29 abril 2021

Figuras invisíveis da História são resgatadas na Enciclopédia Negra

 

Muitos foram silenciados ou esquecidos pelos nossos manuais, livros didáticos e compêndios mais tradicionais. Registros de atos empreendidos pela população branca estão em toda parte. Enquanto que as referências acerca da imensa população escravizada negra que viveu no país são bem escassas. Para ampliar a visibilidade das biografias de mais de 550 personalidades negras, em 417 verbetes individuais e coletivos é que surgiu a Enciclopédia Negra, recém lançada pela Companhia das Letras. As histórias de personagens afro-brasileiros espalhados por toda parte do Brasil, de Norte a Sul, estão nesta obra escrita pelos professores Flávio dos Santos Gomes, Jaime Laurian r Lilia Moritz Schwarcz.

 

Para retratar alguns desses personagens, que nunca foram fotografados ou desenhados,  os autores convidaram 36 artistas plásticos negros cujas obra estarão expostas na Pincacoteca de São Paulo a partir do mês maio de 2021. 

 


“A história das populações negras no Brasil é uma história de sofrimento”, diz Schwarcz. “O país transformou a escravidão numa linguagem perversa, que ainda perdura. Mas é muito importante para nós mostrar não apenas o sofrimento como também a sobrevivência dessas populações. Havia as formas extremas de ativismo como fugas, envenenamentos, suicídios e quilombos, mas havia também a resistência pela pintura, pelo circo, pela engenharia...”

 

O livro resgata figuras que desafiaram o racismo estrutural e, na maioria das vezes, pagaram caro por isso. Chamado de “Lutero Negro” por um naturalista inglês, Agostinho Pereira reuniu centenas de seguidores pregando pela autonomia política dos negros. Ex-militar e crítico da igreja, dizia que Jesus não era branco e sim “acaboclado” muito antes que as atuais reconstituições computadorizadas lhe dessem razão. Foi condenado a três anos de prisão.

 

A cadeia também foi o destino da curandeira Luiza Pinta, perseguida por suas “operações supersticiosas”. Raro médico negro de sua época, o liberto Euzébio de Queiroz Coutinho Barcelos (1848-1928) sofreu acusações de cunho racista da imprensa de Pelotas, que chamou de feitiçaria e charlatanismo os rituais do catolicismo popular que realizava.

 

Outros tiveram itinerários mais tranquilos. José Ezelino da Costa (1889-1952) desenvolveu um estilo próprio de fotografia e fez fama como o “primeiro fotógrafo negro do sertão do Seridó”. O palhaço Benjamim de Oliveira viveu na miséria, mas teve reconhecimento suficiente a ponto de jornalistas pressionarem deputados para que ele recebesse uma pensão do governo.

 

Algumas figuras colocam em xeque a ideia de que os escravos do país não se comunicavam com o resto do mundo. A história de um dos líderes da insurreição de Viana, Daniel Araújo, mostra que nas senzalas do Maranhão se tinha conhecimento da Guerra Civil nos EUA. Nos portos, marinheiros africanos e brasileiros trocavam ideias sobre as revoltas em outros países.

 


Nesta Enciclopédia negra, Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz passam em revista a história do Brasil, da colonização aos dias atuais, a fim de restabelecer o protagonismo negro. E o fazem alcançando o que há de singular, multifacetado e profundo na existência particular de mais de quinhentos e cinquenta personagens. São profissionais liberais; mães que lutaram pela alforria da família; ativistas e revolucionários; curandeiros e médicos; líderes religiosos que reinventaram outras Áfricas no Brasil, pessoas cujas feições foram apagadas pela história.

 

Da Bahia a obra mostra mais de 50 personalidades entre eles estão André Rebouças (1838-98) engenheiro de Cachoeira, os capoeiristas Besouro Mangangá (1895-1924), Mestre Bimba (1899-1900? 1974), Mestre Pastinha (1889-1981) os parlamentares Carlos Alberto Oliveira dos Santos (1941-2018), Carlos Marighela (1911-1969), os artistas Emmanuel Hector Zamor (1840-1919), José Theóphilo de Jesus (1758-1847), Rubem Valentim (1922-1991), Zeni Pereira (1924-2002), o fundador da psiquiatria no Brasil Juliano Moreira (1872-1933), as ialorixás Mãe Agripina, Mãe Aninha, Mãe Beata de Iyemanjá, Mãe Menininha, Mãe Olga de Alaketu, Mãe Senhora, Mãe Stella de Oxósi, o bandoleiro Lucas de Feira, o abolicionista Luiz Gama, a primeira médica negra do Brasil e primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia Maria Odília Teixeira, o engenheiro, geógrafo e professor Teodoro Sampaio, o intelectual Milton Santos, Pacifico Licutan, Principe Oba II, Rosa do O´Freire e muitos outros.

 

Na introdução, vários livros foram citados como os de Haroldo Costa (Fala, crioulo, 12), Oswaldo de Camargo (A mão afro-brasileira, 1988), Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil (Mulheres Negras do Brasil, 2006), Nei Lopes (Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, 2004) entre outros. Não foi citado meus livros devido a grande dificuldade de distribuição. Publiquei pela Editora P&A, em 1997 e 1998, no modelo independente, os livros Gente da Bahia Volume 1 (com biografias de 100 personalidades baianas) e Gente da Bahia Volume 2 (50 personalidades baianas). Nestas, cerca de 40 são negras como Milton Santos, Andre Rebouças, Batatinha, Riachão, Bule Bule, Besouro da Bahia, Luiz Gama, Clarindo Silva, Camafeu de Oxossi, Dom Obá II, Mãe Hilda, Mário Gusmão, Miguel Santana, Nelson Maleiro, Rubem Valentim, Manuel Querino e tantos outros.

 


Excelente este Enciclopédia Negra, mas senti falta de nomes importantes como a guerreira Maria Felipa, o artista Mario Gusmão, Nelson Maleiro, Miguel Santana, Camafeu de Oxossi, Bule Bule, só para citar alguns. Mesmo assim, parabéns aos pesquisadores.

 

25 abril 2021

Grandes personagens de quadrinhos brasileiros 17

 


XAXADO - Da simplicidade do traço à criatividade da narrativa, Xaxado retrata a vida rural com todas as suas lendas e mistérios. São aventuras de um garoto, neto de um famoso cangaceiro que vivia com o bando de Lampião, às voltas com problemas do dia a dia, junto com seus pais e amigos. Sensível às frustrações de seu tempo, demonstra especial preocupação com a desigualdade social. O personagem deu origem a uma turma que ocupou diariamente, ao tempo de 12 anos, as páginas do jornal baiano A Tarde, a partir de 1998. Criação do quadrinista Antônio Cedraz (1945-2014), a Turma do Xaxado reúne personagens tipicamente brasileiros e já recebeu diversos prêmios. Todo o trabalho tem um bom acabamento visual das personagens, com precisão no traço e originalidade temática. Através de um enredo fluente, falando de um cotidiano em que se misturam o real e o simbólico, o objetivo e o subjetivo, o autor constrói uma atmosfera da qual é difícil ficar alheio. Através de Xaxado penetramos no universo gráfico de Cedraz, o imaginário infantil cria asas e viaja na mente de todos nós. A turma vive às voltas com críticas ao sistema capitalista e à desigualdade social. Temas como a corrupção, a desonestidade dos políticos, a seca e a fome povoam as tirinhas, que, no entanto, prima pelo bom humor constante. Acompanha Xaxado personagens como o matuto Zé Pequeno que adora ficar na rede; a menina estudiosa e defensora da língua portuguesa Marieta; Capiba que deseja tocar e cantar como Luiz Gonzaga; a protetora do meio ambiente Marinês, e o filho de um grande latifundiário, que faz questão de deixar bem claro que nasceu em busca de ouro, Artuzinho. Além desses, participam das histórias diversos personagens do folclore nacional.

 


AÚ, O CAPOEIRISTA - No final de 2008 o baiano Flávio Luiz lança o álbum Au, o Capoeirista tendo um negro como protagonista. Humor e aventura de forma bem equilibrada, aborda vários elementos da cidade de Salvador como música e culinária. Exímio lutador, Au vale-se de sua astucia e inteligência para solucionar os problemas. A história, ambientada em Salvador, é repleta de aventura, humor, consciência ecológica e mostra o cotidiano do capoeirista mirim Aú e seu inseparável amigo, o macaquinho Licuri. No seu primeiro álbum, o adolescente investiga o desaparecimento de uma garota francesa sequestrada no Pelourinho ao presenciar o início de um incêndio. A investigação do capoeirista Au o leva à ilha particular do misterioso Armando Confuzionni. A partir daí o leitor vai encontrar muita ação pelas ladeiras do Pelô e outros pontos da cidade, além de uma eletrizante perseguição de jetskis nas águas da Baía de Todos os Santos. Na segunda aventura (2014) o capoeirista enfrenta piratas no álbum O Fantasma do Farol (2014). Um fantasma assanha o Farol da Barra na noite de

 


CABRA – Criação do baiano Flávio Luiz. Ficção científica e cultural regional se unem para contar a história de Severino Crispim dos Santos, também conhecido como o Cabra. A releitura da música Sobradinho (“o sertão vai virar mar...”), da dupla Sá e Guarabyra, abre o álbum. A canção dá o tom da narrativa; mais de mil anos no futuro, o deserto toma conta do planeta. Água é raridade, um privilegio apenas dos coronéis e do clero. Em um futuro devastado por guerras e destruição do meio ambiente, a Terra se tornou um grande deserto, em poucos focos de água. E é nesse cenário que vive Severino, um cangaceiro que no dia de seu casamento sofreu uma emboscada e teve seu bando e noiva assassinados. Depois de ser dado como morto, ele parte em busca de vingança contra o coronel Antonio Bento, mas no meio do caminho vai descobrir uma serie de segredos sobre o dia de sua emboscada. O álbum foi lançado em 2010, num tamanho raro de se ver hoje em dia. São 56 páginas coloridas, no formato de 25 x 38 cm editado pela Papel A2 (SP). Traição, vingança, redenção e uma pitada de romance fazem desse álbum independente O Cabra uma HQ de ficção com toques tropicalistas

 


CAPITÃO DOUGLAS – Personagem criado por Laerte personifica a atitude autoritária. Personagem da série O condomínio nos anos 1990. O velho Capitão é saudosista de guerras, vive combatendo moinhos de vento, com pompa militar e de lembranças da guerra do Paraguai. Embora aposentado de suas funções (referência aos militares que comandaram o Brasil de 1964 a 1985), continua a sua luta para impedir o “fim da cultura e civilização”. Em 2010 Laerte publica nos quatro volumes da coleção Striptiras, Capitão Douglas Capricórnio na sua luta contra as hordas de bárbaros famintos sanguinários assassinos destruidores da cultura e da civilização.

 




MENINO QUADRADINHO – Um dos mais belos e poéticos tributos às histórias em quadrinhos e sua fascinante forma de linguagem e de narrativa. Criação de Ziraldo e publicado pela Editora Melhoramento em 1989. Mergulho do cartunista no mundo repleto de imagens, cores e letras. Nessa obra Ziraldo homenageia poetas como Drummond e Vinicius de Moraes, que têm seus versos citados, e mestres das HQs como Will Eisner e Moebius. A narrativa segue o personagem no seu crescimento físico e psicológico, partindo das HQs passo a passo até o texto impresso. Até a página 19, o desenhista brinca com a linguagem dos quadrinhos, imitando o estilo de vários clássicos do gênero. Nas outras páginas, o menino quadradinho do livro “penetra surdamente no reino das palavras” (como dizia Drummond em “A Procura da Poesia”) e vive uma aventura no país das letras, que Ziraldo já explorara anteriormente em seu Planeta Lilás. Nesta obra, os truques gráficos se misturam com personagens de outros livros do autor ou clássicos das HQs. De repente, em meio a esse mundo de personagens, imagens e cores, o menino acorda do seu sonho como se tivesse levado um grande susto: Onde estou? Onde estão os quadrinhos? Os balões! E os sons?  Todo o encanto transmitido pelas imagens vai aos poucos tomando conta das palavras. Ziraldo garante a seus muitos leitores que aprendera gostar de ler é isso: trocar um sonho colorido e cheio de imagens, por outro repleto de letrinhas – idéias, que fazem pensar e alargar o futuro. Tudo isso, feito com alegria e amor. Um livro bonito e instrutivo, e visualmente magnífico.

24 abril 2021

Grandes personagens de quadrinhos brasileiros 16

ANOS 90

 

1990/2000 - A última década do século XX traz a da realidade virtual. As novas tecnologias de realidade virtual já permitem que as pessoas, literalmente, entrem no computador para interagir com os atores colocados em cena. Assim, usando um capacete criador de realidade virtual, entra-se no filme. Lara Croft, heroína virtual de milhares de fãs pelo mundo afora, é a mocinha do game Tomb raider, gravou um disco produzido por Dave Stewart, virou objeto de culto, a ponto de ir para capas de revistas e ser saudada como o ideal feminino da virada do século. Tudo isso sem existir. Ela é apenas uma das criaturas que habitam o mundo virtual e que, depois de serem eleitas ídolos cyber, começam a chegar ao mundo real. O que estava em livros de ficção científica, como Looker, de Michael Crichton (sobre modelos que serão belas para sempre, uma vez que são artificiais), ou Idoru, de William Gibson (que fala da idolatria e falsos seres), torna-se realidade. Virtual, e lucrativa.

 

A engenharia genética, de sua parte, poderá tornar possível a multiplicação de clones humanos, isto é, a fabricação em série de indivíduos idênticos. A discussão da sexualidade no cinema refinou-se. Aclamada em Cannes/97, a fábula moderna Ma Vie en Rose, do belga Alain Berliner, rediscute papéis sexuais e anuncia a nova tendência no cinema. O filme sugere que as linhas das fronteiras entre o masculino e o feminino estão cada vez mais esmaecidas. Jurassic Park, de Steven Spielberg, foi o filme de maior sucesso do ano de 1993 e bateu o recorde de bilheteria do E.T. O sucesso tem a ver com o uso espetacular de recursos visuais e cibernéticos. O cinema brasileiro atravessou uma crise profunda, tanto de criação quanto de produção. Em 1994 o cinema ensaia um retorno com Lamarca, de Sérgio Rezende, e Carlota Joaquina-Princesa do Brazil, de Carla Camurati, O Quatrilho, de Fábio Barreto, O Mandarim, de Júlio Bressane, Jenipapo, de Monique Gardenberg, O Que é Isso Companheiro?, de Bruno Barreto, e tantos outros.

 

E nos quadrinhos?

 


ALINE – Tira criada  por Adão Iturrusgarai em 1993 e publicada inicialmente em 1996 no jornal Folha de S. Paulo, até o ano de 2004. Em 2014, para comemorar o vigésimo aniversário da tira, Adão retomou a personagem de Aline com quarenta anos, agora com problemas inerentes à idade e uma filha, Luna, mas 'mais poliamor do que nunca'. Em suas histórias, Aline vive um relacionamento amoroso a três, fazendo humor sobre questões como feminilidade e liberação sexual. A garota trabalha fora numa loja de discos, odeia cozinhar e arrumar a casa, e mora com dois homens: Otto e Pedro. Diz-se que ela é ninfomaníaca (viciada em sexo). Outros, porém, dizem que ela apenas 'dá vazão livre aos instintos sexuais'. O autor a descreve como uma 'desavergonhada'. A ruivinha, que se tornou uma nova “musa” dos quadrinhos brasileiros, está com sua TPM – Tensão Pós-Matrimônio – em alta. Por isso, nem mesmo seus namorados dão conta do recado.

 




FALA, MENINO! - Projeto de literatura e quadrinhos criado por Luis Augusto (1971-2018), cartunista e escritor baiano, publicado em jornais e livros desde 1996 e na tv, desde 2005. Com a honestidade da perspectiva infantil, Luis Augusto fala da criança como o ser inteligente e crítico que é, capaz de discutir o comportamento adulto. E junto com o Lucas, o personagem central da turma, busca discutir o relacionamento do mundo adulto com a infância, talvez o único momento da vida em que somos quem nascemos para ser, sem tantas máscaras sociais, sem tantos preconceitos... A série conta as diferenças físicas ou sociais, de superação de limites, de inclusão, de responsabilidade social com a naturalidade doce e subversiva das lições que apenas a infância sabe dar. As tiras em quadrinhos revelam aos amantes de HQ’s outros personagens que representam as crianças em toda diversidade étnica, cultural ou social, característica da sociedade brasileira, inclusive aquelas que resistem na alma dos leitores de qualquer idade. O traçado característico do quadrinista dá vida a figurinhas como a hiperativa e faladeira Carolina; o cadeirante Caio, que aos seis anos e meio já leu toda a obra de Machado de Assis e enfrenta as dificuldades da falta de acessibilidade; o imaginativo Leandro, judeuzinho esperto, melhor amigo de Lucas; a menina de 7 anos, líder nata e revolucionária, Winnie; o gordinho Rafael que, “cego desde pequenininho, adora fazer esculturas e filosofar sobre tudo o que ainda não viu e o que a gente não vê”; os menores em situação de rua, Diogo e Esmolinha, que juntos vivenciam os dilemas da condição de exclusão social; o caçador da pipa, o adolescente Felipe, dentre tantos outros tipos que dão asas à imaginação e tornam a reflexão inevitável, entre muitas gargalhadas.

 


JAB, UM LUTADOR – Criação de Flávio Luiz em 1999 de forma independente. Tiras de um cão dálmata, atrapalhado com seus próprios limites, que ele busca a todo custo vencer, se envolvendo nas mais variadas modalidades esportivas. Jab tem um sonho: tornar-se campeão de boxe (ou de qualquer outro esporte). Ele pode não vencer suas lutas (o que geralmente acontece), mas nunca desiste de lutar. Está sempre experimentando novos esportes, modismos e novidades. Apesar de ser um pouco desastrado, é um cara ´gente boa´, amigo fiel e com um grande coração. Lilica é apaixonada por livros, filosofia e pelo Jab. Leonard é o sparring relutante do Jab e assistente de Cassius. Sua Inteligência é inversamente proporcional ao tamanho de seu focinho. Já o Cassius é o teinador de Jab. Diz saber tudo de boxe apesar de feito apenas um curso por correspondência. Acredita que é capaz de fazer de Jab um campeão. Bull King é o inescrupuloso ´aspirante´ a empresário e vê no Jab a chance de tornar-se rico. Harvey é o saco de pancada da academia. Chihuahuanagger é narcisista e anabolizado, vaidoso ao extremo. George, do tipo caladão, é dono de um bar ao lado da academia de boxe do Cassius. Em 1999 Flávio publicou uma coletânea das primeiras tiras do Jab.

 

23 abril 2021

Grandes personagens de quadrinhos brasileiros 15

 




DORA MULATA – Quadrinho criado pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) na revista Viverbahia a partir de 1981. A sensual Dora era uma nativa da ilha de Itaparica, na Bahia. Ela se relaciona com um gringo, um francês e um nativo. Triângulo amoroso onde ela tinha preferência pelo francês. Foi publicada também na revista Axé Bahia. Sua maneira objetiva de apresentar, com a simplicidade de seu traço, os vários problemas diferentes ao ser humano, descrevendo com capacidade, firmeza os muitos quadros públicos. O olhar “malandro” das suas personagens, desta vez apresenta o empoderamento da mulher que começa a se emancipar do machismo da época. Artista consciente do seu trabalho e possuidor de um senso crítico bastante apurado, as personagens de Lage são aparentemente simples, feitas de poucos traços que demonstram, na maioria das vezes, a perplexidade das situações de desumanização da vida cotidiana, mas não perde a alegria do viver, seja na orla de Salvador ou nas festas de largo.

 


DR. BAIXADA - Criado por Luscar (Luiz Carlos dos Santos)  em 1980, na época do Mão Branca e do Esquadrão da Morte que atuava na Baixada Fluminense. Capa preta, chapéu e arma na mão, esse é o Dr. Baixada, sempre atuando — ou no assaltante ou na vítima. A ordem é apagar, fazer o serviço, sem perguntas e sem que ele próprio saiba a quem serve. O mais impressionante é que o Dr. Baixada, matando indiscriminadamente, acredita estar fazendo o bem. O personagem foi criado inicialmente para a revista “Mad” (da editora Vecchi), da qual saiu para a página de quadrinhos do “Caderno B” do “Jornal do Brasil”. Para o criador, o cartunista Luscar, “o Dr. Baixada representa o poder invisível detido pelo Sistema”. Ele vive num universo habitado por bicheiros, hippies, prostitutas, pivetes e até um mendingo-filósofo, Diógenes, do qual se diz que foi professor. “Cassado pelo AI-5, caiu na sarjeta”, explica Luscar.

 


MARA TARA - Personagem humorística criada por Angeli para a revista Chiclete com Banana, n.07, novembro de 1986. Era a primeira história da pacata cientista que se transforma na pervertida Mara Tara quando acuada. Mara Tara é uma cientista super recatada e dedicada a sua profissão, no qual ela estava fazendo sua pesquisa sobre O Sexo das Bactérias, pois ela insistia que "As bactérias têm sexo, como todos nós...". Mas, em consequência de suas pesquisas, a doutora Mara contraiu o vírus Ninfus Maniacus e em momentos de alta tensão, seu corpo recebe grandes mutações, tirando-lhe a consciência e dando a ela formas volumosas. Sim, Mara Tara transforma-se em uma tarada e obcecada por sexo, momento em que ela não têm mais consciência de si e ataca todos os homens, que morrem de medo dela. Suas armas são nada mais que chicotes, meia arrastão, botas de cano longo e um lindo espartilho preto. Pudica, quando fica excitada, transfigura-se em uma mulher fatal, obcecada por sexo e que ataca os homens de uma maneira sádica e devoradora, até matá-los. Ela é uma metáfora exacerbada de mulheres independente da década de 1980, que intimida os membros do sexo masculino. Basicamente, a personagem faz uma crítica ao universo urbano, que mostra o homem contemporâneo super liberal, porém, no fundo, totalmente conservador.

 


RADICAL CHIC - Personagem de cabelo vermelho e curtinho criada pelo cartunista Miguel Paiva. Irônica e divertida sátira sobre uma típica mulher urbana de trinta anos (que se auto denomina, "sou um pupurri de emoções"). Seus quadrinhos, originalmente publicados no suplemento dominical do Jornal do Brasil, apresentam como temas principais a feminilidade, o sexo, o papel das mulheres na sociedade e as diferenças entre elas e os homens na maneira de reagir às situações cotidianas. Miguel Paiva tinha a intenção de criar, para suas tiras, uma mulher que fosse, ao mesmo tempo, preocupada com a realidade (visto que, na época em que a Radical foi criada, o Brasil vivia um momento de redemocratização) e que também buscasse o prazer e a realização pessoal.

Solteirona moderna. Faz ginástica, é vaidosa, namora, vive as encarnações de toda mulher. Criada em 1982, fez tanto sucesso que surpreendeu o próprio autor. Radical, segundo o autor, é um personagem urbano, símbolo dessas mulheres independentes que habitam as grandes cidades. Ambígua, cínica, perspicaz, sensual, feminina e masculina. Meio louca e meio tarada. Estas são algumas características que transformaram a Radical Chic em mania nacional. Ela nasceu do desejo de Miguel Paiva de criar um personagem que retratasse a mulher de 30 anos.

 


RÊ BORDOSA – O cartunista Angeli cria nas páginas do Folha de S.Paulo, a partir de 04 de abril de 1984, a junkie Rê Bordosa que logo depois vira musa da porralouquice nacional. Ela era a pin up dos anos 80, a mulher esponja. Em dezembro de 1987 o criador mata a personagem. “A Rê Bordosa tava se transformando numa espécie de dinossauro, uma figura que não existe mais nesta época de Aids. Ela tendia a se transformar numa pessoa amargurada, infeliz”, conta. Foram centenas de tiras, dezenas de companheiros, milhares de litros de vodka. Porraloquice em sua essência. Transitando em momentos de luxúria, decadência, autoanálise, hedonismo e depressão, é uma criatura saída das vísceras dos anos 1980. Incomodado pelo sucesso de sua personagem, Angeli assassinou-a cruelmente em 1987, submetendo-a a uma rotina tediosa de casamento e vida comum. Ela casou-se com o garçom do bar onde costumava embriagar-se, mas acabou morrendo devido ao tédio provocado pelo casamento (tedius casamentus).

 

O especial foi um dos números mais vendidos da revista, atingindo mais de 200 mil exemplares, em duas edições. A decisão chocou os leitores. O autor, ao explicar as razões que o levaram a matar Rê Bordosa, afirmou que nunca pretendia ficar fazendo um personagem por décadas. Matar a Rê Bordosa foi uma terapia para o artista. “Eu bebia muito na época em que a escrevia. E era a época em que meu filho tinha acabado de nascer. Ele tinha 2 anos, queria passear com o pai em um dia de sol e ia lá o menininho de mão dada com uma caveira. Também foi uma época em que comecei a trabalhar por prazer, e a bebida estava me atrapalhando muito. Resolvi parar”.

 


MENINO MALUQUINHO Sem dúvida nenhuma o maior sucesso de Ziraldo, O Menino Maluquinho surgiu em livro no ano de 1980. Além de livros, revista, peça de teatro e filmes para cinema, ganhou também sua versão em tiras diárias em 1989 realizada pelo estúdio Zappin e foi publicado em vários jornais Brasil afora. Em 1991 a revista saiu quinzenalmente pela Abril com o mesmo nome do personagem. Desta forma o personagem nasceu de um livro de sucesso.  A história do menino inquieto, que tinha o olho maior que a barriga e fogo no rabo, publicado pela Editora Melhoramentos, virou peça de teatro, filmes, videogame, HQ, bonecos, ópera infantil, parque temático e até minissérie de TV.

22 abril 2021

Grandes personagens de quadrinhos brasileiros 14

ANOS 80

 

Uma década cool. O comportamento da era nuclear onde a individualidade é tudo, a auto-suficiência, o normal. Assistirá a filmes preto e branco classe Z também chamados de cult. Os computadores tornaram-se “objetos de desejo” e “máquinas de guerra” (a terminologia é de Deleuze-Gauttari). Oitenta foi a década dos anseios e das interpretações e pode ser definida por uma palavra: pós-moderno. Signo do vale-tudo da década, esse jargão funcionou como um abre-te sésamo para explicar qualquer coisa. E para caracterizar as inovações e o estilo de vida desses anos de paródia e marketing do passado reciclado. Compact discs, videoclip, videocassete, antena parabólica, fax, computador pessoal, TV a cabo, controle remoto.

 

Ícone-mor da era, Michael Jackson se projetou na galáxia do merchandising artístico. Thriller vendeu milhões de cópias, reis o condecoraram, magnatas o adularam, o público adorou. Foram os anos de ouro do sampler, scratch, acid house, trash – o ruído tecnológico substituiu os solos de guitarra. O rap (canto falado) saiu dos guetos para o mundo. Os 80 foram os anos da dança urbana – discoteca, forró, lambada, funk, break e samba. Word music. Em música, os ídolos planetários foram todos descartáveis, de fácil consumo: Madonna, Springsteen e U2. A década fecha sob o domínio de Prince. Na esteira do êxito de Rita Lee, o rock nacional ganha força e qualidade inéditas e consagra-se como o mais recente movimento a mudar o panorama da música brasileira.

 

Os anos 80 foram cinematograficamente marcados por dois movimentos – um em direção ao futuro, às fantasias espaciais (com a confirmação da supremacia de Steven Spielberg como o mago do cinema); outro, pela volta ao passado, e a reencenação da História (A Era do Rádio, de Woody Allen; Platoon, de Oliver Stones; Ragtime, de Milos Forman; Ginger e Fred, de Fellini; O Baile, Casanova e a Revolução, de Ettore Scola; Fanny e Alexander, de Bergman; Kagemusha e Ran, de Akira Kurosawa, entre outros). Na vertente do futuro, houve outros espetáculos, os cult movies Blade Runner, Alien, Uma Cilada para Roger Rabbit.

 

Uma das grandes stars dos 80, Jéssica Rabbit virou objeto de desejo, na era da Aids. Ela é um cartoon. Livres, agressivas, as mulheres irromperam, nos primórdios da década, determinadas a garantir seu espaço. Sônia Braga, Xuxa, Luma de Oliveira e Luiza Brunet se destacaram aqui e lá fora. Entre as estrangeiras, as personalidades mais notáveis, pelo charme e o talento, foram as atrizes americanas Sigourney Weawer e Kathleen Turner, as européias Natassia Kinski e Isabelle Adjani. Um inimigo microscópio, capaz de matar o homem em menos de um ano, mobilizou médicos de todo o mundo: o HIV, vírus da Aids. E não há qualquer droga capaz de destruí-lo ou impedir sua multiplicação em níveis não letais.

 


Fim do mito: perestroika derruba o maior símbolo da divisão do mundo – o muro de Berlim. Além da década da democracia, os anos 80 foram também a década do meio ambiente – da expansão planetária da consciência ecológica. Começando a perder o medo de ser negra, a Bahia atravessou a década no passo do Ilê Ayê e do Olodum, que ocuparam as ruas num rito de contagiante liberdade. Nos quadrinhos, os vilões ganharam projeção. Muitos desenhistas fixaram a loucura da década sob o signo das artes plásticas nas HQs. As graphic novels (edições de luxo das novelas gráficas) invadiram as livrarias, aumentando a média etária dos leitores. Ninguém mais diz que quadrinhos é coisa de criança.

 


ANALISTA DE BAGÉ: Personagem mais multimídia do escritor Luis Fernando Verissimo. Começou como crônica, teve longa vida no teatro e várias histórias produzidas em quadrinhos a partir de 1983. O perfil do personagem é o mesmo da versão literária. Trata-se do psicanalista machão que não mede esforços para dar uma surra nos pacientes homens ou uma "sessão fechada" para as mulheres que o procuram no consultório. O psicanalista de Bagé (cidade do Rio Grande do Sul) está sempre acompanhado de um busto de Sigmund Freud, com quem trava alguns diálogos, e da atendente Lindaura. Na definição de Verissimo, ela é a "recepcionista que, além de receber, também dava". Era uma das amantes do analista.

 


Um punk que se diverte cuspindo em tudo aquilo que abomina. Uma das criações máximas de Angeli, BOB CUSPE foi a grande resposta do cartunista aos excessos dos anos 1980, à hipocrisia reinante da elite cultural e financeira, à vida espalhafatosa e deslumbrada dos yuppies que vicejaram no Brasil após o fim da ditadura. Seu brinco era um grampo, suas roupas não passavam de trapos, a porta de sua casa era um bueiro e suas bandas eram os Ramones, os Ratos de Porão, os Sex Pistols e o The Clash. Seus inimigos estavam por toda parte. Assim como Rê Bordosa, Wood & Stock, Benevides Paixão e Mara Tara, Bob Cuspe fez história na revista Chiclete com Banana, grande marco do quadrinho independente brasileiro.

 

Com tiragens que chegavam a mais de 100 mil exemplares mensais, a Chiclete foi um dos símbolos da redemocratização; se Rê Bordosa apontava mudanças nos costumes e na vida social do paulistano, Bob Cuspe serviu para encapsular a frustração, a raiva, os anseios e a revolta dos desfavorecidos. Todavia, quem espera encontrar aqui militância e proselitismo veio ao lugar errado. A resposta de Angeli está à altura da pergunta: ácida, cruel, sem concessões, uma cusparada na cara de tudo que está aí. Quando o punk já estava assimilado pelo mainstream, numa época em que até novela global das sete tinha um engraçadinho de cabelo cenoura, Angeli inseriu no cérebro debaixo do moicano de Bob o espírito de revolta que um dia fez sentido na causa punk. Uma cusparada na cara passou a ser a mais simples e universal resposta a todos os medíocres. Bob Cuspe talvez represente de forma exemplar o humor de Angeli. Ele não busca a gargalhada. Parece que ele prefere mesmo a piada contundente, aquela para ser saboreada com sorrisos safados no lugar das risadas. Bob Cuspe, o punk criado por Angeli para a tira Chiclete com Banana, é representativo: sua revolta se manifesta contra o mundo urbano, caótico, repressivo e desumano. Morador dos esgotos da grande cidade, ele conhece as entranhas do sistema e, respirando seu ar poluído, faz reflexões sobre a vida no espaço urbano. Diante da imensidão opressora da cidade grande, percebe sua pequenez, sua insignificância. Apenas seu grito de revolta consegue abalar a rigidez do mundo urbano e das pessoas que nele habitam. Bob Cuspe apareceu morto em uma história dos Irmãos Kowalski.

 


CONDOMÍNIO – Série criada por Laerte com os habitantes do Condomínio (o Síndico, o Zelador) para o jornal O Estado de S.Paulo na década de 1980, e depois nas revistas Piratas do Tietê e Striptiras. O Condomínio foi o primeiro núcleo de tiras que ele fez. Teve essa idéia quando foi morar num prédio pela primeira vez, mais ou menos em 1973; lá conheceu um síndico e um zelador muito parecidos com o Síndico e o Zelador das tiras. Nessa época o cartunista Zélio pediu a vários desenhistas que produzíssemos tiras, na intenção de colocar em jornal. Não deu certo, mas as tiras que Laerte fez acabaram servindo de base para o Condomínio, mais de dez anos depois. Mostra conjuntos de predios e casas cercadas por muros altos que insultam seus moradores, comuns nas metrópoles. Esse espaço fechado na tira de Laerte se torna um microcosmo do Brasil, onde vivem personagens que sintetizam o pais: o Zelador preguiçoso e submisso ao autoritário Síndico,  o severo e conservador Capitão Douglas, militar aposentado, mas sempre alerta (uma alusão à ditadura militar), preocupado em evitar que as hordas bárbaras acabem com  a civilização, o mafioso Don Luigi e sua filha pervertida Rosa, o puxa saco Fagundes.

 

21 abril 2021

Grandes personagens de quadrinhos brasileiros 13

 


O gaúcho Renato Canini (1936-2013) criou para a revista Patota (editora Artenova) em 1973, o personagem do DR. FRAUD. Com um óbvio trocadilho em relação ao nome do pai da psicanálise, Sigmund Freud, Dr. Fraud era evidentemente um charlatão e recebia em seu divã toda espécie de objetos inanimados, personagens de ficção e pacientes em geral, que recebiam sua completa atenção, mas provavelmente, nenhuma ajuda. O personagem antecipou em alguns anos o Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo.

 

O desenhista Miguel Paiva lança no Caderno B do Jornal do Brasil em 1977 a série DR. FREUD, o psicanalista dominado por fortíssimo complexo de Édipo e tarado sexual. Ele é um grande investidor. Investe particularmente nas neuroses do paciente. Dr Freud – diz seu criador – cultiva um ´caso´ eterno com a mãe. É um desajustado sexual e, como todo bom psicanalista, um grande investidor. Investe particularmente nas neuroses dos pacientes. Chegou até a criar o Fundo Freud de Investimentos, onde cada paciente pode ´aplicar´ a sua neurose, transformando-a um dia, com paciência e perseverança, numa magnífica paranóia. Por estranha coincidência, o Dr Freud recomenda tratamento mais longos para as pessoas mais ricas.

 


Nildão (Josanildo Dias Lacerda) começou a publicar a tira OS BICHIM no jornal A Tarde, Caderno 2, em 18 de julho de 1977. O universo do tamanho do fruto da goiabeira. Bichim era um bichinho de goiaba que chegava ao mundo e começava a questionar as coisas que via. Tanto na escolha do tema, como na linguagem, o domínio da poética é visto nesses quadrinhos de traço simples e equilíbrio. O título foi decorrente da linguagem nordestina que sempre abrevia o diminutivo em “im”. Aos poucos foi conhecendo outros personagens como Fernão Capelo Gaivota, um animal massificado que já conhece as malandragens do mundo. Mais tarde eles chegaram a conclusão de que o câncer da humanidade era o homem e resolveram ir ao céu pedir a Deus para tirar o humano da terra. Ao chegarem lá encontra o Deus narcisista, preocupado com a imagem e que não se interessava pelo que aqui estava acontecendo. Nessa fase, o jornal deixou de publicar a tira, alegando ser uma empresa de fundamentos religiosos. Para não deixar de publicar suas criações, Nildão cria novos personagens e novos argumentos. A tira Os Bichim foi distribuída pela ECAB (Editora Carneiro Bastos) para outros jornais e também publicada na revista Eureka da editora Vecchi.

 


ZEFERINOA partir do dia 14 de setembro de 1975 o cangaceiro Zeferino, a Graúna e o bode Francisco de Orelana voltam às páginas do Jornal do Brasil carregados de experiências vividas por seu criador. Depois de apagar o jogo de estourar lá fora, e acabar a visão subdesenvolvida da cultura brasileira, Henfil retomou o seu papel de artista engajado numa perspectiva social do Brasil. O arquétipo do cangaceiro nordestino surgiu na folha cor de rosa do Jornal dos Sports em 01 de abril de 1969 deslocado no tempo e espaço na imensidão do Maracanã. Para criar Zeferino, o cartunista Henfil (Henrique de Souza Filho, 1944-1988) mesclou traços do próprio pai, do personagem Corisco, do filme Deus e o diabo na terra o sol, de Glauber Rocha e no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Depois foi publicado na revista Placar, da Editora Abril, em 1970, como uma espécie de representante do Brasil na Copa do Mundo do México. Três anos depois de seu nascimento, no dia 21 de agosto de 1972, passa a ser publicado no Jornal do Brasil (Caderno B), o cangaceiro Zeferino, seguido pela doce e irônica Graúna e pelo intelectual provinciano e boquirroto Bode Francisco Orelana. Uma trinca do barulho, que vivia se engalfinhando na utopia de superar as provocações do subdesenvolvimento. Nordestino da caatinga, esfomeado e sedento, acompanhado de uma minúscula Grauna, seu único personagem feminino, que após morrer e ressuscitar em três dias, pôs um ovo e gerou a Grauninha, um personagem delicado que morreu de inanição pouco depois. E ainda um bode devorador de livros, Francisco Orelana, vestindo seu constante chapéu coco, e que foi inspirado num bode real, de criação do cantador baiano Elomar Figueira de Mello. Como  antagonistas, a Onça Glorinha, cuja missão era caçar o “agente imperialista” Mickey, e o Lati, latifundiário. A série assumiu um tom de crítica política e de luta pelos direitos civis, trilhando uma longa e vitoriosa carreira que incluiu peça de teatro e revista em quadrinhos (Fradim) pela editora Codecri e publicação em outros órgãos da imprensa, como o jornal O Estado de São Paulo, já no final da vida do cartunista. O trio volta ao Jornal do Brasil em 14 de setembro de 1975 mais humanizados, carregados de experiências vividas por seu criador, Henfil. Depois de apagar o jogo de estourar lá fora, e acabar a visão de subdesenvolvimento da cultura brasileira, Henfil retomou o seu papel de artista engajado numa perspectiva social do Brasil.

 


Ao final da década de 1970, foi parar nas revistas de histórias em quadrinhos o quarteto cômico composto pelos artistas Renato Aragão (Didi), Manfried Santana (Dedé), Antonio Carlos Bernardes Gomes (Mussum) e Mauro Faccio Gonçalves (Zacarias), denominado OS TRAPALHÕES, que juntos estrelaram o mais longo programa humorístico da televisão brasileira (D’Oliveira, Vergueiro, 2010-2011). O conteúdo das revistas, publicadas a partir de 1976, pela Editora Bloch, trazia conteúdo semelhante ao desenvolvido no programa, explorando temas picantes, brincando com preconceitos, ridicularizando figuras proeminentes do cenário político nacional, do mundo dos esportes e do entretenimento, satirizando situações do cotidiano brasileiro, desde questões económicas (compras em lojas, preço dos alimentos etc.) a sociais (relação marido e mulher, homossexualidade, exploração do corpo feminino etc.).

20 abril 2021

Grandes personagens de quadrinhos brasileiros 12

 

ANOS 70

 

O rock se transformou num negócio bilionário. A Inglaterra estava na recessão e a juventude sem perspectiva liderou o movimento punk contestando o rock milionário. Além dos garotos rebeldes do punk rock, Bob Marley e toda a tropa de músicos negros jamaicanos inflamaram ingleses e americanos com a batida pulsante do reggae. Na segunda metade dos anos 70, o estilo disco dominou os EUA e se espalhou pelo mundo. A palavra disco vem de discotheque. E os subúrbios do mundo tiveram acesso à discoteca através do filme Os Embalos de Sabado à Noite, cuja trilha sonora, em álbum duplo dos Bee Gees, se tornou o maior sucesso de venda de todos os tempos. No cinema o destaque foi para 2001, uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Mais tarde, este mesmo cineasta lança o filme Laranja Mecânica, mostrando um futuro desolador e violento. No Brasil, os aplausos vão para o filme Macunaíma, de Joaquim Pedro.

 


A comida natural, juntamente com a vegetariana e a macrobiótica, foi um must dos anos 70, assim como diversas outras programações da linha de saúde em voga naquele tempo, tipo correr nos calçadões, parar de fumar, entre outros. Todas as bandeiras que as feministas agitaram na década (morte ao sutiã, igualdade de direitos, ampla liberdade sexual) resultaram na febre da “amizade colorida”. Foi a década que misturou tudo. A mulher ganhava (e queria mais) autonomia e mostrava isso através do psicodelismo e do look típico.

 

No Brasil, era a época do milagre econômico. Grandes obras – a Ponte Rio-Niterói, enormes hidrelétricas, a Transamazônica – eram contratadas quase com a mesma facilidade com que hoje se constrói uma pracinha. O poder da classe média aumentava. Junto com tal milagre, o país vivia o inferno da ditadura. A imprensa era censurada, os partidos controlados, passeatas proibidas. Começaram a surgir uma série de jornais alternativos, após Pasquim, que tiveram vida efêmera, como Flor do Mal, Presença e o baiano Verbo Encantado. Com a censura, surge as revistas eróticas que tomaram um maior impulso.

 

Imprensada pela censura e empobrecida pelo exílio de vários artistas de peso, a MPB resistiu. Nomes como Milton Nascimento, Gonzaguinha, João Bosco, Novos Baianos foram revelados. São os anos da música nordestina (Fagner, Belchior, Alceu Valença, Ednardo, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho), da vanguarda erudita (Walter Franco, Marcus Vinícius). A presença da mulher como força de produção, na música é um dado importante na década: Joyce e Sueli Costa, Leci Brandão, Marina Lima, Ângela Ro Ro, Cátia de França, Marlui Miranda, Simone, Elba Ramalho, Rita Lee e tantas outras. O caminho da improvisação esteve constantemente em pauta com a música instrumental de Wagner Tiso, Egberto Gismonti, Nana Vasconcelos, Hermeto Paschoal, Nivaldo Ornellas.

 


Paulo Caruso e Rafik Farah criaram, a partir do número nove do fanzine Balão em 1974, CAPITÃO BANDEIRA. Ágil, esguio, passos leves e porte altaneiro. Terno branco e largo para melhor movimentar-se sob o sol que queima a fronte. Fé inabalável não se sabe exatamente no que. Sem vergonha e irresponsável, por isso, feliz (mas não se sabe). Descendente de nobres africanos, Agenor Pantera é o companheiro de Bandeira em suas andanças aventureiras. Capitão Bandeira tem como guru – em muitas situações – o babalaiô, yogue e autodidata do terceiro mundo, como ele mesmo se intitula, o professor Mitologicus Contemporanius. Quando Aldemir Milongas desencarnou, sua alma incorporou-se num urubu incauto que sobrevoa o local. Verdadeiro soberano de nosso espaço azul, Urublue desapareceu, misteriosamente, depois de vertiginosa decadência. É o roteiro iniciado em 1973 e sintetizado em quadrinhos em 1979 por Paulo Caruso e Rafic Jorge Farah. Publicado em álbum de luxo pela L&PM Editores em 1983: As Origens do Capitão Bandeira, de Paulo Caruso e Racif Jorge Farah. Branco, sem cultura. Tem defeitos, crenças e cultiva algumas tradições. Ingênuo. Um super-herói tropical, mistura de Carlos Gardel caboclo com um Ghandi tupiniquim. Assim é o Capitão Bandeira. Em 64 páginas, os autores contam a história de um herói cujo lema é errar sempre, um malandro normal, mas difícil de seguir os passos.

 


ARGEMIRO, título da tira diária criada pelo desenhista Setúbal na Tribuna da Bahia a partir de 1977. Os problemas de um homem de meia idade, classe média, diante da realidade: trabalho exaustivo em relação a baixa remuneração, aumento da gasolina gerando outros aumentos, crise de energia, futebol, etc. A historieta é valorizada pelo traço expressivo do personagem. Os desenhos de Setúbal são detalhistas, cheios de sofisticado preciosismo, sempre atentos às mínimas novidades. Nada parece lhe escapar.

 



Henfil tira férias do Caderno B do Jornal do Brasil em 1977 e Luis Fernando Veríssimo publica a série AS COBRAS. Na época em que o país gritava como podia contra o Regime Militar, desenhar duas cobrinhas foi uma forma de contornar a censura. “Uma das razões para fazer as cobras era, na época em que elas nasceram, você podia dizer mais com desenhos do que com texto”, disse Veríssimo ao jornal O Globo. “Desenho tinha aquela conotação de coisa lúdica, infantil, e era conveniente para driblar a censura”. Elas continuaram dizendo até 1997, quando deixaram de ser publicadas. A economia no traço de Veríssimo para desenhar As Cobras foi uma estratégia para suprir sua inabilidade confessa para o desenho. Isto, porém, não foi um problema para o reconhecimento de sua obra. O espanto é que tenha um forte discurso político, mas com um lirismo encantador. As Cobras foram publicadas no jornal Zero Hora, de Porto Alegre e no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, atingindo grande prestígio de público.