A história dos grandes capoeiras
vive até nossos dias, na imaginação popular e cantigas que narram suas
façanhas. Em Salvador por volta de 1920 a polícia perseguia não só as rodas de
capoeira, mas também o samba e o candomblé. Nessa mesma época surge em Santo
Amaro, Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro, que foi um dos maiores
capoeiristas da Bahia e um dos mais admirados e citados em canções nas rodas de
capoeira. Manoel Henrique Pereira, homem negro e pobre, nascido no fim do
século XIX, numa época em que ser praticante de atividades ligadas à herança
africana era considerado um crime, se tornou a figura mais respeitada no
universo da capoeira. Sua fama cruzou os limites do Recôncavo, chegou à capital
baiana, ao restante do país e alcançou os quatro cantos do mundo.
Capoeirista corajoso num tempo em
que não havia a divisão entre os estilos angola e regional, muito menos escolas
de ensino da arte-luta, Besouro Cordão de Ouro – como também era conhecido – conseguiu
a façanha de hoje ser um herói tanto para os seguidores do mestre Bimba
(criador da regional), quanto para os discípulos do mestre Pastinha (líder
máximo da capoeira angola). Mais impressionante ainda: teve menos de 30 anos de
vida para construir toda essa fama, antes de ser assassinado em 1924.
Hoje, não há nome mais cantado
nas rodas de capoeira. Besouro inspirou a música “Lapinha”, de Baden Powell e
Paulo César Pinheiro, vencedora do Festival de Música da TV Record, na voz da
cantora Elis Regina. Serviu de fonte também para um dos capítulos do livro “Mar
Morto”, de Jorge Amado, e para os filmes “Besouro Capoeirista”, com o ator
baiano Mário Gusmão, e “Besouro”
do cineasta João
Daniel Tikhomiroff . A mesma coragem e
valentia lembradas nas canções, que o transformaram num herói, fizeram com que,
em vida, tivesse fama de arruaceiro e fosse perseguido pela polícia em inúmeras
ocasiões.
Justiceiro para uns, arruaceiro
para outros, o exímio capoeirista virou lenda com a alcunha de
Besouro
Mangangá. Ele foi uma espécie de Lampião da capoeira, e sua valentia correu
mundo. Saveirista, vaqueiro, amansador de burro brabo, chegou a ser soldado do
Exército. Sua personalidade permanece envolta em mistério, fortalecendo ainda
mais o mito em torno de seu nome. Sua certidão de nascimento nunca foi
encontrada, nem documentos de identidade. Também não há qualquer imagem – seja
fotografia ou pintura – dele. Besouro não deixou filhos conhecidos nem mulher.
Houve até quem desconfiasse de sua existência.
Ele nasceu no antigo quilombo
Urupy, localizado entre Santo Amaro e o distrito Oliveira dos Campinhos, filho
de João Matos Pereira e Maria Auta Pereira. Reza a
história que quando ele nasceu, também estavam lá (e do seu lado nunca saíram), os protetores da capoeira: os orixás Ogum e Oxossi. Aos 13 anos ganhou o
mundo quando saiu de casa para trabalhar e começou a escrever seu nome na
história através de suas aventuras.
Aprendeu com
um tio africano e ex-escravo os mistérios da capoeira, do jogo, das facas e das boas orações. O capoeirista era tão respeitado que costumava sair às ruas avisando aos comerciantes que fechassem as portas, pois tinha acabado de decretar feriado. Também era comum vê-lo presenteando um de seus compadres com penas de pavão, arrancadas dos chapéus dos valentões de Santo Amaro. Seu forte era a
agilidade, destreza, manha, rapidez de raciocínio, a calma e a surpresa. Muitas
crianças, mesmo a contragosto dos pais, se apaixonavam por aquele homem do povo
e seus movimentos perfeitos.
Seu jeito crônico de brigar,
cheio de malandragem e sorrisos de provocação irritava a polícia. Suas fugas
espetaculares ajudaram a criar o apelido: Mangangá também é o nome popular de
um espécie de besouro típico do sertão, conhecido como Abelha Mangangá, apesar
de ser extremamente maior que as demais especies de abelha e ser de coloração
preta e cuja mordedura produz calafrios e febre. Já o apelido Cordão de Ouro
teria surgido muito tempo depois, quando passou a haver a gradação de
capoeiristas através da cor do cordão. O cordão de ouro sereia superior a
qualquer outro nível de capoeira.
Nas rodas
de capoeira do Trapiche de Baixo (até hoje o bairro mais pobre de Santo Amaro) e nas festas populares, o jovem Besouro começou a se destacar. O seu forte era a agilidade, a rapidez de raciocínio, a calma e a surpresa, além de ter o corpo fechado com fortes mandingas e rezas. Paulo Barroquinha, Boca de Siri, Noca de Jacó, Doze Homens e Canário Pardo, todos moradores do local, foram os seus companheiros nas memoráveis rodas de Capoeira que hipnotizavam quem quer que passasse. Rodas de capoeira como aquelas só são vistas de tempos em tempos e, talvez, mesmo assim, nunca se vejam outras iguais.
Besouro se saía tão bem das
situações de perigo que as pessoas acreditavam que ele possuía poderes
sobrenaturais. Muitos falavam que ele tinha o corpo fechado. O próprio apelido
vinha dessa crença: quando ele se encontrava numa situação difícil, diante dos
inimigos numerosos demais, Manoel se transformava em besouro e saía voando.
Besouro vivia num mundo em que, para sobreviver, era preciso ter malícia dentro
e fora da roda da capoeira.
As brigas eram sucessivas e por
muitas vezes Besouro tomou partido dos fracos contra os
proprietários de
fazendas, engenhos e policiais. Certa vez estava sem trabalho e foi a Usina
Colônia, hoje Santa Elisa. Deram-lhe trabalho. Trabalhou uma semana. Quando foi
no dia do pagamento ele sabia que o patrão tinha o hábito de chamar o
trabalhador uma vez, e na segunda dizia: "quebrou para São Caetano",
que quer dizer: não recebe mais; e se reclamasse era chicoteado e ficava preso
no tronco de madeira e depois mandado embora. No dia do pagamento, deixou que o
patrão o chamasse duas vezes sem responder. O patrão disse o seu quebrou para
São Caetano. Todos receberam o dinheiro menos Besouro. Besouro invadiu então a
casa do homem, pegou-lhe pelo cavanhaque e obrigou que pagassem seu dinheiro.
Besouro tomou o dinheiro e foi embora.
Besouro fez história e virou lenda. Um homem que é tido por alguns como arruaceiro, criminoso ousado, fora-da-lei e, ao mesmo tempo, é considerado por outros um justiceiro, protetor dos oprimidos. Apesar de violento, não se tem notícia de que ele tenha matado alguém. Os casos de suas façanhas são contados por pessoas antigas, algumas conviveram com ele, outras que ouviram falar de sua rebeldia. Ele vivia num mundo em que para sobreviver era preciso ter malícia dentro e fora da roda de capoeira.
Para alguns,
Besouro desejava apenas justiça. Ele era o elemento negro injustiçado pela cultura dominante que necessitava existir pela formulação de um novo código e, ao mesmo tempo, de um novo conceito de justiça. Foi em meio a essa cultura dominante, de nobres e senhores de escravos, que o hábil capoeirista conseguiu se sobressair. Besouro morreu muito jovem, assassinado antes de completar 30 anos. O homem mais valente do Recôncavo baiano foi golpeado traiçoeiramente com uma faca de ticum (preparada especialmente para abrir seu corpo fechado pela mandinga) por um de seus colegas. Até hoje, Besouro é símbolo da capoeira em todo o território baiano, sobretudo pela sua bravura e lealdade com que sempre comportou com relação aos fracos e perseguidos pelos fazendeiros e policiais.
“Quem
é você que acaba de chegar//Eu sou Besouro Preto/Besouro de Mangangá/Eu vim lá de SantoAmaro/Vim aqui só pra jogar/Quem é você que acaba de chegar/Quem é você que acaba de chegar//Eu sou Besouro Preto/Besouro de Mangangá/Ando com corpo fechado/Carrego meu patuá/Quem é você que acaba de chegar/Quem é você que acaba de chegar//Me chamam Besouro Preto/Besouro de Mangangá/Bala de rifle não me pega/Que dirá faca de matar/Quem é você que acaba de chegar/Quem é você que acaba de chegar//Aqui em Maracangalha/Você não vai escapar/Contra faca de tucum/Ninguém pode se salvar/Quem é você que acaba de chegar/Quem é você que acaba de chegar”
No dia 08 de julho de 1924
Besouro se despedia da vida de valentão com apenas 28 anos. Foi em Maracangalha
quando foi golpeado com uma faca de ticum, à traição, por um de seus colegas.
Somente uma arma de mandioca poderia ferir mortalmente quem tem o corpo
fechado. Sua história foi construída em menos de três décadas mas até hoje
alimenta a fantasia do povo de Santo Amaro, onde nasceu. Nas palavras
inspiradas de Jorge Amado, “Besouro brilha no céu, é uma estrela”.
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