15 junho 2016

Samba antigo do Recôncavo: Cantador de Chula


“Eu tenho prosa!”. Esta é a defesa do cantador de chula, João do Boi de São Braz. O profundo conhecimento dos cantos, seus significados ancestrais, suas metáforas e entrelinhas para o momento apropriado, são revelados em um baú de tesouros poéticos musicais que contam a história e sabedoria do seu povo. É assim a obra da etnomusicóloga Katharina Doring na obra recém lançada pela Editora Pinaúna na série Sons da Bahia: Cantador de Chula: o samba antigo do Recôncavo.

Ela dá uma aula magistral sobre o samba de roda e, em especial, sobre o samba chula, o blues da nossa região canavieira. As vozes ancestrais africanas que ainda permeiam o Recôncavo em muitas dimensões, mas se transformaram ao longo dos anos em vozes de afirmação sociocultural e política, literalmente trazendo o passado presente, mediante a atuação da memória poético-musical.

Primeiro ela faz uma recapitulação histórica sobre o batuque e a origem do samba na Bahia. O batuque é a essência da cultura afro brasileira, a distinção entre o sagrado e o lúdico na cosmovisão de culturas africanas. A pesquisadora vai de Sarmento em Carneiro, Rugendas, Manuel Querino, Renato Almeida, Nina Rodrigues, Artur Ramos, Ordep Serra entre outros pensadores. Aos poucos ela amplia o horizonte para o Recôncavo e aí enfrentou dificuldade diante de fontes literárias escassas, mas os historiadores profissionais preencheram esta lacuna.

E para esclarecer melhor a ambientação histórica e socio cultual do samba na Bahia, Katharina
dedicou uma parte desse trabalho a um levantamento histórico sobre o samba na cidade de Salvador. Samba de roda – em voz, gesto, som e movimento é outro capítulo desta importante obra onde a pesquisadora faz um panorama geral, recheado e detalhes musicais e estéticos, sobretudo dos aspectos vocais, coreográficos e socioculturais.

A música negra cruzou o Atlântico, vindo da África para o Brasil. As formas musicais e africanas e europeus se encontravam aqui em nossos trópicos e geraram um produto novo, o sincretismo musical afro-europeu. Essa música rítmica, inseparável de dança, tem um papel significativo no contexto da resistência e da sobrevivência negra no escravismo colonial.

Em outro capítulo, os cantadores de chula contam suas vidas, memórias e cantos. Os mais velhos sambadores que conheceu como Mestre Quadrado, Dona Aurinda dão depoimentos importantes, além de nomes como Mestre Nelito, Salvador; Zeca Afonso, São Francisco do Conde; João do Boi, Santo Amaro - São Braz; Paião, Teodoro Sampaio; Domingos Preto, Cachoeira – Santiago do Iguape, entre muitos outros. Fala do projeto Cantador de Chula que dá voz e visibilidade aos sambadores mais velhos.

Para a estudiosa, “as tradições populares resistem, migram, acabam, persistem, renovam-se, mudam
de lugar e aparência: ou seja, olhando de perto, de alguma forma sempre estarão em processo de transformação, porque não há permanência sem inovação. A memória é um estado do Ser que se faz presente na nossa vida continuamente, sem nos darmos conta, porque imaginamos algum limite definido em números e fatos, entre o passado e o presente, enquanto, na realidade, o tempo é um ser quântico, que não separa entre o aquilo que supostamente esteja separado de nós” (p.242).

A obra é um tributo à memória viva das populações afro-brasileiras que cultivam essa herança cênica-poética-musical no Recôncavo, em Salvador e algumas outras regiões do estado. Outras fontes do livro para o projeto homônimo “Cantadores de Chula” virou um DVD, com dois CDs, lançados em 2009, ambos teve participação fundamental da autora. O trabalho é brilhante porque o leitor mergulha com prazer nesse projeto que encantou Katharina Doring desde que conheci no bairro da Saúde, quando ela veio da Alemanha há mais de 20 anos. E como escreveu no prefácio o editor, doutor em História Social, Gustavo Falcón, “a teuto-baiana Katharina Doring faz o seu mergulho etnográfico recolhendo preciosidades e tratando a permanência da chula como respeito e reverência, sem descuidar da procura pela interpretação socioantropológica, indispensável para o enquadramento e o entendimento do tema estudado”. Uma obra de fôlego, obrigatório para quem deseja entender as manifestações culturais do povo de santo.


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