Os Tupinambás de Olivença são um povo
indígena que vive ao redor do distrito de Olivença, no município de Ilhéus, no
litoral sul da Bahia, nordeste do Brasil. Em 2001 foram reconhecidos como etnia
pela Fundação Nacional do Índio. O direito à autodeterminação dos tupinambás de
Olivença é constantemente questionado por agentes públicos e privados, que se
utilizam de estratégias que burocratizam e judicializam as vidas dos indígenas.
Baseado em uma pesquisa antropológica de fôlego Daniela Alarcon, antropóloga e
roteirista da HQ, Vitor Flynn, quadrinista, cientista social e ilustrador e a
pesquisadora Glicéria Tupinambá, uma das lideranças da aldeia Serra do Padeiro
produziram a obra em quadrinhos Os Donos da Terra. A publicação foi financiada
por um edital específico para histórias em quadrinhos da Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo e publicada pela Editora Elefante.
Os povos indígenas sempre tiveram suas
vidas apagadas. Esta HQ revela aspectos da memória, da visão do mundo e da
cultura de um povo. Pensar a história desse povo faz com que a gente veja toda a história do
Brasil de forma diferente. As caravelas de outrora se transformaram nas
retroescavadeiras de hoje, apagando violentamente a existência de pessoas que,
ano após ano, resistem à extinção de suas raízes, de suas narrativas, de seus
corpos. O papel sempre foi um inimigo dos povos indígenas, por meio de títulos
que tomavam deles suas terras. Agora, é a hora de usar o papel de uma forma
diferente, em uma história em quadrinhos.
A história de luta e de resistência do
povo Tupinambá, habitante da Serra do Padeiro, no sul da Bahia continua atual. As
sete narrativas retratadas nesta obra colocam uma lupa na Serra do Padeiro, no
sul da Bahia, região que revela uma resistência indígena que extrapola o local,
muito mais ampla, que não se deixa abater, mesmo diante de um governo
anti-indígena. Essa gente não abaixa a cabeça e, todos os dias, constrói
possibilidades de um mundo mais justo.
Desde 2004, os Tupinambá vêm realizando
ações diretas conhecidas como retomadas de terras, que se converteram na
principal estratégia política do povo. O processo de demarcação da Terra
Indígena Tupinambá de Olivença foi iniciado há mais de 16 anos e, mesmo
comprovada a tradicionalidade da ocupação indígena e cumpridos todos os
requisitos, ele ainda não foi concluído, violando-se reiteradamente os prazos
legais.
A primeira HQ de Os donos da terra é a
principal história do livro. Ela trata de um conflito em andamento, já que a
exploração de areia segue ocorrendo, violando os direitos tupinambá e piorando
os impactos socioambientais. Há 16 anos, o Povo Tupinambá de Olivença, no Sul
da Bahia, luta para concluir o processo de demarcação de suas próprias terras.
A demora do Estado brasileiro na questão territorial reflete estruturas
coloniais que ameaçam toda riqueza de saberes e culturas de muitos povos
originários do país.
O universo dos quadrinhos e suas muitas
possibilidades artísticas também é aproveitado para interpretar o imaginário
aguerrido dos povos que resistem ao governo Bolsonaro e resistiram a muitos
outros regimes políticos do nosso país. “Muitas
aldeias vão se levantar ainda. Muitos povos vão se erguer”. Essas
palavras-sonhos de Os donos da terra inflamam a esperança de fazer valer o
direito que possuem os povos indígenas sobre seus territórios originários.
Os mitos de fundação do país e as ideias
de “descobrimento” e “Brasil” não foram capazes de exterminar as identidades
dos povos indígenas. A literatura brasileira constrói sua mentalidade a partir
desses mitos. Da perspectiva indígena fala-se em invasão, onde os territórios
habitados foram reduzidos a um só nome, e as identidades dos povos foram
definidas a partir da racialização (biológica e social) feita pela régua dos
colonizadores, que não assumem esse lado sombrio de sua história
Nas sete histórias encontramos uma
pungente denúncia das contínuas apropriações dos territórios indígenas por
fazendeiros e outros agentes, cuja equação envolve intimidação, engano, roubo e
assassinato. Recrudesce o fato de que os criminosos têm o respaldo da sociedade
dominante e contam com o apoio de juízes, policiais, políticos, jornais, rádio,
isto é, de todo um sistema que descredibiliza o Estado democrático de direito
ao violar os direitos humanos e não humanos do povo Tupinambá.
A resistência por meio da figura ilustre
de Marcellino José Alves, conhecido como Caboclo Marcellino, trata do outro
lado da história e é feita justiça à memória desse guerreiro ao descrever sua
resistência à exploração e à negação da sua própria identidade. A obra traz
Babau, cacique que com outros parentes dá continuidade à luta.
A presença dos encantados como
espiritualidade é marcante. São eles que guiam as retomadas, que protegem da
bala, que acolhem na floresta nas fugas, que são os “donos da terra”. Há também
os cantos de toré, bandeira do Divino (romeiros que partem do distrito de
Olivença), puxada de mastro de São Sebastião, Caipora, e outras fontes que trazem o sangue dos
indígenas, também trazem o seu espírito. Preservando o jeito de falar dos
Tupinambá, as narrativas se sustentam não apenas nas belas imagens, mas também
nos seus sons e conceitos. No final da obra um glossário facilita o leitor
vadiar por tantas histórias.
Glicéria Tupinambá, coautora do quadrinho,
informa que a comparação do corpo humano ao da árvore lhe marcou profundamente.
Ela disse que o povo Tupinambá tem sua origem na árvore, e ela faz questão de
provar esse ponto ao comparar a digital humana
aos anéis da árvore quando cortada no tronco. Ambos os corpos decompõem
da mesma forma. Ambos quando queimados viram cinzas e quando estamos dentro da
árvore respiramos melhor. Para ela as árvores são os seres encantados mais
antigos que vivem sobre a Terra, que cuidam dos humanos e dos animais, que são
sagrados. Uma obra excepcional que vale a pena ler e reler!
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