Este estudo se prende ao modo com que o periódico A Coisa desperta e intui na população, significações políticas e de valores culturais, inserindo em sua capa e no interior de suas páginas, imagens que demarcam de forma caricatural as representações dadas aos corpos de personagens ora anônimas, ora identificáveis pela sociedade leitora de sua época. A técnica responsável pelo talho e pelas marcas gravadas, seja na madeira, na pedra ou no metal, revela nuances e deixa indícios do que seus autores pretendiam com as imagens que produziam e publicavam, ao matizar e evidenciar as múltiplas tonalidades das peles.
Mas, eis que surge uma questão crucial para
um estudo sobre matizes a ser investigado nas páginas de jornais impressos em
preto e branco: Como alcançar essa ideia da cor e da sua gradação a partir de
uma imagem monocromática? Em um primeiro instante, isso se faz possível a
partir das observações atentas das imagens, seja nos traços dos desenhos ou nas
massas de cor, realizadas pelos usos possibilitados pelas técnicas de clichês
em xilogravura e litogravura. Com um olhar atento e treinado, se percebe na
imagem a ausência do preenchimento da cor preta, para representar uma
personagem branca, ou o preenchimento com esta mesma cor para a representação
de um corpo negro.
Mas, como buscar o meio tom? Como
representar os diferentes matizes e gradações de tons de pele de brancos e
negros? No segundo momento, é possível alcançarmos as ideias acerca dos matizes
a partir da leitura e compreensão dos textos que norteiam as imagens ou
acompanham as páginas do jornal. São os textos, em muitos momentos, a nos falar
mais sobre a imagem dos negros que as próprias imagens visuais, que n’A Coisa
trazem mais representações plásticas de corpos brancos em comparação ao número
de evidências visuais dos corpos negros.
O aprimoramento das técnicas de
reprodução de imagens em impressos permitiu aos gravuristas o desenvolvimento
de várias soluções para que se alcançasse o meio tom, seja pelo chanfrado, na
forma mais clara, mais escura ou esmaecida, seja pelo uso de linhas e outros
grafismos que sugerem diferentes texturas e consequentemente diferentes tons
para as superfícies representadas. Outro aspecto que auxilia na busca pelo
matiz é o reconhecimento e a discussão em torno das questões raciais vigentes
no período da Primeira República.
Conscientes dos discursos sobre raças,
os gravuristas, artistas, desenhistas e anatomistas, atentos aos detalhes do
corpo, evidenciavam em seus traços os fenótipos dos corpos a que representavam, e
desse modo construíam aproximações tipificadas ou não dos índios, dos negros e
dos brancos. A leitura das imagens não se encerra apenas na observação
exclusiva das imagens.
Para o entendimento das representações
dos matizes é necessário que se faça leituras das imagens aliadas aos seus
contextos de produção e circulação, suas disposições nas páginas do jornal em
sua integração com os textos que as circundam e com os demais assuntos tratados
na mesma publicação. Assim, texto e imagem, ao serem interpelados, falam sobre
os tipos de corpos e as peles negras produzidos nesses impressos; sobre os
traços e formas concebidos, os lugares ocupados e o destaque nas páginas; as
motivações para que fossem produzidas as imagens; quem as realizava, e em quê
ou em quem se inspirava para produzi-las; que tipo de tensões essas imagens
representavam e traziam para o contexto social e a imprensa no período de sua
veiculação.
Embora publicada na Bahia do princípio
do século XX, nos desperta atenção o fato da imagem nos remeter ao imaginário
norte-americano do blackface e de todo o conteúdo racial e tenso impresso por
essa prática segregacionista da política estadunidense durante a era Jim Grow
(876-1965) e dos Black Codes (1800-1866), que restringiam o convívio entre
negros e brancos e determinavam espaços delimitados para cada um desses grupos
de modo que eles não se misturassem. Segundo a colunista e filósofa da revista
Carta Capital, Djamila Ribeiro, “o black face surgiu por volta de 1830, durante
a era dos shows dos menestréis, quando homens brancos se pintavam de preto de
forma bem caricata e se apresentavam para grupos formados por aristocratas
brancos com o intuito de ridicularizar pessoas negras” (CARTA CAPITAL, 2015).
O trabalho aprofunda indo ao final do
século XVIII onde filósofos europeus começaram a desenvolver teorias que
classificaram os seres humanos em quatro posições hierárquicas, favorecendo os
brancos europeus na primeira posição no grau de evolução, seguidos por
asiáticos, ameríndios e negros. Busca no
filósofo anglo-irlandês Edmund Burke (1729-1795) que lançou ensaio sobre a cor
preta e/ou o negro estaria relacionada ao medo, ao terror e a fealdade. Outro
filósofo, o prussiano Immanuel Kant deu sequência as suas ideias, oferecendo
teorizações, inclusive, favoráveis à escravização, entendida como uma ação
socialmente natural.
Já o filósofo francês Joseph Arthur de
Gobineau, publicou o seu livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas,
no qual, o negro é compreendido enquanto um ser animalesco e involuído, e,
portanto, destinado a ser dominado pelas raças evoluídas. As teorias sobre o
racialismo são finalmente fortalecidas com a publicação do livro A origem das
espécies, do naturalista britânico Charles Robert Darwin, em 1859. No livro,
Darwin defende a superioridade das espécies por meio da seleção natural. Na
época o estudo de Darwin foi utilizado por terceiros para justificar o
imperialismo e o colonialismo.
O fato de negros de diversos países, e
africanos de África começarem a escrever pesquisas sobre o povo negro,
transformou a forma de se narrar a história sobre o colonialismo, introduzindo
as histórias anteriores a ele e mudando a utilização de termos considerados
pejorativos, tais como escravo (escravizado), raças (raça), negro (negros). Os
resultados dos estudos de africanistas e os criadores da ideologia do pan-africanismo
Edward Burghardt Du Bois, Marcus Mussiah Garvey e Stuart Hall, provocam
mudanças contínuas na forma dos negros escreverem, e de quem escreve sobre os
negros.
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