“A historiadora baiana Wlamyra
Albuquerque ajuda a pensar que a Bahia experimentou episódios
contundentes
acerca da produção e estruturação do discurso social e histórico do racismo,
período correspondente às décadas de 1880 e 1890, momento de ápice e declínio
da escravidão negro-africana no Brasil. E é neste momento que A Coisa nasce e
produz seus próprios discursos. A Coisa nos é o periódico baiano que, mesmo
diante da modernização do sistema de editoração de impressos ilustrados no
Brasil e na Bahia do seu período, chama-nos atenção por exibir, em suas capas,
imagens visuais produzidas em xilogravuras gravadas em casca de cajazeira, e
também, por conter imagens textuais/metafóricas de pluralidades étnicas de
negros a compor o imaginário de uma sociedade atuante na Bahia de 1897 até
1904. As imagens evocadas pela leitura
dos textos são compreendidas por nós, em alguns momentos, como dissonantes das
imagens plásticas, pois consideramos as imagens concretas publicadas nesse
impresso a materialização da reificação de tipos constituídos pelo discurso
racialista e etnocêntrico
do Brasil escravagista. E é ao consideramos essas evidências, que
problematizamos: Como um jornal baiano, editado em Salvador, durante o fim do
século XIX e início do XX, fazendo uso das técnicas de impressão, desenho e
representação específicas e historicamente situadas, estabelece um discurso
figurativo singular e reificador de modo concomitante sobre o negro, a pele, a
negritude, a mestiçagem, a raça dialogando com as questões políticas e
intelectuais de sua época, intervindo no debate público acerca da constituição
da nação e do povo brasileiro”.
Ao nos atermos às análises desses corpos
brancos e negros representados por essas imagens visuais de um impresso semanal
baiano, consideramos que a tomada da percepção e visibilidade desses corpos
negros, ao contrário da habitual percepção dos corpos brancos, se torna
possível porque, como nos diria Stuart Hall ao citar Cornel West em seu ensaio
The new cultural politics of diference estamos inseridos num tempo moderno de
um momento em que a cultura negra se faz emergir e constitui um pensamento
negro, ou talvez, ao que denotamos, essa possibilidade se ancora em três eixos,
sendo o primeiro e mais importante deles o deslocamento dos modelos europeus de
alta cultura, da Europa enquanto sujeito universal da cultura, ou síntese da
própria cultura (HALL, 2009, p. 317).
O segundo eixo é o surgimento dos EUA
como potência mundial e, consequentemente, como centro de produção e circulação
global de cultura. Esse surgimento é simultaneamente um deslocamento e uma
mudança hegemônica na definição de cultura – um movimento que vai da alta
cultura à cultura popular americana majoritária e suas formas de cultura de
massa, mediadas pela imagem e formas tecnológicas. O terceiro eixo é a
descolonização do Terceiro Mundo, marcado culturalmente pela emergência das
sensibilidades descolonizadas. Eu entendo a descolonização do Terceiro Mundo no
sentido de Frantz Fanon: incluo aí o impacto dos direitos civis e as lutas
negras pela descolonização das mentes dos povos da diáspora negra (grifos do
autor HALL, 2009, p 318).
Tal como acontecia não só no Brasil, mas
em regra geral na América Latina e demais países de formação colonial, a
influência europeia – particularmente a francesa – era aqui também
avassaladora. Os nossos informantes foram unânimes em apontar na vida
intelectual baiana de então a presença marcante da Europa e em especial da
França. Também os autores portugueses, sua língua e estilo, tiveram aqui a mais
sólida vigência. Victor Hugo, Zola e Anatole parece terem sido os autores mais
em voga entre os franceses, informa Estácio de Lima. Franceses eram os livros
didáticos até no curso secundário. Também na Faculdade de Medicina. Também eram
franceses, integrantes da “Bibliotèque du Conducteur de Travaux Publiques”, os
livros pelos quais estudou o engenheiro Nogueira Passos. Tudo, aliás, era
francês [...] “sapatos, gravatas, talheres...”. Não menos franceses, e ainda
não traduzidos, eram os livros didáticos de Carlos Torres, em seu bem
amado
O autor concorda com Maria Bernardete
Ramos Flores de que a denúncia da fealdade, de pretos, mestiços e indígenas
representados nos traços, “nas tintas e na escrita do Brasil por viajantes e
cientistas estrangeiros do século XIX (e também pelos artistas nacionais)”
contribuiu para o fortalecimento de um projeto eugênico que ofereceria à
sociedade brasileira do século XX “meios para embelezar e aperfeiçoar nosso
tipo étnico em formação” (FLORES, 2007, p. 63).
É possível verificar n’A Coisa as marcas
do projeto de efetivação da cultura colonialista, responsável por construir
sentimentos de superioridade ou soberania como é proposto no excerto do poema
que fala da soberania dos olhos azuis dos brancos europeus em detrimento das
populações cujas identidades foram forjadas, expatriadas e reduzidas ao mero
fetichismo: africanos de diferentes nações, ameríndios de varias regiões das
Américas, aborígenes nos territórios da Ásia, indianos.
Ao encerrar a sua tese, Tulio Pereira
informou que “os sentimentos e as sensibilidades do homem
branco europeu
idealizado, estiveram e continuam presentes nas representações visuais
espalhadas pelos quatro cantos do mundo, especialmente nos países colonizados,
como o Brasil. E desse modo fez criar nas populações não brancas, que elas não
se constituíam um homem, mas sim uma subcategoria, ou alegoria a caminho de um
longo processo de ajustes e assimilações com um padrão normativo. Essas imagens
de superioridades e inferioridades, infelizmente continuam sendo
institucionalmente consideradas as principais referências para o aprendizado e
a produção de novas imagens, saberes, discursos e textualidades”.
O passado é necessário para viver. A
experiência do passado permite a cada instante que nos adaptemos ao presente e
antevejamos o futuro. A memória permite viver. A memória humana é a capacidade
mental de reter, recuperar, armazenar e evocar informações disponíveis seja
internamente (cérebro), seja externamente (dispositivos artificiais). A memória
focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia mental e
deteriora-se com a idade. É um processo que conecta pedaços de memória e
conhecimentos a fim de gerar novas ideias, ajudando a tomar decisões diárias.
Muitos especialistas no assunto afirmam
que a memória é sensível ao que os olhos lhe transmitem: prefere as imagens aos
sons, aos toques, aos odores, aos sabores. Os publicitários sabem disso, pois
nos inudam de imagens para exaltar marcas e produtos. E sob esse dilúvio, o
cérebro é seletivo. Como uma esponja, absorve grande parte das imagens e
esquece outras, slogans e marcas por exemplo.
O poder de sedução da imagem é tão forte
que a prova disso está na força das histórias em quadrinhos, tido como leitura
só para crianças e muito combatida durante décadas, mas que hoje todos sabem
que é uma boa fonte para criar hábito de leitura, principalmente em países do
terceiro mundo.
Os estereótipos são manifestações das
mais antigas em nossa cultura, estão nos contos de fadas , nas narrativas
populares, nas canções da Idade Média. Provém dos rituais, dos mitos, das belas
construções verdadeiramente originais (rupturas): comparações e metáforas, que,
utilizadas pela primeira vez, caíram no gosto do popular (e da ideologia). À
medida que são repetidas, tornaram-se frases feitas, que nos vem ao espírito ao
primeiro pensamento, as quais é preciso evitar empregar e, sobretudo,
esforçar-se por não crer nelas, ou pelo
menos, desconfiar delas. É na leitura
do discurso midiático (no seu pior e no seu melhor) que o semiólogo francês
Roland Barthes (1915-1980) alerta: “em cada signo dorme este monstro: um estereótipo)
(BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988, p.15)
O pesquisador espanhol radicado na
Colômbia, Jesús Martin-Barbero (2003) cita as histórias em quadrinhos norte
americanas das primeiras décadas do século XX como exemplo, ao mesmo tempo, de
ruptura e continuidade: “A ruptura, na ´marca registrada´ firmada pelos
syndicates, que midiatizam o trabalho dos autores até estereotipar em último
grau os personagens, simplificar ao máximo os argumentos e baratear o traço do
desenho[...]. No entanto, há continuidade na produção de um folclore que busca
no antigo o anonimato, a repetição e a interpretação ao inconsciente coletivo
que ´vive´ na figuro dos heróis e na linguagem de adágios e provérbios, nas
facilidades de memorização e na transposição da narrativa para a cotidianidade
que se vive (BARBAREO, J.M. Dos meios às Mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003,
p.208).
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