08 junho 2016

Tese de doutorado analisa semanário baiano A Coisa (1897-1904) - 6


“A historiadora baiana Wlamyra Albuquerque ajuda a pensar que a Bahia experimentou episódios
contundentes acerca da produção e estruturação do discurso social e histórico do racismo, período correspondente às décadas de 1880 e 1890, momento de ápice e declínio da escravidão negro-africana no Brasil. E é neste momento que A Coisa nasce e produz seus próprios discursos. A Coisa nos é o periódico baiano que, mesmo diante da modernização do sistema de editoração de impressos ilustrados no Brasil e na Bahia do seu período, chama-nos atenção por exibir, em suas capas, imagens visuais produzidas em xilogravuras gravadas em casca de cajazeira, e também, por conter imagens textuais/metafóricas de pluralidades étnicas de negros a compor o imaginário de uma sociedade atuante na Bahia de 1897 até 1904.  As imagens evocadas pela leitura dos textos são compreendidas por nós, em alguns momentos, como dissonantes das imagens plásticas, pois consideramos as imagens concretas publicadas nesse impresso a materialização da reificação de tipos constituídos pelo discurso racialista e etnocêntrico do Brasil escravagista. E é ao consideramos essas evidências, que problematizamos: Como um jornal baiano, editado em Salvador, durante o fim do século XIX e início do XX, fazendo uso das técnicas de impressão, desenho e representação específicas e historicamente situadas, estabelece um discurso figurativo singular e reificador de modo concomitante sobre o negro, a pele, a negritude, a mestiçagem, a raça dialogando com as questões políticas e intelectuais de sua época, intervindo no debate público acerca da constituição da nação e do povo brasileiro”.

Ao nos atermos às análises desses corpos brancos e negros representados por essas imagens visuais de um impresso semanal baiano, consideramos que a tomada da percepção e visibilidade desses corpos negros, ao contrário da habitual percepção dos corpos brancos, se torna possível porque, como nos diria Stuart Hall ao citar Cornel West em seu ensaio The new cultural politics of diference estamos inseridos num tempo moderno de um momento em que a cultura negra se faz emergir e constitui um pensamento negro, ou talvez, ao que denotamos, essa possibilidade se ancora em três eixos, sendo o primeiro e mais importante deles o deslocamento dos modelos europeus de alta cultura, da Europa enquanto sujeito universal da cultura, ou síntese da própria cultura (HALL, 2009, p. 317).  

O segundo eixo é o surgimento dos EUA como potência mundial e, consequentemente, como centro de produção e circulação global de cultura. Esse surgimento é simultaneamente um deslocamento e uma mudança hegemônica na definição de cultura – um movimento que vai da alta cultura à cultura popular americana majoritária e suas formas de cultura de massa, mediadas pela imagem e formas tecnológicas. O terceiro eixo é a descolonização do Terceiro Mundo, marcado culturalmente pela emergência das sensibilidades descolonizadas. Eu entendo a descolonização do Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon: incluo aí o impacto dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da diáspora negra (grifos do autor HALL, 2009, p 318). 


Tal como acontecia não só no Brasil, mas em regra geral na América Latina e demais países de formação colonial, a influência europeia – particularmente a francesa – era aqui também avassaladora. Os nossos informantes foram unânimes em apontar na vida intelectual baiana de então a presença marcante da Europa e em especial da França. Também os autores portugueses, sua língua e estilo, tiveram aqui a mais sólida vigência. Victor Hugo, Zola e Anatole parece terem sido os autores mais em voga entre os franceses, informa Estácio de Lima. Franceses eram os livros didáticos até no curso secundário. Também na Faculdade de Medicina. Também eram franceses, integrantes da “Bibliotèque du Conducteur de Travaux Publiques”, os livros pelos quais estudou o engenheiro Nogueira Passos. Tudo, aliás, era francês [...] “sapatos, gravatas, talheres...”. Não menos franceses, e ainda não traduzidos, eram os livros didáticos de Carlos Torres, em seu bem amado  

O autor concorda com Maria Bernardete Ramos Flores de que a denúncia da fealdade, de pretos, mestiços e indígenas representados nos traços, “nas tintas e na escrita do Brasil por viajantes e cientistas estrangeiros do século XIX (e também pelos artistas nacionais)” contribuiu para o fortalecimento de um projeto eugênico que ofereceria à sociedade brasileira do século XX “meios para embelezar e aperfeiçoar nosso tipo étnico em formação” (FLORES, 2007, p. 63).

É possível verificar n’A Coisa as marcas do projeto de efetivação da cultura colonialista, responsável por construir sentimentos de superioridade ou soberania como é proposto no excerto do poema que fala da soberania dos olhos azuis dos brancos europeus em detrimento das populações cujas identidades foram forjadas, expatriadas e reduzidas ao mero fetichismo: africanos de diferentes nações, ameríndios de varias regiões das Américas, aborígenes nos territórios da Ásia, indianos.

Ao encerrar a sua tese, Tulio Pereira informou que “os sentimentos e as sensibilidades do homem
branco europeu idealizado, estiveram e continuam presentes nas representações visuais espalhadas pelos quatro cantos do mundo, especialmente nos países colonizados, como o Brasil. E desse modo fez criar nas populações não brancas, que elas não se constituíam um homem, mas sim uma subcategoria, ou alegoria a caminho de um longo processo de ajustes e assimilações com um padrão normativo. Essas imagens de superioridades e inferioridades, infelizmente continuam sendo institucionalmente consideradas as principais referências para o aprendizado e a produção de novas imagens, saberes, discursos e textualidades”.

O passado é necessário para viver. A experiência do passado permite a cada instante que nos adaptemos ao presente e antevejamos o futuro. A memória permite viver. A memória humana é a capacidade mental de reter, recuperar, armazenar e evocar informações disponíveis seja internamente (cérebro), seja externamente (dispositivos artificiais). A memória focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia mental e deteriora-se com a idade. É um processo que conecta pedaços de memória e conhecimentos a fim de gerar novas ideias, ajudando a tomar decisões diárias.

Muitos especialistas no assunto afirmam que a memória é sensível ao que os olhos lhe transmitem: prefere as imagens aos sons, aos toques, aos odores, aos sabores. Os publicitários sabem disso, pois nos inudam de imagens para exaltar marcas e produtos. E sob esse dilúvio, o cérebro é seletivo. Como uma esponja, absorve grande parte das imagens e esquece outras, slogans e marcas por exemplo.

O poder de sedução da imagem é tão forte que a prova disso está na força das histórias em quadrinhos, tido como leitura só para crianças e muito combatida durante décadas, mas que hoje todos sabem que é uma boa fonte para criar hábito de leitura, principalmente em países do terceiro mundo.

Os estereótipos são manifestações das mais antigas em nossa cultura, estão nos contos de fadas , nas narrativas populares, nas canções da Idade Média. Provém dos rituais, dos mitos, das belas construções verdadeiramente originais (rupturas): comparações e metáforas, que, utilizadas pela primeira vez, caíram no gosto do popular (e da ideologia). À medida que são repetidas, tornaram-se frases feitas, que nos vem ao espírito ao primeiro pensamento, as quais é preciso evitar empregar e, sobretudo, esforçar-se por não crer nelas, ou pelo
menos, desconfiar delas. É na leitura do discurso midiático (no seu pior e no seu melhor) que o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) alerta: “em cada signo dorme este monstro: um estereótipo) (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988, p.15)

O pesquisador espanhol radicado na Colômbia, Jesús Martin-Barbero (2003) cita as histórias em quadrinhos norte americanas das primeiras décadas do século XX como exemplo, ao mesmo tempo, de ruptura e continuidade: “A ruptura, na ´marca registrada´ firmada pelos syndicates, que midiatizam o trabalho dos autores até estereotipar em último grau os personagens, simplificar ao máximo os argumentos e baratear o traço do desenho[...]. No entanto, há continuidade na produção de um folclore que busca no antigo o anonimato, a repetição e a interpretação ao inconsciente coletivo que ´vive´ na figuro dos heróis e na linguagem de adágios e provérbios, nas facilidades de memorização e na transposição da narrativa para a cotidianidade que se vive (BARBAREO, J.M. Dos meios às Mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003, p.208).

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