicida. “O inimigo está no cerne da cultura que o combate”, conclui ele.

Em seu ensaio O Espírito do Terrorismo (2002) ao descrever os ataques de 11 de Setembro como “o acontecimento absoluto” voltou a causar polêmica. Para ele, não se tratava de um choque de civilizações ou religiões, e sim da reação “simbólica” à contínua expansão de um mundo baseado unicamente no intercâmbio comercial. O que faz do 11 de Setembro o “acontecimento absoluto”, segundo ele, é o fato de ser o cenário onde a triunfante globalização combate a si mesma, e “as torres caem por seu próprio peso”.

Niilista por uns, moralistas por outros, Baudrillard foi muito criticado. O físico Sokal atacou seu estilo “difícil e vazio”. “No fim das contas, pergunte o que restará do pensamento de Baudrillard se retirarmos todo o esmalte que o recobre”, escrevera, em 1997, os pensadores Alan Sokal e Jean Bricmont. “A covardia intelectual é a verdadeira disciplina olímpica dos nossos dias” dizia Baudrillard que não esperava muito de seus contemporâneos.

Mas a importância de Baudrillhard como destruidor de fetiches contemporâneos permanece inatacável. “Jean Baudrillard foi o maior iconoclasta de nossa época, o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches. Fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens, em que a condição preliminar para qualquer tentativa de melhorar a situação é resistir ao poder sedutor das imagens e escapar de seu encantamento. Realizar à perfeição em tarefa de limpar o terreno. Mas parou nesse ponto. Ao levar as iniciativas iconoclastas além de seus limites anteriores, aproximou-se perigosamente do niilismo”, defendeu o sociólogo polonês radicado na Inglaterra, Zygmunt Bauman, autor de “Vida Líquida”.

09 abril 2007

Perdemos o delator da simulação midiática (1)

O filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard morreu no dia 06 de março em Paris aos 77 anos de idade deixando uma crítica extremamente atual contra a sociedade de consumo e a manipulação da mídia. Para ele, o gesto humanitário era de causar aversão; a democracia, um jogo virtual de sombras; o mundo do consumo, um jogo ilusório. Escritor de mais de 50 livros, Baudrillard era conhecido por sua crítica ferrenha da sociedade contemporânea – da publicidade, do jornalismo, da política, dos EUA e, basicamente, de tudo mais. Ele foi um dos intelectuais mais midiáticos das últimas décadas. Sua escrita irônica, e suas idéias sobre a substituição do real por simulacros fizeram com que sua influência ultrapassasse a academia, a ponto de seu pensamento ter inspirado obras como o filme “Matrix”.

O francês sempre negou que fosse inspiração para o filme, dizendo que tinha sido mal interpretado. Disse que preferia outros filmes que representavam melhor a relação entre o real e os simulacros como “O Show de Truman”, com Jim Carrey, “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch e “Minority Report”, de Steven Spielberg

Baudrillard nasceu em 1929, na zona rural de Reims, França. Estudou alemão na Sorbonne e trabalhou como crítico e tradutor, tendo vertido para o francês, obras de Karl Marx e Beltolt Brecht. O movimento estudantil e as discussões sobre marxismo e psicanálise marcaram o sociólogo. Posteriormente, sob influência do mentor da Pop Art, Andy Warhol, viria a refletir sobre a sociedade de consumo e seus símbolos, formulando uma crítica veemente em seu primeiro ensaio, Sistema dos Objetos (1968). Para Baudrillard, a liberdade do consumidor era uma ilusão, pois o mundo hiper-real seduz e manipula o comprador.

Ele se voltava contra a compatibilidade mercadológica dos meios de comunicação. Em sua aguda crítica à mídia, Baudrillard denuncia que as imagens por ela esboçadas são mais poderosas que a realidade. Constatando que o abismo entre verdade e símbolo implica a perda de liberdade, a ambição do filósofo era reaproximar esses dois pólos.

Seus dois livros seguintes, A Sociedade de Consumo (1970) e Por Uma Crítica da Política Econômica do Signo (1972) era voltada para um estudo simbólico do consumo. Ele afirmava que os objetos não possuem apenas um valor de uso (sua finalidade) e um valor de troca (seu preço), como queria a teoria econômica clássica, mas também um valor de signo, por meio do qual eles atribuem um determinado status aos seus proprietários. Esse valor, de signo, para Baudrillard, era o impulso determinante das práticas de consumo da sociedade contemporânea, que ele considerava danosas e associava a rituais de destruição de riquezas observados em sociedade primitivas.

A noção de simulacro proposta por Baudrillard para explicar a paisagem pós-industrial, se dirige contra o apagamento dos limites entre o real e suas representações. Para ele, lidamos em nosso cotidiano apenas com um código (e não com realidades palpáveis). A era de reprodução técnica do mundo se intensificou a ponto de assimilar o existente a um sistema de signos que cancela a própria idéia de original dos objetos naturais que a linguagem representaria.

As posições do sociólogo francês sempre o colocaram na linha de frente do debate público. Nos anos 70 previu que a Guerra do Vietnã seria um “álibi” para os EUA incorporarem a China e a Rússia. Já na Guerra do Golfo (1991) ele afirmou “não existir” diagnosticando o caráter “cirúrgico” de uma guerra “virtual”, em que “o inimigo não é mais do que um número no computador”. Após o 11 de Setembro, previu o fim das mitologias do futuro” – “o progresso, a tecno-ciência e a história”.

Na década de 80 Baudrillard se aprofundou nos estudos dos meios de comunicação e sua influência na construção das relações sociais. Na obra Simulacro e Simulação (1981) ele afirmava que o excesso de informações transmitidas pelos meios de comunicação havia produzido uma erosão do sentido e um apagamento do mundo real. E descreveu esse estado como “hiper-realidade”, situação em que o mundo real era substituído pelo dos simulacros.

04 abril 2007

Tudo flui com Heráclito

Hoje vamos mergulhar um pouco nas reflexões de Heráclito, considerado o mais importante dos pré-socráticos. É dele a frase de que tudo flui. Não entramos no mesmo rio duas vezes e o sol é novo a cada dia. É o filósofo do devir, a lei do universo, tudo nasce se transforma e se dissolve, e todo o juízo seria falso, ultrapassado. Desprezava a plebe, não participou da política e desprezou a religião, os antigos poetas e os filósofos de seu tempo. É o primeiro pré-socrático com um número razoável de pensamentos, que são um tanto confusos, e por isso tem o nome de Heráclito, o obscuro. São aforismos. Foi muito crítico.

Devido ao seu estilo baseado em charadas de difícil compreensão, era conhecido como o obscuro. Ele gostava de enigmas, paradoxos e jogos de palavras enigmáticas que ocultavam seus próprios significados. Ele levou o discurso filosófico de Tales, Anaximandro e Anaxímenes a posições decididamente mais avançadas e em grande parte novas.

Heráclito chamou a atenção para a perene mobilidade de todas as coisas. Segundo ele, nada permanece imóvel e nada permanece em estado de fixidez e estabilidade, mas tudo se move, tudo muda, tudo se transforma, sem cessar e sem exceção ("tudo flui"), recordando a futura e famosa afirmação de Lavoisier. Para ele, só o devir das coisas é permanente, no sentido de que as coisas não têm realidade senão justamente no perene devir. Para Heráclito, o devir é um contínuo conflito dos contrários que se alternam, é uma perene luta de um contra o outro, uma guerra perpétua. E como as coisas só têm realidade no perene devir, essa guerra se revela como o fundamento da realidade das coisas.

Para o filósofo, o mundo estava em constante mudança, “em fluxo”, e a estabilidade aparente era uma ilusão. Foi ele quem insistiu, num dito celebre, que não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio. Ele estendeu essa idéia desde a Natureza até o comportamento humano, sempre enfatizando a importância da tensão e complementariedade entre opostos como a força motriz por trás do dinamismo do mundo à nossa volta. “Princípio e fim, na circunferência de um círculo, são idênticos”. Para ele, o equilíbrio é atingido através da necessária complementariedade entre os opostos, a qual ele chamou de Logos, como o arco, que deve ser envergado para trás, de modo a poder arremessar a flecha para a frente.

Ele foi i primeiro filósofo, o pioneiro em tratar espiritual e internamente de fenômenos da natureza exterior. Assim nasceu a psicologia. Há 2,5 mil anos, ele antecipou as descobertas da fisiologia cerebral e das redes de computadores. Ele vê a alma como um espelho da natureza e chama essa complexa estrutura de logos, e a caracteriza como o fogo vital e eterno: “Todas as coisas são transformadas em fogo, e o fogo se transforma em todas as coisas, assim como o ouro é trocado por todas as mercadorias e todas as mercadorias são trocadas por ouro”. Ou seja, todas as coisas podem ser reduzidas ao fogo primordial, que concentra tudo num só. “O todo está em cada um; cada um faz parte do todo”. Assim, a força básica era o fogo, devido ao seu poder de transformas as coisas, de pô-las em movimento.

Para Heráclito, reina a unidade na diversidade e diversidade na unidade. O movimento, o vir-a-ser e o deixar-de-ser, constitui uma unidade. Ao mesmo tempo que algo torna-se outra coisa, esse algo se mantêm o mesmo. “Tudo se desfaz e se reagrupa, se aproxima e continua. Nada é sólido”. Na ordem natural das coisas, tudo flui, tudo cresce e morre. Sobre o processo de transformação, deixe-se levar pelas ondas dos seus pensamentos e ouça a composição de Lulu Santos e Nélson Motta, “Como uma onda”: “Nada do que foi será/De novo do jeito que já foi/um dia/Tudo passa, tudo sempre/passará/A vida vem em ondas,/como um mar/Num indo e vindo/infinito//Tudo que se vê não é/Igual ao que a gente viu a/um segundo/tudo muda o tempo todo no/mundo//Não adianta fugir/Nem mentir pra si mesmo/agora/Há tanta vida lá fora/Aqui dentro/ sempre/Como uma onda no mar/Como uma onda no mar/Como uma onda no mar”.

Chama a atenção, além da pluralidade, para os opostos. Tanto o bem como o mal são necessários ao todo. Deus se manifesta na natureza, abrange o todo e é crivado de opostos. O logos é o princípio cósmico, elemento primordial, e a razão do real, a inteligência. A verdade se encontra no devir, não no ser. Com sentidos poderosos, poderíamos vê-lo. O pensamento humano participa e é parte do pensamento universal. O fogo é eterno, um dia tudo se tornará fogo. A felicidade não está nos prazeres do corpo. A morte é tudo que vemos despertos, e tudo o que vemos dormindo é sono. Existe a harmonia visível e a invisível. A alma não tem limites, pois seu logos é profundo e aumenta gradativamente. O pensar é comum a todos. A terra cria tudo, e tudo volta para ela.

O ser não é mais que o não ser. O fogo condensa-se, e apagado vira água. Ele encontrou fogo na alma humana, comparou-a com uma chama que se apaga na morte. Identificou o infinito na natureza, não apenas o matemático, mas o que constitui a essência das coisas. Pois todas as coisas têm uma essência, e o fluxo da alma é tão fundo que não tem fim. O universo de Heráclito era eterno, e em constante estado de fluxo.

03 abril 2007

Palavra, símbolo de poder

“O que quer? O que pode esta língua?” Pergunta Caetano Veloso ao terminar sua canção “Língua”. A língua é formada de palavras e palavras é energia que pode se materializar. Por isso é fundamental ter cuidado e utilizar a palavra para produzir bem estar. Santo Agostinho em suas “Confissões” ficou integrado com a origem das palavras. Para o filósofo, as palavras são obras de Deus e já existem dentro de nós, fazem parte de nossa alma.

Shakespeare foi certeiro ao tergiversar sobre o assunto: “O que há em um nome?/Pois aquilo que chamamos rosa/Por qualquer outro nome/Exalaria o mesmo doce perfume”. Górgias, sofista grego, no “Elogio de Helena”, escreve: “Com a palavra se fundaram as cidades, se fazem portos, se comanda exércitos e se governa o Estado”. Aristóteles, na “Política”, sublinha que é cidadão “aquele a quem é concedido o direito de deliberar”. Ele considera que há uma estreita relação entre a linguagem e a dimensão social e política do homem.

Diógenes Laércio, no século III, dizia: “A linguagem é a voz que manifesta aquilo que a coisa era ou é”. Nietsche, instituindo o perspectivismo, afirma que a linguagem não manifesta o que as coisas são, mas o nosso ponto de vista, a nossa perspectiva relativamente às coisas ou factos. Heidegger defende que o mundo revela-se pelas palavras: o que não tem nome não é conhecido. Por isso, assegura que “a linguagem é a casa do ser”.

Cada palavra que utilizamos no dia-a-dia tem a sua história, e reflete as evoluções culturais sofridas pela sociedade em que vivemos atualmente. “A palavra, como se sabe, é um ser vivo”, disse o escritor Victor Hugo. Assim, os idiomas são organismos vivos, que refletem as mudanças do mundo ao seu redor. Necessitam, pois, incorporar diariamente novos jargões, neologismos e estrangeirismos ao seu repertório, para que possam sobreviver. Caso contrário, murcham e morrem, feito o latim e milhares de outras línguas e dialetos soterrados nestes séculos de civilizações.

Para Roland Barthes, “a palavra, enquanto instrumento, é símbolo de poder”, e essa vontade de poder encontra-se na argumentação na própria sedução pela palavra. Já Wittgenstein considera que é no uso que damos às palavras que encontramos o seu significado. E para compreender o uso é preciso entender o “jogo de linguagem” que integra o que é dito. E Habermas fala de uma ética da comunicação e define a razão comunicativa como uma razão solidária: os melhores consensos devem promover uma solidariedade na ação.

Todas as palavras são rigorosamente lindas. Nós é que as corrompemos”, disse Nelson Rodrigues. Ao longo dos tempos sentimos, crescemos, aprendemos, ensinamos, partilhamos, descobrimos e fomos nas palavras e com as palavras. Hoje vivemos numa sociedade rendida aos manipuladores da palavra. A palavra foi dada a uns por se supor que poderiam, falar em nome de todos. E o resultado é a morte da palavra transportando consigo a morte de muitas coisas essenciais como o pensamento, a inteligência, a verdade.

Sérgio Augusto em um texto da revista “Bravo!” (nº56) cita algumas palavras que gostaria que fossem adotadas pela língua portuguesa. Por exemplo: Razbliuto, palavra russa que significa o sentimento carinhoso que nutrimos por uma pessoa que a cada dia amamos. Ou Mamihlapinatapei, vocábulo que pertence a um idioma indígena da Terra do Fogo e quer dizer, simplesmente, o “ato de olhar nos olhos do outro, na esperança de que o outro inicie o que ambos desejam mas nenhum tem coragem de começar”. E é bom não esquecer uma pequena e maravilhosa palavra portuguesa chamada saudade.

Afinal, o que quer e o que pode esta língua? A língua quer ser objeto de comunicação, condição fundamental para que as sociedades existam e a cultura possa ser transmitida de uma para outra geração. A língua pode se transformar em arte e, nessa dimensão, trazer o sentimento, a reflexão sobre as questões existenciais, a crítica da realidade, a denúncia da injustiça e a busca da compreensão da vida e do mundo.

02 abril 2007

Nascimento e morte das civilizações

Existiram importantes civilizações ao longo do tempo que se localizaram em todos os continentes, envolvendo as mais diferentes etnias. Foram cidades-estados, impérios, federações, confederações e Estado-nações, que viveram sob as mais variadas formas de governo. Impérios e civilizações surgiram e sumiram. Os sumérios foram os primeiros a dominar no período 310 a 1950 antes de Cristo. Os egípcios veio a seguir, e foram a civilização de maior destaque antes dos gregos e dos romanos. Formada cerca de três milênios antes de Cristo (3100 a.C a 30 a.C.) pela unificação de várias comunidades à beira do Nilo, a civilização foi subjugada pelos persas em 525 a.C. e desintegrou-se.

Vieram a seguir os hindus (2500 a.C. a 1500 a.C.), acadianos (2350 a.C. a 2180 a.C.), chineses (2000 a.C. a 1911 d.C.), israelitas (2000 a.C. a 70 d.C.). Os babilônios (1894 a.C. a 539 a.C.) ficaram conhecidos pelo Código de Hamurabi, a primeira compilação de leis que se conhece, e desapareceram após a derrota para Alexandre, o Grande. Surgem os hititas (1700 a.C. a 1193 a.C.) e os olmecas (1500 a.C. a 400 a.C.). O Império Maia (1500 a.C. a 1400 d.C.) construiu cerca de 15 cidades e desapareceu no século 15. Os assírios dominaram de 1400 a.C. a 612 a.C. Mas foi a civilização grega que mudou o mundo ao desenvolver o conceito de democracia e estimular atividades como filosofia, dramaturgia, ciências, esportes, artes plásticas, poesia e arquitetura. Durou de 1200 a.C. a 323 a.C. e desapareceu quando foi dominada pelos romanos.

Chegam os fenícios (1000 a.C. a 538 a.C.), os cartagineses (800 a.C. a 145 a.C.) e os romanos (753 a.C. a 476 d.C.). Este último, com a herança grega, desenvolveu o direito, a engenharia e a arte. O império acabou por causa das invasões germânicas. Surgiram os macedônios, persas, nazcas, bizantinos, teotiguacans, árabes, vikings, astecas e otomanos. Durante o seu apogeu, entre os séculos XV e XVIII, o Império Otomano poderia ser considerado como um Estado-núcleo da civilização muçulmana. Com sua posterior decadência e desaparecimento, no início do século XX, logo após a Primeira Guerra Mundial (1914/1918), não houve mais um Estado-núcleo da civilização islâmica. Como as civilizações têm uma espécie de "ciclo de vida", muitas delas desapareceram ao longo da história, mas deixaram inúmeros vestígios de sua existência, cujo impacto e ecos culturais sobrevivem até nossos dias.

Depois dos otomanos vieram os incas, os portugueses, espanhóis, britânicos, austro-húngaros, soviéticos e agora os americanos. O centro da produção artística nos séculos XV e XVI foi a Itália. A partir do século XVIII e XIX a França tornou-se o espaço produtor e aglutinador das artes. Foi a partir da Segunda Guerra Mundial que os Estados Unidos tomaram de vez a idéia de arte moderna. E de lá para cá vivemos sob a hegemonia americana, que inclui Mickey e Pollock, Pato Donald e Warhol, Michael Jackson e George Bush. E no meio de tudo isso teve a poesia de Whitman, a música de Armstrong e a pintura de Edward Hopper.

Durante sua secular e contínua expansão, os ocidentais virtualmente eliminaram as civilizações ameríndias, praticando terríveis etnocídios. Além disso, as culturas indiana, islâmica e africana foram subjugadas enquanto a chinesa e a japonesa foram subordinadas aos "desejos" ocidentais. Por outro lado, as principais ideologias e doutrinas políticas dos séculos XIX e XX – o Liberalismo, o Anarquismo, o Socialismo, o Nazi-facismo, o Comunismo, o Nacionalismo – foram produtos da civilização ocidental.

O final da Segunda Grande Guerra deixou a França exaurida, e o mercado americano tinha necessidade de obras que os franceses não podiam mais fornecer. O vácuo da produção européia começou a ser preenchido por obras surgidas do orgulho americano estimulado pela vitória contra o nazismo. Assim obras abstratas surgiam como oposição a arte figurativa comunista. O sucesso da vanguarda americana deveu-se não apenas às considerações estéticas e estilísticas, mas também a um movimento de ressonância ideológica.

Os EUA optaram por modelos estéticos que se opunham ao que Hitler fizera em 1937, quando este declarou como “arte degenerada” a arte moderna. O governo americano organizou rapidamente uma exposição de sua arte de vanguarda para correr o mundo. O projeto econômico, estético e político se completou com a exportação dos ícones americanos, capitaneados pela indústria cinematográfica. Essa mudança do eixo artístico da Europa para os Estados Unidos ocorreu através da ideologia dominante e arrogância do governo americano se envolver na cena artística internacional para dominar. E tudo ficou dominado, mas tem época certa de terminar e provavelmente a China voltará a se tornar grande potência. Quem viver, verá!