12 março 2021

Luta Tupinambá ganha espaço nos quadrinhos

 

Os Tupinambás de Olivença são um povo indígena que vive ao redor do distrito de Olivença, no município de Ilhéus, no litoral sul da Bahia, nordeste do Brasil. Em 2001 foram reconhecidos como etnia pela Fundação Nacional do Índio. O direito à autodeterminação dos tupinambás de Olivença é constantemente questionado por agentes públicos e privados, que se utilizam de estratégias que burocratizam e judicializam as vidas dos indígenas. Baseado em uma pesquisa antropológica de fôlego Daniela Alarcon, antropóloga e roteirista da HQ, Vitor Flynn, quadrinista, cientista social e ilustrador e a pesquisadora Glicéria Tupinambá, uma das lideranças da aldeia Serra do Padeiro produziram a obra em quadrinhos Os Donos da Terra. A publicação foi financiada por um edital específico para histórias em quadrinhos da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e publicada pela Editora Elefante.

 


Os povos indígenas sempre tiveram suas vidas apagadas. Esta HQ revela aspectos da memória, da visão do mundo e da cultura de um povo. Pensar a história desse povo  faz com que a gente veja toda a história do Brasil de forma diferente. As caravelas de outrora se transformaram nas retroescavadeiras de hoje, apagando violentamente a existência de pessoas que, ano após ano, resistem à extinção de suas raízes, de suas narrativas, de seus corpos. O papel sempre foi um inimigo dos povos indígenas, por meio de títulos que tomavam deles suas terras. Agora, é a hora de usar o papel de uma forma diferente, em uma história em quadrinhos.

 

A história de luta e de resistência do povo Tupinambá, habitante da Serra do Padeiro, no sul da Bahia continua atual. As sete narrativas retratadas nesta obra colocam uma lupa na Serra do Padeiro, no sul da Bahia, região que revela uma resistência indígena que extrapola o local, muito mais ampla, que não se deixa abater, mesmo diante de um governo anti-indígena. Essa gente não abaixa a cabeça e, todos os dias, constrói possibilidades de um mundo mais justo.

 


Desde 2004, os Tupinambá vêm realizando ações diretas conhecidas como retomadas de terras, que se converteram na principal estratégia política do povo. O processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença foi iniciado há mais de 16 anos e, mesmo comprovada a tradicionalidade da ocupação indígena e cumpridos todos os requisitos, ele ainda não foi concluído, violando-se reiteradamente os prazos legais.

 

A primeira HQ de Os donos da terra é a principal história do livro. Ela trata de um conflito em andamento, já que a exploração de areia segue ocorrendo, violando os direitos tupinambá e piorando os impactos socioambientais. Há 16 anos, o Povo Tupinambá de Olivença, no Sul da Bahia, luta para concluir o processo de demarcação de suas próprias terras. A demora do Estado brasileiro na questão territorial reflete estruturas coloniais que ameaçam toda riqueza de saberes e culturas de muitos povos originários do país.

 


O universo dos quadrinhos e suas muitas possibilidades artísticas também é aproveitado para interpretar o imaginário aguerrido dos povos que resistem ao governo Bolsonaro e resistiram a muitos outros regimes políticos do nosso país.  “Muitas aldeias vão se levantar ainda. Muitos povos vão se erguer”. Essas palavras-sonhos de Os donos da terra inflamam a esperança de fazer valer o direito que possuem os povos indígenas sobre seus territórios originários.

 

Os mitos de fundação do país e as ideias de “descobrimento” e “Brasil” não foram capazes de exterminar as identidades dos povos indígenas. A literatura brasileira constrói sua mentalidade a partir desses mitos. Da perspectiva indígena fala-se em invasão, onde os territórios habitados foram reduzidos a um só nome, e as identidades dos povos foram definidas a partir da racialização (biológica e social) feita pela régua dos colonizadores, que não assumem esse lado sombrio de sua história

 

Nas sete histórias encontramos uma pungente denúncia das contínuas apropriações dos territórios indígenas por fazendeiros e outros agentes, cuja equação envolve intimidação, engano, roubo e assassinato. Recrudesce o fato de que os criminosos têm o respaldo da sociedade dominante e contam com o apoio de juízes, policiais, políticos, jornais, rádio, isto é, de todo um sistema que descredibiliza o Estado democrático de direito ao violar os direitos humanos e não humanos do povo Tupinambá.

 


A resistência por meio da figura ilustre de Marcellino José Alves, conhecido como Caboclo Marcellino, trata do outro lado da história e é feita justiça à memória desse guerreiro ao descrever sua resistência à exploração e à negação da sua própria identidade. A obra traz Babau, cacique que com outros parentes dá continuidade à luta.

 

A presença dos encantados como espiritualidade é marcante. São eles que guiam as retomadas, que protegem da bala, que acolhem na floresta nas fugas, que são os “donos da terra”. Há também os cantos de toré, bandeira do Divino (romeiros que partem do distrito de Olivença), puxada de mastro de São Sebastião, Caipora,  e outras fontes que trazem o sangue dos indígenas, também trazem o seu espírito. Preservando o jeito de falar dos Tupinambá, as narrativas se sustentam não apenas nas belas imagens, mas também nos seus sons e conceitos. No final da obra um glossário facilita o leitor vadiar por tantas histórias.

 

Glicéria Tupinambá, coautora do quadrinho, informa que a comparação do corpo humano ao da árvore lhe marcou profundamente. Ela disse que o povo Tupinambá tem sua origem na árvore, e ela faz questão de provar esse ponto ao comparar a digital humana  aos anéis da árvore quando cortada no tronco. Ambos os corpos decompõem da mesma forma. Ambos quando queimados viram cinzas e quando estamos dentro da árvore respiramos melhor. Para ela as árvores são os seres encantados mais antigos que vivem sobre a Terra, que cuidam dos humanos e dos animais, que são sagrados. Uma obra excepcional que vale a pena ler e reler!

 

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