Entre as décadas de 40 e 60 um
cronista do cotidiano se destacava em Salvador. Mestre de trovador e repórter,
Cuíca de Santo Amaro se celebrizou como um dos personagens mais importantes da
história recente da cultura baiana. Seus versos virulentos assustavam poderosos
e gente comum, e não havia segredo guardado a sete chaves que escapasse do seu
faro para escândalo, que tornava público na cidade através de cordéis.
Amado por uns, odiado por outros,
ele vestia um fraque bem passado, flor na lapela e chapéu-coco. Dessa forma ele
desfilava pelas principais ruas de Salvador declamando seus versos de poeta
trovador. Apesar de não ter estudado e não estar entre os melhores
versificadores da literatura de cordel, Cuíca era a síntese do
trovador-repórter popular. Ele forneceu um relato picante e interessante do seu
tempo, um retrato folclórico-popular da vida baiana, através de centenas de
folhetos, impressos semanalmente durante quase 25 anos. Muitos dos seus cordéis
fazem denúncia contra abusos praticados contra o povo. Criticava não só
políticos que julgava sem caráter, mas donos de estabelecimentos que cobravam,
preços altos e repartições que forneciam serviços públicos de má qualidade.
Participou do filme “A Grande Feira”,
dirigido por Roberto Pires, representando ele mesmo, e inspirou o personagem
Dedé Cospe Rima de “O Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo Duarte e
baseado na obra homônima de Dias Gomes. Inspirou personagens do escritor Jorge
Amado (A morte de Quincas Berro D´Água, Tereza Batista Cansada de Guerra e
Pastores da Noite). Tudo reflexo do reconhecimento que conquistou, na vida do
povo de sua terra.
Com base em um escândalo que
explodiu em Salvador em 1956 Cuíca anunciou em cordel: “A Bahia que era,/orgulho
dos brasileiros,/antigamente gabava,/por todos os estrangeiros,/transformou-se
por encanto,/em antro de marreteiros./Marreteiros granfinotes,/os quais vivem
engravatados,/na arte da roubalheira,/já são eles inveterados,/mas não pela
polícia,/dificilmente fechados./Porque muitas vezes,/são homens de posição,/que
dão bronca no comércio,/depois ganham na questão,/ainda chamam a polícia,/para
a sua proteção”.
Quando os jornais esqueciam um
escândalo Cuíca entrava em ação. E uma das suas formas de
atuação era que ele
recebia dinheiro para elogiar, recebiam daqueles que queriam ser poupados (não
sofrer na língua do poeta), dos que queriam desmoralizar alguém ou dos leitores
que compravam suas revistinhas para saber da vida alheia e dos últimos acontecimentos.
Pescadores que chegavam nos saveiros à Rampa do Mercado, baianas, marinheiros,
todos ficavam sabendo do que acontecia na cidade, no país e no mundo através
dos versos de Cuíca.
Ele contava com detalhes o último
crime sensacional, o aumento do preço da carne seca e da farinha, o incidente
dos bêbados e a última façanha dos cangaceiros. Ele era bem informado dos
acontecimentos, sobretudo aqueles abafados pela polícia, jornais e rádios.
Cuíca contava com a ajuda de muitas pessoas que o procurava para fazer
denúncias. Cuíca se considerava um defensor e porta-voz dos mais pobres e
investia com toda rudeza contra os responsáveis pelos péssimos serviços
prestados ao povo de Salvador, denunciado negociatas, cambalhachos, manobras
altistas e câmbio negro de produtos alimentícios.
Cuíca nasceu em Salvador em 19 de
março de 1907. Ele ia muito a cidade de Santo Amaro da
Purificação namorar e
tocar violão. Foi lá, inclusive, que conheceu a mulher, Maria do Carmo Sampaio.
A intimidade com os versos começou com a profissão de propagandista. Ele
anunciava em versos as mais diferentes atividades comerciais da cidade. Vestido
de cartola e fraque, gritava a quem passava pela Baixa dos Sapateiros uma
grande liquidação ou um novo filme na cidade. Dessa forma, ele aprendeu com
maestria a chamar a atenção do público.
O trovador morreu no dia 23 de
janeiro de 1964, aos 56 anos. Por mais de 20 anos foi o cronista de Salvador,
autor de mais de 400 folhetos de cordel,
até hoje ele é um tipo maldito, mas
atual. Sua função social foi importante, mas ele teve suas próprias regras
éticas. Quem melhor difundiu sua função social foi Jorge Amado: “Não pense o
visitante que ele seja apenas um tipo de rua, figura popular e risível. É bem
mais que isso. É a voz do povo trabalhando que, não encontrando ressonância nos
poetas modernos, e tendo sede de poesia, cria seu bardo pobre e
semi-analfabeto. Os poetas estão nos bares inventando sonetos de rimas
milionárias ou quebrando a cabeça em ritmos novos para poemas exotéricos. Só
Cuíca de Santo Amaro canta para o povo pobre. Quando o forasteiro passar por
ele talvez a figura e a voz do trovador mereçam apenas um sorriso dos seus
lábios civilizados. Mas, que importa? O povo não sorri do poeta. Ri e sofre com
ele, combate e tem esperança!”.
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