Há quase
um século, na pequena vila de pescadores de Acupe, distrito de Santo Amaro, no recôncavo baiano, é apresentada todos os anos, uma manifestação que não existe igual em nenhum outro lugar do mundo: o Nego Fugido. A origem dessa expressão cultural ainda não se sabe quando teve início, mas o fato é que por suas características e estruturas dramáticas, o Nego Fugido é definido por antropólogos como sendo uma “ópera popular”, um “tesouro do patrimônio imaterial” de Santo Amaro.
As ruas
de paralelepípedo do pequeno distrito santamarense se torna palco para a exibição de um grande espetáculo de teatro a céu aberto. A manifestação mexe com feridas históricas da gênese brasileira e impressiona pela atuação de seus protagonistas. A encenação recria e reconta as tentativas de fuga do negro para a tão sonhada liberdade contra o regime escravocrata que imperou no Brasil até 13 de maio 1888. Reza a lenda que para se livrarem da escravização, os homens se refugiavam nas matas e lá se vestiam com folhas de bananeira para se camuflar.
CIDADE MUNDIAL
DA PAZ - “Esse é o nosso relato, a versão de uma comunidade de pescadores, remanescentes de escravos africanos de origem nagô”, explica Monilson dos Santos, diretor e membro do Grupo Nego Fugido. Por conta da tradicional manifestação libertária, Acupe será premiada em julho deste ano como a “Cidade Mundial da Paz” pela Fundazione Campana degli Cadutti, uma importante fundação italiana criada pelo papa Pio XII após a Segunda Guerra Mundial, com a missão de promover a paz por meio de ações sociais antiviolência em todo o mundo.
A iniciativa
da premiação surgiu em 2007, quando o diretor de teatro baiano Paulo Dourado (que, na época, era coordenador de arte e cultura da Universidade Federal da Bahia) convidou o diretor do Teatro Potlach, da Itália, Pino di Buduo, para assistir a uma apresentação da obra. “Fiquei particularmente interessado pela autenticidade da apresentação, pelo lirismo e pelo teatro visceral do Nego Fugido, que é simples, mas ao mesmo tempo aborda diversos elementos da arte brasileira para falar de valores promotores da paz, através da libertação”, disse o italiano.
Em seguida,
Pino apresentou o grupo aos diretores da fundação italiana, e o título vai possibilitar visibilidade tanto para a comunidade de Acupe quanto para as diferentes manifestações populares do recôncavo baiano. “Nós somos desassistidos das políticas públicas de cultura. A intenção, a partir deste prêmio honorífico, é alertar a sociedade para a importância de manter as nossas tradições culturais”, disse Monilson dos Santos.
LIBERDADE CONQUISTADA -
O Nego Fugido lembra um Brasil escravocrata e cruel, num teatrode rua movimentado. Palco da colonização da Bahia, o recôncavo foi a região que concentrou a maior parte da mão-de-obra escrava trazida da África para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar e nos engenhos. A representação do Nego Fugido mantém viva a história de Acupe, cujos integrantes do grupo teatral descendem de escravos negros. Através da encenação, os moradores de Acupe dão uma versão diferente à história oficial da libertação dos escravos: uma conquista dos negros e não uma concessão feita pela princesa Isabel.
A liberdade
se apresenta à frente do escravo, que na tentativa de fuga é caçado e amarrado, para depois comprar a sua alforria, mas a palavra é descumprida e vem a revolta dos caçadores enganados e a execução sumária do rei e seus soldados. Surge então a fada madrinha, que a todos ressuscita e liberta, acalentando o sonho de esperança. As apresentações ocorrem nos domingos de Julho, mês fraco para a pescaria em Acupe e, ao mesmo tempo, de muita festa no Recôncavo. No passado, participavam somente pescadores, mas há alguns anos ganhou a participação de mulheres e crianças.
Assim as
manifestações da cultura popular sobrevivem em Santo Amaro da Purificação. Com as cabeças pintadas com carvão, os lábios avermelhados com crepom molhado e saias de folhas, pessoas de Acupe lutam para ter êxito em manter de pé o Nego Fugido, folguedo tradicional da região de Santo Amaro que revive a época da perseguição feita aos habitantes dos quilombos pelos capitães-do-mato e pelos militares.
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