Gravado
integralmente em Londres, Transa (1972) é o terceiro
disco solo de Caetano Veloso e um dos melhores do artista. Ele reuniu
os amigos Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de
Souza para o trabalho de gravação, uma mistura de línguas, ritmos
e sonoridades inspiradas nas sete faixas. Transa, transe e trânsito
estão relacionados com o experimentalismo e as tranças
litero-musicais do poeta Gregório de Matos (Triste Bahia), do
compositor popular Monsueto (Mora na Filosofia), na homenagem aos
Beatles (You Don´t Know Me – Você Não Me Conhece), João
Gilberto (em um trecho de Saudosismo), Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi,
Zé do Norte (“os óio da cobra verde”), Edu Lobo (“laia,
ladaia, sabatana Ave-Maria”), entre outras preciosidades em seu
processo de criação.
Se o LP
anterior tinha tons sombrios da cinzenta paisagem londrina (Caetano
Veloso, 1971), onde a capa traz um close do rosto do artista com
fisionomia fechada e um espesso agasalho de pele e a vasta cabeleira
em um exílio forçado, o disco de 1972 é o retorno, onde o Caetano
múltiplo pede para ser decifrado. Você não me conhece, ele assume
na primeira faixa.
A sensual
"You don´t know me" abre o disco com um excelente arranjo
acústico e um Caetano sutil e interpretativo. A música incidental
cantada por Gal Costa (Saudosismo) foi gravada originalmente por
Caetano no compacto duplo com os Mutantes. “Por que não me mostra
(o que está) atrás do muro?”, ele pede cantando.
You
don’t know me/Bet you’ll never get to know me/You don’t know me
at all/Feel so lonely/The world is spinning round slowly/There’s
nothing you can show me/From behind the wall//"Nasci lá na
Bahia/De mucama com feitor/O meu pai dormia em cama/Minha mãe no
pisador"//"Laia ladaia sabadana Ave Maria/Laia ladaia
sabadana Ave Maria"//"Eu agradeço ao povo
brasileiro/Norte, Centro, Sul inteiro/Onde reinou o baião"
Em
seguida, o bilingüismo de "Nine out of ten" (Nove em Cada
Dez) é acompanhado por uma levada meio samba, meio nordestina com
uma sonoridade repleta de ecos, lembrando um show ao vivo. “A minha
melhor música em inglês. É histórica. É a primeira vez que uma
música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no
começo e no fim. Muito antes de John Lennon, de Mick Jagger e até
de Paul MacCartney. Eu e o Péricles Cavalcanti descobrimos o reggae
em Portobelo Road e me encantou logo. Bob Marley e The Wailers foram
a melhor coisa dos anos 70”, revelava Caetano na época. A música
reflete a expansão do eu, o encontro do poeta com o prazer de viver,
livre (“I´m alive”)
Walk
down Portobello road to the sound of reggae/I’m alive/The age of
gold, yes the age of/The age of old/The age of gold/The age of music
is past/I hear them talk as I walk yes I hear them talk/I hear they
say/Expect the final blast/Walk down Portobello road to the sound of
reggae/I’m alive//I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo/Feel
the sound of music banging in my belly/Know that one day I must
die/I’m alive//I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo/In the
Eletric Cinema or on the telly, telly, telly/Nine out of ten movie
stars make me cry/I’m alive/And nine out of ten film stars make me
cry/I’m alive
E o
baiano explora composições antigas como a bela "Mora na
filosofia" (de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos) carregado de
tristeza e terminando como uma catarse, ou mesmo a impactante "Triste
Bahia" onde mistura Gregório de Mattos com o samba de roda e
jingadas de capoeira.. Há uma sonoridade crescente dos instrumentos
afro-brasileiros, a começar pelo som do berimbau.
Triste
Bahia, oh, quão dessemelhante…/Estás e estou do nosso antigo
estado/Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado/Rico te vejo eu, já tu
a mim abundante/Triste Bahia, oh, quão dessemelhante/A ti tocou-te a
máquina mercante/Quem tua larga barra tem entrado/A mim vem me
trocando e tem trocado/Tanto negócio e tanto negociante//Triste, oh,
quão dessemelhante, triste/Pastinha já foi à África/Pastinha já
foi à África/Pra mostrar capoeira do Brasil/Eu já vivo tão
cansado/De viver aqui na Terra//Minha mãe, eu vou pra lua/Eu mais a
minha mulher/Vamos fazer um ranchinho/Tudo feito de sapê, minha mãe
eu vou pra lua/E seja o que Deus quiser//Triste, oh, quão
dessemelhante/ê, ô, galo canta/O galo cantou, camará/ê, cocorocô,
ê cocorocô, camará/ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora
camará/ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará/ê, triste
Bahia, ê, triste Bahia, camará/Bandeira branca enfiada em pau
forte…//Afoxé leî, leî, leô…/Bandeira branca, bandeira branca
enfiada em pau forte…/O vapor da cachoeira não navega mais no
mar…/Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante/Maria pegue o mato
é hora…/Arriba a saia e vamo-nos embora…/Pé dentro, pé fora,
quem tiver pé pequeno vai embora…//Oh, virgem mãe
puríssima…/Bandeira branca enfiada em pau forte…/Trago no peito
a estrela do norte/Bandeira branca enfiada em pau forte…/Bandeira…”.
Segue a
canção “It's a
Long Way” que faz
referências explícitas aos Beatles. Começa lenta, termina como
começou, mas da metade até quase o fim vai crescendo e agregando
aos versos da canção alguns outros versos de músicas antigas.
Lembrando os Beatles naquela canção “The Long And Winding Road”
(no LP Let it Be) ele canta “It´s a Long Way” (É Um Longo
Caminho) com um registro de voz que passa por vários estágios, de
alegria e tristeza, onipotência e fragilidade. (Acordei esta manhã
cantando uma uma velha canção dos Beatles). Há sutilezas na
pronuncia da palavra “long” onde se pode entender “lone” (só)
e “London”, lugar do exílio. E a composição agrupa baião,
rock, bossa nova numa versatilidade apaixonante. A música é toda
baiana, no ritmo cadenciado, bom de se ouvir na rede. Haja balanço.
Woke
up this morning/Singing an old, old Beatles song/We’re not that
strong, my lord/You know we ain’t that strong/I hear my voice among
others/In the break of day/Hey, brothers/Say, brothers/It’s a long,
long, long, long… way//Os óio da cobra verde/Hoje foi que
arreparei/Se arreparasse há mais tempo/Não amava quem amei//It’s
a long, long, long, long… way//Arrenego de quem diz/Que o nosso
amor se acabou/Ele agora está mais firme/Do que quando começou//It’s
a long road, it’s a long, long, long, long…/It’s a long road,
it’s a long and widing road…/Long and widing… road/It’s a
long road, it’s a long, long, long, long…//A água com areia
brinca na beira do mar/A água passa e a areia fica no lugar//It’s
a hard… hard, long way//E se não tivesse o amor/E se não tivesse
essa dor/E se não tivesse sofrer/E se não tivesse chorar/E se não
tivesse o amor//No Abaeté tem uma lagoa escura/Arrodeada de areia
branca…/Woke up this morning…
Há
levadas experimentais como "Neolithic Man" que não perde
o ar brasileiro e a poética atemporal em torno do olhar (“você
não me verá/você não verá”), do conflito entre o ver e o
não-ver.
I’m
the silence that’s suddenly heard/After the passing of a car/I’m
the silence that’s suddenly heard/After the passing of a car/I’m
the silence that’s suddenly heard/After the passing of a car/Spaces
grow wide about me/Spaces grow wide about me/If you look from your
window at the morning star/You won’t see me…/You’ll only
see…/That you can’t see very far/God spoke to me/You’re my
son/And my eyes swept the horizon/Away/Que tem vovó pelanca só/Que
tem vovó pelanca/You won’t see me…/Spaces grow wide about me
O disco
se encerra com “Nostalgia (That's
What Rock'n'Roll
is All About)”,
homenagem ao rock-blues curto, de duas estrofes rápidas, com o
detalhe de Gal Costa imitar gaita na primeira e, na segunda, a gaita
"real" ser tocada por Angela Ro Ro. E na composição ele
revela valores contrário à ideologia burguesa como o acordar tarde,
roupas extravagantes, movimento hippie e o comportamento marginal.
You
sing about waking up in the morning/But you’re never up before
noon/You look completely different from those straights/Who walked
around on the moon/The clothes you wear/Would suit and old times
baloons/You’re allways nowhere/But you’ll realize pretty
soon/That’s all that you care/Isn’t worth a twelve bar tune//You
won’t believe you’re just one more flower/Among so many flowers
that sprout/You just feel faintly pround when you hear they
shout/Very loud: "you’re not allowed in here, get out"/That’s
what rock’n’roll is all about/That’s what rock’n’roll is
all about/I mean, that’s what rock’n’roll was all about.
O que se
observa nesse trabalho é a mistura de nosso ritmo com a sonoridade
estrangeira, numa fusão de qualidade e profundidade pouco realizada
antes dele. Em seu processo criativo ele utilizou da estética da
inclusão, o uso da repetição (para o fluir do som) e transformar
essa expressão artística (a música) como uma linguagem que permite
transportar o ser ao infinito. Há nesse disco um trabalho afinado e
identificado com experiências renovadoras do som. Para ouvir e
re-ouvir sempre.
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2 comentários:
Maravilhosa resenha
Esse disco de Caetano é que é maravilhoso. Para ouvir e re-ouvir sempre...
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