A charge é um desenho de humor que estrutura sua linguagem como reflexão e crítica social. A proposta não é registrar o real, mas significá-lo. Registra a história, a partir do que a história, objetivamente, não registra. A especificidade de seu discurso (informação por imagem) nos informa menos sobre a sociedade e mais do exercício de tolerância política que ela assegura a seus cidadãos.
Documento que produz “verdade” através de personagens que carecem de “veracidade”, e porque registra a história a partir do que a história, objetivamente, não registra. É um instrumento de reflexão e fonte de pesquisa, um produto cultural produzido sob condições históricas definidas, num tempo e espaço socialmente determinados.
A charge muda aquele quer a observa, transformando-o num cúmplice de significações que só tem sentido no interior dessa relação de mútuo consentimento e plena aceitação. Sua função é temperar a monotonia e a severa objetividade e imparcialidade do texto com a permissividade de um discurso que diz o que o verbo não pode, não deve, não ousa expressar.
O editorial é o “lugar” de opinião (sério, nobre, solene) que o jornal reserva para si mesmo, onde cabe à “verdade” vir à tona por trás da notícia. A charge compartilha desse espaço singular, embora produza um “editorial às avessas”, contra a seriedade que marca o tom, a escrita normativa do jornal. É uma transgressão diária infiltrada entre suas páginas. Uma dose certa de subversão diária. A imagem da charge é a gramática de seu traço, e o traço da charge é a escrita de seu texto.
Assim, tendo o traço como texto, a charge estrutura seu discurso sobre a real como uma narrativa, um modo específico de leitura, uma imagem que conta uma história – começo, meio, fim -, que descreve personagens que enunciam conteúdos subjetivos sobre ações objetivas de sujeitos reais.
A charge, “essa libertinagem da imaginação”, é um instrumento universal de crítica e sátira política limitado pelas especificidades culturais de cada país, ao contrário da caricatura e do cartum, sempre iguais, independentemente de origem.
Dos três gêneros gráficos que se apropriam da realidade para expressá-la através do traço de humor, a charge é o mais sofisticado, pois conta e resume histórias reais de modo e maneiras convincentemente irreais.
CARICATURA
A caricatura é um traço que revela aparências, que aponta o visível e o supérfluo, que sublinha e ressalta, corta e recorta; enfim, é um traço de humor que batiza o que se vê e nomeia o que se pensa: orelhudo, topetudo, narigudo, barrigudo. Seu objetivo é produzir o duplo do sujeito, como cópia dessemelhante de si mesmo. Sua função é introduzir desordem na ordem corporal do sujeito, intensificar, nos contornos de sua superfície externa, curvas e linhas que denunciam singularidades na sua cartografia pessoal.
Dos três gêneros gráficos a caricatura é a mais ousada, pois mexe nas superfícies anatômicas do sujeito real para reproduzi-las em profundidade, com exterioridades de sua identidade corporal.
Traço eventualmente de reflexão porque não visa prioritariamente à crítica, mas ao humor.
CARTUM
O cartum é um desenho de humor e crítica que provoca ao mesmo tempo o riso e a reflexão, articulando dois níveis simultâneos de leitura: na forma, que provoca o riso como prazer de ver, e no texto, que produz consciência como prazer de ler. Não visa, de imediato, o particular, mas antes o sujeito coletivo na medida de quantidade, parâmetro de transferência e condição de identidade para o sujeito individual. A universalidade de sua forma (o modo como constrói visualmente os personagens coletivos que ria) torna-os compatíveis e acessíveis a qualquer tipo de sujeito. No cartum, os personagens são “pobres” de recursos gráficos (universalidade com simplicidade de forma) porque sua função é dar suporte e respaldar o texto, e não o inverso, como na charge. Quanto mais simples e despojado o traço, maior é a possibilidade de projeção, isto é, quanto mais impessoal, mais real e individual.
Dos três gêneros gráficos que se apropriam da realidade para expressá-la através do traço de humor, o cartum é o mais livre e criativo, e também o mais anárquico, porque é aquele que explora vai fundo no delírio do ser como fonte de consciência individual e como objeto de comportamento social.
O cartum está situado entre a charge e a HQ, apropriando-se de elementos de ambos. Pode ser confundido coma charge por tratar, na maioria das vezes, de situações de cunho social, mas por outro lado o cartum não tem comprometimento com um fato ou celebridades, podendo manter o potencial de fruição por muito tempo depois de ter sido publicado.
Das histórias em quadrinhos herda elementos sígnicos, tais como balões de fala em lugar da tradicional legenda e a possibilidade da decupagem da narrativa em várias cenas separadas e inseridas em requadros, uma narrativa sequencial.
Violette Morin (1970) propõe um tipo de fórmula para a estrutura de construção do humor cartunesco (ou humor gráfico) e explica por que a força humorística residiria mais na parte ilustrativa que no texto. Sua definição para humor gráfico: desenhos, ancorados ou não por textos, que questionam as medidas do mundo, recusam a aparência das coisas e rompem com a fotogenia, virando pelo avesso as representações.
O termo cartum é a forma aportuguesada do inglês cartoon (cartão), que por sua vez tem sua origem no terno italiano cartone (pedaço grande de papel) que era aplicado aos moldes recortados ou perfurados em cartão resistente, usados para transpor e marcar os desenhos nas obras de arte de grande porte, como murais ou tapeçarias. A expressão, com o sentido que tem hoje, nasceu em 1841 nas páginas da revista inglesa Punch. No Brasil, foi na revista Pererê, de Ziraldo, edição de fevereiro de 1964, que se lançou o neologismo cartum, logo adotado no jargão profissional.
O cartum é livre, transcendental e atemporal Provoca o riso e a reflexão.
A charge é factual, precisa de um embasamento pois está ligada diretamente à notícia
A caricatura extrai a alma da pessoa, é mais profunda do que simplesmente uma forma de acentuar os defeitos e traços físicos do retratando. Batiza o que se vê e nomeia o que se pensa.
Os editores de jornais publicavam desenhos de humor como gags diárias em tiras. As primeiras histórias eram cômicas e as historietas continuaram a ser publicadas como tiras diárias até a década de 20, quando surgem as primeiras revistas americanas de quadrinhos. Mesmo assim os personagens aparecem tanto em revistas ou em turas nos jornais diários.
O humor, para Álvaro Junco (2009, p.128), parece oferecer uma abstração do trágico na experiência humana, o que gera uma empatia com o sofrimento que nos proporciona prazer. Segundo Freud (1988) relaciona o humor ao inconsciente. Valendo-se do exemplo dos chistes, estabeleceu ligações entre o efeito cômico e diversos mecanismos de produção de prazer. Discurso no qual a lógica não precisa ser respeitada, locus do inesperado, o humor distorce a relação entre falante e discurso enunciado, criando um distanciamento.
Referências:
ÁLVAREZ JUNCO, Manuel. El Diseño de lo Incorrecto: la Configuracion del Humor Gráfico. Buenos Aires: Icrj Diseño, 2009.
FREUD, S. “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol.8. Rio de Janeiro: Imago, 1988
MORIN, Violette. “Les Dessin Humorístique”, in L´Analyse des Images. Revista Communications, nº15. França, 1970.
ROMUALDO, Edson Carlos. Charge Jornalística: intertextualidade e polifonia – um estudo de charges da Folha de S.Paulo. Maringá: Eduem, 2000.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura. A Imagem Gráfica do Humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999
REVISTA UPS. Humor na Mídia, nº88. Dezembro/janeiro/fevereiro 2010-2011. São Paulo: USP, 2010.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
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