Uma narrativa construída a partir de fatos
históricos. Os eventos são ocorridos na capital baiana do século XIX. A
dinâmica vai englobar grandes personalidades ancestrais locais, a arquitetura
histórica da Bahia e um personagem nipônico singular. Em uma São Salvador com
ainda poucas décadas de Independência (de Portugal) e já uma intensa riqueza
cultural, um fantasma samurai vagará na busca por redenção. Rocha Navegável,
de Fábio Costa e Igor Souza, é o mais novo título de histórias em quadrinhos da
RV Cultura e Arte.
“O
povo preto é esquecido nesta cidade de pretos, tenente”
“Quase
todos os monumentos são homenagens a brancos”
Mistura fatos ocorridos em Salvador com
uma viagem histórica e espiritual, onde os malês são peças fundamentais. Na
história, o espírito dos revoltosos cobra a existência de um monumento à eles
no Campo da Pólvora, local que no passado abrigou uma vala comum, onde os
escravizados mortos eram atirados. O local foi cemitério para muitos dos malês
mortos na revolta de 1835.
“Ou
tem cara de branco, como as estátuas do Campo Grande...aquelas meninas
espalhadas pela praça”
O leitor é convidado a desvendar a
história de um fantasma samurai que há 150 anos vaga pelo centro de Salvador em
uma incessante busca por redenção. Recheada de fatos e referências históricas,
a HQ é inspirada no intrigante relato de que, em 1870, a bordo de um navio
inglês atracado na Baía de Todos os Santos, o jovem tenente japonês Maeda Jurozaemon
teria cometido o ritual do seppuku, o suicídio samurai.
Supostamente enterrado no Cemitério dos
Ingleses, seu corpo e sua lápide teriam desaparecido alguns anos depois,
deixando a história envolta em um grande mistério. O que teria acontecido ao
tenente?
A trama parte de cruzamentos entre a
tradição oriental samurai e a herança imaterial africana para construir uma
jornada sobre autoconhecimento e aprendizado, ao mesmo tempo em que toca em
temas contemporâneos como as discussões antirracistas no âmbito do patrimônio
cultural, colocando em xeque as representações e os significados dos monumentos
na cidade. Salvador não é apenas cenário, mas também elemento condicionante
para o suceder da história.
“Os
rios Paraguaçu e São Francisco com cara de Rei Netuno...”
“Até
Catharina Paraguaçu é uma deusa romana. E o caboclo...índio de filme gringo...”
Memória e esquecimento é um dos temas
centrais da obra. O desejo dos espíritos de Rocha Navegável é luta travada
também na vida real em prol dos malês. O Conselho Nacional de Entidades Negras
(CONEM) cobra há anos a existência de um monumento no Campo da Pólvora que
homenageie os revoltosos. Uma das propostas já levadas ao Governo do Estado é
para que o Campo da Pólvora se torne um sítio histórico sobre a revolta, com a
instalação de um monumento em homenagem aos líderes do levante.
Na narrativa o cruzamento entre imigrantes
e escravizados. Tenente japonês cometeu haraquiri e enterrado em solo baiano.
Um corpo desapareceu. Em torno desse fato entidades do centro da cidade,
estatuas e orixás, auxiliam em sua busca. O fato realmente torna-se atual no
descaso com a pandemia – retorno das valas comuns dos corpos de pessoas
vitimadas pela Covid-19.
Com desenhos em aquarelas que lembram um
pouco a obra de Bill Sienkiewicz, mas é original e belíssimo, Fabio Costa e
Igor Souza passeiam pela Cidade de Salvador entre vultos e cinzas, vermelho e
azulado, entre poesia...
“espremer
a palavra até extrair o silencio”
“chuva
forte a noite parece fora do ar, a madrugada respira com auxílio de aparelho”
“nas
encruzilhadas esfinges aguardam abrir o sinal”
“Tenho
mil bocas e nelas as vezes se trancam, se perdem, se trincam, se despem em
bocejos ocos que o corpo ensopado esguicha em guinchos mortos....Tenho mil
gotas de sangue a circundar-me as retinas umedecidas a quem a beleza fere com
suas fartas quilhas....”
A RV Cultura e Arte surgiu em Salvador (2008),
materializando um projeto dos sócios Larissa Martina e Ilan Iglesias. Com o
foco lançado sobre a Artes Visuais, sua ação está organizada em três frentes:
galeria de arte, selo editorial e livraria de quadrinhos. Nos quadrinhos, a
primeira obra lançada foi São Jorge da Mata Escura, de Andre Leal e Marcello
Fontana. Rocha Navegável é o 5º título
de quadrinhos lançado, ratifica o perfil da RV de valorizar os aspectos sociais
e valores culturais que moldaram a Bahia.
A obra (formato 17 x 25 cm, 160 páginas,
R$ 34,90) tem apoio financeiro do Governo do Estado, por meio do Fundo de
Cultura, Secretaria da Fazenda, Fundação Cultural do Estado da Bahia e
Secretaria de Cultura da Bahia. Vale a pena conferir!
Um comentário:
Muito obrigado por esta resenha generosa, Gutemberg! Ficamos honrados com suas palavras. Vida longa ao quadrinho baiano e brasileiro! Abraço!
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