Quando estava realizando sua tese de doutorado Que Coisa é essa, YôYô? (Cor e raça na imprensa
ilustrada da Bahia – 1897-1904) defendida na Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, através do Instituto de História, o estudioso Tulio Henrique Pereira fez uma entrevista comigo para ampliar suas pesquisas e tirar dúvidas. A entrevista foi incluída no trabalho. Eis a entrevista realizada com o jornalista e pesquisador da caricatura na Bahia Gutemberg Cruz no dia 6 de maio de 2015
Túlio
Henrique – Na oitava página do seu livro Feras do Humor Baiano no qual o senhor
destaca os trabalhos de Lage, Nildão e Setúbal, o senhor afirma que os pasquins
irreverentes e panfletários do período da Regência atingiram o apogeu na
Salvador
das décadas de 1860/1870 com cerca de 36 títulos diferentes impressos
editados. O senhor levantou esses dados pesquisando os arquivos da cidade ou
foi necessário recorrer a alguma documentação específica ou a uma fonte
bibliográfica?
Gutemberg
Cruz
– A fonte para essa informação está na cronologia do Annaes da Imprensa da
Bahia, 1º Centenário, 1811 a 1911, de João Nepomuceno Torre e Alfredo de
Cavalho. Salvador, Catálogo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Typ.
Bahiana, de Cincimmato Melchiades, 1911, devidamente registrado na bibliografia
utilizada. Reproduzir no final do livro em Cronologia (p.167) onde só coloquei
jornais voltados para o humor (tema do livro). Contei o número deles no período
apresentado para revelar a quantidade de periódico.
Túlio
Henrique - Ainda na oitava página do mesmo livro o senhor faz uma afirmativa
acerca da população leitora dos pasquins. O senhor considera que a grande
parcela da população subalterna da Salvador da década de 1870 constituía o
público leitor da época. No entanto, constatamos a partir de dados do censo que
a população subalterna deste período era constituída por escravizados em sua
maioria não alfabetizados. Havia também os artistas de ofícios, homens livres
que desempenhavam trabalhos manuais. Desse modo como considerar que essa fatia
da população era letrada ou mesmo pertencente a um grupo de “subalternos”. Qual
o significado dessa expressão “subalterno” em seu livro?
Gutemberg
Cruz –
Quando escrevi que os “pasquins irreverentes”, “dirigiam-se à sociedade civil e
às classes subalternas criticando o Estado e propagando mudanças”. A
comunicação popular, também denominada de alternativa, participativa,
comunitária e dialógica aponta também para o sentido político. Como informou
Cecília Maria Krohling Peruzzo (Comunicação nos movimentos populares:
participação na construção da cidadania. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998), “o fato
de tratar-se de uma forma de expressão de segmentos excluídos da população, mas
em processo de mobilização visando atingir seus interesses e suprir
necessidades de sobrevivência e de participação política (2)”. E mais: “Em
síntese, a comunicação popular e alternativa se caracteriza como expressão das
lutas populares por melhores condições de vida que ocorrem a partir dos
movimentos populares e representam um espaço para participação democrática do
´povo´. Possui conteúdo crítico-emancipador e reivindicativo e tem o ´povo´
como protagonista principal, o que a torna um processo democrático e educativo.
É um instrumento político das classes subalternas para externar sua concepção
de mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma sociedade igualitária e
socialmente justa” (PERUZZO, 2006:4). Conforme explica Marilena Chauí
(Conformismo e resistência. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986), ao buscar
definir a cultura popular, “embora de difícil, a expressão Cultura Popular tem
a vantagem de assinalar aquilo que a ideologia dominante tem por finalidade
ocultar, isto é, a existência das divisões sociais (p.28). A autora vê o povo
de um ponto de vista idealista, identificando o popular com o primitivo,
simples, sensível, iletrado, comunitário. A cultura popular seria assim a
resistência ao Iluminismo e à razão, vista como guardiã da tradição e do
passado, peça de museu.
Túlio
Henrique - Falar sobre a caricatura no Brasil requer um preâmbulo que nos faz
perpassar os territórios do Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo, Bahia e
Minas Gerais. A Bahia, embora tenha desempenhado um papel importante na
política e cultura nacional ainda não tem narrada uma história globalizante dos
seus caricaturistas e, tampouco, dos impressos ilustrados publicados em seu
território. Na sua obra Feras do Humor Baiano o senhor repete esse preâmbulo,
citando o Rio de Janeiro e a cidade de São Paulo, partindo de nomes
consagrados
como Angelo Agostini, para apenas depois introduzir a Bahia e a sua caricatura.
Isso se deve a uma ordem percebida nos documentos que o senhor pesquisou,
trata-se de uma hierarquia de importância ou algum outro critério específico?
Por que a caricatura da Bahia oitocentista aparece como um cotejamento em sua
obra?
Gutemberg
Cruz
– Não se deve a ordem alguma. Apenas a constatação que na Bahia as artes
gráficas nunca foram valorizadas. “Pouco se escreveu a respeito das artes
gráficas baianas, principalmente sobre o humor” escrevi na introdução do meu
primeiro livro O Traço dos Mestres (1993). “A pouca importância dada à obra
gráfica vem do preconceito que muitos estudiosos de arte alimentam em relação
ao desenho e à gravura, pois esses estudiosos só valorizam obras de paredes, em
vistosas molduras a óleo. As obras gráficas, muitas delas de autênticos valores
sociais e culturais, ficam no esquecimento total. O que muitos não sabem é que
a maioria dos grandes nomes da pintura realizou-se primeiramente no desenho, na
gravura”. E cito o professor Raymundo Aguiar, da Escola de Belas Artes da Ufba
que produziu grandes obras à óleo e fazia caricaturas e cartuns com o
pseudônimo de K-Lunga para não ser menosprezado pelos colegas, pois o cartum
era tido como “baixa cultura”. Ele mesmo deu uma entrevista exclusiva neste meu
primeiro livro. Assim como os artistas plásticos Juarez Paraíso, Carybe,
Edsoleda Santos, Floriano Teixeira e muitos outros que começaram a carreira
fazendo cartuns, charges, caricaturas. O mesmo aconteceu com o cineasta Glauber
Rocha, o poeta Castro Alves. Na Biblioteca da Escola de Belas Artes da Ufba não
encontrei nada a respeito desses artistas como cartunista, pois a própria
instituição não valorizava esse tipo de trabalho. A revelação de que o mestre
da escola, Raymundo Aguiar era o cartunista K-Lunga foi muito “pertubadora” na
época, muitos não acreditaram. Fui convidado a dar uma palestra sobre os
artistas plasticos que utilizaram quadrinhos, humor em sua obras
emolduradas...
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