Depois de embalar duas grandes guerras, o século XX conheceu uma nova onda de colonização. Não mais horizontal ou geográfica, mas verticalmente, penetrando os territórios da alma humana. A industrialização do espírito, segundo Edgar Morin (2009, p.13), por meio do avanço tecnológico, se voltou para a organização do interior do homem, soterrando-o sob camadas de mercadorias culturais.
“...as palavras e imagens saíam aos borbotões dos teletipos, das rotativas, das películas, das fitas magnéticas, das antenas de rádio e de televisão; tudo que roda, navega, voa transporta jornais e revistas; não há uma molécula de ar que não vibre com as mensagens que um aparelho ou um gesto tornem logo audíveis e visíveis (…) Através delas, opera-se esse progresso ininterrupto da técnica, não mais unicamente votado à organização exterior, mas penetrando no domínio interior do homem e aí derramando mercadorias culturais. Não há dúvida de que o livro, o jornal eram mercadorias, mas a cultura e a vida privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial, nunca os murmúrios do mundo – antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de fadas, anões e duendes, palavras de gênios e de deuses, hoje em dia músicas, palavras, filmes levados através de ondas – não haviam sido ao mesmo tempo fabricadas industrialmente e vendidas comercialmente. Essas novas mercadorias são as mais humanas de todas, pois vendem a varejo os ectoplasmas da humanidade, os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma” (MORIN, 2009, p.13-14)
E desde a infância, o cidadão médio dessa sociedade de massa é inserido em uma sede de informações que mescla os mais diversos conteúdos, que são cuidadosamente elaborados para integrar diferentes categorias de consumidores aos meios de comunicação. E esse caráter emigra da imprensa para os outros meios. A maior parte das mercadorias que alimenta essa sociedade de massa associa palavras rápidas e sucintas a imagens suntuosas, fascinantes e dinâmicas.
As invenções técnicas foram necessárias para que a cultura industrial se tornasse possível. O crescimento de todo sistema industrial exigiu o máximo consumo para um público variado. E essa variedade é, ao mesmo tempo, sistematizada, homogeneizada. Asim a diversidade dos conteúdos foi homogeneizada. A maioria dos filmes, por exemplo, sincretiza temas múltiplos no seio dos grandes gêneros: num filme de aventura haverá amor e comicidade e num filme de amor haverá aventura e comicidade, assim como num filme cômico, haverá amor e aventura. Essa linguagem homogeneizada exprime esses temas.
O radio tende ao sincretismo variando a série de canções e programas, mas o conjunto é homogeneizado no estilo da apresentação radiofônica. A grande imprensa, a revista ilustrada tendem ao sincretismo se esforçando por satisfazer toda gama de interesse.
Informa Morin: “No começo do século XX, as barreiras das classes sociais, das idades, do nível de educação delimitavam as zonas respectivas de cultura. A imprensa de opinião se diferençava grandemente da imprensa de informação, a imprensa burguesa da imprensa popular, a imprensa séria da imprensa fácil. A literatura popular era solidamente estruturada segundo os modelos melodramáticos ou rocambulescos. A literatura infantil era rosa ou verde, romances para crianças quietas ou para imaginações viajantes. O cinema nascente era um espetáculo estrangeiro. Essas barreiras não estão abolidas. Novas estratificações foram formadas: uma imprensa feminina e uma imprensa infantil se desenvolvem depois de cinquenta anos e criam para si públicos específicos” (p.37). E conclui: “A cultura de massa é, portanto, o produto de uma dialética produção-consumo, no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade” (p.47).
Para concluir esse espírito do tempo onde a cultura de massa é um embrião de religião da salvação terrestre, mas falta-lhe a promessa da imortalidade, o sagrado e o divino, para realizar-se como religião, Morin assim afirma: “A contradição – a vitalidade e a fraqueza – da cultura de massa é a de desenvolver processos religiosos sobre o que há de mais profano, processos mitológicos sobre o que há de mais empírico. E inversamente: processos empíricos e profanos sobre a ideia-mãe das religiões modernas: a salvação individual”.
Assim a união entre o imaginário e o real é muito mais íntima do que nos mitos religiosos ou feéricos. O imaginário não se projeta no céu, fixa-se na terra. Os deuses (e os demônios) estão entre nós, são de nossa origem, são como nós mortais. Só não há resposta para as contradições da existência, estas estão em movimento, e esse movimento pode criar respostas, também em movimento.
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